segunda-feira, 16 de junho de 2014

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A ascensão da direita europeia: reacção à direita neoliberal

James Petras

James Petras
Se é certo que são discutíveis tanto a identificação do que o autor designa como “esquerda radical” europeia como as generalizações que exprime sobre ela, este artigo contém uma reflexão estimulante sobre o quadro da UE pós-eleições, e sobre as causas e o significado do sucesso eleitoral de forças de extrema-direita no contexto da actual crise sistémica do capitalismo.







Introdução

Nas eleições para o Parlamento Europeu verificou-se um significativo avanço, em toda a região, de partidos de direita. O ascenso da direita percorre os países nórdicos, o Reino Unido, os Países Bálticos e os Países Baixos, a França, a Europa Central e de Leste e o Mediterrâneo.
Muitos, senão todos desses partidos de direita emergentes representam uma clara ruptura com os partidos governantes neoliberais, demo-cristãos e social-democratas que há mais de uma década presidem à crise.


A “nova Direita” não pode ser compreendida pela simples colagem de etiquetas negativas (“fascista”, “racista” e “anti-semita”). A ascensão da direita tem de ser inserida no contexto da decadência de instituições políticas, sociais e económicas. Sobre todo o edifício político construído pelos partidos neoliberais recai uma profunda responsabilidade relativamente à crise sistémica e à degradação da vida quotidiana. É principalmente pelo facto de isto ser assim entendido que uma massa crescente de trabalhadores vota pela direita.
A chamada “esquerda radical” - habitualmente definida como englobando os partidos políticos à esquerda dos partidos social-democratas governantes - não conseguiu, com excepção do Syriza na Grécia, capitalizar o declínio dos partidos neoliberais. Existem várias razões que contribuem para a inexistência de uma polarização esquerda-direita. Muita da “esquerda radical” deu, no fim de contas, “apoio crítico” a este ou aquele partido trabalhista ou social-democrata e encurtou a sua “distância” em relação aos desastres político-económicos consequentes. Em segundo lugar, as posições da “esquerda radical” relativamente a alguns temas foram para muitos trabalhadores irrelevantes ou ofensivas: nomeadamente o casamento gay e as políticas identitárias. Em terceiro lugar, a “esquerda radical” recrutou personalidades proeminentes oriundas de desacreditados partidos trabalhistas ou social-democratas e dessa forma deu azo a suspeitas de que não passaria de uma “nova versão” de decepções anteriores. Em quarto lugar, a “esquerda radical” é forte em manifestações públicas reivindicando “mudanças estruturais” mas falta-lhe a implantação local e clientelística das organizações de direita que proporcionam serviços, como as sopas dos pobres e a assistência em questões do dia-a-dia.
Enquanto a direita pretende colocar-se “no exterior” do sistema neoliberal confrontando-se com os amplos poderes assumidos pela elite de Bruxelas, a esquerda é ambígua: o seu apoio a uma “Europa social” implica um compromisso relativamente à reforma de uma estrutura desacreditada e moribunda. A direita propõe “capitalismo nacional” fora de Bruxelas, a esquerda propõe “socialismo no interior da União Europeia”. Os partidos de esquerda, os partidos comunistas, mais antigos, ou agrupamentos mais recentes como o Syriza na Grécia, obtiveram resultados diversificados. Em geral, os primeiros estagnaram ou perderam apoio apesar da crise sistémica. Os últimos, como Syriza, conseguiram ganhos importantes mas não conseguiram ultrapassar a barreira dos 30%. Ambos necessitam de aliados eleitorais. Em resultado disto, o desafio ao status quo neoliberal provém, no imediato, dos partidos da nova direita e, à esquerda, dos movimentos sociais extraparlamentares e dos sindicatos. No futuro imediato, a crise da União Europeia joga-se entre o sistema neoliberal estabelecido e a “nova direita”.

A Natureza da Nova Direita

A “nova direita” conquistou apoio fundamentalmente porque denunciou os quatro pilares do sistema da globalização neoliberal: globalização, controlo financeiro externo, gestão executiva imperativa (a troika de Bruxelas) e o fluxo desregulado de força de trabalho barata imigrante.
O nacionalismo, tal como a nova direita o assume, associa-se ao capitalismo nacional: produtores locais, retalhistas e agricultores são contrapostos aos mercados livres, fusões e aquisições pelos banqueiros internacionais e as multinacionais gigantes. A “nova direita” tem o seu público tanto entre a elite dos negócios nas províncias e nas pequenas cidades como entre os trabalhadores devastados pelo encerramento de empresas e pelas deslocalizações.


O nacionalismo da “nova direita” é “proteccionista” – procurando barreiras tarifárias e regulamentações estatais que protejam indústrias e trabalhadores da concorrência “desleal” dos grupos industriais de além-mar e do trabalho imigrante de baixos salários.
O problema é que o proteccionismo limita a importação de bens de consumo baratos vendidos no pequeno comércio retalhista a preços acessíveis aos trabalhadores e à classe média baixa. A direita “sonha” com um modelo corporativista em que trabalhadores a industrias se aliam contra o capitalismo competitivo liberal e contra os sindicatos de classe. À medida que a luta de classes declina, a política “tripartido” da direita neoliberal é reconfigurada pela “nova direita” com a inclusão do capital “nacional” e um “Estado paternalista”.
Em resumo, o nacionalismo da direita evoca um mítico passado de harmonia em que o capital nacional e o trabalho se uniam sob uma identidade comunitária comum contra o grande capital estrangeiro e o trabalho imigrante barato.

Estratégia Política: políticas eleitorais e extraparlamentares

Nesta altura, a “nova direita” está orientada em primeiro lugar para as políticas eleitorais, principalmente quando vem conseguindo apoio de massas. Aumentaram o seu peso eleitoral combinando mobilização de massas e organização comunitária com políticas eleitorais, em particular em zonas deprimidas. Atraíram eleitores de classe média da direita neoliberal e trabalhadores eleitores da velha esquerda. Enquanto sectores da direita, como Aurora Dourada na Grécia, ostentam abertamente símbolos fascistas – bandeiras e uniformes – ao mesmo tempo que provocam distúrbios de rua, outros pressionam a direita neoliberal governante a que adopte algumas das suas reivindicações, em especial as que dizem respeito à imigração e à “deportação de ilegais”. No presente, muita da acção da “nova direita” centra-se em fazer prevalecer a sua agenda e em ganhar apoiantes através de apelos agressivos no âmbito da ordem constitucional e da contenção dos sectores mais violentos. Para além disso, o clima político actual não é favorável a que seja conduzida uma actividade extraparlamentar de “lutas de rua”, nas quais a “nova direita” seria facilmente esmagada. Muitos estrategas de direita crêem que o contexto actual aponta para a acumulação de forças através de meios pacíficos.


