Leandro Fortes - Brasília, eu vi
O jornalismo está abandonando, aos poucos, por motivos inconfessáveis, a valorização das personagens como elemento de narrativa. Emblemático é o caso de Honduras, um catalisador profundo das intenções de setores da imprensa cada vez mais perfilados em bloco sobre um ensaiado viés chavista (a nova panacéia editorial do continente) aplicado ao noticiário toda vez que um movimento de esquerda se insinua sobre velhos latifúndios – físicos e imateriais. Para tal, recorre-se cada vez mais a malabarismos de linguagem para se referir ao golpe militar que derrubou o presidente constitucionalmente eleito Manuel Zelaya.
Por conta disso, o governo golpista passou a ser chamado, aqui e acolá, de “governo de fato”, uma solução patética encontrada por alguns veículos para se referir a uma administração firmada na fraude eleitoral e na usurpação pura e simples de poder. Há, ainda, quem se refira à quadrilha de Roberto Micheleti como “governo interino”, o que só pode ser piada. Itamar Franco foi interino, esse é o beabá, até tornar-se “de fato” com o impedimento e a renúncia de Fernando Collor de Mello, mas isso não deu a ninguém o direito de, a partir de então, nomeá-lo “presidente de fato” ou chefe de um “governo de fato”. Se é governo, é de fato. Se assim não for, ou é interino, ou é golpista.
Não deixa de ser divertido o inglório exercício a que se dedica certa direita nacional envergonhada, pronta a converter em golpe de Estado a intenção do presidente (de fato, pero no mucho) Zelaya de convocar os hondurenhos a decidir, por plebiscito, a possibilidade de uma reeleição que sequer serviria a ele. Possível até que servisse à oposição – a mesma que lhe seqüestrou de pijama, o enfiou num avião e o desovou na Costa Rica. Talvez preferissem que ele tivesse comprado votos para se reeleger. Esse tipo de crime é, historicamente, melhor digerido pela mídia brasileira.
Essa gente não pode e não deve ser chamada de “governo de fato”, muito menos “interino”. Essa gente tem nome: golpistas. Bandoleiros políticos que estão, corajosamente, sendo confrontados pela diplomacia brasileira que, além de lhe condenar em todos os foros internacionais, deu abrigo a Zelaya na embaixada. Lá, o presidente (de verdade) se encontra protegido e alimentado, a causar saudável constrangimento aos golpistas que o defenestraram de Tegucigalpa, essa cidade de sonoro nome maia que, de uma hora para outra, tornou-se mundialmente popular no rastro de um vexame.
Mas comecei falando da importância de haver personagens no texto jornalístico e acabei me perdendo em necessários devaneios, porque no contexto da crise hondurenha se inclui uma cobertura, basicamente, desumana. Não no sentido da esperada brutalidade ideológica disseminada por jornais e jornalistas conservadores e, vá lá, liberais. Mas por não atentar diretamente para o fator humano estacionado nas ruas, manifestantes com as mãos perto do fogo aceso pelo golpe, sujeitos a tiros e bordoadas apenas para dizer “não”. Eu gostaria muito de saber quem são essas pessoas, mas tudo que se fala delas vem em números. Num dia, são 100 em frente à embaixada, no outro, são duas mil. Variam de dezenas a milhares da noite para o dia, sem que qualquer explicação sobre elas nos seja minimamente concedida.
Não é preciso muita sensibilidade para perceber que a chave (não Chávez!) para a compreensão do golpe em Honduras está nos hábitos e na cultura desses desconhecidos tegucigalpenses (ou seriam tegucigalpanos?). Falta quem lhes pergunte sobre os verdadeiros sentimentos desencadeados com o golpe, justo quando o mundo todo acreditava que o expediente das quarteladas jazia, para nunca mais, no túmulo dos tristes folclores latino americanos. São as personagens, sobretudo nas tragédias, que conjugam fatos e sentimentos de modo a permitir a nós, os indivíduos, compartilhar sonhos e loucuras. Daí a importância de prestar atenção nelas.
Até agora, a única personagem “de fato” é o próprio Manuel Zelaya, aliás, de figurino impagável, chapéu de cowboy sobre os cabelos escandalosamente tingidos, tal qual o bigode pouco alentador, na indisfarçável tonalidade das asas da graúna.