CARTA CAPITAL
Uma formação inicial sólida e, mais que isso, o acompanhamento a longo prazo das práticas docentes são a chave para a construção de uma educação de qualidade, defendem os pesquisadores Clare Kosnik e Clive Beck, da Universidade de Toronto (Canadá). Em São Paulo, para o seminário Inovação e Qualidade na Formação Inicial de Professores, promovido em novembro pelo Instituto Singularidades, os especialistas criticaram a valorização excessiva de desenvolvimento de novos currículos em detrimento de questões mais urgentes, como uma estratégia de recrutamento docente.
O casal, que é autor de uma série de títulos sobre a formação de educadores, defende que os aspirantes a docente fortaleçam seus conhecimentos em áreas mais essenciais dos anos iniciais do Ensino Básico e não percam o foco na pesquisa. Na avaliação dos especialistas em formação inicial de professores, avaliações e práticas como a de colocar uma placa com o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) na porta da escola não resultam em melhorias: “Nunca vamos conseguir fazer com que parem de achar que há uma resposta mágica nos resultados de uma prova”.
Carta Fundamental: Suas pesquisas focam a experiência canadense, mas que pontos podem ser globalizados e, especialmente, aplicados ao universo brasileiro?
Clare Kosnik: Acredito que nossos achados têm aplicação direta a qualquer lugar. Para começar, ao desenvolver os programas de educação de professores, é preciso pensar na pesquisa, que é a fundação para o que fazemos. Depois, temos de priorizar o que fazer no futuro dentro do contexto em que se está, independentemente de ser no Brasil, na Alemanha, na Austrália ou no Canadá. O que é importante no seu local? Você não pode fazer tudo, então deve saber o que é imprescindível para um professor em início de carreira.
Clive Beck: Creio que as pessoas estão colocando ênfase demais, aqui, no conhecimento que o professor tem das matérias, o que, é claro, é importante. Mas o educador pode aprender com o tempo. O importante é atrair profissionais que gostem de lecionar, que consigam ter empatia com as crianças, formar uma comunidade na sala e sejam bons em gerenciá-la. O quanto mais souberem do conteú-do, melhor, mas sugerir que não se pode ter boas escolas porque os aspirantes a professores não sabem o bastante é exagero.
CF: Que critérios utilizar, então, na hora de selecionar os aspirantes a educadores?
CB: Mesmo que não se tenha candidatos o suficiente, é preciso selecionar. Algumas pessoas não servem para a educação porque estão nela pelos motivos errados. Por exemplo, se falharam em tudo o mais (risos) ou não gostam de crianças, se não estão interessados em aprender…
CK: Você quer ter um plano claro em mente e quer educadores que gostam de aprender. Ainda mais com a tecnologia, eles devem constantemente se atualizar. Às vezes, o professor até tem uma formação deficitária, mas, se tiver sede por conhecimento, é ele que você quer. E ele vai aprender.
CF: Dentro desse raciocínio, a educação continuada, então, é importantíssima.
CK: É muito importante. Ela o mantém empolgado com o ensino. Se você não gosta de aprender, como quer que as crianças o façam? É preciso aprender o tempo todo: sobre si mesmo, sobre novas técnicas de ensino… Se o professor para de aprender, as crianças vão perceber. Porque ele vai ficar entediado e os alunos também vão.
CB: Acredito até que, por conta disso, muito do processo de implementar um sistema de educação continuada, aqui ou em qualquer lugar, deve ser organizado pelos próprios professores. Você até pode envolver especialistas de fora, mas se envolver a própria escola é muito mais interessante, e mais, dá poder aos educadores.
CF: Em seus artigos, aparece a necessidade de montar um currículo coerente e, durante sua apresentação, Clare defendeu que, em vez de atolar os estudantes de conteúdo, elencar os tópicos mais importantes e aprofundá-los, para que eles cheguem mais bem formados nas salas de aula. Quais os impactos disso?
CK: O que normalmente fazemos na formação de professores é pensar que temos tanto conteúdo a passar que temos de cobrir tudo. Mas o que descobrimos é que é tão superficial para os educadores que estão estudando que eles acabam não aprendendo muito. É melhor focar como ensinar a ler para que, no final, eles saibam como fazer isso muito bem. Talvez por fim haja outras coisas nas quais eles precisem se esforçar mais, mas esses são os tópicos que realmente precisam dominar como professores dos anos iniciais, então vamos fortalecê-los. Deixamos claro que não vamos falar tanto de outras questões para que eles tenham essas habilidades bem desenvolvidas e não se sintam tão desprotegidos quando começarem a dar aula.
CF: Há especialistas que defendem que a formação dos alunos nos primeiros anos do Ensino Básico é deficitária porque os professores são generalistas. Segundo eles, matérias como as ciências exatas deveriam ser ensinadas por especialistas. Que pensam disso?
CK: Há essa discussão, sim, dessa oposição entre especialistas e professores fraquinhos. Acho que os educadores estão num meio-termo. Porque você precisa de estratégias pedagógicas e também saber como desdobrar o conhecimento que adquiriu na universidade para crianças de cinco anos – e muitos matemáticos não sabem fazer isso! Se houver professores fracos em matemática, você tem de ensiná-los. Talvez uma das soluções seja colocar um professor que seja muito bom para ensinar as primeiras séries e dar tempo para um outro, que tenha mais deficiências, se fortalecer nessas áreas.
