domingo, 10 de abril de 2011

Revolta árabe: o sucesso das revoluções que fracassam

Ainda esse ano, haverá eleições na Tunísia e no Egito. Essa é mudança tremenda no mundo árabe. Eleições não resolvem todos os problemas, mas marcam novos parâmetros. Outros terão de ser conquistados. Novas formas de participação, novos espaços para participação, novos sonhos democráticos que acabarão por enterrar, de vez, os restos rançosos do neoliberalismo. Nem todas as transferências de lucros do petróleo do mundo substituem a vida social e politicamente digna. O artigo é de Jiajay Prashad.

 
1. Partilhas

A OTAN errou o tiro e atirou contra “rebeldes” em Benghazi. Os comandantes da OTAN dizem que a culpa é das fronteiras que não existem. Difícil saber quem é quem, dizem, líbios “rebeldes” ou líbios regulares. A Líbia, afinal está dividida entre leste e oeste.

Gaddafi continua no comando no oeste. Seu filho Saif-al-Islam disse à BBC que a família não se interessa por partir para a Arábia Saudita, Zimbabwe ou Venezuela. Saif e o irmão, Saadi, apresentaram proposta segundo a qual o pai consideraria deixar a posição em que diz que nunca esteve, desde que os filhos mantenham posição de autoridade (Gaddafi père realizou impressionante pluricentralização familiar do poder, chamando-a de descentralização). O ex-deputado dos EUA Curt Weldon, ao que parece, disse a Gaddafi que poderia continuar como chefe honorário da União Africana e que seus filhos poderiam concorrer à presidência em futuras eleições na Líbia. Os “rebeldes” de Benghazi enfureceram-se: não é o que esperavam. (...)

O lento avanço da “rebelião” é causa de tensões entre os líderes “rebeldes”. Os três principais líderes “rebeldes” odeiam-se: Khalifa Hefter, que deixou o estado de Virginia, EUA, direto para Benghazi, é inimigo figadal do ex-ministro do Interior general Abdul Fattah Younis e também de Omar el-Hariri. Dois dos líderes políticos dos “rebeldes” Mahmoud Jibril (que foi assessor muito próximo de Saif-al-Islam, no processo de privatização da Líbia) e Ali Essawi (ex-embaixador na Índia) permanecem na Europa, trabalhando para obter apoio internacional para o “Conselho Provisório”. Mas o descontentamento alastra-se, e o gambito de abertura da negociação de Trípoli não agradou a ninguém. Jibril e Hefter acalentam sonhos grandiosos, embora não tão grandiosos quanto os da comunidade dos direitos humanos. (...)

As terras do petróleo delimitam a fronteira entre as duas partes do país, junto às mutantes dunas do deserto, entre Ras Lanuf e Brega. Haja acordo, haja partilha ou haja divisão da Líbia, é indispensável que se decida quem se responsabilizará pela segurança dos oleodutos e gasodutos e pela partilha dos lucros entre leste e oeste. São assuntos espinhosíssimos, dos quais ninguém fala.

2. Democracia

Há muitos anos, um amigo meu conversava com E. P. Thompson, o historiador marxista. Meu amigo, Dilip Simeon (autor de excelente romance, Revolution Highway), lastimava os limites da “democracia burguesa”. Dilip conta que Edward Thompson pediu-lhe que parasse de repetir o adjetivo “burguesa” ao lado de “democracia. “Esse adjetivo, ao lado de “democracia”, dá-me náuseas” – teria dito Edward Thompson. Esse adjetivo humilha a democracia.

O impacto dos desenvolvimentos das revoluções são quase imprevisíveis.

A contrarrevolução esmagou as revoltas de 1848, mas não lhe quebrou nem o espírito nem a dinâmica. A cultura do feudalismo morreu depois de o feudalismo estar morto, derrotada por novas identidades sociais. “Nossa era, a era da democracia, está raiando”, escreveu Frederick Engels em fevereiro de 1848. Um operário, pistola em punho, invadiu a Câmara Francesa de Deputados e declarou “Deputados, nunca mais! Somos os senhores.” A contrarrevolução foi feroz. “A burguesia, plenamente consciente do que faz, conduz guerra de extermínio contra eles”, comentou Marx. Mesmo assim, 1848 abriu um novo horizonte social, contra a servidão e a subserviência, marcou o meio do caminho entre a promessa de uma revolução anterior (1789) e a possibilidade de outra, depois (a Comuna de Paris de 1871). A Europa nunca mais voltou à era do chicote e das perucas empoadas. Aquele tempo havia passado.

Inúmeras outras revoluções tiveram impacto semelhante, quebrando a espinha dorsal de formas velhas de claustrofobia social, mas sem inaugurar imediatamente novas formas de liberdade social. O 1905 e o 1917 russos fortaleceram o ânimo dos movimentos anticoloniais. Gandhi, ainda advogado na África do Sul, escreveu, sobre a revolução russa de 1905: “os tumultos atuais na Rússia são grande lição para nós. Os trabalhadores russos e os servos declararam greve geral e pararam. Nem todo o poder do czar da Rússia conseguirá fazer os trabalhadores voltarem ao trabalho à ponta de baioneta. Nem o canhão reina, sem a cooperação dos humilhados.” Se os trabalhadores russos e os camponeses podiam fazer greve contra os autocratas, os indianos, os indonésios, os sul-africanos, os persas também podiam. A ideia de não-cooperação de Gandhi chegou-lhe via São Petersburgo.

O projeto dos movimentos de libertação nacional do Terceiro Mundo emergiu, cabeça erguida, nos anos 1920s; e saiu derrotado do palco da história nos anos 1980s. Mesmo assim, também aqui, parte do legado pesado do colonialismo fora despachado para sempre, porque os países, dali em diante, aprenderam que teriam de encontrar soluções suas para problemas seus, que só eles podem encontrar (nessa linha, Fanon escreveu em 1961, “O Terceiro Mundo hoje encara a Europa, como massa colossal cujo projeto tem de ser o de resolver os problemas para os quais a Europa não foi capaz de encontrar solução”). A desigualdade no Sul Global desmente qualquer sucesso que esse projeto suponha ter alcançado, mas, mesmo assim, o formidável exemplo da era do Terceiro Mundo ainda dá amparo e apoio a tantas lutas que germinaram no Sul.

Mais perto do nosso tempo, os levantes em todo o globo, em 1968, de Tóquio à Cidade do México, de Paris a Karachi, pareciam não ter tido grande impacto. Os sonhos revolucionários de trabalhadores e estudantes lá ficaram, degradados, quando tantos meiaoitistas trocaram os slogans da revolução pelas griffes da hora, boemia ou cursos de desenvolvimento pessoal e ganância. Mesmo assim, o impacto social de 1968 é imenso, se por mais não for, pelos horizontes que abriu nas lutas pela igualdade de direitos entre gêneros e raças. Muitos dos meiaoitistas migraram, sim, para o mundo das corporações e academias, e esse afinal, sempre foi o limite daquela revolução. Mas nem por isso apagaram-se das lutas sociais os novos compromissos com a igualdade.

Ainda esse ano, haverá eleições na Tunísia e no Egito. Essa é mudança tremenda no mundo árabe. Uma das muitas lições que ficaram para o mundo depois do experimento dos sovietes e das lutas de libertação nacional é que nos dois casos subestimou-se o anseio dos povos por vida democrática. Não há dúvidas de que Gaddafi transferiu para a população da Líbia parte importante dos ganhos do petróleo; a Líbia vive com altos padrões de desenvolvimento humano avaliado por indicadores de desenvolvimento (o que, sim, diminuiu nos últimos dez anos). Mas nem todas as transferências de lucros do petróleo do mundo substituem a vida social e politicamente digna. Verdade essa que os emires do Golfo um dia também aprenderão, ensinada pelo povo. Eleições não resolvem todos os problemas, mas marcam novos parâmetros. Outros terão de ser conquistados. Novas formas de participação, novos espaços para participação, novos sonhos democráticos que acabarão por enterrar, de vez, os restos rançosos do neoliberalismo.

Não se sabe o que acontecerá na Líbia. O comandante do AFRICOM general Carter Ham já anda dizendo que, por menos que a ideia atraia os EUA, a ocupação por terra talvez seja a única via para ajudar dos “rebeldes”. Guerra prolongada, desse tipo, favorecerá a contrarrevolução, porque enfraquecerá a posição dos que buscam via política, para fazer florescer os novos horizontes criados pelos levantes populares. Como sempre, ante qualquer impasse, os que só sabem de guerras, querem mais guerras. Outros procuram um cessar-fogo, negociações e meios para fazer render o que já foi obtido, que é considerável.

As terras árabes nunca mais serão como antes.

