Editorial do SUL21
Moradores de áreas “invadidas” e “irregulares”, índios e quilombolas, todos são tratados como marginais no Brasil. Está correta, portanto, a afirmação do senador Paulo Paim em entrevista ao Sul21, ainda que, em sua fala, se restrinja aos quilombolas.
Na edição do Sul21, de ontem (02) e de hoje (03) podem ser lidas matérias sobre violências cometidas contra os pobres “invasores” de Pinheirinho em São José dos Campos (SP), contra os índios caingangues “invasores” de área no centro de Santa Maria (RS) e contra os negros quilombolas “invasores” de áreas em todo o Brasil onde seus antepassados se refugiaram da escravidão imposta pelos senhores brancos.
O que une todos estes “invasores” é a mesma origem e a mesma causa para suas “agressões”. São todos eles desprovidos da propriedade legal da terra que reivindicam como suas. São todos eles submetidos ao mesmo dominador que lhes usurpou o direito de possuírem o local onde moram.
Expulsos de suas terras ancestrais, os índios perambulam hoje, quais párias, pelo país, se são nômades, ou, ainda, expõem-se a morrer assassinados na defesa do uso das matas, da caça, da pesca e dos locais das roças que lhe provêm a subsistência, se são integrantes de grupos sedentários. Quase todos maltrapilhos, sem assistência médica e/ou sanitária e sem escolas para seus filhos, veem-se ainda hoje forçados a abandonar, além das terras que lhes pertencem imemorialmente, também seus costumes e tradições sem nada receber em troca.
Os quilombolas, reclusos em locais de refúgio histórico de escravos fugidos e, quase sempre, de difícil acesso, permanecem “donos” das terras que ocupam e cultivam há séculos até que alguém reivindique e “prove” a propriedade legal das mesmas. Sem instrução formal, sem assistência médica e/ou sanitária e sem amparo público, quando não morrem à míngua acabam por serem desalojados de suas áreas e casas.
Os moradores das periferias urbanas, muitas vezes ocupantes de áreas irregulares e de loteamentos ilegais, expulsos das áreas rurais nos anos de 1960 e 1970, cumprem, desde então, um périplo de imigração que vai desde os arrabaldes das pequenas cidades interioranas até as periferias das regiões metropolitanas das grandes capitais. Habitam regiões desprovidas de serviços eficientes de transporte coletivo, de saneamento e de saúde, sem creches e sem escolas adequadas para os seus filhos. Ali permanecem, muitas vezes, sob a guarda dos “patrões da vila”, ou seja, dos chefes do tráfico de drogas, que substituem o poder público e provém, sob a lei das máfias, o amparo que o Estado não lhes proporciona. Quando as áreas que habitam se valorizam, pela força da expansão urbana e da especulação imobiliária, são quase sempre expulsos, quase sempre com violência.
Ainda que a situação de desamparo a que estão expostos venha sendo revertida nos últimos anos, com a adoção de políticas de proteção social e de distribuição de renda, com a implantação de políticas e serviços específicos para as populações indígenas e quilombolas e também com a retomada dos financiamentos habitacionais para as populações de baixa renda, a atuação governamental é ainda tímida e insuficiente. Se, por um lado, o governo federal e alguns governos estaduais e municipais se esforçam em minimizar as consequências do descaso histórico, outros governos de nível estadual e municipal recorrem à truculência para expulsar os “marginais”.
Eclodem hoje, por este motivo, conflitos em todo o país. Conflitos que envolvem, de um lado, indígenas, quilombolas, agricultores sem terra e moradores das periferias urbanas e, de outro, os que alegam deter a propriedade legal das áreas cobiçadas pela especulação imobiliária e pela expansão do agronegócio. Enquanto os primeiros são diuturnamente assediados e fustigados, os últimos recebem, quase sempre, o beneplácito dos poderes executivo e judiciário.
O saldo será, sem dúvida, a exacerbação dos confrontos, caso providências urgentes e eficazes não forem adotadas pelos poderes públicos de todos os níveis e instâncias. Conduzidos por partidos de ultraesquerda, como o PSOL e o PSTU, anarquistas e militantes independentes e de movimentos sociais autônomos, bem como por alguns sindicatos e tendências internas do PT, os protestos contra as desocupações tendem a ganhar adeptos e a conquistar as ruas, não só das principais cidades brasileiras como também do exterior, como já ocorreu anteontem (01) em Berlim.
Há que se enfrentar, definitivamente, a raiz do problema, se o que se deseja é eliminar as tensões e promover o bem estar coletivo. Há que se confrontar a questão da propriedade fundiária e imobiliária e da função social que deve orientá-la. Há que se inverter, portanto, a postura historicamente adotada no país.
Diferente do que ocorreu e ocorre em muitas outras nações capitalistas do mundo, na Inglaterra, na Alemanha e inclusive nos EUA, no Brasil a propriedade só pode ser conquistada por doação ou por compra. Foi assim durante todo a Colônia, continuou assim com a Lei de Terras de 1850, depois da Independência e durante o Império, manteve-se assim com o Código Civil de 1916, já durante a República, e é assim ainda hoje, na vigência do Código Civil de 2003, promulgado sob as regras instituídas pela Constituição Federal de 1988.
Enquanto não se reconhecer efetivamente que o direito à propriedade fundiária e imobiliária não inclui o direito ao abuso e ao desperdício, promovidos pelo não uso e pela especulação, não haverá políticas habitacionais, de assentamentos rurais e urbanos e de reconhecimento de posse imemorial que deem conta dos problemas e que eliminem os conflitos. Sempre existirão contestações e interpretações possíveis sobre a propriedade legal das áreas e edificações ociosas e/ou ocupadas de forma irregular. Continuarão inexistindo áreas de cultivo e de moradia suficiente para todos e, consequentemente, se multiplicarão os conflitos e os enfrentamentos.
É preciso que políticas sociais sejam adotadas e leis de propriedade sejam editadas e aplicadas, mas é preciso, sobretudo, que a consciência da cidadania nacional sobre o direito de propriedade se modifique. São tarefas que precisam ser exercidos pelos governos e pelas autoridades constituídas, mas é dever que precisa ser assumido também pela sociedade civil e por suas organizações autônomas.