Protestos continuam no Cairo. A imagem é do dia 8 de julho | Foto: Lilian Wagdy/Flickr
Felipe Prestes e Igor Natusch no Sul21
Quem esperava uma onda de mudanças no mundo árabe, após as revoltas
populares do começo do ano, pode interpretar o atual momento como pouco
animador. Afinal, apenas dois países – Egito e Tunísia – derrubaram
governos autoritários e ainda buscam um novo modelo político. Enquanto
isto, outros países vivem confrontos sangrentos, especialmente a Líbia,
com uma guerra civil que não dá sinais de solução. Pouco mais de seis
meses depois da queda do ditador tunisiano Zine al-Abidine Ben Ali,
ocorrida em 14 de janeiro, a “Primavera Árabe” pode não render manchetes
como antes, mas ainda está longe de seu fim. Até o momento, a realidade
indica um movimento em direção à democracia – embora não seja a
democracia que nossos olhos ocidentais estão acostumados a ver.
– Qual é a situação de cada país árabe após os protestos populares
Antônio Jorge Ramalho da Rocha, professor do Instituto de Relações
Internacionais da Universidade de Brasília (UnB), identifica no mundo
árabe sinais que apontam para uma flexibilização dos regimes, algo que
vai além de Egito e Tunísia. “Não diria democratização, porque a palavra
tem uma conotação inadequada no caso, mas vejo uma tendência a um grau
menor de autoritarismo e uma comunicação maior entre governantes e
governados”, avalia. Governos de países como Marrocos, Argélia e Iêmen,
cientes de que não poderão se manter na base da força, sinalizam com a
abertura gradativa e parcial. “Parece haver uma compreensão de que é
preciso fazer concessões, de forma que a insatisfação da população não
se avolume ainda mais. Com a maior circulação de informações, amplia-se o
acesso do povo a instrumentos de pressão”, afirma.
O professor Renatho Costa, da Unipampa, concorda com essa leitura,
mas faz ressalvas. Segundo ele, as particularidades de cada país indicam
diferentes pressões internas. “Alguns países podem fazer concessões,
mas o autoritarismo está na base de alguns regimes. O vício autoritário
pode ser retomado se determinados reis ou ditadores sentirem-se
ameaçados”. Mas o professor admite que a mudança de panorama é
perceptível. “Há uma mudança na percepção do poder da população”, diz.
“Para permanecer no poder, os governos estão entendendo que precisam
negociar. Mesmo que alguns países façam uma repressão mais dura, há uma
inclinação geral pela adoção de reformas”.
O professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas
(FGV), Maurício Santoro, diz que as revoltas que obtiveram êxito
ocorreram em países mais homogêneos, sem grandes tensões étnicas,
tribais ou religiosas. São os casos de Egito, Tunísia e também do
Marrocos, onde o rei Mohammed VI promoveu abertura significativa de seu
regime. Em outros países, ditadores conseguiram utilizar divisões para
obter o apoio de parte da população. “Nos países mais fragmentados
ditadores conseguem explorar as diferenças para se manter no poder”,
afirma.
O que Santoro diz é flagrante na Líbia e no Iêmen, onde há fortes
divisões tribais, e na Síria em que uma minoria étnico-religiosa, os
alauítas, detém o poder político diante de uma população
majoritariamente sunita. Nestes países, os governos autoritários têm
conseguido reagir, mas, segundo Santoro, na Síria e na Iêmen a tendência
também é de maior abertura. “No Iêmen há uma negociação avançada que
pode culminar com a renúncia de Ali Abdullah Saleh. Na Síria, não está
claro se Bashar al-Assad conseguirá se manter no poder, mas se conseguir
será de forma negociada”.
Segundo
especialistas, conflito na Líbia não tem hora para acabar. "Emprego da
força mostrou-se um erro", diz Antônio da Rocha, da UnB | Foto: Al
Jazeera English/Flickr
Líbia: conflito não deve ter solução tão cedo
No momento, a Líbia é o campo de batalha onde a marca ocidental se
faz mais presente. Desde março, tropas internacionais sob comando da
Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) bombardeiam o país e
tentam garantir a saída de Muammar Kadafi do poder. No entanto, o
conflito se arrasta, e o ditador líbio não parece dar sinais de que vá
desistir – ainda que o governo dos Estados Unidos já tenha reconhecido
oficialmente a autoridade rebelde como legítima governante da Líbia.
