Eu quase não acreditei quando enxerguei a manchete do jornal Zero Hora deste domingo (28): “Gosto pelo confronto emperra o Rio Grande”. Ainda isso? Não é possível. Mas o grupo da RBS não desiste de sua tarefa de deseducar a população do Rio Grande do Sul: “Falta de consenso em temas importantes trava o desenvolvimento do Estado, que está ficando para trás em comparação com outras unidades da federação”. Não se trata apenas de uma incursão sociológica equivocada. É uma tese falsa que consegue a proeza de tirar conclusões sobre a situação econômica do Estado sem tratar de economia. Os problemas do “Rio Grande” seriam “uma cultura que valoriza o conflito, a polarização ideológica, a atmosfera de discórdia e a força do corporativismo”.
É verdade. A economia do Rio Grande do Sul vem perdendo terreno no cenário nacional, não acompanhando o crescimento médio registrado no país. Mas não é possível analisar esse problema sem levar em conta dados objetivos sobre a economia do Estado. Chega a ser constrangedor ter que afirmar isso. Até onde minha memória alcança, esse discurso foi inaugurado pela RBS no governo Olívio Dutra (PT) que, do início ao fim, foi caracterizado pelos veículos dessa empresa como um “governo do conflito”. Há um editorial inesquecível de Zero Hora, no dia seguinte à vitória de Germano Rigotto (PMDB), na eleição para o governo do Estado em novembro de 2002: o jornal comemora a derrota do “governo de conflito” e saúda a chegada do “governador pacificador”, que iria recolocar o “Rio Grande” nos trilhos.
Não recolocou. Rigotto fez um governo apático, sem grandes conflitos ou realizações. Há uma amnésia permanente nas matérias editorializadas da RBS sobre o “Rio Grande”. Uma amnésia que anda de mãos dadas com uma postura de tirar o corpo fora. Esses textos “esquecem” que a RBS tomou posições claras nas últimas décadas, defendeu propostas, projetos e determinados governos. Aliás, não só defendeu como participou ativamente dessas escolhas como ocorreu durante o processo de privatizações do governo Britto (PMDB), onde participou da compra da empresa telefônica do Estado. Na época, a RBS prometeu ao “Rio Grande” em seus editoriais que as privatizações, a vinda da GM, a guerra fiscal e a renegociação da dívida do Estado feita pelo governo Britto iriam colocar o Estado em um novo patamar de desenvolvimento. Não deu certo, assim como a pacificação de Rigotto e como o choque de gestão de Yeda Crusius (quando, aliás, um dos fiadores da pacificação de então era o coronel Mendes).
Naquele período, a tese da “mania do conflito” ainda não existia. Ela surgirá com o governo seguinte e, a partir daí, passará a ser afirmada e reafirmada até hoje. O Rio Grande do Sul teria perdido posições em relação a outros Estados por que aqui há um gosto pelo confronto, que teria suas origens na Revolução Farroupilha. A alternância de governos e de projetos é apontada como uma erva daninha, como se, em outros Estados da Federação não houvesse tal alternância. Em três páginas de matéria, não há uma única menção à manutenção de uma matriz produtiva que ignorou as mudanças na economia mundial. O sucateamento do setor calçadista, por exemplo, não tem nada a ver com o “gosto pelo confronto”, mas sim com a concorrência massacrante da indústria chinesa e de outros países asiáticos.
Entrevistei dias atrás, para o jornal Adverso, da Adufrgs Sindical (Sindicato dos Professores das Instituições Federais de Ensino Superior de Porto Alegre), o professor Luiz Augusto Estrella Faria, técnico da Fundação de Economia e Estatística (FEE) e professor associado da UFRGS nos cursos de pós-graduação em Economia e em Estudos Estratégicos Internacionais. Entre outras coisas, Faria fala sobre a decadência da economia gaúcha e aponta alguns elementos que não frequentam a má sociologia do grupo RBS:
O Rio Grande do Sul vive uma semi-estagnação desde nos anos 80. O Estado teve poucos momentos de crescimento neste período. É verdade que todo o Brasil viveu duas décadas perdidas em termos de crescimento, mas, mesmo assim, isso foi pior no Rio Grande do Sul, na média. Com exceção do início dos anos 2000, quando o Estado teve uma media de crescimento maior que a do Brasil, na década de 90 tinha sido pior e na segunda metade dos anos 2000 voltou a ser pior que a média nacional. Historicamente, o Estado sempre teve algo entre 7 e 8% do PIB brasileiro. Hoje estamos entre 5 e 6%.
A economia do RS não se modernizou neste período e ficou, em larga medida, vinculada a alguns setores tradicionais que passaram a crescer pouco por razões diversas. Durante boa parte desse período, os preços dos produtos agropecuários atravessaram uma fase ruim. Só foram melhorar na segunda metade dos anos 2000. Então, foram cerca de 15 anos com preços ruins para soja, milho, arroz e carne. Isso afetou um setor que, no RS, pesa mais do que a média nacional, que é a agropecuária. Além disso, a nossa indústria é, predominantemente, de pequeno e médio porte e vinculada a setores particularmente vulneráveis à competição da Ásia, principalmente.
O maior segmento da indústria gaúcha no início deste período era o calçadista. Hoje, ele praticamente sumiu do mapa, sufocado pela concorrência asiática, que produz o mesmo tipo de calçado, as mesmas grifes tradicionais, em condições de produção muito mais baratas, pois trabalha em uma escala gigantesca. Nós temos aqui pequenas empresas de calçado e lá tudo é mega. Há empresas com dezenas de milhares de trabalhadores fabricando calçado. Esse nível de escala dá um poder de competição gigantesco. Não dá para achar que podemos produzir com uma escala chinesa.
É pedir muito que, em uma matéria que pretende analisar a situação econômica do Estado, se utilize dados econômicos objetivos? Para os editores de ZH, aparentemente é. Mas isso não ocorre por acaso. A má sociologia é alimentada por uma postura arrogante que não reconhece os próprios erros e da “elite” econômica que esse grupo midiático representa. Uma “elite” que foi incapaz de ler as mudanças na conjuntura nacional e mundial e que sempre manteve um discurso hostil ao Estado, a não ser, é claro, na hora de pedir generosas isenções fiscais. A RBS se coloca do lado de fora do jogo, como se fosse um ente a-histórico a pairar sobre o “Rio Grande” e a explicar ao povo gaúcho o que ele deve ou não fazer. Suas escolhas políticas e econômicas permanecem sistematicamente dentro do armário. Isso é fundamental para que volta e meia Zero Hora venha nos alertar para os riscos da “mania de conflito” e do “gosto pelo confronto”. A RBS tem responsabilidade direta sobre várias das escolhas políticas e econômicas feitas no Rio Grande do Sul nas últimas décadas. E, sistematicamente, faz de conta que não tem nada a ver com isso. Talvez seja essa mistura de má fé, amnésia seletiva e má sociologia que esteja emperrando o “Rio Grande”.