A atualidade de uma marxista rebelde
Como Rosa Luxemburgo, morta há 95 anos, ajuda a reinventar, em tempos de crise do capitalismo, o pensamento de Marx
Entrevista de Isabel Loureiro | Imagem: Rolando Astarita
(Publicado originalmente em 19/3/13. Atualizado em 15/1/14)
Há cinco anos, surgiu e cresce, em paralelo a uma crise do capitalismo duradoura e de final imprevisível, um movimento intelectual surpreendente: a reabilitação das ideias de Karl Marx. O filósofo alemão, que muitos desprezaram após a queda do Muro de Berlim, está de volta. Seus livros são republicados em todo o mundo, com tiragens e repercussão expressivas. Não raro, sua importância e contemporaneidade são reconhecidas até mesmo por publicações conservadoras e por consultores ilustres das grandes finanças globais.
Num 15 de janeiro como hoje, era assassinada, em Berlim, uma pensadora e militante que se apaixonou pelo marxismo muito jovem, viveu intensamente sob sua influência e contribuiu para enriquecê-lo – mas foi esquecida, no século 20, tanto pelo socialismo soviético quanto pelas correntes hegemônicas entre a esquerda. Estamos falando de Rosa Luxemburgo.
Talvez esta polonesa judia, que se tornou líder da Revolução Alemã de 1918 (1 2 3) seja importante hoje exatamente pelos motivos que a fizeram maldita no passado. É o que pensa a filósofa Isabel Loureiro, principal estudiosa da obra de Rosa no Brasil, autora de diversos livros sobre a líder da Revolução Alemã de 1918 e organizadora de uma vasta coletânea sobre sua obra, em três volumes (1 2 3),
A primeira particularidade de Rosa, avalia Isabel, é ponto de vista extremamente sofisticado sobre Revolução, Reformas e Poder. Rosa enxergava a importância (e a beleza…) das revoluções — as mudanças inesperadas, os grandes movimentos da História em que as maiorias desafiam o automatismo enfadonho das relações sociais e viram a mesa. Mas via estes momentos como a abertura de um longo processo de mudanças, não como mera oportunidade para instalar novos grupos no poder de Estado.
Disso derivava seu grande empenho em construir formas avançadas de democracia. Para transformar a vida, pensava ela, as sociedades precisavam enxergá-la; deviam superar a alienação, a repetição quase inconsciente de relações consolidadas ao longo do tempo. Esta lenta conquista de autonomia exige, é claro, abertura ao debate, à crítica e à polêmica. Por isso, Rosa, embora aliada a Lênin na luta contra o amortecimento e burocratização do marxismo, no início do século 20, divergiu abertamente das tendências centralizadoras do revolucionário russo. Em consequência, “foi posta no índex dos partidos comunistas”, diz Isabel Loureiro.
Mas esta combinação de rebeldia contra o capitalismo e desejo de valorizar a autonomia não fará de Rosa uma autora a ser estudada com atenção especial em nossos dias? Sua obra não será, de certa forma, um convite a rever a obra de Marx e reinventar seus sentidos? Isabel pensa que sim. Na entrevista abaixo, ela, que dedicou um dos três volumes da coletânea de Rosa à correspondência trocada com amigos e amantes, frisa: “Pelas cartas, podemos acompanhar seu doloroso processo de amadurecimento, conflitos amorosos, desejo de ser feliz, suas reclamações de como a vida política era desumana, seu grande amor à natureza e suas reflexões sobre arte”.(A.M.)
Pouco mais de um ano depois de lançar uma coletânea de três volumes sobre a obra de Rosa Luxemburgo, você organizou, em 2013, um seminário de três meses sobre o tema. Em que Rosa e sua visão particular do marxismo podem ajudar os novos movimentos que questionam o capitalismo no século 21?
Essa foi precisamente a pergunta que me fiz quando comecei a preparar o seminário. Por que, quase cem anos depois de seu assassinato, voltar a discutir as ideias de uma revolucionária marxista clássica, formada na cultura humanista europeia do século 19, cujo mundo desmoronou com a Primeira Guerra Mundial? A resposta não é evidente. Por que sua interpretação de Marx ainda hoje é atual? Para começar, Rosa tem uma concepção aberta do marxismo. No seu entender a teoria de Marx não era uma Bíblia com verdades prontas e imutáveis que os fieis tinham que seguir sem questionar, mas um manancial inesgotável que permite levar adiante o trabalho de compreensão do mundo contemporâneo.