Tradução: Coletivo Vila Vudu

Fonte: http://www.counterpunch.org/prashad04082011.html

Ollanta Humala era tido como o mais fraco no início

Janaína Figueiredo – O GLOBO, via blog do Saraiva

Ollanta Humala/AP

BUENOS AIRES – As últimas pesquisas confirmaram a vantagem de Humala, com 30% das intenções de voto, e colocaram, pela primeira vez, a filha do ex-presidente Fujimori (1990-2000) em segundo lugar, com 22%. No entanto, a distância entre Keiko, PPK (17%) e Toledo (15%) ainda é estreita (Castañeda ficou fora da parada), considerando-se a margem de erro e os indecisos. Com isso, qualquer um dos três candidatos poderia comemorar a passagem ao segundo turno. No Peru, dizem analistas locais, tudo é possível. Em meados de 2010, o Prêmio Nobel de Literatura Mario Vargas Llosa disse que uma eleição entre Keiko e Humala seria como optar entre “câncer e Aids”. Na época, Toledo era o favorito e ninguém acreditava que o cenário ironizado pelo escritor poderia virar realidade.
” O Peru é uma caixa de surpresas, mas é verdade que Toledo cometeu muitos erros que favoreceram Humala e Keiko (Carlos Novoa) “
Confiante nas primeiras pesquisas, o ex-presidente adotou pose de vencedor antes do tempo e mergulhou em disputas de baixo nível com PPK e o presidente García, deixando espaço para Humala e Keiko crescerem sem obstáculos. A estratégia foi um desastre, e hoje Toledo está pagando as consequências.
- O Peru é uma caixa de surpresas, mas é verdade que Toledo cometeu muitos erros que favoreceram Humala e Keiko – assegurou o jornalista Carlos Novoa, do “El Comercio”.
A lista de tropeções do ex-presidente inclui ataques e contra-ataques em discussões públicas com García e PPK. Durante a campanha, a imprensa local informou, por exemplo, que no governo Toledo o Executivo comprou 1.753 garrafas de uísque. O ex-presidente ficou furioso e acusou o presidente de estar por trás “de uma palhaçada”. Toledo chegou a dizer que “Alan García é uma ameaça para a democracia”. Quinta passada, Toledo, que nos últimos dias usou sua artilharia contra Humala, convocou García para “defender a democracia” diante da possibilidade de um segundo turno entre o nacionalista e Keiko.
Carlos Bruce, chefe de campanha do ex-presidente, reconheceu que a estratégia de confronto adotada por Toledo foi equivocada. Mas o mea-culpa chegou tarde.
- No Peru, muitos eleitores acabam ficando do lado das vítimas – argumentou Novoa.
Para o analista político Augusto Álvarez, “os candidatos mais moderados acabaram se dando bem”. De fato, Humala e Keiko evitaram entrar nas briguinhas entre Toledo, PPK e García. Ambos os candidatos privilegiaram o contato com a população e decidiram baixar as armas. Na última semana, Toledo cansou-se de denunciar o “perfil autoritário” de Humala, questionar sua proposta para os meios de comunicação e seu suposto vínculo com o presidente da Venezuela, Hugo Chávez. A resposta do candidato nacionalista, com assessoria de estrategistas brasileiros que exportaram para o Peru o vitorioso “Lulinha paz e amor”, foi serena:
” Os peruanos expressam essa insatisfação votando num candidato antissistema (Toledo) “
- A esperança vai derrotar o medo.
Em fevereiro, Humala era considerado o adversário menos perigoso, já que tinha, com muito esforço, 10% das intenções de voto. Seus rivais não se interessavam por seu plano de governo e o nome de Chávez mal era mencionado. Após semanas de bate-bocas sem sentido, o silencioso dirigente nacionalista subiu nas pesquisas e mudou radicalmente o cenário eleitoral.
Na reta final, Humala virou o principal alvo de ataques e Chávez entrou na jogada. Toledo começou a denunciar uma “ameaça à democracia”, apesar de reconhecer que o militar reformado conseguiu captar o voto dos peruanos que se sentem excluídos de um modelo econômico com taxas de crescimento entre 7% e 8%.
- Os peruanos expressam essa insatisfação votando num candidato antissistema – declarou o ex-presidente.
Hoje, o candidato considerado por Toledo, PPK e o governo García um perigo para uma democracia recuperada há apenas 12 anos é o único que tem a tranquilidade de contar com os votos necessários para ir ao segundo turno. Seus adversários sofrerão até o último minuto.

Vida e morte do bêbado equilibrista

Escrito por Otto Filgueiras   no Correio da Cidadania
 
Caía a tarde feito um viaduto
E um bêbado trajando luto me lembrou Carlitos...
A lua, tal qual a dona do bordel, pedia a cada estrela fria um brilho de aluguel
E nuvens! Lá no mata-borrão do céu chupavam manchas torturadas
Que sufoco! Louco!
O bêbado com chapéu-coco fazia irreverências mil prá noite do Brasil
Meu Brasil
Que sonha com a volta do irmão do Henfil com tanta gente que partiu num rabo de foguete
Chora a nossa Pátria mãe gentil, choram Marias e Clarisses no solo do Brasil...
Mas sei que uma dor assim pungente não há de ser inutilmente
A esperança... dança na corda bamba de sombrinha e em cada passo dessa linha pode se machucar...
Azar! A esperança equilibrista sabe que o show de todo artista tem que continuar...
(O bêbado e o equilibrista, de João Bosco e Aldir Blanc)
 
O operário aposentado Antonio Norival Soave, ex-militante da Ação Popular (AP), morreu na madrugada de 5 de abril de 2011 no Hospital das Clínicas de Porto Alegre e foi finalmente jogado para fora da ponte da vida.
 
Seu corpo foi cremado. Mas os sonhos desse operário que viveu rebelde, bêbado e equilibrista não serão queimados pelos antigos companheiros que continuam acreditando na esperança, vermelha, socialista.
 
Ele estava com a vida por um fio, lutando e tentando ludibriar a morte. Nos últimos sete meses, por conta de um tumor cancerígeno em um dos pulmões, ele emagrecera mais de dez quilos e perdera toda a massa muscular do lado esquerdo do corpo, pois o tumor inflamou, cresceu e pressionava algumas vértebras junto à coluna cervical.
 
A biópsia comprovou que se tratava do tumor maligno carcinoma. E os médicos que o atenderam disseram não ser recomendável cirurgia e sim tratamento com rádio e quimioterapia, mas sem possibilidade de cura.
 
Quando ele ainda estava morando no ABC paulista falava com Soave por telefone todos os dias e num domingo de setembro do ano passado fui até Santo André, onde ele residia sozinho numa velha casa na rua Guadalupe 490, no bairro Parque das Nações, e constatei sua magreza esquelética, sentindo muitas dores e com o braço esquerdo praticamente paralisado. Vi um homem de 63 anos, mas que aparentava ter mais de 75, fragilizado pela doença.
 
Na visita encontrei sua filha Semíramis e a neta Camile, de um ano e meio de idade, que vieram de Porto Alegre dispostas a levar o pai e o nono para a capital do Rio Grande do Sul e assim tentar tratá-lo da terrível moléstia no Hospital das Clínicas gaúcho.
 
Por conta da sua aparência envelhecida, doente e pelas informações que obtive com a filha e irmãs de Soave, fiquei com a certeza de que o operário estava sem força física para prolongar o tempo que lhe foi concedido nesta terra.
 
No Hospital das Clínicas de Porto Alegre ele foi tratado com quimioterapia e radioterapia, até que os médicos identificaram que o câncer se ramificara para o cérebro, onde surgiram outros dois tumores malignos.
 
Um dos muitos personagens do livro que estou terminando de escrever sobre a organização de esquerda Ação Popular, Antonio Norival Soave nasceu em família operária, em Santo André, na região metropolitana paulista, em 24 de agosto de 1947. É o único varão entre quatro irmãs – Iracema, Aparecida, Tereza e Hilda -, filhos de José Soave e Roma Carolina Fantanesi, já falecidos e descendentes de migrantes do norte da Itália que vieram para o Brasil no final do século 19.
 
Em Santo André, a família Soave construiu os seus sonhos, primeiro vendendo frutas, verduras e legumes em feiras livres, e depois com macacões nas fábricas do ABC paulista, onde José Soave e Roma Carolina tornaram-se operários e trabalharam quase quarenta anos nas caldeiras e tecelagens de indústrias têxteis.
 
Da mesma forma que os pais operários, e morando em Santo André, no ABC paulista, desde que nasceu, Antonio Norival Soave começou a trabalhar ainda menino. Com apenas 11 anos já levantava às 3 horas da madrugada para trabalhar na feira. Depois, já com 14 anos tornou-se operário na linha de montagem da Pirelli, onde fazia moldes de colchões de espuma látex. A empresa também produzia pneus, cabos, fios, entre outros produtos.
 
Em 1 de abril de 1964 ele tinha 16 anos, quando o então presidente da República, João Goulart, foi deposto pelo golpe civil-militar e trabalhava na Cooperativa da Rhodia. Um ano depois foi demitido por participar de greve por melhores salários, mas em seguida conseguiu trabalho como preparador de máquinas na metalúrgica Cima (Companhia Industrial de Materiais Automobilísticos) e se filiou no Sindicato dos Metalúrgicos de Santo André.
 
A partir de 1966, além de atuar no movimento sindical, ele começou a militar na organização política de esquerda Ação Popular, que também atuava entre os operários no ABC paulista, com origem principalmente na JUC (Juventude Universitária Católica), e tinha sido fundada em Salvador (BA), em 1963.
 
A partir de 1966 é que ele foi entender melhor as coisas da política e a mecânica da vida, suas leis e contradições. Ele viveu aquele momento do Brasil da resistência ao golpe militar e em 1968 já estava trabalhando como inspetor de qualidade na Chrysler do Brasil, em São Bernardo do Campo, quando explodiram greves, manifestações estudantis e populares contra a ditadura pelo país. Na Chrysler ele participou da organização de paredes por melhores salários e melhores condições de trabalho. E teve atuação destacada no Primeiro de Maio de 1968, na Praça da Sé.
 
Em Santo André, ele e seus camaradas começaram a organizar o primeiro de maio de 1968 com uma passeata de 20 mil pessoas pelas ruas da cidade. E depois alugaram vários ônibus para trazer os trabalhadores de São Bernardo e de Santo André até a Praça da Sé, onde já estavam operários de Osasco, de São Paulo e do interior paulista, além de muitos estudantes.
 