Condições que facilitam o crescimento da direita
Existem numerosos factores estruturais que contribuem para o crescimento da “nova direita” na Europa:
Primeiro e mais importante, existe um declínio claro do poder e das instituições democráticas em resultado da centralização de poderes legislativos-executivos nas mãos da autodesignada elite de Bruxelas. A “nova direita” argumenta de forma eficaz que a União Europeia se tornou uma instituição política profundamente autoritária desautorizando os eleitores e impondo duros programas de austeridade sem qualquer mandato popular.


Em segundo lugar, os interesses nacionais foram subordinados ao interesse da elite financeira identificada como responsável pelas duras políticas que degradaram os padrões de vida e devastaram as indústrias locais. A “nova direita” contrapõe “a nação” à “troika” de Bruxelas – o Fundo Monetário Internacional, o Banco Central Europeu e a Comissão Europeia.
Em terceiro lugar, a “liberalização” corroeu as industrias locais e minou comunidades e legislação favorável ao trabalho. A direita denuncia as políticas de imigração liberais, que permitem um influxo de larga escala de força de trabalho barata num período em que o desemprego atinge níveis de depressão. A crise do capitalismo combinada com a larga reserva de força de trabalho imigrante barata forma a base material para os apelos da direita dirigidos aos trabalhadores, em particular aqueles que têm empregos precários ou que estão desempregados.

Direita: contradições e duplo discurso

A direita, ao mesmo tempo que critica o Estado neoliberal pelo desemprego, concentra-se mais nos imigrantes em competição com os nacionais no mercado de trabalho do que nos capitalistas cujas decisões de investimento determinam os níveis do emprego e do desemprego.
A direita ataca a natureza autoritária da União Europeia, mas as suas estruturas, ideologia e história prefiguram um Estado repressivo.
A direita propõe-se, justamente, acabar com o controlo da elite estrangeira sobre a economia, mas a sua própria visão de um “Estado nacional”, especialmente se associado à NATO, às corporações multinacionais e às guerras imperiais, não proporciona qualquer base para a “reconstrução da economia nacional”.


A direita fala das necessidades dos que nada têm e de que é necessário “acabar com a austeridade” mas foge do único mecanismo capaz de superar as desigualdades – a organização de classe e a luta de classe. A sua visão da “colaboração entre capital produtivo e trabalho” é contraditada pela agressiva ofensiva capitalista para cortar salários, serviços sociais, pensões e condições de trabalho. A “nova direita” acusa os imigrantes de serem a causa do desemprego enquanto ignora o papel dos capitalistas que contratam e despedem, investem no estrangeiro, deslocalizam empresas e introduzem tecnologia que substitui trabalhadores.
Concentram a cólera dos trabalhadores “para baixo” contra os imigrantes, em lugar de “para cima” contra os proprietários dos meios de produção, de financiamento e de distribuição que em última análise manipulam o mercado de trabalho.
Entretanto, a desmiolada defesa que a “esquerda radical” faz da imigração sem limites em nome de uma noção abstracta de “solidariedade internacional dos trabalhadores” deixa à vista o seu arrogante preconceito liberal, como se nunca tivessem ouvido a opinião de trabalhadores reais que têm de competir com imigrantes por empregos escassos, sob condições crescentemente desfavoráveis.
A “esquerda radical” tem ignorado, sob a bandeira da “solidariedade internacional”, o facto histórico de que o “internacionalismo” tem de ser construído sobre uma forte base nacional de trabalhadores organizados.
A esquerda permitiu à “nova direita” a exploração e a manipulação de causa nacionalistas poderosamente justas. A “esquerda radical” contrapôs “nacionalismo” a socialismo, em vez de os compreender como interligados, especialmente no contexto actual de uma União Europeia dominada pelo imperialismo.
A luta pela independência nacional, a ruptura da União Europeia, é essencial para a luta pela democracia e o aprofundamento da luta de classe por empregos e segurança social. A luta de classes é mais poderosa e efectiva no familiarizado terreno nacional – mais do que no confronto com os distantes contramestres em Bruxelas.
A noção existente entre muitos dirigentes da “esquerda radical” de “refundar” a UE numa “Europa Social”, a ideia de que a UE poderia ser convertida numa “União Europeia de Estados Socialistas” apenas prolonga o sofrimento dos trabalhadores e a subordinação das nações aos não-eleitos banqueiros que dirigem a UE.
Ninguém acredita seriamente que comprar acções do Deutsche Bank e participar nas suas reuniões anuais de accionistas iria permitir que os trabalhadores o “transformassem” num “banco do povo”. No entanto o “Banco dos Bancos”, a “Troika”, constituída pela Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o FMI, define todas as políticas de fundo para cada estado membro da União Europeia. Não rectificando estratégias e permanecendo cativa da “Euro-metafísica”, a esquerda abdicou do seu papel de fazer avançar a luta de classes através do renascimento da luta nacional contra os oligarcas da UE.

Resultados e perspectivas

A direita está a avançar com rapidez, embora de forma desigual, em toda a Europa. O seu apoio não é efémero mas estável e cumulativo, pelo menos a médio prazo. As causas são estruturais e resultam da capacidade da “nova direita” de explorar a crise socioeconómica dos governos da direita neoliberal e de denunciar as políticas autoritárias e antinacionais da oligarquia não-eleita da UE.
A força da “nova direita” reside na “oposição”. Os seus protestos ressoam enquanto eles permanecerem distantes dos centros de comando da economia e do Estado capitalista.


São capazes de transitar do protesto para o poder? Poder partilhado com os neoliberais irá obviamente diluir e desagregar a sua actual base social.
As contradições irão agudizar-se na medida em que a “nova direita” se deslocar de posições de “oposição” para a partilha do poder com a direita neoliberal. O cerco massivo e a deportação de trabalhadores imigrantes não irá modificar as políticas capitalistas de emprego nem repor serviços sociais ou melhorar padrões de vida. Promover o capital “nacional” através de uma qualquer união corporativista entre capital e trabalho não irá reduzir o conflito de classes. É totalmente irrealista imaginar o capital “nacional” a rejeitar os seus parceiros estrangeiros para favorecer o trabalho.
As divisões no interior da “direita nacionalista”, entre os abertamente fascistas e os sectores eleitoral-corporativistas, irão intensificar-se. A concertação com o capital “nacional”, os procedimentos democráticos e as desigualdades sociais irão provavelmente abrir caminho a uma nova vaga de conflitos de classe que desmascarará o falso radicalismo da direita “nacionalista”. Uma esquerda comprometida, implantada no terreno nacional, orgulhosa das suas tradições nacionais e de classe, e capaz de unir os trabalhadores para além das “identidades” étnicas e religiosas pode reconquistar apoiantes e reemergir como a verdadeira alternativa às duas faces da direita – a neoliberal e a “nova direita nacionalista”. A prolongada crise económica, a degradação dos padrões de vida, o desemprego e a insegurança pessoal que impulsionam a ascensão da direita nacionalista podem também conduzir ao emergir de uma esquerda profundamente ligada à realidade nacional, comunitária, e de classe. Os neoliberais não têm soluções para os desastres e problemas que eles próprios criaram, os nacionalistas da “nova direita” têm a resposta errada – a reaccionária. Tem a esquerda a solução? Só com o derrube do despótico domínio imperial de Bruxelas poderá começar a enfrentar as questões nacionais e de classe.