Por isso mesmo, ela nunca hesitou em criticar as vacas sagradas do marxismo europeu, como Bernstein e Kautsky, e nem sequer o próprio Marx. Essa independência intelectual é, para os marxistas – que infelizmente têm uma tendência ao dogmatismo e à ossificação – uma indicação de que precisam continuar pesquisando e criando conceitos que permitam dar conta da nova fase da acumulação do capital e da nova situação em que se encontram as forças sociais. Além disso, Rosa acrescenta à teoria de Marx algo original, propriamente seu: a ideia de que as transformações sociais são fruto da ação autônoma das massas populares que, na luta quotidiana pela ampliação de direitos e, sobretudo, na luta revolucionária pela transformação radical da sociedade capitalista, ou seja, no seu processo de existência real, forjam sua consciência político-social. Em resumo, e simplificando muito, se queremos mudar o que está aí, devemos agir aqui e agora, porque a nossa ação é o que pode interromper o curso da história em direção ao abismo.
Alguns aspectos centrais que você enxerga no pensamento de Rosa têm muito a ver com a nova cultura política de autonomia e horizontalidade. Por que você a identifica com a crítica ao vanguardismo, à burocratização e ao centralismo?
Esses pontos que você menciona resumem bem o que opôs Rosa Luxemburgo à social-democracia e ao bolchevismo e continuam sendo de grande atualidade na cultura da esquerda. Durante o século 20, Rosa foi posta no índex dos partidos comunistas devido à sua crítica a Lênin e aos bolcheviques. Foi usada como ícone revolucionário pelos comunistas da antiga Alemanha Oriental (RDA), mas suas ideias democráticas e libertárias foram deixadas na sombra ou censuradas. O stalinismo acusou-a de espontaneísta, de não dar importância à organização política.
É preciso deixar claro que Rosa não é contra a organização (afinal ela sempre militou num partido político), e sim contra uma concepção de partido como vanguarda de revolucionários profissionais, hierarquicamente separada das massas, e que leva de fora a consciência às massas informes. Essa crítica era endereçada tanto à social-democracia, quanto ao bolchevismo. Para Rosa, que é herdeira do Iluminismo, o verdadeiro líder político é aquele que esclarece, que destrói a cegueira da massa, que transforma a massa em liderança, que acaba com a separação entre dirigentes e dirigidos, que contribui para formar aquilo que ela considera o mais importante pré-requisito de uma humanidade emancipada: a autonomia intelectual, o pensamento crítico das massas trabalhadoras. E, por sua vez, a autonomia intelectual requer a existência de liberdades democráticas: direito de reunião, associação, imprensa livre, etc. Daí a crítica que Rosa faz aos bolcheviques por terem eliminado o espaço público, que ela vê como o único antídoto contra a burocratização do partido e dos sovietes.
No seminário, uma sessão foi dedicada à “dialética entre reforma e revolução”. Algumas das características mais marcantes da nova cultura é o desejo de produzir mudanças, ainda que parciais; a recusa a reduzir a política a eleições, ou mesmo a apostar na revolução como um momento mágico e transcendente, em que toda a sociedade se transforma. O que Rosa poderia dizer sobre isso?
Esse é mais um ponto em que Rosa continua sendo atual. Ela queria uma humanidade em que houvesse liberdade e justiça social; para isso, era necessário passar do capitalismo ao socialismo. Porém, essa transição só seria possível com a mais ampla participação dos de baixo nos assuntos que lhes dizem respeito, o que significava um longo processo de amadurecimento, de correção de rota, etc. Daí a necessidade do debate público. A revolução não consistia na troca de homens no poder, era muito mais que isso, era todo um processo econômico, social, cultural e, claro, político – isto é, de tomada do poder pelos trabalhadores, que levaria muito tempo para se efetivar. Resumindo: no pensamento de Rosa Luxemburgo a ideia de tomada do poder – revolução como quebra rápida das relações de poder existentes – não se separa da ideia de mudança estrutural da sociedade, o que implica mudança de valores, ou seja, uma revolução no longo prazo. Para ela, as duas coisas precisam ocorrer conjuntamente.
Vivemos num mundo em que estão abertas janelas tanto para enormes transformações como para riscos de desumanização inéditos. Estão aí os drones, a tentativa de controlar a internet e vigiar os cidadãos por meio dela, os sinais de xenofobia, os grupos nazistas em certos países europeus. “Socialismo ou barbárie”, uma consigna de Rosa, tem a ver com este futuro tão aberto?
Quando Rosa diz que a humanidade está perante o dilema “socialismo ou barbárie”, o que ela tem diante dos olhos é o horror da Primeira Guerra Mundial que, para aquela geração, foi um cruel divisor de águas. Pela primeira vez, as pessoas se deram conta de que os avanços tecnológicos podiam ser mortíferos, de que a modernização capitalista destruiria todos os obstáculos que aparecessem no caminho de seu avanço infernal. E a esquerda radical alemã, de que Rosa era uma das lideranças, via no socialismo a única alternativa capaz de barrar essa descida aos infernos.