Soave estava à frente dos operários da Mercedes Benz que romperam o cerco dos agentes do DEOPS, na Praça da Sé, e ocuparam o palanque onde estavam os representantes da ditadura, entre os quais o então governador Abreu Sodré, seu Secretário de Finanças, Delfim Neto, e os pelegos das diretorias do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo e da Federação dos Metalúrgicos, que tinham preparado uma comemoração oficial e festiva para o regime militar.
 
No momento em que os operários ocuparam o palanque, pelegos e representantes da ditadura saíram correndo, o microfone foi entregue ao líder sindical da oposição e militante da AP José Nanci, que discursou e denunciou o regime militar, conclamando o povo a enfrentá-lo, exigindo democracia e liberdades democráticas, liberdade de atuação sindical e o fim do arrocho salarial.
 
Depois os operários saíram em passeata, com milhares de pessoas, até a Praça da República, onde o líder metalúrgico de São Bernardo do Campo, José Barbosa, militante da AP e recentemente falecido, também discursou, denunciando a ditadura.
 
A partir de então José Nanci, o operário José Barbosa, além de outros sindicalistas de oposição e muitos de militantes da AP passaram a ser perseguidos pela polícia política da ditadura. Ainda assim eles conseguiram realizar greves na Chrysler, na Mercedes Benz, na Volkswagen, na Wyllis Overland do Brasil que hoje é Ford, e em algumas outras indústrias menores do ABC, onde a AP tinha atuação.
 
A repressão não tardou a chegar. No final daquele ano de 1968, quando a ditadura baixou o Ato Institucional número 5, centenas de operários foram sendo demitidos e perseguidos no ABC, a exemplo do que aconteceu com Antonio Norival Soave, em janeiro de 1969, quando foi dispensado da Chrysler por causa das lutas que ele e outros operários estavam levando adiante.
 
O cerco da ditadura aos movimentos sindical e popular ficou ainda pior com a nova Lei de Segurança Nacional que entrou em vigor em setembro de 1969, e depois que Emílio Garrastazu Médici foi escolhido para ser o novo general-presidente da ditadura desde dezembro daquele ano. Além disso, em maio de 1970, a famigerada Operação Bandeirantes, de São Paulo, foi legalizada e passou a se chamar DOI-CODI.
 
Organizados em várias capitais brasileiras, os DOI-CODI se tornaram uma espécie de campos de concentração, de tortura e assassinatos praticados pelo regime militar e, junto com o Centro de Informações da Aeronáutica (CISA), Centro Nacional de Informações da Marinha (CENIMAR) e Serviço de Informação do Exército (CIEX) e os DEEOPS, estabelecem um regime ainda mais sanguinário contra os brasileiros, contra as organizações políticas de esquerda e os movimentos de oposição à ditadura.
 
Era o tempo do "milagre econômico" dos militares, que precisavam de um Brasil sem resistência à nova etapa de brutal acumulação capitalista no país. Um "milagre" baseado no arrocho dos salários dos operários, com o aviltamento de suas condições de vida, com a retenção ao máximo da mais-valia do trabalho produzido.
 
Depois de demitido da Chrysler, Antonio Norival Soave fez testes de inspetor de qualidade na Volkswagen, passou com as notas mais altas, passou nos testes da Wyllis Overland do Brasil, mas não foi admitido em nenhuma delas porque havia uma lista negra entre as indústrias, que perseguiam os operários que ousavam lutar. Muitas vezes ele chegou a entrar na fila de emprego da Mercedes Benz, mas o chefe do departamento de pessoal já o tinha identificado e sempre o mandava sair.
 
Apesar de toda a repressão, o operário e seus companheiros continuaram a lutar e o preço disso foi a perseguição e prisão de centenas e centenas de pessoas pela polícia política da ditadura.
 
Antonio Norival Soave estava entre elas e a sua prisão ocorreu em 20 de outubro de 1973, quando foi seqüestrado por agentes do DOI-CODI, sob armas, por volta das 19 horas, na rua Oratório, no bairro Parque das Nações, em Santo André, próximo à casa dos seus pais. Naquele dia tinha passado na casa da família, que estava sendo vigiada e não sabia.
 
Depois de imobilizado pelos agentes do Exército, foi colocado num carro e levado para a rua Tutóia, onde funcionava uma delegacia de polícia do estado de São Paulo e utilizado pelo DOI-CODI, também chamado de OBAN - Operação Bandeirantes -, que aplicava os meios mais hediondos de tortura para obter informações e liquidar a oposição ao regime militar.
 
Lá chegando, ele foi colocado em um compartimento debaixo de uma escada que servia de depósito dos cavaletes usados na tortura do pau-de-arara. Pouco tempo depois, foi retirado desse compartimento por dois torturadores com tapas e socos e levado até a sala de torturas.
 
Sob o comando do "Capitão Ubirajara", chefe da equipe B da OBAN, e com a permissão do então major do Exército, Carlos Alberto Brilhante Ustra, comandante do DOI-CODI e conhecido como "o carniceiro da rua Tutóia", ele foi colocado na "cadeira do dragão", onde ficou levando choques elétricos nos dedos e braços. Em seguida, foi despido e colocado no pau-de-arara onde por toda a noite os torturadores intercalavam socos e pontapés, batiam com palmatória nas nádegas e aplicavam choques elétricos nos testículos, pênis, anus, dedos das mãos e dos pés, na garganta, língua, orelhas e no interior dos ouvidos, quando perfuraram seus tímpanos.
 
No início da manhã, após dois desmaios, ele foi medicado por um médico do Exército e levado para uma sala totalmente vedada e com iluminação por 24 horas, lá ficando completamente isolado durante uns 40 dias, e saindo somente para a sala de torturas.
 
Depois desse período, foi levado para a cela X 1, onde estavam outros presos, e os interrogatórios e tortura psicológica continuaram. Em 29 de novembro de 1973, conduziram-no para prestar o depoimento formal no DEOPS e no mesmo dia trazido de volta para o DOI CODI, onde continuou incomunicável até os dez primeiros dias do mês de dezembro daquele ano, quando a sua prisão foi finalmente admitida e os torturadores permitiram que sua família o visitasse.
 
Na segunda quinzena de dezembro de 1973, foi transferido com outros companheiros para o presídio do Hipódromo, onde continuou preso sem assistência médica, o que agravou o problema nos ouvidos perfurados durante as torturas.
 
Somente em março de 1974 é que a ditadura encaminhou para a 1ª Auditoria da 2ª Circunscrição Judiciária Militar a denúncia contra ele e outros presos, acusados e processados por militância na organização política de esquerda Ação Popular Marxista Leninista do Brasil.
 
Em 9 de abril daquele ano foi qualificado e interrogado na Auditoria Militar, quando denunciou as torturas a que foi submetido, denunciou o desaparecimento e assassinatos dos seus companheiros Paulo Stuart Wright, José Carlos da Mata Machado e Gildo Macedo Lacerda, militantes da Ação Popular, mortos pela ditadura de Emílio Garrastazu Médici.
 
Em agosto de 1974, no julgamento do tribunal militar, ele foi condenado a dois anos de prisão e, portanto, reconduzido ao presídio do Hipódromo para cumprir a pena, de onde foi transferido depois para a Casa de Detenção de São Paulo (Carandiru), e mais adiante para o Presídio da Justiça Militar Federal (Romão Gomes), que funcionava no interior do Quartel da Polícia Militar do Estado de São Paulo, no bairro Barro Branco.
 
Finalmente, na segunda quinzena de maio de 1975, após julgamento no Superior Tribunal Militar (STM), que em sessão realizada em 16 de maio de 1975 decidiu reduzir sua pena para 16 meses de reclusão, Soave foi libertado depois de passar 19 meses na prisão, incluindo o período em que esteve encarcerado e torturado no DOI-CODI.
 
Quando saiu da cadeia Antonio Norival Soave estava com uma perda acentuada de audição, problema que foi relatado por mim na época em carta dirigida ao advogado Hélio Navarro, em 13 de maio de 1975, que denunciou o fato no STM e entregou a carta ao Congresso Nacional. Posteriormente, em 1978, trecho da carta foi publicado pela revista IstoÉ.
 
Depois de sair da prisão, Soave se apaixonou e casou com Nilce Azevedo Cardoso, também ex-militante da AP, e mudou para Porto Alegre (RS), onde tiveram dois filhos, Semíramis e Paulo.
 
Nesse período, Soave combateu com o povo brasileiro na luta da anistia, pela volta do irmão do Henfil com tanta gente que saiu... Ainda atuou na organização e fundação do Partido dos Trabalhadores e trabalhou no jornal O Companheiro.
 
Mas o seu casamento com Nilce fracassou e, embora continuassem amigos e solidários, eles se separaram. Morando sozinho em Porto Alegre, com problemas de saúde, incluindo a perda de muitos dentes, deprimido e praticamente sem amigos, Soave voltou para Santo André em 1997, foi morar com seu pai José, que estava muito doente e com o mal de Alzheimer.
 
Em junho de 1998, o operário sofreu um acidente quando pintava a casa, teve o globo ocular esquerdo perfurado por uma faca e desde então estava completamente cego de um olho e enxergando apenas 40% com o olho direito, assim mesmo com ajuda de óculos e lente de contato.
 
De lá para cá o pai José terminou morrendo, velhinho, mas sempre amparado e bem cuidado pelo filho e filhas até o instante final.
 
Mais uma vez morando sozinho, embora sempre visitado por suas irmãs, pelos filhos Semíramis, Paulo e a ex-mulher Nilce, Antonio Norival Soave ou Ernesto e Bento (nomes pelos quais seus amigos da AP o conheceram) teve pneumonia e outros graves problemas de saúde.
 