Post-scriptum e observações finais:



Na ausência de uma alternativa de esquerda, os trabalhadores eleitores optaram por duas alternativas: abstenção massiva e greves. Na recente eleição da UE 60% do eleitorado francês absteve-se, com a abstenção a atingir os 80% em bairros operários. Este padrão repetiu-se e foi até ultrapassado em toda a UE, o que está longe de significar apoio tanto para a UE ou para a “nova direita”. Nos dias e semanas que antecederam a votação, os trabalhadores saíram à rua. Houve greves massivas de trabalhadores da função pública e de estaleiros navais, assim como de trabalhadores de outros sectores e manifestações de massas de desempregados e de classes populares em luta contra os cortes “austeritários” impostos em serviços sociais, saúde, educação, pensões, encerramento de fábricas e despedimentos colectivos. A abstenção eleitoral generalizada e manifestações de rua indicam que uma enorme parcela da população rejeita tanto a direita neoliberal da troika como a “nova direita”.

sábado, 14 de junho de 2014

Elite rastaquera e boca suja reelegerá Dilma no 1º turno | Brasil 24/7

terça-feira, 10 de junho de 2014

Os cotistas desagradecidos | Portal Geledés

Os cotistas desagradecidos


Comentários
Família de Albino Postali e Rosa Frizera Postali_ Caxias do Sul _ 1911_ Foto de Primo Postal
Por Tau Golin*, em  Sul 21
A incoerência é típica dos desagradecidos. É o auge da hipocrisia individualista, o que há de mais nojento no ser humano. A cena patética de cuspir no prato e enfumaçar a história.
Depois que o Brasil começou recentemente a política de cotas, a algaravia da intolerância tomou conta do país. A cota, no geral, é um pequeno acelerador para retirar as pessoas da naturalização da miséria, um meio temporário de correção histórica da condição imutável da pobreza. Se a política de cotas é essencial em sociedades estratificadas, pode-se imaginar a sua necessidade neste Brasil amaldiçoado pela escravidão e etnicídio dos povos indígenas.
Nos meios de comunicação observa-se o triunfo de uma enganosa ética do trabalho, o elogio do esforço individual, como se seus porta-vozes levantassem como fênix das cinzas das dificuldades para o voo da prosperidade. Gente empobrecida, ao mesmo tempo, amaldiçoa os cotistas, culpando-os pela sua condição de pouco progresso, apesar de trabalharem a vida toda como jumentos. Invariavelmente realizam o elogio do trabalho, do esforço pessoal, sem questionarem aqueles que acumulam os produtos de seu esgotamento e imutabilidade social.
Nos ambientes sociais, invariavelmente, escuto descendentes de imigrantes condenarem a política de cotas. São ignorantes ou hipócritas. A parte rica do Rio Grande do Sul e outras regiões do Brasil é o presente de cotistas do passado. As políticas de colonização do país foram as aplicações concretas de políticas de cotas. Aos servos, camponeses, mercenários, bandidos, ladrões, prostitutas da Europa foi acenado com a utopia cotista. Ofereceram-lhes em primeiro lugar um lugar para ser seu, um espaço para produzir, representado pelo lote de terra; uma colônia para que pudesse semear o seu sonho.
E lhes alcançaram juntas de bois, arados, implementos agrícolas, sementes, e o direito de usar a natureza – a floresta, os rios e minerais – para se capitalizarem. No processo, milhares não conseguiram pagar a dívida colonial e foram anistiados. E quando ressarciram foi em condições módicas.
Sendo cotistas do Brasil puderam superar a maldição de miseráveis, pobres, servos, e de execrados socialmente. Muitos sequer podiam montar a cavalo, hoje, seus descendentes são até patrões de CTG, mas condenam as cotas, a mão, a ponte, o vento benfazejo, que mudaram a vida de suas famílias.
No início, no século XVIII, sobre os territórios dos charruas, minuanos, kaingangs e guaranis se aplicou a cota de “sesmaria”, um módulo de algo em torno de 13.000 (sim, treze mil) hectares. Se exterminou dois povos nativos para se formar a oligarquia. Em seguida, na metade do mesmo século, aos casais açorianos, destinaram-se “datas”, equivalentes a 272 hectares. No século XIX, aos imigrantes, concederam-se as “colônias”, de mais ou menos 24 hectares. E vieram as colonizadoras particulares e as secretarias do Estado sobre os territórios dos kaingangs e guaranis. E depois a reforma agrária. E mais os programas de expansão da frente agrícola no Brasil central, no Mato Grosso e na Amazônia, com filhos do Rio Grande, na maioria as primeiras gerações dos imigrantes.
Portanto, o Rio Grande é o produto dos cotistas, os quais demandaram sobre outras regiões do país.
E nesta história, a conclusão é óbvia: dificilmente se encontra um indivíduo que não tenha tido familiar cotista. A formação do mercado capitalista de força de trabalho é outra conversa. Faz parte do sistema. Como integra a perversão social o fato histórico de que os proprietários tendem ao individualismo, à baixa solidariedade, ao acúmulo sem compromisso cidadão. Demonstram isto os herdeiros dos cotistas do passado e dos programas de incentivos recentes, com a discriminação, a falta de solidariedade, exacerbado racismo, e o típico deboche dos idiotas.
*Tau Golin é jornalista e historiador.
-
Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.

terça-feira, 3 de junho de 2014

Um olhar brasileiro sobre os Hereros: em filme e exposição, fotógrafo apresenta a fascinante etnia africana - Por dentro da África

Um olhar brasileiro sobre os Hereros: em filme e exposição, fotógrafo apresenta a fascinante etnia africana





Hereros em Angola - Sergio Guerra - Divulgação 

Natalia da Luz, Por dentro da África




Rio – Eles vivem entre a Namíbia, Angola e Botswana, localizados no sul do continente africano, há mais de 2.500 anos. Um
dos grupos étnicos mais antigos da humanidade, os hereros, formam uma
sociedade surpreendentemente evoluída, fascinante, que mesmo tão próxima
dos sinais de tecnologia e desenvolvimento, conserva uma cultura
tradicional, que certamente tem muito a ensinar. Toda essa riqueza que
preenche o dia a dia dos hereros é retratada no trabalho de um
brasileiro, que há cinco anos acompanha uma comunidade na Namíbe, em
Angola.


