(Beneficiários do Bolsa Família em Anhanguera - GO)
O Brasil não tem arraigada tradição democrática. Ao longo de mais de
cinco séculos de história, o país mal registra cinquenta anos de
democracia. Isso porque a herança política do Império (1822-1889) à
República Velha (1889-1930) foi o prolongamento do antigo e carcomido
regime da democracia censitária, em que votavam e eram votados tão
somente homens de posse, o que significou a participação de não mais do
que 5% do total da população nos períodos eleitorais.
Desde 1932, com a introdução do voto secreto e sua ampliação para
homens e mulheres, a experiência democrática não foi contínua, tendo em
vista que passou por duas interrupções abruptas durante o Estado Novo
(1937-1945) e a ditadura militar (1964-1985). Por força disso, a
economia política brasileira se fundamentou na apartação dos interesses
das classes populares do conjunto dos objetivos da expansão das forças
produtivas.
Ao mesmo tempo, as tradicionais reformas clássicas do capitalismo
contemporâneo, realizadas em praticamente todos os países desenvolvidos,
como a fundiária, a tributária e a social, deixaram simplesmente de ser
efetivadas. Num país de dimensão continental e grande população, a
estrutura produtiva manteve sua dinâmica prisioneira, sobretudo,
daqueles segmentos sociais de maior poder aquisitivo e mais
privilegiados pela atuação do Estado.
Assim, a economia política do desenvolvimento assentou-se na máxima de
primeiro crescer para depois distribuir. E o crescimento econômico
possível se tornou associado à concentração da renda e poder, o que
concedeu ao Estado o papel policial a ser exercido sempre que o
desconforto das classes populares começasse a ser mobilizado.
O resultado foi uma enorme exclusão social, cujos indicadores de
pobreza e desigualdade tornaram o Brasil uma referência mundial do
exemplo a não ser seguido. Em 1980, por exemplo, a economia nacional
encontrava-se entre as oito mais importantes do planeta, embora
registrasse o primeiro lugar no ranking mundial da desigualdade de
renda, com dois terços de sua população na condição de pobreza absoluta.
Para piorar, as duas décadas seguintes (1980 e 1990) foram de regressão
social e econômica em razão da substituição das velhas políticas
desenvolvimentistas pela hegemonia neoliberal. Por força disso, o país
regrediu, em 2000, ao posto de 13ª economia do mundo, com o rendimento
dos proprietários (lucros, juros, aluguéis e renda da terra) respondendo
por 68% da renda nacional (ante 50% em 1980) e o desemprego atingindo
quase 12 milhões de trabalhadores (contra menos de 2 milhões em 1980).
Atualmente, percebe-se que foi a grande política que salvou o Brasil da
pequenez do destino imposto pelo neoliberalismo, assim como impediu o
retorno das políticas do desenvolvimentismo tradicional.
O vigor da marcha reestruturadora das políticas públicas encadeadas
pela Constituição Federal de 1988 deu o primeiro impulso, seguido depois
da estruturação vertical dos grandes eixos de intervenção do Estado no
campo da proteção e do desenvolvimento social (saúde, educação,
assistência e previdência, infraestrutura social, trabalho, entre
outros). O país avançou no sentido já experimentado pelas economias
desenvolvidas, de construção do Estado de bem-estar social.
Mesmo durante o longo período da superinflação (1980-1994) e a
prevalência do baixo dinamismo econômico e contenção fiscal na década de
1990, a regulamentação de diversas políticas públicas no campo da
assistência e previdência contribuiu para evitar que o contexto social
desfavorável apresentasse ainda maior regressão, para além do
crescimento do desemprego e a piora na distribuição funcional da renda.
Posteriormente, com a inflexão da política nacional na primeira década
do século XXI, a nova economia política ganhou dimensão até então
inédita e contribuiu decisivamente para a melhora socioeconômica
generalizada no país.
As evidências do processo de expansão do bem-estar são expressão do
padrão de inclusão possibilitado pela ampliação do consumo. De um lado, o
enfrentamento da pobreza extrema, com o acesso à renda mínima
garantindo a sobrevivência, e de outro a atuação na pobreza absoluta,
por meio da complementação da renda para o consumo básico (alimentação,
habitação, transporte, entre outros).
O processo atual de inclusão social é um avanço no contexto do
capitalismo contemporâneo, enunciando o conjunto de méritos da nova
economia política brasileira. Nesse sentido, o enfrentamento das
necessidades básicas de todos, sobretudo das classes populares, gera
inquestionáveis melhoras nos indicadores de redução da pobreza e da
desigualdade de renda.