Mas, ao mesmo tempo, ela também se dava conta de que, com a guerra e o chauvinismo, que haviam engolido as massas trabalhadoras europeias, a luta em prol do socialismo tinha se tornado infinitamente mais difícil. Acho que podemos fazer um paralelo com o que se passa hoje. Depois da queda do comunismo burocrático, parecia que agora sim o terreno estava finalmente livre para que as ideias socialistas democráticas vingassem. Mas o que vemos é que, precisamente num momento em que o capitalismo está em crise e sofre um golpe poderoso, no momento em que constantes e gigantescas manifestações da população europeia mostram claramente que o capitalismo chegou ao fim da linha, o que acontece em termos de mudança no rumo de uma sociedade mais justa, mais igualitária? Absolutamente nada!
Os governantes continuam fazendo os ajustes pedidos pelo capital financeiro e as populações vivem num permanente estado de sítio econômico, sem saber o que o dia de amanhã lhes reserva. Precisamos nos perguntar por que, precisamente num momento em que caiu a máscara ideológica do neoliberalismo, a esquerda não consegue aparecer como alternativa. É necessário rever a história da esquerda institucional europeia para entender porque isso acontece. E aqui, mais uma vez, Rosa Luxemburgo tem o que dizer com sua crítica à adesão da social-democracia alemã ao estado de coisas vigente.
A democracia institucional está esvaziada e em crise, mas os novos movimentos reivindicam formas cada vez mais democráticas de decisão — inclusive em seu próprio interior. De que forma o debate sobre o partido, que opôs Rosa Luxemburgo a Lênin, no início do século XX, pode informar este anseio por democracia?
É preciso que fique claro que Rosa Luxemburgo é contra a abolição da democracia “burguesa” tal como ocorreu no mundo soviético. O que ela quer é complementar a liberdade política com a igualdade social. Isso significa que o pluralismo partidário, a imprensa livre, a liberdade de associação, etc. devem ser preservados. Rosa era uma marxista clássica, como eu disse, que tinha uma visão muito crítica dos regimes autoritários do seu tempo, como o czarismo e o império alemão.
Ao mesmo tempo, também se deve enfatizar que ela, diferentemente de seu companheiro de partido Eduard Bernstein, não tem ilusões quanto à democracia burguesa parlamentar. Ela não acredita na transição ao socialismo pela via eleitoral. Durante a revolução alemã de 1918, Rosa ficou entusiasmada com os conselhos de operários e soldados que surgiram no início do movimento, vendo neles uma forma de ampliar a participação dos de baixo. Mas não foi muito longe nestas reflexões, pois foi assassinada pouco tempo depois.
É muito comum que a esquerda libertária recorra ao exemplo dos conselhos como panacéia que supostamente resolveria os problemas da democracia representativa. É sem dúvida uma forma democrática que deve ser preservada, sobretudo no âmbito local. Mas penso que devemos pensar, como Rosa indicou sem aprofundar em seu texto de crítica aos bolcheviques escrito na prisão em 1918, que o ideal é combinar mecanismos de democracia representativa com mecanismos de democracia direta.
Hugo Chávez, símbolo do “socialismo do século 21″ para parte da esquerda, baseou sua ação num Estado forte e num comando centralizado. Em contrapartida, os zapatistas difundem a ideia de ”mudar o mundo sem tomar o poder”, cunhada por John Holloway. O que o pensamento de Rosa sugeriria, sobre esta polêmica?
Rosa defende a tomada do poder de Estado pelos trabalhadores. Nesse sentido, ela se oporia à fórmula de Holloway. No entanto, ao defender a necessidade da transformação radical dos valores burgueses-capitalistas na transição ao socialismo ela percebe que a revolução é um processo muito mais complicado, lento e doloroso que a simples tomada do poder de Estado. Ao mesmo tempo, ela não recusa a tomada do poder, vendo aí um meio de acelerar as mudanças necessárias. Porém, acima de tudo, para Rosa Luxemburgo, o novo grupo que chega ao poder tem a obrigação de preservar e/ou construir mecanismos de participação, de formação política, de criação de autonomia da massa popular e não eliminar os mecanismos democráticos existentes, como se fossem apenas expressão da dominação burguesa.
Crescem em todo o mundo, e em particular no Brasil, os movimentos que criticam a crença cega no “desenvolvimento”. A tradição marxista mais difundida também é desenvolvimentista. Materialista, acredita que o “desenvolvimento das forças produtivas” é anterior aos avanços da consciência. Rosa tem algo a dizer sobre isso?