- Eu pensei como que uma cultura que está tão perto da sociedade
moderna poderia sobreviver, permanecer tão firme nos dias de hoje.
Comecei então a planejar a possibilidade de descobrir e de compreender
melhor a vida deles – explica, em entrevista exclusiva ao Por dentro da África,
Sérgio Guerra, o fotógrafo e produtor cultural responsável por
“Hereros”, exposição que já rodou o Brasil e a Europa (agora está em
exibição no Centro Cultural Conde Duque, em Madrid, com a curadoria de
Emanoel Araujo).


Hereros em Angola - Sergio Guerra - Divulgação


Durante os últimos cinco anos ele investigou, acompanhou, vivenciou a
cultura dos hereros. A convite do governo de Angola, ele desembarcou no
país e, escalado para acompanhar uma gravação do programa “Nação
Coragem”, da TV estatal, o pernambucano visitou as regiões de Huila e
Namibe, onde fez as primeiras imagens dos mukubais, um dos subgrupos dos
hereros. Aquele primeiro contato, no ano de 1997, foi uma porta que se
abrira para um novo sentido na vida de Sérgio, que também produziu um
documentário de longa-metragem sobre a vida dos hereros.


Sete anos depois, ele retornou descobrindo os muhimbas, muhakaonas,
mudimbas, muchavicuas, cada um com suas particularidades, rituais,
maneiras de se comportar. E mais uma vez ele percebera que a história
dos hereros precisava ser contada ao mundo. Acompanhado do intérprete
Martins (que fala não apenas o herero, mas os dialetos mukubla e
hakaona, por exemplo), ele mergulhou, em junho de 2009, no cotidiano da
comunidade em uma temporada de 60 dias com uma caravana de 17 pessoas.


Hereros em Angola - Sérgio Guerra - Divulgação-
Eu aprendi a conviver com uma cultura única. Eles não devem ser
subestimados, não podem ser julgados a partir dos valores que estão
enraizados em nossa cultura. Eles cultivam a solidariedade, praticam
economia familiar, onde o maior beneficiário é o coletivo. Isso sim é um
exemplo para a sociedade – conta o fotógrafo,  com brilho nos olhos,
que assina a exposição vista por mais de 200 mil pessoas.


O país que passou por uma violenta guerra civil (de 1975 a 2002) que
poupou poucas regiões, como a capital Luanda, selou a paz entre os povos
e mantém,  hoje, os hereros em uma região, apesar de não existir uma
demarcação oficial de terras para eles. Sérgio conta que o governo
permite que eles fiquem dentro do Parque Nacional do Iona (em Namibe) e
em outras áreas que  agora começam a ser ocupadas por grandes
fazendeiros.


Genocídio na vizinha Namíbia


As fronteiras de Angola com os vizinhos Botsuana e Namíbia - Divulgação Durante
a partilha da África Negra, entre 1904 e 1907, os hereros sofreram um
dos maiores genocídios do século XX, segundo a ONU. Em 12 de janeiro de
1904, eles organizaram uma revolta contra o domínio alemão na Namíbia e
foram brutalmente reprimidos sob ordem do general Lothar Von Trotha.
Cerca de 60 mil hereros (70% da população da época) e 10 mil namaquas
(50% da população) morreram, principalmente, de inanição e envenenamento
por parte das tropas alemãs.


Hereros em Angola - Sergio Guerra - DivulgaçãoEm
1985, a ONU reconheceu o caso como uma das primeiras tentativas de
genocídio no século XX. Em 2004, no 100º aniversário do
conflito, Heidemarie Wieczorek-Zeul, ministra do desenvolvimento da
Alemanha, se desculpou oficialmente pela primeira vez e manifestou pesar
sobre o genocídio cometido pelos alemães, declarando: “Nós, alemães, aceitamos a nossa responsabilidade moral e histórica e a culpa pelos atos realizados pelos alemães na época.


Na Namíbia, Sérgio explica que os hereros são identificados como os
que usam vestimentas tradicionais, já os subgrupos são chamados pelo
nome, como os himbas. Em Angola, apesar de se tratarem como subgrupos
(mukubais, muhimbas, muhakaonas…), poucos se referem à etnia herero por
falta de conhecimento sobre suas origens.


- É por essa identificação que eles toleram os casamentos entre os
diferentes subgrupos e se reconhecem como família – ressalta o
brasileiro.


Patrimônio


Hereros em Angola - Sergio Guerra - DivulgaçãoOs
hereros desconhecem a importância do dinheiro que circula no país. O
kwanza (moeda de Angola) não é usado em seus negócios, diferentemente do
gado que representa o maior patrimônio para eles. Quanto mais gado,
mais rico o homem é. E essa riqueza ele distribui entre a família para
que todos cuidem dela.


- Eles se ajudam emprestando os animais entre si, mas a venda do gado
deve ser uma decisão mais familiar. Há muito pouco contato com o
dinheiro, mas isso está aumentando nos dias atuais. Antes, entre os
himbas, só se falava em rands namibiano e agora eles já usam o kwanza.
Os comerciantes preferem fazer tudo a partir da troca, o que é muito
mais lucrativo para eles – explica o brasileiro.


O povo usa o leite da vaca para produzir o óleo que passa sobre o
corpo. A mistura que também contém ocre e plantas é uma espécie de banho
para os hereros, um importante traço da cultura deles e uma maneira de
manter o corpo limpo e protegê-lo do sol.


Relações conjugais


Entre os hereros, Sérgio destaca a relação predominantemente
patriarcal, com deveres bem claros para cada um dos membros da família:
os homens cuidam dos bois (o maior patrimônio para um herero); as
crianças, dos cabritos e as mulheres cozinham, tiram o leite das vacas e
cuidam da horta e das crianças.


Hereros em Angola - Sergio Guerra - DivulgaçãoA
poligamia é um aspecto que também caracteriza os hereros, mas ela não é
permitida apenas para os homens. A mulher pode ter namorados, mas, se
por acaso, o marido não gostar de algum, rapidamente ela se afasta para
não gerar conflito na família. Oferecer a mulher (ou uma delas) para
dormir com um amigo ou convidado é sinal de gentileza entre eles.


- A mulher tem os seus deveres, mas também tem os seus direitos. Ela é
respeitada e se não quiser praticar sexo, ela não o fará nem mesmo
à força. Quando a mulher fica grávida, o filho será de responsabilidade
do marido (independentemente se ele for o pai) – afirma Sérgio,  que
acompanhou não apenas a relação familiar, mas todos os rituais que
compõem a vida dos hereros, desde o nascimento até a morte.


O casamento na infância 


Os hereros podem se casar aos 3, 4, aos 10 anos a partir de uma
negociação feita entre os pais do pretendente e da noiva. De acordo com
Sérgio, o pretendente vai até à família da noiva e propõe o casamento.
Se aceito pelos pais da noiva, ele passará a ser o provedor da
futura esposa, que viverá com os pais até estar preparada para o
casamento (o que acontece após a primeira menstruação e sua iniciação
sexual).