Ernesto Soave sobrevivia materialmente com muitas dificuldades e contava apenas com aposentadoria de pouco mais de um salário mínimo. Seu plano de saúde era o SUS, a exemplo do que acontece com os brasileiros pobres, a imensa maioria da população do Brasil privatizado.
 
Na verdade, Ernesto Soave vivia igual ao Bêbado e o Equilibrista, da canção de João Bosco, Aldir Blanc e eternizada na voz de Elis Regina.
 
Mas o homem não desistia da caminhada, solitária, embora aos tropeços, desequilibrando-se e lutando para não ser jogado fora da ponte da vida.
 
Retraído e solitário, política, pessoal e socialmente, ele sentia falta dos velhos amigos, antigos camaradas e não conseguiu fazer novas amizades para compartilhar alegrias, tristezas e dores inerentes à vida.
 
Mas esse bêbado equilibrista permanecia embriagado pelos sonhos socialistas e teimava com teimosia vermelha no direito de sonhar.
 
E continuou sonhando até o dia em que tombou, seu sangue coalhou, ele dormiu para sempre e nunca mais vai acordar.
 
Viverá na eternidade e despertará apenas no derradeiro sonho, quando estará mais uma vez com o macacão sujo de graxa, caminhando pelas fábricas do ABC paulista e lutando com a sua gente contra a espoliação capitalista, pela revolução socialista e libertação da sua classe.
 
Nesse derradeiro sonho, com certeza, Ernesto Soave lembrará aos seus antigos camaradas, e aos que virão depois de nós, que os revolucionários socialistas não podem perder a ternura jamais. Mas ainda assim esse operário, que lutou e viveu com a mesma brandura e suavidade que carregava no sobrenome, dizia que os revolucionários de ontem e de hoje não podem se esquecer de que a vida dos pobres na sociedade capitalista é dura, pesada.
 
Por isso mesmo, homens e mulheres precisam sonhar. Mas com a condição de acreditar nos seus sonhos, de examinar atentamente a vida real e de confrontar seus sonhos com a realidade. Aí, então, dizia o operário rebelde, bêbado e equilibrista, mulheres e homens conseguirão finalmente realizar as suas fantasias.
 
Otto Filgueiras é jornalista.

István Mészáros e a imperiosa necessidade do pluralismo socialista

Escrito por Demetrio Cherobini   no Correio da Cidadania
 
Resisto a tudo menos minha própria diversidade,
Sou vasto... contenho multidões.
Walt Whitman
 
A afinidade eletiva existente entre o Partido dos Trabalhadores e o capital é visível desde já um bom tempo. Em 2004, por exemplo, num gesto de autoritarismo extremo acompanhado de um discurso cínico e oportunista, o partido expulsou quatro de seus parlamentares que não concordavam com as determinações da cúpula acerca da famigerada reforma da previdência, então em curso (1).
 
Esta atitude - a imposição dos interesses de uma parte do partido sobre o todo de que é composto -, muito aquém de afirmar uma virtude política indispensável para os tempos atuais, configurou apenas a ilustração exemplar do imperativo prático que tem orientado as ações do PT ao longo dos últimos anos: a busca fetichista da unidade, realizada com vistas a neutralizar as energias críticas dos trabalhadores e a promover a ampla e irrestrita conciliação das classes estruturalmente antagônicas da presente sociedade (2). Demonstrou, acima de tudo, como o referido partido expressa, em sua forma de ser e de se comportar, a maneira de se estruturar do próprio capital, com seus respectivos interesses e contradições.
 
Ora, o capital, explica-nos István Mészáros (2002), é justamente esse modo totalizante de controle sobre a atividade produtiva humana, que se configura de maneira hierárquica e autoritária, visando eliminar toda e qualquer postura que seja diferente do propósito de levar a efeito a mais elevada extração praticável do trabalho excedente, num movimento perene, sempre acumulativo e auto-expansivo. Nesse contexto, diz o filósofo, a única alternativa viável é a crítica radical, feita pelo trabalho, de tal conjunto de relações sociais, uma crítica que promova a negação das determinações materiais do sistema e a conseqüente afirmação de novas maneiras de mediar o metabolismo social humano - a negação, portanto, do modo de ser hierárquico e excludente do capital e a afirmação de uma forma de relacionamento genuinamente associativa e horizontal entre os "produtores livremente combinados" (3). Tal alternativa se encontra delineada em torno daquilo que Mészáros denomina de pluralismo socialista, um princípio de organização que visa superar as contradições inerentes à imposição da unidade e as infelizes mistificações de que essa proposta vem acompanhada.
 
Nesse sentido, argumenta o autor de Para além do capital, é possível observar que já Marx e Engels em sua época estavam atentos para o fato de que a unidade não é pré-requisito para o êxito do projeto revolucionário dos trabalhadores. Duas breves passagens dos referidos autores, listadas por Mészáros, servem para demonstrar o posicionamento de ambos sobre o assunto. A primeira é de uma carta de Engels a August Bebel, datada de 1º-2 de maio de 1891, condenando a influência de Wilhelm Liebknecht sobre a redação do Programa de Gotha: "Da democracia burguesa ele (Liebknecht) trouxe e manteve uma verdadeira mania de unificação" (ENGELS, apud Mészáros, 2002, 811). A segunda é de uma carta de Marx a Wilhelm Bracke, escrita em 5 de maio de 1875, onde se lê que "é um engano acreditar que este sucesso momentâneo (isto é, a unidade em redor de um movimento político) não será comprado a um preço muito alto" (MARX, apud Mészáros, ibid., 811).
 
Para Marx e Engels, a suspeita em relação à exigência da unidade se devia ao fato de que tal proposta costumava levar os partidos e as organizações de esquerda a conseqüências prejudiciais, entre elas a supressão da autocrítica e a barganha sobre princípios. Isto era, evidentemente, um preço alto demais a ser pago pelas forças que lutavam pela realização de uma comunidade humana livre do jugo do capital, onde homens e mulheres pudessem desenvolver ao máximo as suas potencialidades. Ciente desse dilema, Mészáros estabelece uma reflexão que pretende apontar uma saída para o labirinto no qual se perdem muitos dos movimentos socialistas da atualidade.
 
A unidade política, explica o filósofo, não pode ser um objetivo porque a classe trabalhadora não é, por sua própria condição, unificada. Na verdade, ela constitui um complexo de setores variados - muitas vezes antagonicamente estruturado - em contraposição à pluralidade de capitais em torno da qual se baseia o sistema vigente (4). Por isso, o que é desejável no movimento revolucionário é a articulação pluralista – e não a unidade, que pressupõe camuflar diferenças artificialmente - dos diversos grupos que combatem pela causa dos trabalhadores.
 
Como explica Mészáros, "Assim como naqueles dias (isto é, nos tempos de Marx e Engels), mais uma vez este assunto é de suprema importância. Pois hoje – talvez mais que nunca, em vista das experiências amargas do passado recente e do não tão recente – não é mais possível conceber as formas imprescindíveis de ação comum sem uma articulação consciente de um pluralismo socialista, que não só reconhece as diferenças existentes, mas também a necessidade de uma adequada 'divisão do trabalho' na estrutura geral de uma ofensiva socialista. Em oposição à falsa identificação da 'unidade' como o único meio de patrocinar princípios socialistas (enquanto, na realidade, a perseguição irreal e a imposição de unidade trouxeram com elas as necessárias concessões sobre princípios), permanece válida a regra de Marx: não pode haver barganha sobre princípios" (2002, 812).
 
De acordo com Mészáros, somente o pluralismo socialista pode impedir que, dentro de um movimento de luta social e política complexo e multifacetado, ocorra a imposição do interesse de uma das suas partes sobre as demais – imposição esta que, justamente, como o citado caso do PT o demonstra, origina a supressão da autocrítica e a barganha sobre princípios, que tanto beneficiam a ordem de reprodução sócio-metabólica vigente (5).
 
A práxis pluralista, no sentido que o filósofo atribui ao termo, é aquela que reconhece e combina as diferenças e as particularidades concretas inerentes aos variados setores do proletariado (6) em função do seu objetivo maior. Ao assim proceder, cria uma forma de ação conjunta que possibilita o combate do próprio fundamento de hoje haver os particularismos antagônicos de classe, a saber: a dinâmica – sempre acumulativa e auto-expansiva - da exploração do trabalho excedente que configura o sistema do capital.
 
As implicações políticas de tal proposta são claras: o agente social da transformação revolucionária não pode ser definido como sendo composto unicamente por este ou por aquele ramo específico dos trabalhadores. Ao contrário: precisa ser buscado no trabalho como um todo, que, reconhecendo sua constituição múltipla e heterogênea, age no sentido de realizar o – também reconhecido - interesse que permeia a classe em sua totalidade.
 
Lemos, assim, em O poder da ideologia, que o sujeito social da emancipação "só estará apto para criar as condições do sucesso se abranger a totalidade dos grupos sociológicos capazes de se aglutinarem em uma força transformadora efetiva no âmbito de um quadro de orientação estratégica adequado. O denominador comum ou o núcleo estratégico de todos esses grupos não pode ser o 'trabalho industrial', tenha ele colarinho branco ou azul, mas o trabalho como antagonista estrutural do capital. Isto é o que combina objetivamente os interesses variados e historicamente produzidos da grande multiplicidade de grupos sociais que estão do lado emancipador da linha divisória das classes no interesse comum da alternativa hegemônica do trabalho à ordem social do capital. Pois todos esses grupos devem desempenhar seu importante papel ativo na garantia da transição para uma ordem qualitativamente diferente" (2004, 51).
 
