É possível afirmar, como o fez Amâncio Siqueira em artigo recente
no Amálgama, que o Irã é uma teocracia islâmica e, ao mesmo tempo, que é
uma ditadura com diversos aspectos que merecem nosso franco repúdio.
Não há problema nisso.
Problema há quando ligam ditadura e repressão ao islamismo. Quando a
ideia de “ditadura repressiva” passa a estar intimamente ligada ao
islamismo, quando estamos diante não do islamismo, mas de uma leitura que, em geral, envergonha a maior parte daqueles que professam a religião.
Ditaduras independem de religião. São políticas. Feitas por homens
que encontram uma desculpa para manter seu poder e perpetuar a
repressão. Pode ser o Islamismo, Cristianismo ou até o Pastafarianismo –
basta acreditar. Pessoas matam e morrem em nome de grandes ou de
pequenas religiões. Entregam todo seu dinheiro para templos evangélicos.
Trata-se de leituras deturpadas.
Obviamente a religião em si abre portas para o fanatismo, mas não
pode ser totalmente responsável pelas leituras mais radicais que são
feitas. Senão todos os crentes seriam fanáticos por princípio.
Imagino que nenhum cristão se vanglorie dos milhões de mortos durante
as Cruzadas ou defenda a Inquisição, ou mesmo reconheça estes dois
exemplos como base ou resultados do “Cristianismo”, mas apenas faces de
uma igreja ou mesmo uma interpretação absurda da “palavra” de seu deus.
Quem já leu o Corão ou ao menos conhece muçulmanos o
suficiente para ter uma ideia de seus costumes e práticas, vê que o
suposto islamismo pregado por aqueles fanáticos nada mais é que uma
versão fascista e deturpada de suas crenças. É a leitura crua, sem
atualização ou interpretação honesta. É a politização de uma crença
levada ao mundo estatocêntrico com o intuito de garantir a alguns o
poder sobre os demais.
Seria, em paralelo, o mesmo que o Comunismo (sic) nas mãos
de Stalin. O Comunismo seria naturalmente ruim pela interpretação
genocida de alguns. Assim como as religiões, as teses marxistas foram
usadas por milhões da pior forma possível. O problema não está na
religião/ideologia, mas na prática desta, na apropriação e leituras
feitas a posteriori por quem tinha claros interesses em
desvirtuar aquilo que milhões seguem ou acreditam. Da mesma forma que
você precisa interpretar e atualizar os escritos de Marx, que não têm
nem 300 anos, você precisa interpretar e atualizar aquilo que foi
escrito a 1500 ou 2 mil anos.
A própria gênese de muitas religiões se baseia apenas no interesse de
um ou uns dominarem um grupo através do medo ou de promessas de
benesses eternas. É bom ter isto em mente, porém: o neopentecostalismo,
como tal, é nocivo desde seu princípio e por base.
Não estou aqui falando que o Islamismo ou mesmo o Cristianismo sejam
“puros” — imagino já ter deixado isto claro –, que mesmo em seus
ensinamentos não exista algo recriminável, longe disso, o problema na
verdade são as interpretações ou, mais ainda, a insistência dos mais
puristas em evoluir a si mesmos e à própria religião. No fim das contas,
o problema surge quando, de apoio, religião passa a ser a razão da
vida.
Religião, enquanto re-ligamento, não me parece poder ser encarado
como um monolito, senão estamos ligando o homem do século XXI a um deus
do século 1 ou 5. Não me parece haver conforto para um alma do século
XXI em seguir preceitos que no século XV já estavam ultrapassados.
Mas o que há de reconfortante na religião permanece inalterado, a
sensação de proximidade com um deus, com uma verdade, com uma forma de
viver. E é isto que deve ser defendido, e não os aspectos obscurantistas
que são comumente usados por aqueles em busca de poder.
Notem que sou ateu, não sigo qualquer religião e tampouco entendo a
necessidade que muitos têm de encontrar conforto em um deus, em algo
externo e inexplicável. Mas respeito.
Teocracia nada mais é que uma ditadura fascista, mas ao invés do
discurso puramente político, adotam medos ancestrais e utilizam a
religião como subterfúgio para suas práticas. E encontramos isto em todas
as grandes religiões e não apenas no Islamismo, que, parece, está na
moda. As razões, aliás, para tal “moda”, ao menos no Oriente Médio,
foram dadas neste post em que analisei o terrorismo no Cáucaso Russo.
É fato, aquilo que está em livros religiosos propicia o surgimento de fanáticos e genocidas. São livros (Bíblia, Corão…)
que não só podem ser interpretados de diversas maneiras como também
possuem incontestáveis mensagens de ódio, da necessidade de conversão
forçada, de machismo, odes à violência etc., mas devem — como tudo na
vida — ser interpretados.
E falo “interpretado” não no sentido de deturpar ainda mais ou de se
seguir ao pé da letra (como quem vive sem eletricidade ou contato com o
mundo exterior achando que assim agradará a deus), mas no sentido de se
enxergar estes livros como peças de uma época completamente diferente e
extrair destes mensagens que possam ser trazidas até os dia de hoje.
Não importa se na Bíblia de quase 2 mil anos ou, por exemplo, no Manifesto Comunista
– o que está escrito é passível de e deve ser interpretado, trazido
para os dias atuais, ou senão iremos nos limitar a repetir erros ou
viver eternamente no passado.
Sim, o Irã é uma teocracia islâmica assassina. Mas os EUA são uma
suposta democracia baseada em princípios cristãos e com presidentes
tementes ao seu deus e são ainda mais genocidas. Seria então culpa do
islamismo? Do cristianismo? Ou da transformação de religião em
política? Ou ainda pior, na transformação da religião, de algo
subsidiário, de um suporte, para um valor imprescindível e que permeia
nossas vidas — acima da razão?
Alguns fanáticos islâmicos proíbem o contato entre homens e mulheres…
Outros cristãos fazem o mesmo. Alguns fanáticos islâmicos colocam as
mulheres como inferiores… Mas a Igreja Católica não faz o mesmo? Entre
evangélicos as mulheres não são muitas vezes forçadas a deixar sua
feminilidade de lado e a se submeter à vontade dos homens? Os judeus
mais ortodoxos não relegam à mulher o papel de subalternas?
Mas, muitos dirão, os islâmicos são diferentes, afinal, eles matam
pela religião! Oras, até bem perto do século XX os cristãos à mando da
Igreja Católica faziam pior. A Inquisição durou na Espanha até
princípios do século XX. E mesmo a extrema-direita dos EUA, neonazistas e
gente ligada à KKK são cristãos fanáticos, que acreditam que todos os
não-crentes devem morrer – além de negros, imigrantes, judeus…
Mubarak é um ditador e é muçulmano. Ben Ali era um ditador e é
muçulmano. Saddam Husseim era um ditador e era muçulmano… O ponto em
comum entre todos estes não é só o islamismo, mas o fato de terem
chegado ao poder o ao menos terem sido apoiados por um grande país
cristão, os EUA, com presidentes cristãos.
E a Nicarágua foi uma ditadura – seu ditador era cristão. O Brasil
teve sua ditadura, assim como a Argentina, o Uruguai… Todos os ditadores
eram cristãos.
Religião é, enfim, apenas parte do problema, senão o menor deles.
Jornalista e blogueiro. Formado em Relações Internacionais (PUC-SP) e
Mestrando em Comunicação (Cásper Líbero), escreve o Blog do Tsavkko, é
autor e tradutor do Global Voices Online e escreve a coluna semanal "Defenderei a casa de meu pai" no Diário Liberdade.
Raphael Tsavkko Garcia