- O marido será responsável por alimentar e cuidar dessa mulher. Após
a primeira menstruação, ela passa por uma iniciação sexual realizada
com os primos. Após um período (que pode durar alguns meses), ela vai
para a casa do marido e se, por acaso, ela não gostar dele, ela não será
obrigada a ficar. Mas uma coisa é importante: no futuro, os filhos dela
com outro homem serão deste marido, a menos que um segundo pretendente
negocie com o primeiro pretendente e arque com suas dívidas – explica.


Hereros em Angola - Sergio Guerra - DivulgaçãoConsiderado
da família, Sérgio, que vive em Angola e visita os hereros com
frequência, tinha liberdade para acompanhar o cotidiano do povo,
inclusive seus momentos mais importantes como nascimento, batismo,
casamento e funeral. Desta relação, o pernambucano ganhou um nome de
batismo em herero: Twamunacó, que significa “alguém que confiamos”.
Os  hereros também entenderam que tinham a possibilidade de se tornarem
protagonistas de sua própria história e de serem beneficiados com esse
trabalho tão especial do brasileiro que mantém com eles uma relação de
amizade que emociona quem assiste. O documentário “Hereros Angola” tem
estreia prevista para o Festival Jan Rouch, na França.


- A expectativa é que consigamos que estas populações possam ter mais
acesso à saúde e educação sem comprometer a cultura e a forma de
viver. Existe um exercício de aceitar e respeitar uma cultura que não é
sua. Quando você decide se abrir e aceitar as pessoas da maneira como
elas são, isso muda você”


Confira a exposição virtual aqui e o trailler do documentário abaixo



Por dentro da África

Read more: http://www.pordentrodaafrica.com/cultura/um-olhar-brasileiro-sobre-os-hereros-etnia-vive-entre-botsuana-angola-e-namibia#ixzz33chscnJV

terça-feira, 27 de maio de 2014

Ucrânia: Poroshenko, o camaleão | DESACATO

Ucrânia: Poroshenko, o camaleão

Eleito no 1º turno do pleito de domingo 25, o novo presidente da Ucrânia serviu sob governos favoráveis ao Ocidente e à Rússia.
Por Gianni Carta.
Petro Poroshenko: A oligarquia na presidéncia
Petro Poroshenko: A oligarquia na presidéncia

Petro Poroshenko era o menos ruim dos
candidatos à Presidência. Aos 48 anos, o magnata das confeitarias mais
conhecido como “Rei do Chocolate” é considerado um pragmático. O motivo?
Foi ministro nos governos sob a presidência do pró-Europeu Viktor
Yushchenko e do corrupto pró-russo Viktor Yanukovich. De fato,
Poroshenko é um dos fundadores do pró-russo Partido das Regiões, o de
Yanukovich. E quando eclodiram os protestos na Praça Maidan em novembro
de 2013, pelo fato de Yanukovich não ter assinado um acordo de
livre-comércio com a União Europeia – enquanto o presidente flertava com
a Rússia –, Poroshenko deu o ar da graça ao lado dos manifestantes. Em
fevereiro, Yanukovich escapuliu para a Rússia. Poroshenko sentiu,
certamente, que suas chances de ser o novo presidente eram fortes.
A Polônia será o primeiro país
estrangeiro que Poroshenko visitará. Um gesto altamente simbólico, visto
que Varsóvia tem fortes elos com Kiev e faz parte da União Europeia.
“Escolhemos a Europa”, disse Poroshenko no seu primeiro discurso. Em
seguida, Poroshenko quer ir a Moscou, e os russos já aceitaram o
“diálogo” com o novo presidente. O diálogo, diga-se, será difícil. Isso
porque Poroshenko não aceita a anexação pelos russos da Crimeia, em
março. Na Ucrânia, o primeiro destino de Poroshenko será Donbass, a
região industrial ao leste do país. Lá, está claro, ele também terá
dificuldades. As regiões autoproclamadas independentes de Donetsk e
Luhansk, rebatizadas Nova Rússia, só o aceitarão como presidente se
Poroshenko, por sua vez, aceitar a independência das duas regiões
unificadas. União que Poroshenko já disse não aceitar.
De qualquer forma, a competição no
pleito era fraca para Poroshenko. Yulia Timoshenko, a liderar a
agremiação Batkivshchyna (Pátria), heroína da Revolução Laranja, em 2004
(provocada por fraude eleitoral de Yanukovich), agora está com a imagem
um tanto desgastada. Aos 53 anos, suas tranças loiras com coroa capilar
continuam lindas, mas ela passou anos atrás das grades por aceitar um
controverso contrato de gás com a Rússia. Agora ela busca justiça
social… No entanto, ideologia é algo difícil de explicar em um país de
23 anos. O mais sensato é dizer que aqui os políticos mudam de ideologia
de acordo com as circunstâncias. De fato, Poroshenko quer fazer
renascer seu Partido Solidariedade, que seria, acreditem, de
centro-esquerda.
Com 70% dos votos contados, o
“pragmático” Poroshenko contava na segunda-feira 26 com 53,75%,
Timoshenko com 13% e Oleg Liashko, um radical independente, com 8% do
sufrágio. O populista Liashko chegou a propor tomar militarmente as
regiões de Donetsk e Luhansk.
O comparecimento às urnas foi
relativamente alto, de 60%, especialmente quando considerados os fatos
de que em Donetsk não houve colégio eleitoral, para citar um exemplo.
Isso sem contar as intimidações por parte de milicianos separatistas
pró-russos. E não somente em Donetsk e Luhansk, mas também em outras
regiões separatistas ao leste e sul do país. Em Sloviasnk, por exemplo, o
fotojornalista italiano Andrea Rocchelli, e seu interpréte, Andrei
Mironov, foram mortos.
Em Kiev, as eleições, também municipais,
foram tranquilas. Debaixo de um enorme calor, no colégio eleitoral
localizado no Instituto de Pesquisa de Fisiologia Bogomelets, centro de
Kiev, Ivan Plachkov, ex-ministro de Energia de Yushchenko, disse a
CartaCapital: “Votei no candidato que pode vencer no primeiro turno”. O
motivo? Ele cita o exemplo de sua vinícola, às margens do Danúbio. “O
terroir, as uvas e a mão de obra são da Ucrânia. A tecnologia é italiana
e francesa.” Ele não usa uvas estrangeiras? “Claro, precisamos
experimentar novos vinhos, mas temos vinhos com uvas ucranianas vendidos
na Europa.”
Em outro colégio eleitoral de Kiev, o
Clube do Exército, o calor inexiste. Ar condicionado. Uma jovem, Taiana
Batyuk, diz que votou em Poroshenko. “Ele é um empresário, acho que vai
saber administrar o país.” Ela começa a chorar. “Não quero mais ver a
imagem tão denegrida da Ucrânia mundo afora. Somos pobres, a Rússia nos
domina, a mansão de Yanukovich virou museu para estrangeiros.” Seu
companheiro, um sorridente jovem, Pinkevich Alexey, a conforta.
Eis Miroslava Kotorovich, violinista de
grande talento, com a filha. “Votei em Poroshenko. Espero que ele saiba
lidar com a UE e Putin. É a melhor opção.”
Quem sabe tem razão Kotorovich. Nascido
em Odessa, ele tem experiência em um país pós-comunista de 46 milhões de
habitantes onde empresários são vistos como pessoas que tomam suas
próprias decisões. São os oligarcas, que, bem ou mal, influenciam
políticos ou se tornam políticos.
Segundo a revista americana Forbes,
Poroshenko vale 1,6 bilhão de dólares. No início da campanha eleitoral,
Poroshenko era o segundo favorito, atrás de Vitali Klitschko, campeão
peso pesado pelo Conselho Mundial de Boxe. Klitschko, da legenda Aliança
Democrática Ucraniana pela Reforma e herói na luta conta Yanukovich na
Praça Maidan, abriu mão, diga-se, de sua candidatura presidencial para
favorecer Poroshenko. Isso após um encontro em Viena entre ele,
Poroshenko e Dmytro Firtash, o magnata do gás recentemente preso em
Viena pelo FBI. Firtash, diga-se, é um grande lobista russo. “Há muitas
especulações sobre esse encontro e tantos outros nesse país onde
oligarcas são políticos ou fazem política”, diz o cientista político e
jornalista Oleg Varfolomeyev.
“Se legitimiado em todo o país,
inclusive no leste e no sul, Poroshenko trará novas esperanças”, diz o
economista Andriy Novak. As pessoas saberão com quem tratar. Ele é bom
empresário e, portanto, entende de economia. No entanto, “será que seu
objetivo é ser mais rico que Kinat Akhmetov, o oligarca mais rico da
Ucrânia?” Outro obstáculo: “Ele é sincero quando diz que não quer
aumentar os poderes presidenciais?” Desde a Revolução Laranja de 2004,
os poderes do presidente foram reduzidos. De um camaleão espera-se
qualquer coisa.
Foto: Sergei Supinski / AFP

