Com a aprovação da venda da Brasil Telecom à Oi, por meio de anuência prévia concedida pela Anatel, foi dado sinal verde para um dos mais controvertidos negócios do país nos anos Lula. Para Marcos Dantas, ex-membro do Ministério das Comunicações em 2003, a fusão pode ser considerada positiva para o país, pois, acima de tudo, passa a levar as tecnologias dos principais centros para todos os 2000 municípios a serem cobertos pela nova tele. No entanto, em entrevista ao Correio da Cidadania, Dantas também condena a omissão do governo na condução do processo, sabidamente inevitável, mas que, dessa forma, teria ficado manchado com a interferência e influência dos empresários interessados. "O governo não tem doutrina em comunicações, em política industrial, energética, enfim, em nada que é importante o PT possui uma doutrina", critica. Para o professor de Comunicação Social da PUC-RJ, além da extensão dos serviços de banda larga para localidades outrora esquecidas, também é importante a garantia de que a nova tele não possa ser repassada a estrangeiros, omissão que em sua opinião configura a principal falha na transação. Correio da Cidadania: O conselho diretor da Anatel aprovou a compra da Brasil Telecom pela Oi. Cercado de controvérsias, o que se pode dizer do negócio e o que representa para as nossas telecomunicações? Marcos Dantas: Se analisarmos o ato, de número 1828, poderá ser visto que na verdade trata-se de uma anuência prévia, ou seja, o negócio só será aprovado se o ato for cumprido. E este impõe um conjunto de condições que são verdadeiras novidades na política brasileira de comunicação. É quase um rompimento com o pacto neoliberal nesta área. Por exemplo: se estabelece à nova empresa a obrigação de incorporar uma extensa área do país à infra-estrutura de banda larga, que por sua vez só alcança a área integrada ao mercado, onde há renda. Inclusive algumas capitais, como Macapá, Boa Vista, Manaus, não estão incorporadas à infra-estrutura de fibra ótica. E o ato obriga a nova empresa a estender a infra-estrutura nacional de fibra ótica a essas localidades; obriga a nova empresa a estender a banda larga – que além de fibra ótica pode ser feita por ADSL – a todos os municípios onde for operar. Hoje, só existe ADSL nos municípios lucrativos. Portanto, é uma política de universalização da banda larga que vem contida na negociação, um ponto muito importante. Além do mais, estabelece também o compromisso de a empresa atender às necessidades do exército nas fronteiras brasileiras. Isso é inédito, até porque o governo anterior entregou o satélite que serve ao exército brasileiro a uma potência estrangeira. Dessa forma, começa a haver uma política de se criar uma estrutura alternativa, controlada por brasileiros, a fim de atender ao nosso exército. No referido ato, também se estabelece: a obrigação da nova empresa de investir no desenvolvimento técnico-científico, inclusive em parcerias com centros de pesquisa, como a Rede Nacional de Pesquisa e o Projeto Geoestacionário Brasileiro, de satélites; uma política de compras, ao adquirir produtos de fabricação, ou ao menos montagem, dentro do país. Enfim, uma série de questões que os governos neoliberais – Collor, FHC e Lula – tinham jogado fora, agora se veem recuperadas pela Anatel. Sem falar que sempre fui defensor da ideia de que o Brasil deveria ter uma grande operadora nacional de telecomunicações. Exatamente para fazer o que está no ato; atualizar a comunicação, promover desenvolvimento industrial, atender às necessidades estratégicas nacionais etc. Vejo tais condições, dado o vazio anteriormente existente no setor, como um avanço extraordinário. Só há sentido em se criar uma empresa deste porte se esta puder atender a um conjunto de demandas voltadas a um projeto nacional. E nesse sentido o ato fixou diversos pontos que criam as condições para tal projeto. CC: O conselheiro da Anatel que mais exigiu condicionantes ao negócio, Plínio Aguiar, afirmou que a transação pode se revelar maléfica para o mercado interno, pois foi derrubada a exigência de livre acesso à rede da megaempresa por parte das concorrentes. Está se permitindo, dessa maneira, a formação de um oligopólio no setor? MD: Não creio. O conselheiro referido é um defensor do projeto neoliberal. Ele queria separar a parte de banda larga dos serviços de comunicação e multimídia, o que é inviável e tornaria tudo mais caro. O ato estabelece, basta lê-lo, um conjunto de cláusulas, obrigando inclusive a nova empresa a criar uma gerência comercial para agilizar as negociações com seus concorrentes em locais onde possui o monopólio da rede. Isso é uma interferência direta na gestão da empresa. Além do mais, esse negócio de concorrência é relativo. Nos lugares em que há mercado, há concorrência; onde não existe mercado, tampouco existe concorrência. Onde moro, não canso de dizer, tenho dois telefones: um da Oi e outro da Net, fora o meu celular, da TIM. Aqui, na zona sul do Rio de Janeiro, todo mundo quer me oferecer o serviço. Mas vamos ver lá no interior do Pará se estão oferecendo. Portanto, é muito mais importante o fato de se obrigar a empresa a atender com banda larga aos seus 2000 municípios, lembrando que hoje atinge 300, do que essa bobagem de achar que a separação vai criar concorrência. É raciocínio de neoliberal e prejudicaria os custos para todo mundo. Ela pode usar a infra-estrutura dela para oferecer o serviço em todo lugar e mais barato, inclusive para poder enfrentar a concorrência. É preciso pensar o seguinte: a Oi/BrT será a única, e o Correio da Cidadania deveria se ater a isso, a operar no Brasil pobre. E ela só pode operar no Brasil pobre