Assim, o movimento de inclusão social, por meio da ampliação do nível
de renda na base da pirâmide social que tradicionalmente era excluída do
acesso aos meios básicos de vida, segue cada vez mais a reorientação do
Estado, que busca a universalização dos serviços públicos de qualidade
(educação, saúde, saneamento, moradia, entre outros). Isso pode,
inclusive, fazer a pobreza extrema ser superada, assim como o
analfabetismo e outros estrangulamentos do desenvolvimento humano, nesta
segunda década do século XXI.
Da exclusão à inclusão social
Grande parte dos avanços atualmente alcançados pelo Brasil no campo do
enfrentamento da questão social está, direta e indiretamente, associada
ao conjunto das políticas públicas motivadas pela Constituição Federal
de 1988.
A consolidação de grandes e complexas estruturas verticais de
intervenção do Estado de bem-estar social (saúde, educação, assistência e
previdência, infraestrutura social, trabalho, entre outros)
possibilitou obter resultados positivos no Brasil mais rapidamente e na
mesma direção dos já alcançados pelos países desenvolvidos.
Mas para isso foi necessário avançar o gasto social. No último ano do
regime militar (1985), o gasto social realizado no Brasil representava
apenas 13,3% do PIB. Com a Constituição, ele aumentou para 19%,
permanecendo estacionado nesse mesmo patamar ao longo da década
neoliberal.
A partir dos anos 2000, o gasto social retomou a trajetória
ascensional, alcançando atualmente 23% do PIB. Isso se tornou possível
após o estabelecimento de uma nova maioria política, comprometida com o
crescimento da economia e com a melhor distribuição das oportunidades
desde 2003.
Em boa medida, os avanços sociais podem ser observados na tabela desta
página, que apresenta sinteticamente os seis grandes complexos de
intervenção social do Estado, bem como o contingente da população
coberta pelas diversas políticas sociais. Essa estrutura do Estado
brasileiro que se encontra voltada à atenção social não se distancia da
registrada nas economias avançadas.
Para além da montagem dos grandes eixos estruturadores da intervenção
social do Estado brasileiro e a expansão do gasto social em relação ao
PIB, convém destacar dois fatores decisivos nas políticas públicas após a
Constituição de 1988.
O primeiro resulta do movimento de descentralização da política social,
isto é, do crescimento do papel do município na execução das políticas
sociais, sobretudo em termos de educação, saúde e assistência social.
Em 2008, por exemplo, o conjunto dos municípios teve participação no
gasto social brasileiro 53,8% maior que o verificado em 1980.
Em sentido inverso, a participação relativa dos estados no total do
gasto social foi 7,6% inferior no mesmo período de tempo, ao mesmo tempo
que a União registrou presença 5,9% menor.
O segundo fator relaciona-se à participação social no desenho e na
gestão das políticas sociais brasileiras. De maneira geral, todas as
principais políticas sociais possuem conselhos de participação social
federal, estadual e municipal, quando não são acompanhadas por
conferências populares que evidenciam a maior transparência e eficácia
na aplicação dos recursos públicos.
A sucessiva regulação das diversas políticas públicas ao longo da
década de 1990 teve o importante papel de impedir o maior agravamento do
quadro social, para além do crescimento do desemprego e da concentração
da distribuição funcional da renda nacional, motivados pelo baixo
dinamismo econômico do período, assim como os constrangimentos impostos
pela superinflação até 1994 e pela política macroeconômica de
estabilização monetária (elevados juros, valorização cambial, contenção
fiscal e ajustes no gasto social), que terminou por inibir a melhora dos
resultados sociais no Brasil.
Na década atual, a generalizada melhoria do quadro social no Brasil se
deve à combinação de importantes fatores: a continuidade da estabilidade
monetária, a maior expansão econômica, o reforço das políticas
públicas, a elevação real do salário mínimo, a ampliação do crédito
popular, a reformulação e o alargamento dos programas de transferência
de renda para os estratos de menor renda, entre outras ações.
Emergência da economia social
Como se sabe, o ciclo de expansão produtivo entre as décadas de 1930 e
1980 atribuiu à economia social um papel secundário e subordinado às
decisões referentes a gastos privados e públicos. Como já dito, imperava
até então a máxima de crescer para depois distribuir, o que abriu um
espaço em geral estreito para o avanço e autonomia relativa do gasto
social no desempenho de suas funções.
Basta lembrar que a escola brasileira somente se tornou universal um
século após a proclamação da República (1889). Somente em 1988, com a
Constituição, o Brasil definiu recursos necessários para que o ensino
fundamental se tornasse capaz de atender a todas as crianças do país.