CB: São muitos os fatores envolvidos nas boas práticas de lecionar e um especialista não daria conta delas satisfatoriamente.
CK: Sim. Acredito que é preciso ter um professor para a maior parte das matérias nos anos iniciais, para que ele possa trabalhar o senso de comunidade, de grupo, fazer com que a criança sinta que pode se tornar um leitor, um escritor, mas há de se ter especialistas nas áreas de Artes. Descobrimos na pesquisa que os professores “de turma” não são tão bons nisso. A mensagem para os professores dos dois primeiros anos do Ensino Fundamental é aprender sobre a criança, descobrir o que ela pode fazer, o que está acontecendo em casa e construir pontes entre tudo isso. Com vários professores envolvidos, isso não vai acontecer.
CF: Isso é algo interessante, mas toca num problema delicado aqui no Brasil, onde são incontáveis os professores que passam o dia indo de escola em escola para dar aulas de modo a conseguir ganhar o suficiente. Como eles podem se dedicar aos alunos nesse nível, construir esse tipo de ponte, trabalhando nessa situação?
CK: Esse tipo de situação é terrível, mas o professor precisa fazer o melhor possível, aceitar que não é a situação ideal e esperar que, em algum nível, os governos façam algo para mudar esse cenário.
CB: O professor precisa conhecer o aluno, suas fraquezas, características do comportamento e o cenário doméstico. Esse conhecimento é necessário para ensinar bem. Os princípios básicos do nosso estudo aplicam-se também nessa situação. Há quem diga que esse é um problema do Ensino Médio, mas ainda assim é possível construir comunicação, permitir que os estudantes falem e dar a eles uma chance de criar diálogos. Mesmo que você dê aula em quatro escolas diferentes, pode aplicar esses princípios – será mais difícil, mas você pode. No momento em que chegar, pergunte aos alunos como estão, faça-os falar, construa um relacionamento com eles.
CF: Tendo em vista esses problemas específicos do País e os achados de suas pesquisas, como fazer para atrair mais jovens para a docência?
CB: Aqui no Brasil, fiquei com a impressão de que as pessoas são críticas demais com os professores. Devemos dar a eles mais crédito. É preciso haver mais informação sobre as satisfações que ser professor pode trazer.
CK: É preciso haver um recrutamento em larga escala. Sei que há um problema com os salários, mas é preciso celebrar os bons professores, oferecer incentivos para que os educadores fiquem e para que novos profissionais venham. Principalmente, temos de apoiar os diretores, que fazem diferença na vida de todos. É preciso ter uma grande estratégia, global. Os governos precisam fazer um esforço real com a comunidade, os professores em atividade, os sindicatos, para descobrir o que é necessário. Em vez de gastar tanto no desenvolvimento de currículos ou padrões, é preciso elencar as questões mais urgentes e, em minha opinião, trata-se da elaboração de uma estratégia de recrutamento. Além disso, uma questão delicada é que, muitas vezes, as experiências dos alunos nas escolas não foram boas e eles trazem consigo lembranças ruins dos professores.
CF: Como vocês avaliam os programas de bonificação como o que foi recentemente abandonado em Nova York e inspirou experiência similar no Brasil?
CK: Não funcionam. Se você tiver algum dinheiro, talvez o melhor a fazer seja colocá-lo em desenvolvimento profissional. Porque é muito difícil avaliar quem está fazendo um bom trabalho, especialmente quando se tem um educador numa escola pequena e outro numa boa. Como dizer que um é melhor que o outro? Eu digo que os efeitos colaterais disso não são bons.
CF: Que tipo de consequências são essas?
CK: O pior de tudo é que os professores começam a ensinar para as provas. Em vez de ter um bom currículo, tudo o que querem fazer é focar no que vai cair nos exames para que os alunos tenham boas notas e todo o resto fica de fora. E só se podem testar certas coisas: aproveitar a escola e aprender a gostar de ler não são coisas mensuráveis num teste. Isso estreita tanto o currículo que mais alunos acabam entediados. Eles podem até estar se saindo melhor nas provas, mas estão aprendendo menos.
CB: Às vezes não estão nem sequer conseguindo notas melhores. Só estamos distorcendo o currículo e impedindo o crescimento pessoal de todos.
CF: E quando notas de testes são colocadas nas portas das escolas, como acontece em algumas localidades com o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb)?
CK: Isso é péssimo. Nunca vamos conseguir fazer com que parem de achar que há uma resposta mágica nos resultados de uma prova. Isso não nos ajuda. Sabemos onde estão as boas escolas e onde estão as problemáticas, e o que temos de fazer é tentar ajudar cada uma a resolver suas próprias questões. Em vez de desperdiçar dinheiro em testes, vamos usá-lo para aprimorar as escolas. Os professores estão trabalhando duro, em condições adversas, às vezes as crianças não têm a melhor estrutura em casa, estão fazendo o melhor que podem, e chegam esses testes, tão artificiais, que vão parar nos jornais. Não vamos conseguir bons professores enquanto houver essas críticas constantes e exageradas aos educadores.