Ou seja, mesmo a classe trabalhadora sendo composta de uma miríade de setores, cada qual com interesses correspondentes às suas posições particulares, há, por trás disso, pela própria situação atual do trabalho enquanto atividade subordinada ao capital, uma condição e um interesse compartilhado por todos: isto é, respectivamente, a exploração fetichista do trabalho excedente e a necessidade de superá-la em direção a uma sociedade emancipada.
 
No processo revolucionário, portanto, todos os grupos terão papel fundamental, mas é preciso que estejam alertas para o fato de que, para uma emancipação realmente digna deste nome, a luta não pode se realizar com um dos segmentos afirmando o seu interesse sobre os demais. O pluralismo exige horizontalidade entre os movimentos de trabalhadores. Somente dessa maneira os socialistas poderão aspirar à radical e efetiva superação do sistema do capital.
 
O novo modo de operação dos revolucionários não deverá, então, espelhar a maneira de se estruturar do próprio capital – isto é, como o PT o faz: hierarquicamente e afirmando o interesse da parte sobre o todo, com vistas a eliminar as energias combativas dos trabalhadores. A emergente força social emancipadora conseguirá ter êxito em seus propósitos apenas se se articular a partir de princípios radicalmente diferentes de ação e de organização. A reconstrução das mediações sociais e políticas em torno das quais estarão reunidos os socialistas já necessitará, pois, estar baseada naquilo que Mészáros chama de igualdade substantiva, (7) em contraposição à igualdade meramente formal da atual ordem vigente.
 
Isto quer dizer, em outras palavras, que a estruturação interna do movimento terá que apresentar, em seu próprio processo constitutivo, "prenúncios de uma nova forma – genuinamente associativa – de cumprir as tarefas que possam se apresentar" (8) - 2004, 52. E para que tudo isso possa, enfim, se realizar, é imprescindível, diz Mészáros, a formação de uma "consciência de massa socialista", a ser desenvolvida no processo mesmo de confrontação prática com a ordem do capital (9).
 
A proposta mészáriana do pluralismo socialista é, portanto, de fundamental importância para a esquerda brasileira nos dias atuais. Depois do tsunami de pelegos que assolou o país com o governo do PT, as novas forças socialistas a se constituírem precisarão se reformular sem repetir as mesmas contradições. PSOL, PCB, PSTU e todos os demais grupos políticos imbuídos do objetivo da superação do capital necessitarão se articular de forma crítica e pluralista daqui por diante, ou estarão condenados ao fracasso e à impotência.
 
Mais do que a falsa unidade – calcada, como vimos, na imposição da parte sobre o todo e na barganha sobre princípios –, é imperioso coadunar grupos diversificados, com as suas respectivas particularidades, em redor do objetivo comum: derrotar o capital e instaurar a comunidade dos homens e mulheres verdadeiramente emancipados - ou a "associação livre dos produtores", como a chamou Marx.
 
Em tempos históricos de profunda crise, torna-se imprescindível que construamos essa capacidade de atuar em conjunto de forma horizontal. Se continuarmos mergulhados na inépcia no que diz respeito a travarmos esse tipo de ação coletiva, estaremos com toda certeza perdidos. Se, ao contrário, conseguirmos envidar esforços articulados, mesmo que tenhamos entre nós algumas eventuais diferenças, teremos, quem sabe, alguma chance.
 
Notas:
 
1) Os parlamentares em questão eram a senadora Heloísa Helena e os deputados federais Luciana Genro, João Fontes e Babá. Eles alegavam que a reforma tinha viés privatizante e retirava dos trabalhadores direitos conquistados historicamente, indo assim em direção contrária ao ideário mantido pelo PT ao longo da sua trajetória passada. Para um maior entendimento sobre o caráter conservador da referida reforma, ver Oliveira (2006).
 
2) Por meio, entre outras coisas, da administração de políticas assistencialistas e da cooptação de centrais sindicais, o imperativo da conciliação de classes foi tão intenso no período das duas primeiras gestões petistas que o sociólogo Francisco de Oliveira (2010) não hesitou em afirmar que "se FHC destruiu os músculos do Estado para implementar o projeto privatista, Lula destrói os músculos da sociedade, que já não se opõe às medidas de desregulamentação". O mesmo, ao que tudo indica, está a se reproduzir no governo Dilma.
 
3) Este conceito de crítica – articulação material de negação e afirmação no sentido de promover a "transcendência positiva da auto-alienação do trabalho" – é desenvolvido pelo filósofo húngaro em praticamente todas as suas obras. Ver, por exemplo, a esse respeito: Mészáros (2008).
 
4) Conforme as palavras de Mészáros: "Na realidade, temos uma multiplicidade de divisões e contradições e o 'capital social total' é a categoria abrangente que incorpora a pluralidade de capitais, com todas as suas contradições. Ora, se olharmos para o outro lado, também a 'totalidade do trabalho' jamais poderá ser considerada uma entidade homogênea enquanto o sistema do capital sobreviver. Há, necessariamente, inúmeras contradições encontradas sob as condições históricas dadas entre as parcelas do trabalho, que se opõem e lutam umas contra as outras, que concorrem umas com as outras, e não simplesmente parcelas particulares do capital em confronto. Essa é uma das tragédias da nossa atual situação de apuro. (...) Essas divisões e contradições restam conosco e, em última instância, devem-se explicar pela natureza e funcionamento do próprio sistema do capital" (2007, 66).
 
5) A expressão, na forma de atuação prática do Partido dos Trabalhadores, das exigências materiais do capital deve ser entendida, evidentemente, a partir dos múltiplos complexos de mediação que permeiam a relação entre essas duas estruturas, especialmente a crise estrutural do capital e a crise estrutural da política, que acometem o sistema sócio-metabólico vigente. Em razão das limitações do presente artigo, não poderemos nos aprofundar acerca desses temas. Para uma maior compreensão das crises estruturais do capital e da política, ver Mészáros (2002). Para uma boa visão das transformações do PT ao longo dos últimos anos, ver Oliveira (2006, 2010 e 2010b).
 
6) Segundo Mészáros (2007), proletário não pode ser definido meramente como o operário de fábrica ou o trabalhador manual. Proletariado, enquanto categoria social, diz respeito a todos os grupos sociais que, sofrendo a ação usurpadora do capital em relação aos meios de produção, se encontram alijados da possibilidade de controle consciente sobre o sócio-metabolismo humano. Proletarizar-se, nesse sentido, é perder esse controle.
 
7) A igualdade substantiva é definida por Mészáros qualitativamente, com base nas teses de Babeuf que foram endossadas por Marx: "A igualdade deve ser medida pela capacidade do trabalhador e pela carência do consumidor, não pela intensidade do trabalho nem pela quantidade de coisas consumidas (grifo nosso). Um homem dotado de certo grau de força, quando levanta um peso de dez libras, trabalha tanto quanto outro homem com cinco vezes a sua força que levanta cinqüenta libras. Aquele que, para saciar uma sede abrasadora, bebe um caneco de água, não desfruta mais do que seu camarada que, menos sedento, bebe apenas um copo. O objetivo do comunismo em questão é igualdade de trabalhos e prazeres, não de coisas consumíveis e tarefas dos trabalhadores" (BABEUF, apud Mészáros, ibid., 42). Tais são os princípios de organização da produção e da distribuição a serem implementados na fase superior da sociedade socialista: não a igualdade de coisas consumidas, nem de tarefas ou horas de trabalho realizadas, mas a igualdade medida pelas capacidades e carências não alienadas dos indivíduos sociais.
 
8) Nessa forma de organização política - horizontal e radicalmente pluralista -, é fundamental, afirma Mészáros, que os trabalhadores saibam articular as suas demandas parciais com as exigências gerais de superação do sistema. Vale a pena, mais uma vez, ler o que escreve o autor de Para além do capital acerca de sua proposta: "as demandas mais urgentes de nossa época, que correspondem diretamente às necessidades vitais de uma grande variedade de grupos sociais – empregos, educação, assistência médica, serviços sociais decentes, assim como as demandas inerentes à luta pela libertação das mulheres e contra a discriminação racial -, podem, sem uma única exceção, ser abraçadas sem restrições por qualquer liberal genuíno. Entretanto, é absolutamente diferente quando não são consideradas como questões singulares, isoladamente, mas em conjunto, como partes do complexo global que constantemente as reproduz como demandas não realizadas e sistematicamente irrealizáveis. Desse modo, o que decide a questão é a sua condição de realização (quando definidas em sua pluralidade como demandas socialistas conjuntas), e não o seu caráter considerado separadamente. Por conseguinte, o que está em jogo não é a enganosa 'politização' destas questões isoladas, pela qual poderiam cumprir uma função política direta numa estratégia socialista, mas a efetividade de afirmar e sustentar tais demandas 'não-socialistas', tão largamente auto-motivadoras no front mais amplo possível" (2002, 818). Ou seja, as "demandas urgentes de nossa época" – empregos, educação, saúde etc. – são todas importantes e não devem deixar de ser reivindicadas. Mas o essencial, diz Mészáros, não é a "politização destas questões isoladas" e sim a integração de tais demandas dentro de um quadro reivindicatório mais amplo, que combata o fundamento real de a sociedade se ver hoje majoritariamente privada dessas condições básicas: o sistema de controle sócio-metabólico do capital.
 
9) Daí a importância atribuída pelo filósofo húngaro (2008b) à educação revolucionária, que necessita se realizar em meios formais e não formais, a fim de proporcionar o desenvolvimento contínuo da consciência e dos valores socialistas exigidos para a efetivação da nova forma histórica.
 