se obtiver lucro no Brasil rico, caso contrário, não consegue se sustentar. Se ela não tiver lucro nos 300 municípios onde há concorrência, não banca a banda larga para as 2000 cidades cobertas pela nova tele. Quem propõe o que o Plínio Aguiar propõe só está pensando nas regiões onde há mercado. CC: Depois de liberado o negócio, descobriu-se que não se firmaram mecanismos que excluam a hipótese de venda da tele para o controle de um grupo estrangeiro. E caso realmente apareça uma oferta de fora, o governo teria somente um mês e meio para definir se cobre a proposta. O que dizer sobre isso se, além do uso de mais de R$ 6 bilhões públicos, entre os argumentos dos defensores da fusão estavam o fortalecimento de uma empresa nacional no setor, em condições inclusive de se tornar um ‘global player’? MD: É correta a observação e trata-se de um fato realmente preocupante. Deve-se defender, por exemplo, a ação dourada. Sou a favor dela, mas lembro que na Embraer ela não serviu de nada; foi desnacionalizada do mesmo jeito e o ministro da aeronáutica que quis exercer seu poder de veto foi demitido. E no caso da Varig, que não tem ação dourada, ela só não foi desnacionalizada por conta de uma ação absolutamente destemida e intempestiva do Carlos Lessa, presidente do BNDES à época. Mas isso resultou na demissão dele. Portanto, não é o fato de possuir os mecanismos explícitos ou não. O fato é que se não tiver as pessoas certas nas posições certas e o compromisso dos homens públicos em não desnacionalizá-la, se tiver ação dourada, mas na hora de decidir o ministro que quiser exercer o poder for demitido como no caso citado, não adianta nada. No entanto, evidentemente seria bom que já existisse tal mecanismo. Mas, obviamente, essa proteção ainda pode ser construída, seja através de participação acionária, de capital do BNDES na empresa... No fundo, não estou tão preocupado, pois não creio que a nova tele desperte o interesse do capital estrangeiro. Se despertasse, teriam comprado a Telemar e a Brasil Telecom. Não foi por acaso que a Brasil Telecom acabou na mão dos fundos de pensão do Banco do Brasil associados com o Daniel Dantas e a Telemar nas mãos do fundo de pensão do BB associados com o Jereissati. Eram empresas que não interessavam ao capital estrangeiro. CC: Mas de toda forma as telecomunicações fazem parte do conjunto estratégico que configura a soberania de um país. MD: Sim, mas isso não esteve em jogo em momento algum, tanto que entregaram o satélite aos americanos. O satélite, sim, interessava aos americanos. E este foi entregue. CC: Em outro ponto bastante contestado, sabia-se que caso o negócio não fosse concretizado dentro de prazo acordado entre as empresas – meados de abril de 2009 – uma milionária multa seria aplicada à parte rompedora do contrato. Podemos pensar que Brasília deixou o lobby empresarial passar por cima do interesse nacional? MD: Essa, de fato, é a grande crítica a ser feita. O governo, desde o início, é quem deveria ter assumido a liderança do processo. E acabou agindo a reboque dos empresários. Em meu livro ‘A lógica do capital em formação’, num longo prefácio digo com clareza, antes de o Lula assumir, que ao longo do próximo governo ocorreria tal fusão. Isso em 2001. Portanto, como estive no governo em 2003, minha ideia inicial era de que o governo assumisse a liderança da situação. A conseqüência é que fui mandado embora. O governo ficou na dele. Resultado: acabou sendo levado pelo processo. CC: Como analisa as políticas governamentais na área das telecomunicações? MD: O governo não tem política nesta área. Para começar, o governo não tem doutrina no setor, não há quem entenda do assunto no PT. O governo não tem doutrina, aliás, em comunicações, em política industrial, energética, enfim, em nada que é importante o PT possui doutrina. Sendo assim, o governo terminou na mão das forças do mercado, fazendo o que queriam os empresários. O Brasil tem um parque energético cada vez mais sujo - e era extraordinariamente limpo - em função de uma consultoria inglesa contratada para a revisão da política energética nacional. E hoje baseamos nosso fornecimento de energia elétrica em termelétricas a carvão e diesel, um completo absurdo. E na política de comunicações o governo tampouco mexeu em nada. Só o fez porque havia uma situação, previsivelmente, insustentável. Depois os empresários chegaram e colocaram a corda no pescoço. Assim, mudaram a regra do jogo. CC: Ou seja, um processo que de fato deveria ser realizado, mas que foi manchado devido aos conflitos éticos que se sobrepuseram. MD: Sim, imagino que assim a imagem do negócio seria distinta. Ficou a ideia de que o governo fez uma negociata. Nem descarto tal hipótese, mas o fato é que era necessário, o governo deveria ter assumido as rédeas do processo, mas se deixou levar a reboque e agora sofre com um altíssimo ônus político. CC: E essa deficiência nas políticas de telecomunicações nada mais é, portanto, do que um entre tantos reflexos da fraqueza governamental nos mais diversos setores estratégicos? MD: Sim, creio ser problema de formulação estratégica, política, de doutrina, em todos os assuntos relacionados ao desenvolvimento do país. Ou seja, em todas as áreas que interessam ao capital. O governo é muito bom em política assistencialista. Nisso é muito bom. Mas não mudou absolutamente nada em setor algum. A política educacional é a mesma do governo anterior, a industrial também, a energética idem, sem falar, claro, das políticas financeira e monetária. O governo Lula é continuação do governo FHC, não há nada que o diferencie muito.
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