Para Antônio Jorge Ramalho da Rocha, da UnB, o conflito na Líbia
seguirá se arrastando por muito tempo. “O emprego da força mostrou-se um
erro, ainda mais nos termos colocados pela resolução da ONU. Acabou
fortalecendo Kadafi junto a seus acólitos, já que agora ele pode se
enrolar na bandeira nacional e se colocar como alguém que resiste a um
invasor externo”, argumenta. “Era uma situação complexa, já que parecia
claro que Kadafi usaria força contra o próprio povo. O dilema era se
omitir, deixando os rebeldes à própria sorte, ou agir, o que também
traria consequências. Mas alguns países (do ocidente) foram contrários desde o início à intervenção, e a ação da OTAN não produziu resultados”.
“A Líbia ainda é uma carta aberta”, diz Renatho Costa, da Unipampa. O
especialista detecta não apenas um confronto em aberto pelo poder
líbio, mas uma luta das forças ocidentais por uma influência maior na
região. “Kadafi não tem mais condições de permanecer, não é mais líder
nacional. As batalhas já estão fora deste tabuleiro”, sustenta. Como
exemplo, o professor cita a decisão da Rússia de não aceitar o Conselho
Nacional de Transição, instituído pelos rebeldes, como legítimo governo
da Líbia – decisão que foi anunciada recentemente pelos EUA. “Apoiar o
governo paralelo, na prática, é alinhar-se com os Estados Unidos”,
observa.
Maurício Santoro concorda. “O impasse não deve se resolver em pouco
tempo. A intervenção não demonstrou força nem para impelir Kadafi a uma
negociação”, diz. O professor da FGV ressalta que as potências
envolvidas com a intervenção tem hoje preocupações internas muito
maiores, com a crise econômica que abala Europa e Estados Unidos, o que
certamente prejudica a luta contra o regime líbio.
Egito e Tunísia terão eleições no final do ano, mas seguem instáveis
Egito e Tunísia mantêm governos provisórios até o final do ano. O
Egito, maior país árabe, terá eleições para uma assembleia constituinte
em novembro. Na Tunísia, o mesmo pleito ocorrerá em outubro. Caberá a
estas assembleias definir o sistema político e eleitoral para que a
população escolha um novo governo. Enquanto isto não ocorre, os
protestos continuam.
No Egito, manifestantes pedem a saída de todo e qualquer integrante
do governo que tenha participado do regime do ditador Hosni Mubarak.
Além disto, há uma preocupação crescente com a influência que o exército
egípcio terá sobre o novo governo. São as Forças Armadas que estão à
frente do governo provisório. Maurício Santoro acredita que os militares
não tentarão manter o poder político e realizarão as eleições, mas
explica que, de qualquer forma, continuarão com muito poder. “O exército
parece comprometido com eleições, mas deve manter o seu poder, mesmo
com uma ordem democrática. As Forças Armadas no Egito controlam várias
empresas, têm muito poder econômico”, destaca.
A Praça Tahrir continua rugindo no Cairo. A imagem é de protesto no último dia 15 | Foto: Lilian Wagdy/Flickr
Tentando acalmar os ânimos, o regime de transição promoveu nesta
terça-feira (19) mudanças em mais de 15 ministérios – mantendo, porém,
nomes da velha guarda, como o ministro do Interior, Mansour Essawy,
ligado ao regime de Mubarak. A indefinição política se reflete na
economia, bastante desestabilizada. Não à toa, o ministro das Finanças
foi um dos que teve sua cabeça cortada. O governo provisório tem
distribuído alimentos aos egípcios.
Na Tunísia, a situação não é diferente. Já em fevereiro, a população
tratou de correr o primeiro-ministro interino Mohammed Ghannouchi por
ele ter sido tradicional aliado do ditador Ben Ali. Mudanças nos
ministérios também têm sido recorrentes. O atual premiê, Beji Caid
Essebsi, tem demonstrado preocupação ainda com os conflitos nas ruas,
porque teme pela segurança na realização das eleições em outubro. Na
segunda (18), um garoto de 14 anos foi morto por uma bala perdida
disparada por forças de segurança, durante um protesto em uma pequena
cidade próxima a Sidi Bouzid.
Não por acaso foi em Sidi Bouzid, cidade no centro do país, que tudo
começou, em dezembro de 2010, quando um jovem desempregado ateou fogo
ao próprio corpo. A Tunísia tem um nível de vida razoável se comparado
aos demais países do Norte da África, mas sofre com uma crise econômica e
com uma desigualdade entre o litoral e o interior do país. É no
interior que vive a maioria dos 700 mil tunisianos desempregados, número
extremamente significativo para uma população economicamente ativa de
apenas três milhões de pessoas.