Rosa é filha do seu tempo, e também filha do marxismo do seu tempo. Isso quer dizer que, por um lado, ela é defensora do desenvolvimento das forças produtivas, ou seja, da modernização capitalista. Mas, por outro – e isso é interessante e atual sobretudo para nós da América Latina –, ela também enfatiza o aspecto sombrio dessa modernização capitalista, com todo o seu conhecido séquito de horrores: destruição violenta de modos de vida primitivos pelo capitalismo europeu, a fim de submetê-los aos mecanismos do mercado; guerra do ópio na China; enriquecimento da metrópole às custas do endividamento da periferia; acumulação de capital mediante compras de armas pelo Estado, o que favorece guerras de todos os tipos, etc. Essa postura avessa ao eurocentrismo e à ideia de que o progresso da civilização justifica os sofrimentos dos povos periféricos dá-nos elementos para repensar no que consiste verdadeiramente o progresso e se o capitalismo é mesmo o horizonte inelutável da humanidade.
De que forma permanece atual a noção de imperialismo, que era cara a Rosa Luxemburgo? Como este conceito sobrevive num mundo marcado pelo declínio dos EUA e Europa, pela ascensão dos BRICS e, ao mesmo tempo, pela difusão, nestes países, dos modos de vida típicos do capitalismo?
Para Rosa, o imperialismo não é, como para Lênin, uma “etapa superior do capitalismo” e sim uma característica do capitalismo desde as origens. Desde o início, o capitalismo precisou de mercados externos (por exemplo, ao transformar as economias primitivas em economias de mercado) para se reproduzir. A violência e o saque das camadas sociais não-capitalistas, que Marx restringia ao período da chamada “acumulação primitiva”, Rosa Luxemburgo considera uma característica do capitalismo até sua plena maturidade.
Hoje assistimos à mercantilização de tudo que ainda não foi transformado em mercadoria: serviços públicos, saúde, educação, cultura, conhecimento, direitos autorais, recursos ambientais, etc. É precisamente aqui que David Harvey, ao analisar o novo imperialismo, procede a uma interessante atualização da teoria de Rosa Luxemburgo, forjando o conceito de “acumulação por expropriação”. As feministas alemãs, também inspiradas em Rosa, incluem nesse âmbito o trabalho doméstico feminino. Logo, como podemos ver, apesar da ascensão dos BRICS, e apesar de algumas alterações na divisão do mundo entre centro e periferia, a verdade é que o imperialismo, ainda que novo, vai bem, obrigado.
Um dos três volumes da coletânea organizada por você trata da vida privada de Rosa, recupera cartas pessoais, discute sua condição de mulher. Por que este destaque, pouco comum na literatura marxista?
Antes de mais nada, é preciso observar que tivemos a sorte de suas cartas terem sido preservadas praticamente intactas graças à devoção dos amigos. Essa correspondência é um documento precioso sobre o socialismo alemão e internacional da época. Mas a minha escolha recaiu sobre as cartas aos amantes e amigos, pois queria mostrar, pelo exemplo de uma revolucionária, que mesmo a militância política requer qualidades que muitas vezes são desprezadas como pequeno-burguesas, ou sei lá o que.
O exemplo de Rosa se opõe à imagem falsificada do militante como um ser puritano que dedica 24 horas do dia à causa revolucionária. Pelas cartas, podemos acompanhar seu doloroso processo de amadurecimento, conflitos amorosos, desejo de ser feliz, suas reclamações de como a vida política era desumana, seu grande amor à natureza, reflexões sobre arte.
Ela vai se libertando aos poucos de um relacionamento amoroso que não a satisfazia e se afirmando como uma intelectual dona do seu nariz, que intervém no espaço público, que não teme enfrentar as vacas sagradas da social-democracia alemã, com uma vida privada bastante livre para os valores da época. É uma personagem muito rica do ponto de vista emocional, uma ótima escritora, uma pessoa com um amplo espectro de interesses: fala de pintura, literatura, botânica, geologia, e, sobretudo nas cartas da prisão, descreve o pouco de natureza que pode enxergar da janela da cela ou do pátio da prisão com grande sensibilidade e riqueza de detalhes. As cartas aos amigos eram seu jeito de fugir do cárcere. As cartas da prisão, publicadas pela primeira vez logo depois do seu assassinato e republicadas inúmeras vezes, levaram gerações de militantes a se interessarem por Rosa Luxemburgo. Quem sabe acontece o mesmo com a nossa coletânea, publicada em 2011 pela Editora UNESP?