domingo, 25 de maio de 2014

Algumas ideias sobre o Capital de Piketty

harveyphoto copyEsquerda - [David Harvey] Thomas Piketty escreveu um livro chamado Capital que
causou grande celeuma. Ele defende a taxação progressiva e a tributação
da riqueza global como único caminho para deter a tendência à criação
de uma forma “patrimonial” de capitalismo, marcada pelo que chama de uma
desigualdade “apavorante” de riqueza e rendimento.

Também
documenta com detalhes excruciantes, e difíceis de rebater, como a
desigualdade social de ambos, riqueza e rendimento, evoluíram nos
últimos dois séculos, com ênfase particular no papel da riqueza. Ele
aniquila a visão, amplamente aceite, de que o capitalismo de livre
mercado distribui riqueza e é o grande baluarte para a defesa das
liberdades individuais. Piketty demonstra que o capitalismo de livre
mercado, na ausência de uma grande intervenção redistributiva por parte
do Estado, produz oligarquias antidemocráticas. Essa demonstração deu
base à indignação liberal e levou o Wall Street Journal à apoplexia.


O livro tem sido frequentemente apresentado como substituto para o
século 21 do trabalho de Marx sobre o século 19, que tem o mesmo título.
Piketty nega que fosse essa a sua intenção, na verdade – o que parece
certo, uma vez que seu livro não é, de modo algum, sobre o capital. Ele
não nos conta por que razão ocorreu a catástrofe de 2008, e por que está
a demorar tanto para tanta gente se levantar, sob o fardo do desemprego
prolongado e da execução da hipoteca de milhões de casas. Ele não nos
ajuda a entender por que o crescimento é tão medíocre hoje nos EUA, em
oposição à China, e por que a Europa está travada sob uma política de
austeridade e uma economia de estagnação.


O que Piketty mostra estatisticamente (e estamos em dívida com ele e
seus colegas por isso) é que o capital tendeu, através da história, a
produzir níveis cada vez maiores de desigualdade. Isso, para muitos de
nós, não é novidade. Além disso, é exatamente a conclusão teórica de
Marx, no primeiro volume da sua versão do Capital. Piketty fracassa em
observar isso, o que não é surpresa, já que sempre clamou, diante das
acusações dos média de direita de que é um marxista disfarçado, que não
leu O Capital de Marx.


Piketty reúne uma grande quantidade de dados para sustentar a sua
argumentação. A sua descrição das diferenças entre rendimento e riqueza é
persuasiva e útil. E faz uma defesa cuidadosa da tributação sobre as
heranças, do imposto progressivo e de um imposto sobre a riqueza global
como possíveis (embora que certamente politicamente inviáveis) antídotos
contra o avanço da concentração de riqueza e poder.


Mas, por que razão ocorre essa tendência para o crescimento da
desigualdade? A partir dos seus dados (temperados com ótimas alusões
literárias a Jane Austen e Balzac), ele deriva uma lei matemática para
explicar o que acontece: o contínuo aumento da acumulação de riqueza por
parte do famoso 1% (termo popularizado graças, claro, ao movimento
Occupy) é devido ao simples facto de que a taxa de retorno sobre o
capital (r) sempre excede a taxa de crescimento do rendimento (g). Isso,
diz Piketty, é e sempre foi “a contradição central” do capital.


Mas esse tipo de regularidade estatística dificilmente alicerça uma
explicação adequada, quanto mais uma lei. Então, que forças produzem e
sustentam tal contradição? Piketty não diz. A lei é a lei e isso é tudo.
Marx obviamente teria atribuído a existência de tal lei ao
desequilíbrio de poder entre capital e trabalho. E essa explicação ainda
é válida. A queda constante da participação do trabalho no rendimento
nacional, desde os anos 1970, é decorrente do declínio do poder político
e económico, à medida que o capital mobilizava tecnologia, desemprego,
deslocalização de empresas e políticas anti-laborais (como as de
Margaret Thatcher e Ronald Reagan) para destruir qualquer oposição.


Como Alan Budd, um conselheiro económico de Margaret Thatcher,
confessou num momento de descuido: as políticas anti-inflação dos anos
1980 mostraram-se “uma maneira muito boa de aumentar o desemprego, e
aumentar o desemprego era um modo extremamente desejável para reduzir a
força das classes trabalhadoras… o que foi construído, em termos
marxistas, como uma crise do capitalismo que recriava um exército de mão
de obra de reserva, possibilitou que os capitalistas lucrassem mais do
que nunca.” A disparidade entre a remuneração média dos trabalhadores e
dos executivos-chefes era de cerca de trinta para um em 1970. Hoje está
bem acima de trezentos para um e, no caso do MacDonalds, de cerca de
1200 para um.