Rachid
Ghannouchi, ao centro, lidera partido islâmico que quer conjugar na
Tunísia religião e democracia, aos moldes da Turquia | Foto:
Magharebia/Al Jazeera
Democracia com islamismo: Turquia pode servir de modelo
Na Tunísia, os conflitos também ocorrem entre intelectuais que
defendem o estado laico e extremistas islâmicos. Estes últimos vêm
ganhando terreno nas ruas desde a queda de Ben Ali, mão não se vêem
contemplados no atual governo provisório. Jovens islâmicos já atacaram
diversas delegacias de polícia nos últimos dias. Um exemplo ilustrativo
dos conflitos ocorreu no final do mês de junho. Na capital do país,
Túnis, ativistas religiosos quebraram os vidros de um cinema que passava
o filme “Nem Alá, nem o Mestre”, em defesa do estado laico, e entraram
em conflito com um grupo de advogados. Os islâmicos acabaram sendo
presos.
Apesar disto, o partido político tido como o mais forte na Tunísia é o
Al-Nahda (Partido do Renascimento, em português), que no mês de junho
se retirou das conversas sobre a transição, acusando outros partidos de
abuso de poder. O líder do partido, Rachid Ghannouchi, retornou ao país
apenas 15 dias depois da queda de Ben Ali, após 20 anos de exílio. Em
entrevista recente ao El Pais, Ghannouchi afirmou que é contra o
extremismo, e que sonha em “conjugar islamismo com modernidade”. Quer a
religião na Constituição, mas com igualdade entre gêneros, por exemplo.
E cita como paradigma a Turquia, governada desde 2003 pelo partido
Justiça e Desenvolvimento.
Para Maurício Santoro, o governo da Turquia deve balizar os novos
regimes democráticos entre os países muçulmanos. “O que está se
desenhando é um tipo de Estado onde a religião não domina a sociedade,
mas tem papel importante na definição das leis, dos costumes e sobre os
partidos políticos. A Turquia mostra que é possível ter um partido como
este no poder, convivendo com liberdades democráticas”, avalia. O
professor de Relações Internacionais ressalta, contudo, que isto não
livrará estes países de tensões entre as liberdades individuais e a
religião islâmica, tensões que ocorrem na própria Turquia.
Fotos de Gamal Abdul Nasser, Che Guevara e Osama Bin Laden são vendidas na Praça Tahrir | Foto: Lilian Wagdy/Flickr
Santoro vê mais força do islamismo na Tunísia que no Egito. Ele
afirma que a Irmandade Muçulmana tem se fragmentado desde a revolta,
principalmente porque os jovens do movimento não têm seguido à risca os
ditames de seus líderes. Além disto, ressalta que a interferência
religiosa na política sempre foi limitada por leis no Egito e que há uma
minoria cristã que não pode ser desprezada. Ele lamenta que as eleições
sejam realizadas em um prazo exíguo para a formação de novas
organizações. “O prazo prejudica a participação do elemento mais
inovador da revolução, que foram os jovens”.
Renatho Costa, da Unipampa, acredita que ocorre disputa de influência
entre autoridades islâmicas e forças ligadas ao Ocidente. Ele acredita
que o modelo que for adotado especialmente pelo Egito poderá servir como
base para outros países árabes e ter grande influência sobre a região.
“(Egito e Tunísia) são dois palcos onde se disputa pelo futuro
de todo o Oriente Médio. O modelo que prevalecer ali vai ter amplas
possibilidades de ditar regras políticas para todo o mundo árabe. Se a
influência islâmica prevalecer nesses dois palcos, em especial no Egito,
isso certamente provocará uma grande mudança geopolítica em toda a
região”, prevê.
De qualquer modo, o panorama que surge aos poucos no mundo árabe
aponta para algo novo, que vai além da visão ocidental sobre a região.
Renatho, que recentemente passou dois meses no Irã, exemplifica com o
que ouviu em conversa com aiatolás locais. “Discuti com alguns deles
sobre as perspectivas que viam a partir das mudanças no Egito”, conta,
“e eles se manifestaram de forma muito positiva. Para eles, o país pode
passar por um processo semelhante (ao do Irã), integrando-se em
uma comunidade islâmica. É uma visão diferente da nossa, que não tem o
nosso olhar de integração pela ocidentalização”.