Com a nova maioria política estabelecida desde 2003, percebe-se o
avanço do gasto social. De cada R$ 4 investidos no Brasil, um está
vinculado diretamente à economia social. Se for contabilizado também seu
efeito multiplicador (elasticidade de 0,8), pode-se estimar que quase a
metade de toda a produção de riqueza nacional se encontra relacionada
direta e indiretamente à dinâmica da economia social.
Apesar disso, o impacto econômico do Estado de bem-estar social não tem
sido muito bem percebido. Tanto que se mantém reinante a visão
liberal-conservadora que considera o gasto social secundário, quase
sempre associado ao paternalismo de governantes e, por isso, passível de
corte.
Novas referências técnicas têm lançado luzes sobre a emergência da
economia social no país. Quase um quinto das transferências monetárias
derivadas das políticas previdenciárias e assistenciais da seguridade
social brasileira são fontes de rendimento familiar. Antes da
Constituição de 1988, as famílias não chegavam a deter, em média, 10% de
seus rendimentos provenientes das transferências monetárias.
Os segmentos de menor rendimento foram os mais beneficiados pela
constituição do Estado de bem-estar social. Em 2008, a base da pirâmide
social (10% mais pobres) tinha 25% de seu rendimento dependente das
transferências monetárias, enquanto em 1978 ele era somente de 7% − uma
elevação de 3,6 vezes. No topo da mesma pirâmide social (10% mais
ricos), as transferências monetárias respondiam, em 2008, por 18% do
rendimento per capitados domicílios, ante 8% em 1978. Ou seja, um aumento de 2,2 vezes.
Em 1978, somente 8,3% dos domicílios cujo rendimento per capitadas
famílias se situava no menor decil da distribuição de renda recebiam
transferências monetárias. Já no maior decil, as transferências
monetárias alcançavam 24,4% dos domicílios. Quarenta anos depois, 58,3%
das famílias na base da pirâmide social recebem transferências
monetárias, assim como 40,8% do total dos domicílios mais ricos do país.
Aumento de sete vezes nas famílias de baixa renda e de 1,7 vez nas
famílias de maior rendimento.
É muito significativo o impacto das transferências previdenciárias e
assistenciais sobre a pobreza. Sem elas, o Brasil teria, em 2008, 40,5
milhões de pessoas recebendo um rendimento de até 25% do salário mínimo
nacional. Com a complementação de renda pelas transferências, o Brasil
registra 18,7 milhões de pessoas com até um quarto de salário mínimo
mensal.
Resumidamente, são 21,8 milhões de pessoas que conseguem ultrapassar a linha de pobreza extrema (até 25% do salário mínimo per capita). Em 1978, as políticas de transferência monetária impactavam somente 4,9 milhões de pessoas.
Com a emergência da economia social, o impacto das transferências
monetárias nas unidades da federação é diferenciado. Observa-se maior
peso das transferências no rendimento médio das famílias nos estados
nordestinos, como Piauí (31,2%), Paraíba (27,5%) e Pernambuco (25,7%),
bem acima da média nacional (19,3%). Até aí, nada muito destoante do
senso comum, salvo pela constatação de o Rio de Janeiro ser o quarto
estado da federação com maior presença das transferências no rendimento
das famílias (25,5%) e o estado de São Paulo receber abaixo da média
nacional (16,4%).
Já as famílias pertencentes aos estados mais ricos da federação
absorvem a maior parte do fundo público comprometido com as
transferências monetárias. Assim, a região Sudeste incorpora 50% do
total dos recursos anualmente comprometidos com as transferências
previdenciárias e assistenciais da seguridade social, ficando São Paulo
com 23,5% do total, seguido do Rio de Janeiro (13,7%) e Minas Gerais
(10,9%).
A economia social sustenta hoje parcela significativa do comportamento
geral da demanda agregada nacional, além de garantir a considerável
elevação do padrão de vida dos brasileiros, sobretudo daqueles situados
na base da pirâmide social, o que corresponde aos compromissos da nova
economia política brasileira. A descoberta dessas novidades no interior
da dinâmica econômica brasileira atual impõe reavaliar a eficácia dos
velhos pressupostos da política macroeconômica tradicional.
*Marcio
Pochmann é professor licenciado do Instituto de Economia e do Centro de
Estudos Sindicais e de Economia do TRablho da Universidade Estadual de
Campinas. Presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).
Ilustração: Alan Marques / Folhapress
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