Referências:
 
MÉSZÁROS, István. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2002.
MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo, 2004.
MÉSZÁROS, István. O desafio e o fardo do tempo histórico. São Paulo: Boitempo, 2007.
MÉSZÁROS, István. Filosofia, ideologia e ciência social. São Paulo: Boitempo, 2008.
MÉSZÁROS, István, A educação para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2008b.
OLIVEIRA, Francisco de. O momento Lenin, 2006.
OLIVEIRA, Francisco de. O avesso do avesso. in OLIVEIRA, Francisco de, BRAGA, Ruy e RIZEK, Cibele (orgs.). Hegemonia às avessas: economia, política e cultura na era da servidão financeira. São Paulo: Boitempo, 2010.
OLIVEIRA, Francisco de. Consenso conservador cria falsa divergência entre Serra e Dilma (entrevista a Valéria Nader e Gabriel Brito). 2010b. Disponível em http://www.correiocidadania.com.br/content/view/5102/9/. Acesso em 03/01/11.
 
Demetrio Cherobini é cientista social (UFSM) e mestre em Educação (UFSC).

"Al-Gaddafi" não é “Al-Mahdi"


Assim como um Mahdi ( o messias - o ungido), o coronel Kadafi se considera fonte de todo o conhecimento.
por Filipe Pinto Monteirono LeMonde-Brasil
Davi era um rei valente e destemido. Nas batalhas que comandou, não demonstrava misericórdia com seus inimigos. Sua espada era a mais pesada, sua bravura a mais indômita. Para se manter no poder, envolveu-se em intrigas palacianas, perseguiu desafetos e transformou a corte em seu bunker de guerra. Reinou há aproximadamente 1.000 a.C na antiga Judéia e, dizem os especialistas, serviu de inspiração para seu povo que, após a sua morte, alimentou a crença no seu retorno. Foi tomado como um Ungido, um personagem magnífico, às vezes folclórico, responsável por inaugurar, num futuro próximo, um tempo de liberdade, paz e felicidade para os Judeus.
Muitos entusiastas cristãos enxergaram esse grande Messias na figura de Jesus Cristo quando este andou pela terra e tantos outros aguardam ansiosamente pela sua volta até os dias de hoje. No islamismo, ele também existe e se faz presente. É segundo longa tradição (apontam alguns autores, influenciada por elementos judaico-cristãos), um membro da família do profeta Maomé. Conhecido como Al-Mahdi, foi ressuscitado diversas vezes ao longo da história e influenciou inúmeros movimentos e personagens religiosos no continente africano e até na Europa, principalmente na região espanhola de dominação moura, a Andaluzia, ou como era conhecida na Idade Média, Al-andaluz.
Expulsos pelos cristãos do Velho Continente, muitos muçulmanos migraram para o norte da África e os que permaneceram sob a opressão da Cruz e da Coroa, criaram profecias várias que vislumbravam a volta triunfante de um Salvador. Imaginavam incríveis e assombrosas histórias, como a que entrevia uma sangrenta batalha em território norte-africano. Perseguidos desde o mediterrâneo - dizia a tal lenda, encontrada em uma espécie de “apócrifo” do Alcorão - os árabes lutariam pelas terras onde hoje se encontram os atuais Estados da Argélia, da Líbia e seguiriam até o Egito, onde se daria a derrota final dos europeus, sob a mão impiedosa de Mahdi. A Guerra Civil era só questão de tempo.
Essas “revelações”, por assim dizer, permaneceram vivas nas tradições populares muçulmanas e foram reinventadas em diversos momentos da História. Mahdi Muhammad Ahmed, por exemplo, foi um líder religioso que venceu as tropas inglesas no Sudão em diversas batalhas campais no séc. XIX, oferecendo séria resistência aos colonialistas. Já na Líbia do século XX, o rei Idris I, ao cair do trono em 1969, abriu caminho para a chegada de Muammar Muhammad Al-Gaddafi (ou Muamar Kadafi, para nós brasileiros), que prometeu perseguir e aniquilar os usurpadores do seu país. A velha monarquia havia se rendido ao ocidente e Kadafi, ao contrário, prometeu reacender a chama do pan-arabismo. Fez do islã, religião oficial do Estado.
Assim como deveria ser Mahdi, o coronel Kadafi se considerava fonte de todo o conhecimento. Redigiu de próprio punho o Livro Verde, cujo primeiro capítulo foi impresso em 1975 e cujos princípios deveriam nortear o destino de seu povo. Prometeu, num contexto de forte exacerbação nacionalista, reunir sob seu manto toda a nação árabe, como se fosse o único guardião dos desígnios de Maomé. Tal qual um santo guerreiro, armou seu povo, oferecendo cursos de treinamento militar em escolas, empresas e universidades. Refundou o país à sua maneira e cunhou o termo jamahiriya, ou “Estado das Massas”, como que para refletir o seu desejo de guiar toda a sociedade.
Ainda que a maioria da população muçulmana da Líbia seja Sunita, para a qual a força da figura histórica de Mahdi tem menos significado do que para os Xiitas, as tribos árabes do norte sempre mantiveram em perspectiva a sua chegada, como por exemplo, os magrebinos, no Marrocos. Kadafi se apoderou indevidamente das esperanças do povo árabe de sua terra. Subverteu a figura histórica de Mahdi e acomodou-se confortavelmente em seu trono. Diferentemente de Davi - um grande monarca e respeitado chefe militar da história de Israel –, ou milhares de personagens por ele influenciados - como Moisés, Jesus, D. Sebastião de Portugal e etc. - traiu as expectativas do país, se aliou aos inimigos e atacou covardemente seus irmãos de sangue.

Filipe Pinto Monteiro
 
Mestrando em História Social da UFRJ e bolsista do CNPQ

Livro “Inclusão Digital – Experiências Brasileiras” está disponível para download



Do blog Nas retinas

Lançado durante o último Fórum TIC Dataprev, o livro “Inclusão Digital – Experiências Brasileiras” já está disponível para download. Escrito pelo historiador Maurício Falavigna, o livro reúne depoimentos de especialistas em ID, a formação dos telecentristas pelo Brasil, a criação de políticas públicas para a área e a trajetória da Oficina para Inclusão Digital, desde a sua primeira edição, realizada em 2001.
Licenciado sob Creative Commons, o livro está disponível, gratuitamente, aqui. O arquivo em PDF tem o tamanho de 22.1 Mb e é totalmente pesquisável. Basta usar CTRL + F para buscar palavras e tópicos de seu interesse. A licença CC permite que todo o conteúdo do livro seja utilizado para pesquisas, teses, replicações, recompilações, impressão, desde que seja citada a fonte.

Sem geraldinos e arquibaldos



Em meio a falência de clubes, ganância de emissoras e um mercado voraz, desaparece a possibilidade do pobre torcedor de assistir ao esporte que adora

Por: Redação  da Rede Brasil Atual


Sem geraldinos e arquibaldos
Alma Ferida: A reforma do Maracanã vai encolher o estádio, que na reabertura terá ingressos mais caros. Paulo Roberto lembra saudoso, com o ingresso na mão, os tempos da popular geral, extinta em 2005. (Foto:Rodrigo Queiroz/Revista do Brasil)

Com a aparente "volta por cima" da Globo nas negociações sobre a transmissão dos campeonatos brasileiros de 2012 a 2014, as esperanças de transmissão de jogos na TV aberta em horários civilizados, para espectadores e atletas, se esvaem. Os clubes, atolados em dívidas, menosprezam a negociação coletiva. Também passam ao largo preocupações com o que o torcedor mortal terá de pagar por ingressos em estádios ou pacotes televisivos para ver seu time ou secar os demais. O esporte mais popular do país é cada dia mais impagável para a maioria da galera. O professor Flávio de Campos, do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP), compara a situação a uma briga oligárquica. "Essa cartolagem é muito parecida com determinadas raposas da política brasileira, e às vezes se confundem mesmo", diz.
A realização da Copa de 2014 no Brasil reforça a mudança de foco do futebol e potencializa a cobiça. Construídos ou reformados, às vezes com necessidade duvidosa, os estádios serão em tese mais bem aparelhados, terão capacidade menor e ingressos mais caros, o que evidencia essa busca pelo público de maior poder aquisitivo. "A questão da transmissão é um complemento da exclusão que vem sendo feita há anos nos estádios. Em nome da segurança, um padrão de modernidade se impõe e remove os setores populares. Como se a violência fosse um atributo desses setores, o que é uma falácia", acrescenta Campos.
No Maracanã, a geral, conhecida pelo grande número de populares fantasiados que ali acompanhavam os jogos, foi destruída em 2005 e deu lugar às cadeiras - setor nobre. Foi o fim dos geraldinos, como eram conhecidos os frequentadores. E os arquibaldos, a turma da arquibancada, também não tem vida fácil. Ambos os tipos foram cunhados pelo escritor Nelson Rodrigues, frequentador do velho Maracanã. 

