Afinal, o que é uma democracia sem direitos humanos?
Fatima Oliveira - O Tempo
As
polêmicas acerca do 3º Programa Nacional de Direitos Humanos,
tão-somente uma diretriz de trabalho, provocam uma efervescência
neuronal em quem tem deferência pela liberdade e a vê como um valor que
perpassa todas as gerações de direitos humanos. Os "contra" se despiram
da noção de pluralismo moral e fazem de conta que os direitos humanos
não são protetores da humanitude, "apenas acobertam deliquentes sem
colarinho; camponeses em busca de um naco de chão; gays e lésbicas que
se amam, e mulheres que ousam exercer o direito de decidir" - todos
"gentinha da pior laia", sem selo humano. É desfaçatez em demasia!
A Igreja Católica, despudoradamente, insiste em querer imprimir ao
Estado brasileiro ares de teocracia católica e não contém o ranço
histórico de desrespeito à pluralidade inerente à democracia. O que
dizer de figuras que defendem o acobertamento de crimes horrendos, a
maioria de domínio público, quando é dever de ofício, são pagas para
tanto, defender a plenitude democrática? É o striptease em defesa da
inimputabilidade de agentes públicos pelos crimes cometidos na ditadura
militar de 1964 tentando acuar uma nação.
Indago ainda por que permitir, irresponsavelmente, que a imagem da
instituição e um contingente expressivo das Forças Armadas, a ala jovem
e outros tantos, na ativa e na reserva, que não praticaram crimes, têm
de herdar a pecha de criminosos? É injusto que nos calemos para que
assim seja. A Comissão da Verdade libertará os inocentes da pesada cruz
dos crimes cometidos por alguns fascistas e sociopatas de outros naipes.
Li o mais que pude os contra-argumentos veiculados. Fui tomada de
uma espécie de intolerância ética pela irracionalidade verborrágica dos
"contra" e de enorme gratidão à democracia possível em que vivemos, que
dá voz aos desatinados, escancarando entranhas e mostrando quanta
quilometragem temos de percorrer até a democracia necessária a uma vida
decente, de respeito irrestrito aos direitos humanos.
Na condição de trabalhadora que constrói as riquezas nacionais e tem
consciência de que o dinheiro público, fruto de cada tostão do suor de
quem trabalha, irriga abundantemente, direta e indiretamente, a Igreja
Católica no Brasil, assim como garante a existência e os salários das
Forças Armadas, eu me pergunto: por que alguns se acham no direito de
entravar as liberdades democráticas? A história da humanidade demonstra
que não se constrói uma democracia consistente sobre escombros de
crimes hediondos impunes e valores teocráticos. Logo, considero que o
contido no 3º Programa Nacional de Direitos Humanos é um passo decisivo
para um país de fato de todos nós.
Ter ou não uma religião é um direito constitucional no Brasil. As
religiões devem ser dignas dos papéis que as definem como religiões.
Quando se metem a regulamentar a vida social e política para além dos
seus fiéis e da garantia de livremente existirem, são nocivas à
democracia. O que dizer de uma religião que vive de enganar, pois usa
dupla identidade - ora se apresenta como religião, ora como Estado (o
Vaticano) - ao sabor das conveniências, que prega e pratica a misoginia
em pleno século 21; desconhece e desrespeita os direitos sexuais e os
direitos reprodutivos de seu clero e de sua segunda divisão, as
freiras, porém dá guarida a crimes clericais de natureza sexual; se
comporta como se tivesse mandato divino sobre os corpos das mulheres, e
ainda quer que as leis de um país laico sigam sua doutrina?
Que ridícula!