Mas no segundo volume do Capital de Marx (que Piketty também
não leu, como alegremente declara) Marx apontou que a tendência do
capital de rebaixar os salários iria, em algum momento, restringir a
capacidade do mercado de absorver os produtos do capital. Henry Ford
reconheceu esse dilema há muito tempo, quando determinou o salário de
cinco dólares para o dia de oito horas dos trabalhadores – para aumentar
a procura dos consumidores, disse.


Muitos pensavam que a falta de procura efetiva estava na base da
Grande Depressão da década de 1930. Isso inspirou políticas
expansionistas keynesianas depois da Segunda Guerra Mundial e resultou
em alguma redução das desigualdades de rendimento (nem tanto da
riqueza), no meio de uma forte procura que levou ao crescimento. Mas
essa solução apoiava-se no relativo empoderamento do trabalho e na
construção do “estado social” (termo de Piketty) financiado pela taxação
progressiva. “Tudo dito”, escreve ele, “durante o período de 1932-1980,
durante cerca de meio século, o imposto de rendimento federal mais
alto, nos EUA, era em média 81%.” E isso de modo algum prejudicou o
crescimento (outra parte das evidências de Piketty, que rebate os
argumentos da direita).


Ali pelo final dos anos 1960, ficou claro para vários capitalistas
que eles precisavam fazer alguma coisa a respeito do excessivo poder do
trabalho. Por isso, Keynes foi excluído do panteão dos economistas
respeitáveis, houve uma deslocação para o lado da oferta e para o
pensamento de Milton Friedman, e teve início uma cruzada para
estabilizar, se não para reduzir a tributação, desconstruir o Estado
social e disciplinar as forças do trabalho. Depois de 1980, houve uma
queda nas taxas mais altas de imposto e os ganhos do capital – uma
grande fonte de rendimento dos ultra-ricos – passaram a ser tributados
por taxas muito menores nos EUA, aumentando enormemente o fluxo de
capital do 1% do topo da pirâmide.


Contudo, o impacto no crescimento era desprezível, mostra Piketty.
Tal “efeito cascata” de benefícios dos ricos no restante da população
(outra crença favorita da direita) não funcionou. Nada disso era ditado
por leis matemáticas. Tudo era política.


Mas então a roda deu uma volta completa, e a pergunta mais importante
tornou-se: e onde está a procura? Piketty ignora essa questão. Os anos
1990 encobriram essa resposta com vasta expansão do crédito, inclusive
estendendo o financiamento hipotecário aos mercados subprime.
Mas o resultado foi uma bolha de ativos fadada a estourar, como
aconteceu em 2007-2008, levando consigo o banco de investimento Lehman
Brothers, juntamente com o sistema de crédito. Entretanto, as taxas de
lucro e a consequente concentração de riqueza privada recuperaram muito
rapidamente depois de 2009, enquanto todos os outros continuavam muito
mal. As taxas de lucro das empresas estão agora tão altas quanto sempre
estiveram nos EUA. As empresas estão sentadas sobre grande quantidade de
dinheiro e recusam-se a gastá-lo, porque as condições do mercado não
estão robustas.


A formulação da lei matemática de Piketty camufla, mais do que revela
sobre as políticas de classe que estão em jogo. Como notou Warren
Buffett, “claro que há luta de classes, e é a minha classe, a dos ricos,
que está a lutar, e estamos a vencer.” Uma medida-chave da sua vitória
são as crescentes disparidades de riqueza e rendimento do 1% do topo em
relação a todo o resto da população.


Há, contudo, uma dificuldade central no argumento de Piketty. Ele
repousa sobre uma definição equivocada de capital. Capital é um
processo, não uma coisa. É um processo de circulação no qual o dinheiro é
usado para fazer mais dinheiro, frequentemente – mas não exclusivamente
– por meio da exploração da força de trabalho. Piketty define capital
como o stock de todos os ativos em mãos de particulares,
empresas e governos que podem ser negociados no mercado – não importa se
estão a ser usados ou não. Isso inclui terra, imóveis e direito de
propriedade intelectual, assim como coleção de arte e de joias. Como
determinar o valor de todas essas coisas é um problema técnico difícil,
sem solução consensual. Para calcular uma taxa de retorno, r,
significativa, temos de ter uma forma de avaliar o capital inicial. Não
há como avaliá-lo independentemente do valor dos bens e serviços usados
para produzi-lo, ou por quanto ele pode ser vendido no mercado. Todo o
pensamento económico neoclássico (base do pensamento de Piketty) está
fundado numa tautologia. A taxa de retorno do capital depende
essencialmente da taxa de crescimento, porque o capital se valoriza na
base do que produz e não pelo que utilizou para a sua produção. O seu
valor é fortemente influenciado por condições especulativas, e pode ser
seriamente distorcido pela famosa “exuberância irracional” que Greenspan
supôs detetar como característica dos mercados imobiliário e de ações.
Se subtrairmos habitação e imóveis – para não falar do valor das
coleções de arte dos hedge funders– a partir da
definição de capital (e a razão para a sua inclusão é bastante débil),
então a explicação de Piketty para o aumento das desigualdades de
riqueza e rendimento desabaria, embora a sua descrição do estado das
desigualdades passadas e presentes ainda ficassem de pé.


Dinheiro, terra, imóveis, fábricas e equipamentos que não estão a ser
usados produtivamente não são capital. Se é alta a taxa de retorno
sobre o capital que está a ser usado é porque uma parte do capital foi
retirado de circulação e, de facto, está em greve. Restringir a oferta
de capital para novos investimentos (fenómeno que estamos a testemunhar
agora) garante uma alta taxa de retorno sobre o capital que está em
circulação. A criação dessa escassez artificial não é só o que fazem as
companhias de petróleo, para garantir a sua elevada taxa de lucro: é o
que todo o capital faz quando tem oportunidade. É o que sustenta a
tendência de a taxa de retorno sobre o capital (não importa como é
definido ou medido) exceder sempre a taxa de crescimento do rendimento.
Esta é a forma como o capital garante a sua própria reprodução, não
importa quão desconfortáveis sejam as consequências para o resto de nós.
E é assim que a classe capitalista vive.


Há muitas outras coisas valiosas nos dados coletados por Piketty.
Mas, a sua explicação de porque as tendências à desigualdade e à
oligarquia surgem está seriamente comprometida. As suas propostas de
solução para a desigualdade são ingénuas, se não utópicas. E ele
certamente não produziu um modelo de trabalho para o capital do século
21. Para isso, ainda precisamos de Marx ou de seus equivalentes para os
dias atuais.





Artigo de David Harvey, disponível em davidharvey.org.


Tradução de Inês Castilho para outraspalavras.net, revista por Carlos Santos para esquerda.net

Por um transporte coletivo humanizado

Por um transporte coletivo humanizado

 
 
 Frei Marcos Sassatelli
  







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Nestes dias, assistimos a uma verdadeira guerra no transporte
coletivo da Grande Goiânia. Só para se ter uma ideia da gravidade da
situação, foram depredados - conforme noticiou a imprensa - 104 ônibus
(20 só num dia).





Antes da Rede Metropolitana de Transporte Coletivo (RMTC), da
Companhia Metropolitana do Transporte Coletivo (CMCT) e das empresas
concessionárias, a responsabilidade por essa situação é do Poder
Público. É ele que tem a obrigação de cuidar, direta ou indiretamente,
do transporte coletivo para que seja um transporte humanizado e de
qualidade. O que realmente falta é a vontade política de resolver o
problema. Os motoristas e os trabalhadores, usuários do transporte
coletivo, merecem respeito. Chega de tanto descaso!





Por que será que o Poder Público tem sempre tanta dificuldade para
dialogar e negociar com o povo? Por que será que esse mesmo Poder
Público nunca quer atender (ou, pelo menos, demora demais para atender)
as justas reivindicações dos trabalhadores? O “bem viver” do povo não
deveria ser a prioridade das prioridades da ação política?





Infelizmente, na nossa sociedade capitalista neoliberal - que é
estruturalmente iníqua, iniusta e desumana - o que prevalece não é o
“bem viver” do povo, mas o lucro a qualquer preço das grandes empresas.
Os trabalhadores, que já são “legalmente” explorados em seu trabalho,
depois de uma jornada exaustiva e desgastante, são obrigados - mesmo
cansados - a enfrentar um transporte coletivo humilhante, deprimente e
insuportável.





Embora ninguém seja a favor da violência, dá para entender a revolta
do povo. A estrutura psicológica da pessoa dos trabalhadores tem um
limite. Ninguém aguenta mais! Antes que aconteçam as depredações ou a
queima de ônibus, as autoridades não deveriam dialogar com os
trabalhadores? Ninguém sabe até onde pode chegar o desespero.





O comportamento do Poder Público revela uma total desconsideração
para com os trabalhadores, motoristas, usuários do transporte coletivo e
o povo em geral.





Quando o PT ainda era Partido dos Trabalhadores - hoje não é mais
(mudou de lado) -, sempre “gritava” em defesa dos direitos dos
trabalhadores. Hoje, ele “grita” em defesa do lucro das grandes empresas
e a favor do agro-hidro negócio. Que traição vergonhosa!





Os políticos e os governantes - durante o exercício do mandato -
deveriam ser obrigados a usar o transporte coletivo. Tenho certeza que a
situação mudaria em pouco tempo. Atualmente, como não precisam do
transporte coletivo, eles não têm nenhuma pressa para resolver a questão
das paralizações e das depredações de terminais e de ônibus. O povo só
interessa enquanto é útil para o capital financeiro. Não o sendo mais,
pode ser descartado.





A desculpa do Poder Público para não atender as reivindicações dos
trabalhadores é sempre a mesma: a falta de verbas. Ora, para gastos
mirabolantes com a copa do mundo e outras obras faraônicas nunca faltam
verbas. É só uma questão de modelo de sociedade e de prioridade
política. As verbas existem.





O Ministério Público do Estado de Goiás (MP-GO) deveria exigir que as
autoridades competentes resolvam, o mais rápido possível, a situação
caótica do transporte coletivo. Já passou da hora!





O Sindicato dos Trabalhadores em Transportes Rodoviários do Estado de
Goiás (Sindittransporte) e o Sindicato Intermunicipal dos Trabalhadores
no Transporte Coletivo Urbano de Goiânia e Região Metropolitana
(Sindicoletivo), mesmo tendo divergências quanto à maneira de conduzir o
processo, deveriam ficar unidos para garantir os direitos dos
trabalhadores.





É bom que os trabalhadores fiquem de alerta. Quando a diretoria de um
Sindicato negocia com o Poder Público ou com os empresários e faz
acordos sem realizar a assembleia da categoria, ouvindo seu parecer, é
sinal evidente que o Sindicato se tornou “pelego”. Não representa mais
os trabalhadores, mas outros interesses escusos. Assim sendo, a
assembleia dos trabalhadores deve desautorizar a diretoria do Sindicato e
tomar as devidas providências. Ela é soberana.





Mesmo com todas as dificuldades e contradições, os trabalhadores não
podem cair na armadilha dos detentores do poder econômico, que é dividir
os trabalhadores para enfraquecer a luta. No caso em questão, eles
querem colocar os trabalhadores usuários do transporte coletivo contra
os motoristas, que também são trabalhadores.





As reivindicações dos motoristas do transporte coletivo por melhores
salários e as lutas do povo por um transporte coletivo digno são justas e
merecem todo nosso apoio.





Termino com as sábias e contundentes palavras do nosso irmão, o papa
Francisco, que nos fazem refletir e são uma luz para nossa vida.





“Assim como o mandamento ‘não matar’ põe um limite claro para
assegurar o valor da vida humana, assim também hoje devemos dizer ‘não a
uma economia da exclusão e da desigualdade social’. Esta economia mata.
Não é possível que a morte por enregelamento dum idoso sem abrigo não
seja notícia, enquanto o é a descida de dois pontos na Bolsa. Isto é
exclusão. Não se pode tolerar mais o fato de se lançar comida no lixo,
quando há pessoas que passam fome. Isto é desigualdade social. Hoje,
tudo entra no jogo da competitividade e da lei do mais forte, onde o
poderoso engole o mais fraco. Em consequência desta situação, grandes
massas da população vêem-se excluídas e marginalizadas: sem trabalho,
sem perspectivas, num beco sem saída. O ser humano é considerado, em si
mesmo, como um bem de consumo que se pode usar e depois lançar fora.
Assim teve início a cultura do ‘descartável’, que aliás chega a ser
promovida. Já não se trata simplesmente do fenômeno de exploração e
opressão, mas duma realidade nova: com a exclusão, fere-se, na própria
raiz, a pertença à sociedade onde se vive, pois quem vive nas favelas,
na periferia ou sem poder já não está nela, mas fora. Os excluídos não
são ‘explorados’, mas resíduos, ‘sobras’” (A alegria do Evangelho - EG,
53).





Frei Marcos Sassatelli, frade dominicano, doutor em Filosofia
(USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP), é professor aposentado de
Filosofia da UFG. E-mail:
mpsassatelli(0)uol.com.br

 


A publicação deste texto é livre, desde que citada a fonte e o endereço eletrônico da página do Correio da Cidadania