Aperto

torcedor-geral_RodrigoQueirozO funcionário público Paulo Roberto Evaristo estava lá no último dia da geral, em 24 de abril de 2005, no jogo entre Fluminense e São Paulo - e até guardou o ingresso. "Estudava e trabalhava, o salário era pequeno, era a opção mais em conta. Além disso, era legal ficar mais perto do campo. A visão era ruim, mas compensava. Dava para chamar e xingar os jogadores. Pelo menos ficava a impressão de que podiam ouvir", brinca.
Na despedida, Paulo e alguns amigos foram os últimos a deixar o estádio. Aos 39 anos, realizou o sonho de muitos meninos: conseguiu entrar no campo, cobrar pênaltis imaginários e fingir que estava ligando do orelhão, como alguns jogadores costumavam comemorar seus gols, em vez de correr para diante da câmera mais próxima. Segundo ele, o ingresso custava um quarto do da arquibancada, que por sua vez era metade do preço das cadeiras.
Em 2010, o Maracanã foi fechado. A reforma mira a Copa. Na última, a capacidade caiu de 120 mil para 86 mil pessoas - que passaram a pagar mais. Em 1969, o estádio chegou a receber 180 mil torcedores. Com a reabertura, provavelmente em 2013, caberão apenas 76 mil e esperam-se preços ainda mais elevados.
Às vezes, alguém reclama. Como na partida entre Santos e Cerro Porteño, pela Taça Libertadores, em março. O time paulista aproveitou o jogo contra o rival paraguaio para cobrar R$ 100 pelo ingresso. Resultado: protestos e pouca gente no estádio.
Em Salvador, o gerente financeiro Marcus Vinícius Vilas Boas, o Kiko, torcedor do Bahia e fã de carteirinha do estádio da Fonte Nova conta que os preços não esperam reformas para subir. "Já está tudo mais caro. No Pituaçu (que vem sendo utilizado para jogos maiores), os ingressos para o campeonato baiano estão R$ 50, R$ 40 no mínimo, dependendo do jogo. Na Fonte Nova custavam R$ 10, R$ 20, R$ 30 no máximo."
O palco da Fonte Nova foi fechado em 2007, após a queda de um pedaço da arquibancada que matou sete pessoas. Kiko estava a poucos metros. "Lembro o dia da tragédia, nunca teve só 65 mil torcedores ali", diz, referindo-se ao público oficial informado. "No mínimo, uns 80 mil." O tradicional estádio foi implodido. No local, será construído um novo, com capacidade para pouco mais de 50 mil pessoas.

Elitização

Em artigo publicado em O Estado de S. Paulo no final de 2010, o professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) Marcos Alvito cita a Soccerex, feira internacional realizada no Rio com foco no futebol como negócio, na qual "especialistas" decretaram que a modalidade no Brasil terá a classe A como clientela-alvo, deixando as classes B e C para trás. "Porque as D e E há muito não sentam em uma arquibancada. Hoje os estádios viraram estúdios para um show televisivo chamado futebol", observa o antropólogo, para quem está em curso um processo de elitização perversa do esporte.
O docente foi um dos criadores, em 2010, da Associação Nacional dos Torcedores. Incipiente, mas com reivindicações como maior transparência no futebol, além de igualdade de acesso aos estádios. "Vai acabar com toda e qualquer possibilidade de a população pobre ou de classe média baixa frequentá-los. Claro que a gente aprova o conforto. O problema é transformar o estádio num grande shopping center", diz o estudante Matheus Serva, da ANT. "E tem o agravante da televisão. Quarta-feira às 10 da noite é impossível para um trabalhador assistir ao jogo."
O historiador Felipe Dias Carrilho vê na questão da TV um aprofundamento da lógica empresarial, que não chega a ser novidade, mas se torna mais visível à medida que a Copa se aproxima. "É a capitalização máxima do esporte. Nossos cartolas são os coronéis dentro do futebol." O jornalista Juca Kfouri fala em um país sui generis, em que os capitalistas não gostam de praticar o capitalismo que apregoam. "Por um lado, uma emissora (Record) capta recursos de forma 'espúria', no 'mercado da fé'. De outro, a concorrente (Globo) não demonstra interesse em seguir as regras da concorrência."
No mundo do consumo, os europeus estão muito à frente. Considerado pela revista Forbes o time mais rico do mundo, o Manchester United, da Inglaterra, acumula patrimônio de US$ 1,8 bilhão. Seu canal pago é exibido em 192 milhões de residências. O segundo na lista, o Real Madrid, da Espanha (US$ 1,3 bilhão), mostra equilíbrio nas fontes de receitas: 30% vêm da bilheteria de seu estádio, 34% do comércio de produtos e 36% de direitos da televisão - aqui, a dependência da TV supera os 50%. Em meados de março, o site do clube tinha poucos ingressos disponíveis a não sócios para um jogo do campeonato local que seria realizado três semanas depois, contra o Sporting Gijon: € 225 (R$ 530). 

Arquibancada

O executivo e consultor espanhol Esteve Calzada calcula que um fã do Real ou do rival Barcelona gastará aproximadamente € 3.000 (mais de R$ 7.000) se acompanhar seu time por toda a temporada europeia. "Em tempo de crise", lembra. Ele também prevê que, na temporada 2011-2012, o Barça desbancará o Real e se tornará o clube com maior arrecadação no mundo. O time catalão tem mais de 170 mil sócios-torcedores e mantém sempre lotado seu estádio, o Camp Nou, com capacidade para 99 mil espectadores.
No Brasil, os clubes,  endividados, as TVs e seus patrocinadores caminham para consolidar a tipificação do torcedor de "arquibancada de prédio", na definição do professor Flávio de Campos: aquele que assiste ao jogo em casa e faz barulho para perturbar o vizinho simpático ao adversário - que também não vai ao estádio.
O professor vê o país perder a oportunidade de fazer uma correção de rota. Eventos como Copa do Mundo (2014), Jogos Militares (2011), Olimpíada e Paraolimpíada (2016) deveriam ser determinantes para formular políticas de investimentos na formação de atletas. "É incrível a falta de interesse em vincular essa agenda esportiva à educação", diz. "Se equipassem as escolas públicas, essa revalorização poderia transformá-las em centros de difusão do esporte. Não seria muito difícil pensar num projeto mais interessante e criativo, em vez de gastar bilhões em estádios ultramodernos."
Autor, 30 anos atrás, do livro História Política do Futebol Brasileiro, o professor Joel Rufino dos Santos, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), considera que a chave para essa completa mercantilização é a separação entre o esporte e o espetáculo. "Eu gostava muito de ver jogos no campo do Palmeiras, da proximidade dos jogadores. Não sei por que vão construir outro estádio. É para o espetáculo", ironiza.
"Vai-se ao campo como se vai ao teatro", confirma Juca Kfouri. O jornalista também detecta um aspecto inexorável de elitização e de transformação dos estádios em estúdios para programas televisivos. Corintiano, ele lembra quando saboreava o show da torcida. "O lugar é para sentir em cima da pedra, no degrau (da arquibancada). Se estivesse lotado, ia para o alambrado." Juca conta a "sensação paradoxal" que experimentou, no Allianz Arena, na Copa da Alemanha, em 2006. "Um lugar suntuoso, limpíssimo e quase esterilizado. Não dá para xingar o juiz. Você faria isso no Teatro Municipal?", brinca. "Cada vez mais a sensação que tenho é de que os estádios não têm alma."

Na Argentina, a transmissão dos jogos é de graça

Enquanto no Brasil quem gosta de futebol praticamente fica à mercê de um conglomerado televisivo, na vizinha Argentina o governo comprou a briga com o Clarín, principal grupo de mídia do país, e assumiu as transmissões, que passaram a ser gratuitas e exibidas pela TV pública, com o lançamento do programa Futebol para Todos. A mudança faz parte da substituição da antiga Ley de Radiodifusión pela Ley de Medios Audiovisuales.
"Um capítulo importante dessa lei era precisamente garantir o direito ao acesso ao esporte mais importante dos argentinos", afirmou a presidenta Cristina Kirchner, na assinatura do convênio entre a AFA, a associação de futebol argentina, e o Sistema Nacional de Medios Públicos (SNMP), em agosto de 2009. Segundo ela, é obrigação do Estado "garantir a todos, sobretudo àqueles que não podem pagar, o direito a ver seu esporte predileto".
Para Gustavo Bulla, diretor da Autoridade Federal de Serviços de Comunicação Audiovisual, órgão regulador argentino, a exclusividade de direitos para televisionamento de futebol foi um dos fatores que levaram à concentração no meio audiovisual. "Agora, aquele adolescente de 18, 19 anos está vendo pela primeira vez um jogo de futebol, porque muitas cidades, devido ao sistema a cabo, não podiam transmitir", afirmou, durante evento em Brasília no final de 2010.
O governo argentino ofereceu US$ 150 milhões por ano, até 2019, para televisionar o campeonato. O valor é aproximadamente três vezes maior que o da TV privada. O acordo foi aceito pelos clubes, todos em dificuldade financeira, e intermediado pela AFA.
No Brasil, nas negociações pelo direito de transmissão do Campeonato Brasileiro de 2012 a 2014, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), vinculado ao Ministério da Justiça, até conseguiu impor um pouco de concorrência ao tema. A Globo ficou de fora do leilão elaborado pelo Clube dos 13 e implodiu o órgão ao assediar individualmente os clubes. Ofereceu bem mais do que pagou no contrato anterior a alguns dos principais times do país. A Rede TV! entrou como única concorrente e ganhou a licitação no atacado. A Record, da qual se esperava a maior oferta, nem entrou no leilão depois dos movimentos da Globo "por fora" - e, como a rival, partiu para as negociações individuais.
As dúvidas se multiplicam. Durante o programa Observatório da Imprensa, o procurador-geral do Cade, Gilvandro Araújo, afirmou que a autoridade antitruste poderá se manifestar novamente se acionada. "Isso (as discussões entre TVs e clubes) talvez vá ensejar no futuro um outro tipo de análise, não só do Cade, mas de todos os interessados nesse setor."
No campeonato inglês, os clubes negociam juntos. Na Espanha, separados, com grande parte do bolo destinada ao Barcelona e ao Real Madrid. Enquanto na Inglaterra o troféu é disputado por várias equipes, a Espanha criou "o melhor campeonato gaúcho do mundo", conforme expressão do jornalista esportivo Paulo Vinicius Coelho, em referência ao campeonato do Rio Grande do Sul, quase sempre vencido por Internacional ou Grêmio.
A questão, no Brasil, passa também pela política. Parte dos clubes é aliada de Ricardo Teixeira, presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) há 22 anos, parceiro da Globo e candidatíssimo ao comando da Fifa, a entidade maior da modalidade mundialmente. Antes de assistir de camarote à implosão, Teixeira tentou sem sucesso emplacar na presidência do Clube dos 13 seu aliado Kléber Leite, ex-presidente do Flamengo.
Entre os cotados para substituí-lo na CBF, se o mundo não acabar até lá, estão o presidente do Corinthians, Andrés Sanchez, companheiro de primeira hora, e até Marcelo Campos Pinto, executivo da Globo e principal articulador do atual imbróglio do futebol brasileiro - que não está livre de acabar nos tribunais.

Direitos humanos no Brasil, por dentro e por fora


Por Fábio Konder Comparato, da Caros Amigos

Artigo do jurista Fábio Konder Comparato evidência a dupla visão dos grupos dominantes brasileiros diante da questão dos direitos humanos, presente em toda história nacional e que atualmente encoberta crimes da Ditadura Militar, no blog o escrevinhador.

No conto O Espelho, de Machado de Assis, o narrador assevera a seus ouvintes espantados que cada um de nós possui duas almas. Uma exterior, que exibimos aos outros, e pela qual nos julgamos a nós mesmos, de fora para dentro. Outra interior, raramente exposta aos olhares externos, com a qual julgamos o mundo e a nós mesmos, de dentro para fora.
Penso que essa alegoria explica perfeitamente a diplopia ou dupla visão dos nossos grupos dominantes diante da questão dos direitos humanos. A alma exterior dessas falsas elites, exibida ao mundo, sustenta que neste país todos, sejam eles ricos ou pobres, poderosos ou humildes, têm seus direitos igualmente respeitados. Mas a alma interior repele com desprezo esse igualitarismo absurdo. Afinal, como bem sentenciava Napoleão – não o imperador dos franceses, mas o líder suíno da rebelião dos animais na famosa novela de George Orwell – se todos, em princípio, são iguais entre si, alguns acabam sendo mais iguais do que os outros.
Dois episódios históricos ilustram à perfeição esse aspecto deplorável dos nossos costumes políticos.
O primeiro deles foi a refinada hipocrisia das autoridades públicas (nelas incluído o clero católico, pois a Igreja era aliada ao Estado) a respeito do tráfico negreiro, durante a primeira metade do período imperial.
Em 1826, firmamos com a Inglaterra uma convenção, pela qual o tráfico de africanos que se fizesse depois de três anos da troca de ratificações seria equiparado à pirataria. Para cumprimento desse tratado internacional, promulgamos a Lei de 7 de novembro de 1831, a qual determinou que, a partir de então, todo africano desembarcado no Brasil seria considerado livre.
Essa lei, porém, permaneceu letra morta, pois fora editada unicamente “para inglês ver”. Os traficantes de carne humana tornaram-se os mais poderosos empresários do Império. Como lembrou o grande advogado negro Luiz Gama, ele próprio vendido como escravo pelo pai quando tinha apenas 10 anos, “os carregamentos eram desembarcados publicamente, em pontos escolhidos das costas do Brasil, diante das fortalezas, à vista da polícia, sem recato nem mistério. Eram os africanos, sem embaraço algum, levados pelas estradas, vendidos nas povoações, nas fazendas, e batizados como escravos pelos reverendos, pelos escrupulosos párocos!”
Diante desse comportamento indigno das autoridades brasileiras, e tendo em vista a iminente expiração do tratado de 1826, o Parlamento britânico votou em 1845 o bill Aberdeen, pelo qual, reiterando-se a qualificação do tráfico negreiro como pirataria, foi autorizado o apresamento, até mesmo em águas brasileiras, dos tumbeiros e de sua carga, com o julgamento da tripulação pelas Cortes do Almirantado em Londres.
Viu-se, portanto, o governo imperial constrangido a abandonar sua política de vistas grossas em relação ao comércio de seres humanos. Levou, porém, um lustro até fazer votar, em 4 de outubro de 1850, e aplicar efetivamente, a Lei Eusébio de Queiroz, que impunha o julgamento dos traficantes e compradores de africanos como contrabandistas.
Pois bem, vivemos agora um episódio análogo.
Durante a maior parte do regime militar, uma política de Estado efetivamente aplicada, embora nunca oficialmente reconhecida – como sempre, a alma exterior desmentindo a alma interior – consistiu em torturar e assassinar (com ou sem ocultamento, ou mutilação do cadáver), os principais opositores políticos, mesmo quando já recolhidos à prisão.
Em 1979, na esteira de outras ditaduras do hemisfério, decidiram os chefes militares, como condição para se afastarem do poder, impingir ao Congresso Nacional uma lei de anistia, aparentemente dirigida aos perseguidos pelo regime, mas na verdade e principalmente para garantir a total impunidade dos agentes de Estado, militares ou civis, que haviam ordenado e executado aqueles crimes hediondos. Em suma, uma auto-anistia.
Em 2009, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil ingressou com uma demanda perante o Supremo Tribunal Federal, pleiteando a interpretação dessa lei de anistia, à luz não só da Constituição de 1988, mas ainda dos princípios e tratados de direito internacional. Com efeito, o art. 5º, inciso XLIII da Constituição declara imprescritível e insuscetível de anistia o crime de tortura; e qualquer bacharel aprovado em concurso de ingresso à magistratura sabe que a entrada em vigor de uma nova Constituição revoga, de pleno direito, as leis anteriores com ela incompatíveis.
Por outro lado, desde o final da Segunda Guerra Mundial, com os julgamentos de Nuremberg dos criminosos nazistas, fixou-se no direito internacional o princípio fundamental de que os atos de terrorismo de Estado (como os praticados durante o nosso regime militar) são crimes contra a humanidade e, como tais, não sujeitos à prescrição nem à anistia.
A demanda proposta pela OAB perante o Supremo Tribunal foi, lamentavelmente, julgada improcedente. A Procuradoria-Geral da República e alguns julgadores chegaram, sem ironia, a afirmar que a anistia dos mandantes e executores de crimes de Estado, durante o período de exceção,  fora um “acordo histórico”, graças ao qual havíamos ingressado, triunfalmente, no regime democrático.
Sucedeu que em novembro do ano passado, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, ao julgar a atuação de nossos capitães do mato na repressão da chamada “guerrilha do Araguaia”, condenou o Brasil por unanimidade pela prática de graves violações de direitos humanos.
Além da abertura total dos arquivos militares e da reparação dos danos, físicos e morais, sofridos pelas vítimas sobreviventes daquela chacina e pelos familiares dos mortos, a sentença determinou:
>> Que se conduza eficazmente perante a jurisdição ordinária (ou seja, fora da Justiça Militar), a investigação penal de todos os crimes (não só os da “Guerrilha do Araguaia”), praticados pelos agentes do Estado contra opositores políticos ao regime militar, pois “as disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana, e carecem de efeitos jurídicos”. A Corte reconheceu, portanto, como destituída de fundamento jurídico a decisão do Supremo Tribunal Federal a esse respeito.
>> Que o Estado brasileiro realize “um ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional”, a respeito dos crimes praticados por seus agentes durante a chamada “Guerrilha do Araguaia”, em presença de altas autoridades nacionais e das vítimas.
>> Que o Estado brasileiro “deve implementar, em um prazo razoável, um programa ou curso permanente e obrigatório sobre direitos humanos, dirigido a todos os níveis hierárquicos das Forças Armadas”.
>> Que “o Estado deve adotar, em prazo razoável, as medidas que sejam necessárias para tipificar o delito de desaparecimento forçado de pessoas, em conformidade com os parâmetros internacionais”.
Nunca é demais lembrar que, no livre exercício de sua soberania internacional, o Brasil aderiu solenemente à Convenção Americana de Direitos Humanos em 1992, e reconheceu a jurisdição da Corte Interamericana em 1998. Ora, o art. 68 da Convenção determina que os Estados por ela vinculados “comprometem-se a cumprir a decisão da Corte em todo caso em que forem partes”.
No entanto, passados mais de quatro meses da prolação da sentença condenatória no caso, as autoridades brasileiras ainda continuam a fazer de conta que o assunto não é com elas. Até mesmo as publicações do decisório, ordenadas pela Corte, não foram feitas.
Ou seja, seguindo o precedente da criminosa condescendência com o tráfico negreiro no século XIX, e o nosso tradicional jogo duplo em matéria de direitos humanos, o Estado brasileiro não repele a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, mas tampouco a executa.
Diante disso, o Conselho Federal da OAB ingressou recentemente com uma petição, no processo acima referido sobre a interpretação da lei de anistia, pleiteando que o Supremo Tribunal Federal decida, claramente e sem rebuços – ou seja, fazendo coincidir o juízo da alma interior com o da alma exterior – qual das posições da seguinte inescapável alternativa o Estado brasileiro deve tomar:
>> Cumprir integralmente a sentença condenatória proferida pela Corte Interamericana de Direito Humanos, inclusive quanto à inadmissibilidade de anistia dos crimes cometidos por agentes públicos contra opositores políticos durante o regime militar;
>> Ou tornar-se-á um Estado fora-da-lei no plano internacional.
Fábio Konder Comparato é Professor Emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra