domingo, 15 de julho de 2012

Sabra e Chatila: a linha do tempo da barbárie


Através de um acordo mediado pelos EUA, a OLP aceitou deixar o Líbano, se asilando na Síria e na Argélia. Para trás ficaram milhares de refugiados civis. Receberam garantia de israelenses e do próprio governo americano de que não seriam atacados. Vamos esquecer aquele junho de 1982?


Trinta anos depois, é preciso indagar novamente. Vamos esquecer aquele junho de 1982, em que Beguin e Sharon não pestanejaram ao perpetrar o genocídio? Ao mesmo tempo em que massacravam as populações palestina e libanesa, restringiam ao máximo a manifestação de quaisquer segmentos contra a guerra, acabando com a ilusão de vários setores da sociedade israelense que acreditavam nas maravilhas de viver na "única sociedade democrática do Oriente Médio".

Desta forma, paralelamente a uma ação de pinças visando estabelecer no Líbano um estado títere – chefiado por um grupo fascista cristão, aliado incondicional de Israel – que assinasse a "pax beginnis” (como fez o Egito em Camp David) isolando a OLP (Organização para a Libertação da Palestina), foi deflagrado um processo que terminaria numa ocupação com a tomada da capital Beirute.

Num primeiro momento, a ação de Beguin alcançou seus resultados. A OLP e a população libanesa foram totalmente abandonadas por seus “aliados”. Síria e Jordânia, entre outros, saíram de cena, deixando que todo o peso da ação militar fosse sustentado por palestinos e libaneses. Com total proteção de Washington, o exército sionista cometeu toda sorte de atrocidades. Milhares de mortos, desaparecidos ou feridos. Um milhão de pessoas sem teto. Foram varridos da face da Terra: três cidades, 32 povoados libaneses e 14 acampamentos de palestinos. Contra cidades foram lançadas bombas de fragmentação: fosfóricas, de napalm e bengalas.

Para matar crianças, os invasores, armados e manobrados por Ronald Reagan, usaram as chamadas "minas e armadilha" e "minas-surpresa", que explodiam ao leve toque da mão infantil. O Líbano, palco de tragédias de colonialismos e neocolonialismos, guerra fria e lutas internas com intervenção de potências externas, seria o último solo das vítimas de uma solução final para o "problema palestino".

Frente à barbárie, os estados árabes recusaram-se até mesmo a receber os militantes palestinos, com medo do impacto de sua organização e nível de consciência em suas próprias populações – como ocorreu na Jordânia em 1970.

A pressão sobre a OLP foi, então, enorme. Enquanto sua direção buscava um recuo organizado que lhe permitisse conservar a unidade territorial dos combatentes palestinos, evitando um banho de sangue maior, os "aliados" pressionavam para uma "solução diplomática" que espalhasse os palestinos por vários países e destruísse sua direção.

Estava claro que a nova diáspora era carta jogada não só para os países árabes como para os dirigentes sionistas. Beguin e Sharon não aceitariam, na verdade, qualquer solução que preservasse um mínimo de organização do movimento palestino, que mantivesse intactas as possibilidades de unificação de um movimento anti-imperialista em toda a região. Os novos kaisers de Israel sabiam que a destruição total obedecia a uma estratégia geopolítica de domínio pleno.

Através de um acordo mediado pelos EUA, a OLP aceitou deixar o Líbano, se asilando na Síria e na Argélia. Para trás ficaram milhares de refugiados civis. Receberam garantia de israelenses e do próprio governo americano de que não seriam atacados. Como relembrou o jornalista Diego Cruz, em artigo sobre os 24 anos do massacre:

"No entanto, na madrugada de 16 de setembro, a Falange, milícia libanesa cristã aliada de Israel, sob o comando direto do então Ministro da Defesa judeu, Ariel Sharon, invadiu os campos de refugiados de Sabra e Chatila, no subúrbio de Beirute, protagonizando um verdadeiro genocídio. Cerca de 3.500 mulheres, crianças e idosos foram cruelmente mortos com tiros e facadas."

A sorte estava lançada. Beguin quis destruir a OLP como foco de organização e polarização das forças revolucionárias. Ao destampar essa garrafa, o líder israelense liberou um vinho que, se num primeiro momento, produziu o que lhe pareceu um excelente perfume, liberou poderosos gases, forças sociais com as quais Israel terá que se haver até que o direito à existência soberana seja reconhecido. Enquanto isso não ocorrer, a democracia israelense será uma ficção preservada por muros e pela proteção estadunidense.

Não é sobre corpos de mulheres, crianças e idosos que se constrói um país democrático. Israel deveria, pela linha do tempo da memória coletiva, saber disso há mais de 60 anos.

Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, colunista da Carta Maior e colaborador do Jornal do Brasil

Werner Herzog - God's Angry Man (1980)

Créditos: MakingOff
 
God's Angry Man
(Glaube und Wärhung – Dr. Gene Scott, Fernsehprediger)
Werner Herzog - God's Angry Man (1980)
Poster
Sinopse
Documentário para TV a respeito do pregador Gene Scott.
(maiores informações na crítica abaixo)
LEGENDAS EXCLUSIVAS!!!
Screenshots (clique na imagem para ver em tamanho real)

Elenco
Informações sobre o filme
Informações sobre o release
Gene ScottGênero: Documentário
Diretor: Werner Herzog
Duração: 44 minutos
Ano de Lançamento: 1983
País de Origem: Alemanha / EUA
Idioma do Áudio: Alemão / Inglês
IMDB: http://www.imdb.com/title/tt0080796/
Qualidade de Vídeo: DVD Rip
Vídeo Codec: XviD
Vídeo Bitrate: 1.936 Kbps
Áudio Codec: MPEG1/2 L3
Áudio Bitrate: 135 kbps 48 KHz
Resolução: 576 x 432
Aspect Ratio: 1.333
Formato de Tela: Tela Cheia (4x3)
Frame Rate: 23.976 FPS
Tamanho: 652.5 MiB
Legendas: No torrent
Crítica

Enquanto esperava o período de pré-produção transcorrer para as filmagens de Fitzcarraldo no Peru, Werner Herzog não perdeu tempo, investindo na realização de dois filmes irmãos sobre desdobramentos da religiosidade americana. God's Angry Man e o posterior O Sermão de Huie, ambos de 1980, são frutos de um estado de espírito muito particular dentro do momento vivido pelo diretor em sua carreira, justamente o da realização de seu mais ambicioso projeto artístico, a ser lançado somente dois anos depois sob um véu de obstáculos como raramente o cinema terá enfrentado. Ainda que ambos os médias tenham sido relegados a um patamar próximo ao esquecimento, justificado inclusive pelo barulho que Fitzcarraldo gerou da gestação à estréia, não é possível ignorar a relevância que ambos os trabalhos possuem, mesmo após três décadas, de iluminar alguns dos interesses centrais e correntes no legado de Herzog.

God's Angry Man, filme sobre a comercialização da fé — e por isso muito próximo ao que atualmente se intensifica no Brasil —, coloca em foco a controversa personalidade de Gene Scott (1929-2005), pastor protestante que, entre os anos 70 e 80, tornou-se um ícone da comunicação através de um programa (Festival da Fé) que liderava a audiência e convencia seu público, por meio de um discurso emotivo e ironicamente raivoso, a ofertar generosas quantias financeiras em nome de Deus. O curioso é que, ao invés de organizar seu material (arquivos found footage do programa, entrevistas exclusivas com Scott, registro de bastidores da TV) em tom de denúncia ou crítica direta aos questionáveis atos de quem observava, Herzog optou por aproximar-se do homem que se escondia atrás da imagem midiática evidenciando uma ambigüidade que ora se compadece, ora abomina, ora simpatiza com aquele que finalmente deixa sua máscara cair.

Ao nos mostrar a rotina de um homem que vive para as câmeras — à época, os programas de Scott duravam entre 6 e 8 horas diárias e ininterruptas — e que, por isso, já diluíra sua identidade num conjunto de expectativas e códigos de conduta indiferentes à sua vontade, Herzog desconstruiu todo um conceito fílmico baseado no desequilíbrio que a realidade e a ficção sempre nele tensionam. O que seu filme faz com Gene Scott é o que nenhuma das incontáveis horas de TV poderiam extrair dele e, em contrapartida, o que ele jamais revelaria para alguém não mediado por uma câmera. Consciente de sobreviver num 'mundo de celulóide', de ocultar uma profunda tristeza sob a fachada do estrelato, finalmente Scott encontrará a possibilidade de uma imagem que não se preocupe em vesti-lo de sentidos e significados exteriores, pois ao contrário, vem dela o mais pleno desnudamento, o desejo simples e puro de ser. E se procurarmos identificar o tempo da restituição, aquele momento em que Scott é brevemente devolvido para si mesmo, este não poderá estar em outro movimento senão o do incisivo close-up dedicado por Herzog ao entrevistado, durante vários e longos minutos.

Certamente o mais belo e funcional — sim, Herzog consegue fundir opostos — close já efetuado pelo diretor, eis uma proximidade que recupera todo o caráter trágico (chapliniano) do referido movimento técnico: há uma eterna dor na face que se deixa tocar pela lente, naquilo que da pele pulsa, dos vincos e rugas, de cada contorno. São nestas cenas que God's Angry Man deixa de ser um filme sobre o mercado da religião para tornar-se um retrato do desamparo humano, do corpo que, abandonado solitariamente num mundo esquecido por Deus, agoniza uma espiritualidade impossível. Parece desnecessário apontar a relação entre Gene Scott e o protagonista de Fitzcarraldo, megalomaníacos que precisaram ultrapassar os limites da razão para sobreviver num domínio simbólico da existência. Desnecessário procurar neles um reflexo de Herzog, que otimizando a espera pelo seu próximo filme, comprovou ser o movimento cinemático uma conseqüência do saber aguardar.

Nandodijesus (Multiplot)

sábado, 14 de julho de 2012

Liberalismo brasileiro

 Senador Requião detonando com o PIG comparando o Golpe no paragaui com o Golpe contra Jango no Brasil....belo discurso, bem fundamentado e irônico...

As 10 Estratégias de Manipulação Midiática


- por Noam Chomsky, linguista do MIT do blog TUDO EM CIMA


1- A ESTRATÉGIA DA DISTRAÇÃO.

O elemento primordial do controle social é a estratégia da distração que consiste em desviar a atenção do público dos problemas importantes e das mudanças decididas pelas elites políticas e econômicas, mediante a técnica do dilúvio ou inundações de contínuas distrações e de informações insignificantes. A estratégia da distração é igualmente indispensável para impedir ao público de interessar-se pelos conhecimentos essenciais, na área da ciência, da economia, da psicologia, da neurobiologia e da cibernética. "Manter a atenção do público distraída, longe dos verdadeiros problemas sociais, cativada por temas sem importância real. Manter o público ocupado, ocupado, ocupado, sem nenhum tempo para pensar; de volta à granja como os outros animais (citação do texto 'Armas silenciosas para guerras tranqüilas')".

2- CRIAR PROBLEMAS, DEPOIS OFERECER SOLUÇÕES.

Este método também é chamado "problema-reação-solução". Cria-se um problema, uma "situação" prevista para causar certa reação no público, a fim de que este seja o mandante das medidas que se deseja fazer aceitar. Por exemplo: deixar que se desenvolva ou se intensifique a violência urbana, ou organizar atentados sangrentos, a fim de que o público seja o mandante de leis de segurança e políticas em prejuízo da liberdade. Ou também: criar uma crise econômica para fazer aceitar como um mal necessário o retrocesso dos direitos sociais e o desmantelamento dos serviços públicos.

3- A ESTRATÉGIA DA GRADAÇÃO.

Para fazer com que se aceite uma medida inaceitável, bastaaplicá-la gradativamente, a conta-gotas, por anos consecutivos. É dessa maneira que condições socioeconômicas radicalmente novas (neoliberalismo) foram impostas durante as décadas de 1980 e 1990: Estado mínimo, privatizações, precariedade, flexibilidade, desemprego em massa, salários que já não asseguram ingressos decentes, tantas mudanças que haveriam provocado uma revolução se tivessem sido aplicadas de uma só vez.

4- A ESTRATÉGIA DO DEFERIDO.

Outra maneira de se fazer aceitar uma decisão impopular é a de apresentá-la como sendo "dolorosa e necessária", obtendo a aceitação pública, no momento, para uma aplicação futura.É mais fácil aceitar um sacrifício futuro do que um sacrifício imediato. Primeiro, porque o esforço não é empregado imediatamente. Em seguida, porque o público, a massa, tem sempre a tendência a esperar ingenuamente que "tudo irá melhorar amanhã" e que o sacrifício exigido poderá ser evitado. Isto dá mais tempo ao público para acostumar-se com a idéia de mudança e de aceitá-la com resignação quando chegue o momento.

5- DIRIGIR-SE AO PÚBLICO COMO CRIANÇAS DE BAIXA IDADE.

A maioria da publicidade dirigida ao grande público utiliza discurso, argumentos, personagens e entonação particularmente infantis, muitas vezes próximos à debilidade, como se o espectador fosse um menino de baixa idade ou um deficiente mental. Quanto mais se intente buscar enganar ao espectador, mais se tende a adotar um tom infantilizante. Por quê? "Se você se dirige a uma pessoa como se ela tivesse a idade de 12 anos ou menos, então, em razão da sugestionabilidade, ela tenderá, com certa probabilidade, a uma resposta ou reação também desprovida de um sentido crítico como a de uma pessoa de 12 anos ou menos de idade (ver "Armas silenciosas para guerras tranqüilas")".

6- UTILIZAR O ASPECTO EMOCIONAL MUITO MAIS DO QUE A REFLEXÃO.

Fazer uso do aspecto emocional é uma técnica clássica para causar um curto circuito na análise racional, e por fim ao sentido critico dos indivíduos. Além do mais, a utilização do registro emocional permite abrir a porta de acesso ao inconsciente para implantar ou enxertar idéias, desejos, medos e temores, compulsões, ou induzir comportamentos...

7- MANTER O PÚBLICO NA IGNORÂNCIA E NA MEDIOCRIDADE.

Fazer com que o público seja incapaz de compreender as tecnologias e os métodos utilizados para seu controle e sua escravidão. "A qualidade da educação dada às classes sociais inferiores deve ser a mais pobre e medíocre possível, de forma que a distância da ignorância que paira entre as classes inferiores às classes sociais superiores seja e permaneça impossíveis para o alcance das classes inferiores (ver 'Armas silenciosas para guerras tranqüilas')".

8- ESTIMULAR O PÚBLICO A SER COMPLACENTE NA MEDIOCRIDADE.

Promover ao público a achar que é moda o fato de ser estúpido, vulgar e inculto...

9- REFORÇAR A REVOLTA PELA AUTOCULPABILIDADE.

Fazer o indivíduo acreditar que é somente ele o culpado pela sua própria desgraça, por causa da insuficiência de sua inteligência, de suas capacidades, ou de seus esforços. Assim, ao invés de rebelar-se contra o sistema econômico, o individuo se auto-desvalida e culpa-se, o que gera um estado depressivo do qual um dos seus efeitos é a inibição da sua ação. E, sem ação, não há revolução!

10- CONHECER MELHOR OS INDIVÍDUOS DO QUE ELES MESMOS SE CONHECEM.

No transcorrer dos últimos 50 anos, os avanços acelerados da ciência têm gerado crescente brecha entre os conhecimentos do público e aquelas possuídas e utilizadas pelas elites dominantes. Graças à biologia, à neurobiologia e à psicologia aplicada, o "sistema" tem desfrutado de um conhecimento avançado do ser humano, tanto de forma física como psicologicamente. O sistema tem conseguido conhecer melhor o indivíduo comum do que ele mesmo conhece a si mesmo. Isto significa que, na maioria dos casos, o sistema exerce um controle maior e um grande poder sobre os indivíduos do que os indivíduos a si mesmos.

Sem política habitacional, remoções e despejos avançam em SP


Moradores de prédios ocupados e ameaçados por anel viário realizaram ato para garantir direito à moradia

Daniele Silveira,
De São Paulo, da Radioagência NP


Moradores do centro e da periferia de São Paulo se reuniram para a realização de um ato em protesto contra as ordens de despejo e reintegração de posse que podem desalojar milhares de famílias em toda a capital paulista. A concentração para a manifestação, realizada na quarta-feira (11), iniciou na rua Mauá, no bairro da Luz. Os manifestantes percorreram o centro da cidade, até chegarem ao prédio da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU). Cerca de 1500 pessoas participaram da ação.
Os manifestantes reivindicam que o poder público garanta alternativas habitacionais, oferecendo moradia digna para as famílias. Além disso, denunciam as ações de violência e intimidação que ocorrem antes e durante as remoções. Somente na Região Central de São Paulo, as ordens de reintegração de posse atingiram 560 famílias que ocuparam imóveis abandonados, e residem no local há pelo menos cinco anos.
A Justiça havia determinado a reintegração de posse a partir do dia 16 de julho do prédio da rua Mauá, onde residem mais de 200 famílias. A sentença foi suspensa por tempo indeterminado mediante recurso apresentado pelos moradores. O integrante da Assembleia Popular Jonathan Constantino considera uma vitória parcial o Tribunal de Justiça (TJ) de São Paulo ter aceitado o recurso e ressalta a importância dos movimentos por moradia ficarem em alerta e resistirem.
“A gente não pode recuar, porque o histórico que a gente tem no estado de São Paulo, e aqui na cidade, é que quando a gente recua na nossa luta as forças de repressão e a Justiça do estado vêm pra cima da gente pela madrugada para tirar a gente do nosso lar. Então, a gente tem que permanecer na rua, permanecer construindo, lutar, reivindicando o direito de permanecer ali, pedindo a desapropriação daquele prédio para a construção de moradia social”, afirma Constantino.


Rodoanel

As ameaças de despejo não atingem somente o centro da cidade. As grandes obras também têm gerado remoções nas regiões mais afastadas. O governo de São Paulo, no início do mês de abril, publicou no Diário Oficial do estado a reabertura da licitação do trecho norte do Roadoanel e assinou decretos para desapropriar aproximadamente 250 imóveis. O empreendimento, orçado em R$6,5 bilhões, recebe recursos do governo do estado, do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) e do Banco Interamericano de Desenvolvimento, e pode desalojar 10 mil pessoas.  
Famílias residentes de Perus, distrito da região noroeste de São Paulo, até a cidade de Guarulhos podem ser afetadas pela construção. Com uma extensão de cerca de 44km, o trecho norte do Rodoanel pretende interligar a Rodovia Fernão Dias e a Avenida Inajar de Souza aos trechos Leste e Oeste do anel viário.
Duilia Simões, moradora do bairro Jardim Paraná, região que será impactada pelas obras, relata o desencontro de informações sobre as moradias que serão atingidas.
“A Dersa [empresa responsável pelo gerenciamento da obra] alega que já tem os terrenos para as novas moradias, mas não abre para nós, não diz onde é. O Ministério Público deixou claro para nós que esses terrenos não existem. A obra já está quase na fase de cadastramento das famílias e nós não sabemos ainda sequer se existe um terreno ou não para as novas moradias”, relata Duilia.
Além dos problemas sociais, o empreendimento poderá trazer grandes impactos ambientais. A Serra da Cantareira, considerada a maior floresta em área urbana do mundo, terá suas reservas naturais atingidas. A serra possui o principal sistema de água da capital e abriga diversas espécies da Mata Atlântica.  
Nos trechos já implantados do Rodoanel (sul e oeste), a construção da rodovia afetou a dinâmica da vida dos moradores. Jonathan Constantino conta que as obras não tiveram planejamento adequado para atender as pessoas que vivem na região. “Da noite para o dia uma rodovia passa onde tinha uma avenida e você tem que tentar pular por cima de uma rodovia para ir para a escola que fica do outro lado. Têm regiões que os professores não conseguem mais chegar para dar aula, que as famílias não têm como atravessar a rodovia porque não tem passarelas. Os moradores tem que pagar pedágio, dar volta para entrar dentro de casa ou dar volta para sair para trabalhar”, descreve.

Itaquerão

Na Zona Leste de São Paulo, a construção do estádio “Itaquerão” para a Copa de 2014 também ameaça os moradores atingidos pela obra. O coordenador nacional da Central de Movimentos Populares (CMP), Benedito Barbosa, relaciona as remoções ao interesse do capital imobiliário.
“A gente sabe que essas obras na verdade estão abrindo fronteiras para a especulação imobiliária na cidade de São Paulo. Esse processo de remoção e despejo está atingindo quase 70 mil famílias na cidade de São Paulo, que estão sofrendo algum tipo de deslocamento em função desses megaprojetos e dessas megaobras, e uma agenda concentrada para terminar pelo menos grande parte desses projetos e dessas intervenções até 2014 com a realização da copa do mundo no Brasil”, alega Barbosa.

Na capital, há ainda outros projetos que podem gerar despejos, como o Nova Luz, as Operações Urbanas Água Branca e Lapa-Brás e o Parque Linear Várzea do Tietê. A estimativa dos movimentos de moradia é que o déficit habitacional do estado de São Paulo seja de 2 milhões de unidades.
Durante o ato foi tirada uma comissão de representantes dos moradores atingidos pelas remoções para se reunir com o presidente da CDHU. Entre os principais compromissos assumidos pelo órgão está a garantia de 660 unidades habitacionais na Região Central. O pagamento da bolsa aluguel para as famílias que ficaram desabrigadas após despejo na zona sul também foi retomado. O beneficio estava suspenso há 14 meses.

sexta-feira, 13 de julho de 2012

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Como nascem as crises

Chamou atenção nos últimos dias a quantidade de crises corporativas decorrentes do que se convencionou chamar de "falha humana"

Chamou atenção nos últimos dias a quantidade de crises corporativas decorrentes do que se convencionou chamar de "falha humana". Se fizermos uma retrospectiva das últimas grandes crises, tanto privadas quanto públicas, poucas escapam dessa classificação. Sempre alguém falhou.
Quando se analisam essas crises ou as conclusões de fatos mais graves são divulgadas, acabamos concordando com a tese dos especialistas em gestão de crises. Pelo menos um terço dos eventos mais graves que atingiram corporações pelo mundo poderia ser evitados, se as organizações tivessem adotado medidas de prevenção e não houvesse a malfadada "falha humana".
O escândalo da manipulação do Barclays
O escândalo da manipulação da taxa interbancária Libor (London Interbank Offered Rate, a taxa de juros para operações entre os bancos) pelo banco britânico Barclays deixou mais vulnerável o sistema bancário e levantou dúvidas sobre a seriedade na gestão da crise econômica na City de Londres e outros centros financeiros.
A crise econômica, que começou com a quebra do Lehman Brothers, em 2008, transformou os bancos nos grandes vilões da crise global. A escorregada do Barclays seria apenas mais um deslize dessa longa história de derrapadas do sistema financeiro. Os bancos espanhóis, por exemplo, acabam de ser socorridos com 30 bilhões de Euros para suportar a crise. Mas precisariam de até 62 bilhões.
Se confiança é um ativo imprescindível para um banco se justificar no mercado, o Barclays colaborou para piorar essa imagem. A manipulação de taxas da Libor ocorreu entre 2005 e 2009. O escândalo, agora trazido à tona, resultou na demissão do diretor-executivo do Barclays, Bob Diamond, um dos queridinhos do sistema financeiro internacional. Ele era considerado o homem certo para esse momento de crise. Mas, ironizando, o professor do MIT, Simon Johnson, em artigo no New York Times, lembrou uma máxima do ex-presidente Charles De Gaulle: "os cemitérios estão cheios de homens indispensáveis".
O Barclays teve que pagar multa de US$ 1 bilhão aos órgãos reguladores britânicos e dos Estados Unidos por conta da manipulação. Ele divulgava uma taxa maior para mostrar ao mercado uma situação melhor do que realmente acontecia. Descoberto, tentou encobrir, mas, como todas as mentiras nas situações de crises, nada fica muito tempo sob sigilo.
Segundo analistas, "os funcionários do Barclays estavam fazendo aquilo que eram pagos para fazer" e não consta que devolverão as bonificações recebidas. O colunista de economia do Financial Times, Martin Wolf, ex-integrante da Comissão Bancária Independente britânica, diz que "os bancos hoje representam a encarnação do comportamento obcecado pelo lucro levado aos seus limites lógicos".
Dennis Keleher, do Grupo Better Markets, citado no artigo do professor Simon Johnson, no NYT, foi mais duro: "Os maiores bancos globais são incentivados a tapear os correntistas, incluindo tanto os indivíduos quanto as corporações não financeiras". Ele completa, "a questão era o excesso de mentiras, e não a taxa em si". O Financial Times, em editorial, também não poupou: "Os banqueiros envolvidos traíram uma importante faceta da confiança do público".
O escândalo exposto pelo Barclays envolve cerca de 20 grandes bancos internacionais e um mercado de cerca de 800 trilhões de dólares, quatro vezes o PIB dos Estados Unidos. Ou seja, é uma crise que apenas começa a aparecer. Os analistas econômicos acreditam que só uma "faxina" nos cargos executivos desses bancos poderia trazer de volta a confiança do mercado.
Crises dão sinais. O rescaldo dessa crise é que até as autoridades reguladoras do Reino Unido devem se explicar sobre a crise. Diretores do Barclays foram alertados, há 5 meses, sobre "a cultura agressiva do banco". Mas nenhuma providência foi tomada. Resumo: uma sucessão de erros que acabou atingindo não apenas o sisudo banco inglês, mas todo o sistema financeiro.
Falta de preparo para situação de crise
A divulgação também na semana passada das conclusões da investigação sobre o acidente com o Air France 447, em águas brasileiras, em julho de 2009, mostra outra crise grave, que custou a vida de 228 pessoas, e poderia ter sido evitada. Pilotos mal treinados e uma combinação com falha do equipamento seriam responsáveis pela queda do avião, em meio a uma tempestade a 11 mil metros de altura.
Segundo o documento, os pilotos não souberam reagir a uma série de falhas do avião, uma delas o congelamento das sondas pitot, que fornecem a velocidade e a altitude da aeronave. O voo foi colhido por uma tempestade em local em que outros aviões deveriam passar, mas evitaram. Ao assumir manualmente o avião, que começou a perder sustentação, primeiro os co-pilotos e depois o Comandante, que estava descansando naquele momento, cometeram erros – diz o relatório – fatais para a queda da aeronave.
O relatório dá um peso ao "erro humano" ou falha no treinamento para situações adversas. "Os diálogos mostram despreparo para a crise". Mais uma vez, um fato gravíssimo, que resulta em falta de treinamento e despreparo. O documento final divulgado em Paris semana passada pelo BEA (Birô de Investigações e Análises) não deixa dúvidas de que houve uma combinação de fatores negativos para a tragédia do Air France 447. Segundo o relatório, com a intervenção adequada da tripulação, as falhas mecânicas não derrubariam o avião.
Um caso parecido com o acontecido com o navio de cruzeiros Costa Concordia, que naufragou nas costas da Itália em fevereiro. Nesse caso, houve uma sucessão de erros do Comandante: saiu da rota, para fazer uma "gracinha" aos amigos, bateu com o casco do navio numa pedra, causando um rombo fatal para a sustentação da embarcação, e, para completar, abandonou o navio em pleno naufrágio, antes do resgate de todos os passageiros.
Tudo isso combinado com trapalhadas da tripulação; avisos equivocados sobre a gravidade da situação e a falta de treinamento para situações de crise, acabaram na morte de 32 pessoas e prejuízos incalculáveis para a indústria do turismo marítimo. Só a retirada do navio, prevista para janeiro de 2013, custará 236 milhões de Euros. O navio está até hoje lá nas costas da Ilha de Giglio como um monumento à imprudência, irresponsabilidade e desprezo pela vida humana.
Nessa linha de falhas humanas ou erros, por falta de prevenção, a Comissão que investigou as tragédias ocorridas no Japão, concluiu que o tsunami, seguido do acidente nuclear, é "uma desculpa para evitar responsabilidades". Desde 2006, havia risco de acidente, como dizem relatórios, e nenhuma providência foi tomada. E mais: o acidente em Fukushima "foi causado pelo homem". Governo japonês, agências reguladoras e Tepco (a empresa da usina) "falharam em seu dever de proteger" a população e as instalações.
O golpe esperto de todas as férias
O golpe aplicado pela empresa Trip & Fun em pelo menos 600 pessoas, em S.Paulo, no início das férias de julho é recorrente. Alunos, pais, turistas pagaram durante meses suas prestações para viagens de sonhos. Uns viajariam para Cancún, outros para a Disney, Argentina. Ao tentar embarcar em Guarulhos na semana passada, não havia avião nem hotéis reservados.
A empresa Trip & Fun desativou o site, fechou as portas, diz que vai passar por uma reestruturação e cancelou a viagem de centenas de pessoas. Essa é a típica crise prevista para a época de férias no Brasil. Empresários de araque montam empresas de fachada ou com pouco capital e entram num mercado que exige experiência, lastro financeiro e uma grande dose de empreendedorismo. Não é um mercado para amadores.
O pior nessas crises é que nada acontece. A mídia faz um barulho danado, coloca as pessoas chorando nos aeroportos, viajantes frustrados, registro de boletim de ocorrência; Abav, Ministério Público, Ministério do Turismo lamentam, anunciam processos, dão conselhos óbvios. E esses empresários no próximo ano, com empresas com outros nomes, irão continuar dando o mesmo golpe em mais uma centena de desavisados.
Aconteceu em Brasília em 2008, 2009 e 2010. Pior. O mesmo sócio de uma das empresas, a Impacto Turismo, deu golpe em 2008 e no réveillon de 2009. Ele comandou excursões para Arraial d'Ajuda, na Bahia e os hotéis não estavam pagos, nem pagou os ingressos para os shows, conforme contrato. Cerca de 400 pessoas embarcaram na furada e tiveram prejuízos. Só um dos sócios tem 33 processos na Justiça. Poucos conseguiram recuperar parte do dinheiro aplicado. Eles acabam não pagando, alegando que não têm bens para suportar a dívida. E continuam impunes.
Como prevenir crises desse tipo? Para o usuário, só usar empresas registradas no Ministério do Turismo, na Embratur. Verificar com cuidado, antes de fechar o pacote, se a empresa tem tradição. Não embarcar por causa do preço. Desconfiar de preços baixos. Fazer um rastreamento, antes das viagens para saber tudo sobre a empresa contratada. São crises que atentam contra a economia popular e se repetem todos os anos.
João José Forni é jornalista, consultor de comunicação e editor do site Comunicação e Crise

Ultra-capitalismo: do terrorismo ao calote mundial


Por que não podemos classificar o terrorista norueguês como ultra-capitalista? Por que temos que nos conformar com o rótulo na capa da revista Veja, que o chama de ultra-nacionalista, ou com as variantes usadas no restante das corporações de mídia.


Por que não podemos classificar o terrorista norueguês como ultra-capitalista? Por que temos que nos conformar com o rótulo na capa da revista Veja, que o chama de ultra-nacionalista, ou com as variantes usadas no restante das corporações de mídia (atirador, terrorista, extremista e outros tantos, que confundem muito mais do que explicam). São confiáveis esses veículos de comunicação que imediatamente após o tiroteio apontavam o dedo para um providencial “extremista islâmico”? -- versão que, aliás, não resistiu a 24 horas.

Estou sendo radical? O capitalismo não prega genocídios? O capitalismo tem um lado humano?

Quando digo que o marginal norueguês é ultra-capitalista não estou pensando nos postulados de Adam Smith ou naquilo que é permitido que se publique a respeito do sistema que domina o mundo. Estou me referindo ao que é escondido (o trabalho escravo ou semi-escravo e a máquina de moer essa gente que trabalha por um salário mínimo de fome) e ao que está implícito, às sutis formas de produção e reprodução de subjetividades, que interferem nas formas de sentir, pensar e agir dos cidadãos e, conseqüentemente, da própria sociedade em que estes estão inseridos.

O assassino em massa que chocou o mundo agiu influenciado por doutrinas que pregam a concorrência violenta, o ódio ao próximo. Essa teoria que joga a culpa de tudo em estrangeiros, negros, gays, ou em qualquer um que seja diferente. É reducionista, mas funciona. Em vez de reconhecer os próprios defeitos, o que demanda tempo, reflexão e análise, basta jogar a culpa em alguém com quem a pessoa não se reconhece: o outro.

Não me parece casual que o alvo do assassino tenha sido um acampamento da juventude socialista, que reuniu centenas de jovens de todos os cantos do mundo – inclusive do Brasil. O bandido criticava o multiculturalismo e chegou a dizer que esse era o grande problema do nosso país. Essa seria a razão para sermos uma sociedade “disfuncional”, de segunda classe.

É evidente que o genocida norueguês nunca assistiu a um desfile da Estação Primeira de Mangueira. E nem viu um Neymar da vida jogando. Muito menos teve a oportunidade de apreciar uma partida como a de quarta-feira, entre Flamengo e Santos. Ali, na Vila Belmiro, quando todos os deuses do futebol (que não são nórdicos, por suposto) baixaram simultaneamente em campo, ficou provada a existência de milagres. Esses milagres que permitem uma jogada como a do terceiro gol do Santos, quando o miscigenado Neymar fez com a bola algo que desafia a compreensão até mesmo dos deuses. Esses milagres que fizeram com que o Flamengo virasse uma partida após estar perdendo por três gols de diferença, sendo que o miscigenado Ronaldinho fez três e foi chamado de “gênio” pelo melhor jogador do mundo na atualidade. Foi um jogo que será lembrado daqui a cem a nos. Deve ser duro para os racistas ouvirem isso, mas a verdade é que esses milagres nascem justamente com a miscigenação que as teorias nazistas repudiam. Futebol e música soam melhor quando tem mistura, é assim em qualquer lugar do mundo.

A propósito: o nazismo não era capitalista? Se não, o que era?

A dificuldade de se entender o discurso do premiê da Noruega é compreensível. Todos ficaram chocados quando ele afirmou que discursos de ultra-direita são legítimos. Isso porque as corporações de mídia não conseguiram traduzir para o bom português; preferiram fingir que ele não estava se referindo à ultra-direita, ou seja, a versão mais descarada do capitalismo. Para as corporações de mídia é melhor apostar na confusão do que mostrar ao povo brasileiro que seus sócios e amigos defendem, por exemplo, o cercamento de favelas. Ou o abandono da gente pobre. A tortura de traficantes varejistas.

Os tiros disparados na Noruega também ecoam nos Estados Unidos. O extremismo do assassino nórdico tem tudo a ver com o fundamentalismo neoliberal de mercado. Ambos reivindicam para si a verdade, como se existisse apenas uma, a deles. Ambos consideram-se pertencentes a uma casta superior. E ambos agiram com planejamento, método e frieza.

Agora a maior economia do mundo anuncia tranqüilamente que pode dar um calote amplo, geral e irrestrito, mas não aparece um economista para entoar os cânticos de “irresponsável”. Onde estão os fiscais dos fundamentos da economia? Onde os que diziam que Lula quebraria o Brasil? Cadê a turma que defendia o modelo estadunidense como digno de ser seguido? Estão todos quietinhos, debaixo da cama, morrendo de medo das conseqüências, imprevisíveis, de uma moratória dos Estados Unidos.

O mundo não está nessa situação porque de vez em quando aparece um lunático disposto a tudo para fazer valer sua irracionalidade. Chegamos a este ponto porque o modelo de sociedade adotado pela maior parte do mundo não presta. Quem sabe a União de Nações Sul-Americanas – Unasul – aponte uma nova direção.

Marcelo Salles é jornalista, colaborador do www.fazendomedia.com e outros veículos de comunicação democráticos.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Rappers contra o latifúndio


Assentados do MST montam grupo Veneno H2 e misturam arte e política em seu trabalho e letras


Joana Tavares,
de Belo Horizonte (MG)- BRASIL DE FATO


O grupo Veneno H2- Foto: Joana Tavares
O hip hop é conhecido como uma cultura da periferia das grandes cidades. Mas um grupo de jovens assentados decidiu que o rap também era música para o povo do campo se expressar e contar sua realidade. Carlos César, o Cesinha, já tem mais de 20 anos de estrada no rap. Mas foi no assentamento 17 de abril, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), próximo à cidade de Franca, em São Paulo, que ele conheceu Paulo Eduardo Pinheiro, o Mano Fi, e montaram um grupo. Depois entrou John Miller Souza, o John Doido, que entrou fazendo as bases no violão e passou a escrever e cantar também. Os três compõem o Veneno H2, que junta no nome os dois H´s do hip hop e a essência da cultura, misturado com o veneno do dia a dia, gíria para designar as dificuldades e ansiedades. “E também porque para o sistema somos puro veneno”, coloca Cesinha.
Eles entendem o rap como ferramenta de contestação social, e conseguem com seu trabalho dialogar com os jovens dos assentamentos, mas também com os mais velhos, de início resistentes ao estilo. Colocam ainda que a aproximação com a periferia urbana é possível e viável por meio do hip hop e se apresentam em bailes, eventos do MST e onde mais houver espaço para sua música militante. O Veneno H2 não tem equipamentos próprios, não tem sites ou redes de divulgação, e seus integrantes precisam garantir na enxada seu sustento material. Cantam a realidade como se apresenta a eles, sem deixar de lutar para transformar o dia a dia e construir outro vilarejo para a humanidade.
O Veneno H2 se apresentou no pocket show do Duelo de MCs, em Belo Horizonte, e conversou com o Brasil de Fato sobre a história do grupo, as dificuldades e sua forma de trabalho.

Brasil de Fato – Como começou o grupo?

John – Começou em 2004. Em 2005 o pessoal já estava fazendo as letras. Entrei depois, porque os meninos tinham letra, mas não tinham as bases, e aí eu fazia as bases no violão. A gente foi assim um tempo, com poucas letras e tudo. Em 2006, o Cesinha ganhou um CD de bases, daquelas bem antigonas, e começamos a trabalhar em cima e desenvolver mais letras. Como não tinha mais necessidade do violão, comecei a escrever também. Começamos a ter pegada de grupo em 2006. A gente tinha um caderno com 18 letras, aí a gente ia ensaiando pra decorar. De repente o caderno sumiu. Misteriosamente. Tinha muita gente que não apoiava, que achava que rap e sem-terra não tinha nada a ver, que queria manter aquela linha da cultura camponesa, sem abrir pra mais coisa. Desanimamos pra caramba, mas depois pensamos: se fizemos uma vez, dá pra fazer de novo.

Cesinha – É dessa época a música Militante da terra. Houve uma resistência, mas com o tempo ficou clara a necessidade de ter uma proposta mais política nas letras. Foi no assentamento 17 de abril que o grupo se formou. Tocamos o primeiro rap do Veneno H2 num encontro da juventude que o Instituto de Terras do estado de São Paulo (Itesp) fez na região, e fizemos o rap sem base, com o pessoal batendo na palma na mão. Quando o Jonh entrou, fizemos uma apresentação no aniversário do assentamento. Começamos a escrever junto a partir daí. Quando teve o lançamento do programa do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) da Companhia Nacional do Abastecimento (Conab), o pessoal chamou a gente, mas não era pra gente cantar rap, era pra cantar uma música do MST. Nem testamos o som, começamos a cantar, não tinha microfone. Aí teve gente que até chorou com a música, que foi Militante da terra, com uma parte de uma música do movimento. O pessoal gostou demais e começou a perguntar se a gente tinha CD, como é que era. Falamos que a gente tinha dificuldade pra trabalhar e vontade de vencer o desafio. O pessoal então passou o chapéu, pra nos ajudar a gravar pelo menos uma faixa. Então em 2008, gravamos nossa primeira faixa, a Militantes da Terra, com a segunda versão.

John – A gente tenta discutir até chegar num acordo pra todo mundo. Depois disso, o pessoal viu que a proposta era interessante para a juventude, porque os jovens achavam bem interessante, viam que a gente era da mesma luta e estava ali tocando rap. Aí foi aparecendo mais espaços nos movimentos sociais e de grupos de extensão de faculdade. Depois de um tempo, a gente foi vendo a necessidade de buscar formação para desenvolver melhor os temas políticos, fazer um diálogo melhor. No começo, falo por mim mesmo, eu ia para os espaços pra cantar, não queria saber de plenária, de estudo, de nada. Era cantar, dar meu rolê, dar uma namorada... e isso não dava credibilidade. Não precisou ninguém chegar e dar um toque, a gente foi buscar formação.

Qual a ligação do hip hop com a luta?

Cesinha – O hip hop é mais uma ferramenta. Ele surgiu como um movimento social também, foi muito discriminado. Mas agora ele foi apropriado, ou melhor, expropriado pelo capital. Como todas as outras mercadorias, o hip hop está virando uma mercadoria também. Talvez não tão vulgar quanto outros ritmos que o sistema apropriou, mas se continuar pode ir pro mesmo caminho. Como uma ferramenta de luta – e o hip hop é muito flexível – a gente pode usar isso a nosso favor também. Não temos espaço na mídia, mas temos a mídia alternativa, temos contato direto com quem nos ouve. A gente vê o hip hop como uma forma de luta, porque vemos uma possibilidade de construir as letras de acordo com nossa cultura, com o que a gente viveu e podemos misturar tudo que a gente gosta, do funk a Bethoveen, rock, reggae, samba, até o sertanejo. Estamos pensando em colocar toques de viola no próximo CD, resgatando a cultura popular. O hip hop tem essa flexibilidade e essa simbiose, ele se junta com a cultura local.

John – O interessante é que a gente é do campo, somos assentados, filhos de assentados, nos conhecemos no assentamento, nossa raiz é totalmente o MST, porque foi a partir disso que tivemos formação. Mas se você for chegar pra juventude hoje, principalmente da cidade, e falar sobre organização de classe, sobre a questão da luta, é muito difícil, porque estão totalmente alienados pela mídia, têm um conceito muito negativo da política. Qual a ideia do hip hop? Colocamos vários elementos políticos nas nossas letras, para eles notarem que aquela política é o que eles estão vivendo, não tem um distanciamento, para eles buscarem fazer alguma coisa pra mudar aquela realidade. Porque ninguém vai mudar se não for a gente, porque o capital sempre vai explorar. É difícil esse diálogo com a juventude, até nas nossas próprias áreas, porque a gente sabe que muitas vezes o pessoal completa certa idade e quer ir embora, porque no assentamento não tem lazer, é só trabalho braçal... e no trabalho que a gente faz buscamos também espaços de lazer e de cultura.

E as pessoas mais velhas?

Cesinha – Uma coisa interessante também no decorrer da nossa história é que para conseguir o apoio da comunidade, trabalhamos primeiro com a juventude, mas depois fomos apresentando o hip hop para as pessoas mais adultas, para os idosos, que às vezes tinham resistência. Eles perceberam que o rap não era só o que eles conheciam por rap, que falava de droga, de arma. Viram que era nossa realidade retratada de forma bem sintetizada.

Qual a reação das pessoas da cidade quando conhecem o trabalho de vocês?

John – O pessoal do rap de Franca, a cidade mais próxima do assentamento, quando conheceu a gente ficou meio receoso, quando a gente falou que morava no assentamento tiraram um sarro da gente: “ah, vocês fazem rap da roça”. Mas depois ouviram nossas músicas e viram que a gente conta o cotidiano com conceitos políticos mesmo.

Cesinha – A primeira apresentação nossa em um baile de rap em Franca, a gente estava tão ansioso que ficamos meio travados, e falamos pra geral: “seguinte: esse é o rap do sem-terra e como somos novos, vamos deixar a música falar pela gente”. E a galera gostou muito, a partir de então conseguimos ter um diálogo melhor com a periferia. Estamos voltando para os bailes, para a periferia também. Quando a gente compara os problemas, vê que são basicamente os mesmos.

Por que o nome Veneno H2?

Cesinha – De começo eu queria montar uma banda soul, e pensei na palavra ‘veneno’ porque é uma gíria, que significa passar dificuldades, estar nervoso, ou estar eufórico com alguma coisa. “Estou no veneno pra sair e tomar uma com os amigos”, ou “Estou no veneno porque não tem comida em casa”, ou “passei um veneno porque fui despedido”. Vimos então que o veneno estava constante na nossa vida. O H2 é pelos dois ‘H’ do hip hop. E também porque para o sistema a gente é o puro veneno. Até a revista Veja esculachou uma música nossa, com um vídeo de uma apresentação no acampamento do Levante Popular da Juventude.

John – Com toda nossa simplicidade e dificuldade, não temos aparelhagem, equipamento, nada – só temos um pen drive com as bases e agora um computador que ganhei – conseguimos cutucar lá em cima com nossa mensagem.

Quais os próximos passos do grupo?

Jonh – Estamos divulgando os CD e também já construindo o próximo, temos algumas letras escritas já. Fiz um curso de desenvolvimento cultural pelo MST e aprendi técnicas de vídeo e edição, então estamos com a ideia de fazer um trabalho nosso nisso também. Não só um trabalho de música, mas fazer também oficinas de desenvolvimento cultural com o pessoal. A gente sabe a dificuldade que tem um grupo de rap de movimento social. Talvez a gente seja o único grupo de rap orgânico da base do MST, e somos convidados para ir em vários lugares do país, e fazemos isso, a oficina e depois cantamos o rap. Temos parceria com o Levante da Juventude, para levar a organização para a periferia também. E buscar cada vez mais conhecimento, porque a gente absorve e repassa nas letras. A gente quer ver também como trabalhar a questão da mística nas apresentações, até para mostrar o outro lado do MST, o lado verdadeiro da coisa.

Cesinha – É, a produção no setor da cultura. Estamos também discutindo de ver alguém – do movimento ou não – para a gente produzir. Fazer um clipe e chegar em mais pessoas, mais periferia, mais campo, para levar nossa visão de que a cultura, a música, não é só pra distrair, mas formar a consciência geral: de jovem, adulto, velho, criança. E trabalhar no lote, né?

John – É, porque a principal fonte de renda nossa é o trabalho braçal.

Ouça a música Nosso Vilarejo em:

terça-feira, 10 de julho de 2012

Kardec Foi um Filósofo?


  •  Jaci Regis no PENSE


  • Três questões serão debatidas neste trabalho:
    1.) Como conciliar o fato de o Espiritismo se declarar, simultaneamente, uma revelação e uma filosofia;
    2.) É possível caracterizar a obra de Kardec como uma obra filosófica?
    3.) Como resolver o paradoxo da fé raciocinada?
    O objetivo final é provar que o Espiritismo é uma filosofia.

    I

    No livro “A Gênese”, Allan Kardec afirma que o Espiritismo é uma revelação e procura mostrar o seu caráter. Mas, também, ao longo de sua obra e de forma taxativa, caracteriza-o como uma filosofia.

    Devemos, pois, em primeiro lugar, tentar compreender o que sejam filosofia e revelação. Comecemos por filosofia.

    Não tem sido fácil definir o que seja filosofia. Entretanto, existe um conceito espontâneo de que a filosofia é uma parte essencial da atividade do homem. Ligada à sabedoria, ao exame e à discussão exaustiva, embora não conclusiva, das causas e dos seres, a filosofia tem sido caracterizada como uma atividade superior do homem, um exercício indispensável ao saber e à certeza.

    Historicamente, distinguem-se duas formas de exercício da filosofia: de um lado a socrático-platônica, que exprime uma concepção do eu, isto é, uma autorreflexão do espírito sobre os seus supremos valores teóricos e práticos, sobre os valores do verdadeiro, o bom e o belo. De outro, a aristotélica, que apresenta, antes de tudo, uma concepção do universo. Embora tenha havido uma regularidade pendular entre essas duas concepções, tende-se a uma acumulação, a uma conjugação desses pontos, pois a filosofia é simultaneamente as duas coisas: uma concepção do eu e uma concepção do universo.

    Em síntese, pode-se compreender que a filosofia é uma autorreflexão do espírito sobre seu comportamento e, ao mesmo tempo, uma aspiração ao conhecimento das últimas ligações entre as coisas.

    Quanto à revelação, analisaremos, ainda que rapidamente, as colocações feitas por Allan Kardec no capítulo I de “A Gênese”, servindo-nos da tradução de Guillon Ribeiro (edição da FEB). Nele, o autor define revelação como “dar a conhecer uma coisa secreta ou desconhecida”. Logo, “deste ponto de vista, todas as ciências que nos fazem conhecer os mistérios da Natureza são revelações e pode dizer-se que há para a Humanidade uma revelação incessante” (item 2). E adiante: “O que de novo ensinam aos homens (os grandes gênios, messias, missionários) quer na ordem física, quer na ordem filosófica, são revelações (grifo de Kardec). “Se Deus suscita reveladores para as verdades científicas, pode, com mais forte razão, suscitá-las para as verdades morais, que constituem elementos essenciais do progresso. Tais são os filósofos, cujas ideias atravessam os séculos” (item 6). No tocante à revelação religiosa, diz Kardec: “implica a passividade absoluta e é aceita sem verificação, sem exame e discussão” (item 7).

    Finalmente, quanto ao Espiritismo, afirma Kardec: “é uma verdadeira revelação, na acepção científica da palavra”, isto é, dá “a conhecer o mundo invisível que nos cerca e no meio do qual vivemos sem o suspeitarmos, assim como as leis que o regem, suas relações com o mundo visível, a natureza e o estado dos seres que o habitam e, por conseguinte, o destino do homem depois da morte” (item 12).

    Kardec coloca o Espiritismo como uma “revelação científica” que é caracterizada por ser “divina a sua origem e da iniciativa dos Espíritos, sendo a sua elaboração fruto do trabalho do homem”. É uma revelação científica, enfatiza: “por não ser ensino (dos Espíritos) privilégio de indivíduo algum, mas ministrado a todos do mesmo modo; por não serem os que o transmitem e os que o recebem seres passivos, dispensados do trabalho da observação e da pesquisa, por não renunciarem ao raciocínio e ao livre-arbítrio; porque não lhes é interdito o exame, mas, ao contrário, recomendado; enfim, porque a doutrina não foi ditada completa, nem imposta à crença cega; porque é deduzida pelo trabalho do homem, da observação aos fatos que os Espíritos lhe põem sob os olhos e das instruções que lhe dão, instruções que ele estuda, comenta, compara, a fim de tirar ele próprio as ilações e aplicações” (item 13 - grifos de Kardec).

    Isso fica mais claro ainda quando ele analisa a questão: “qual a autoridade da revelação espírita, uma vez que emana de seres de limitadas luzes e não infalíveis?” Nessa aparente fragilidade, o Codificador aponta sua característica básica, ao afirmar que o Espiritismo é fruto da elaboração entre pessoas de dois planos de vida. Os Espíritos propõem, mas os homens concorrem com o seu raciocínio e seu critério, tudo submetem ao cadinho da lógica e do bom senso. Isto é, o homem se beneficia dos conhecimentos especiais que os Espíritos dispõem pela posição em que se acham, sem abdicar do uso da própria razão (item 57).

    Esse caráter específico da revelação espírita é, também, uma inovação no campo filosófico, antes dominado apenas pela cogitação a partir de um ponto de observação unilateral, isto é, da busca e da inquietação do homem perante o mistério e as contradições do ser, diante de si mesmo, da existência e do universo. Agora, esse mesmo cogitar é enriquecido pela contribuição de homens que passaram a existir numa dimensão diferente, — os Espíritos — mas dentro da humanidade.

    Sendo, em lato senso, urna elaboração da razão humana — encarnada e desencarnada — o Espiritismo é uma reflexão sobre o ser e o universo, abrangendo a totalidade e não se detendo no particular. A palavra “revelação” é, num primeiro sentido, uma contradição nesse quadro e só é aceita por Kardec a partir de uma visão didática, para que a intervenção das inteligências desencarnadas seja compreendida no processo.

    II

    Poderá a obra de Allan Kardec ser categorizada como filosófica? Ou melhor seria considerá-la uma obra didática? Encontramos no seu transcorrer uma reflexão sobre o ser, o belo, o bom? Há, em seu bojo, cogitações sobre a natureza essencial das coisas, uma visão do universo e das relações últimas entre os objetos? Sim, a resposta é afirmativa.

    Entretanto, o fato desses temas serem abordados não significa, necessariamente, que a obra seja filosófica. O que caracteriza esse aspecto é o fato de apresentar uma reflexão, propor soluções e inovar na abordagem de temas que, sendo universais e se constituírem razão da cogitação da inteligência, se enquadrem num quadro amplo da inquietação do homem.

    Analisada sob esse ângulo, a obra de Kardec é, em seu conjunto, uma reflexão filosófica. O próprio “O Livro dos Espíritos” é um filosofar dialético entre duas inteligências humanas, reunidas no ato de refletir sobre os fundamentos do ser, do destino e de Deus. Semelhante ao diálogo do Banquete, de Platão, Kardec e o Espírito da Verdade, maieuticamente confabulam num mesmo nível de inquietude. Esse debate dialético não espelha um superior ministrando lições a um inferior. Mas, duas potências do saber dialogam, exprimindo visões específicas que resultam na síntese doutrinária do Espiritismo. A partir desse diálogo, Kardec, seja nos comentários que aduz às questões ou em capítulos inteiros de “O Livro dos Espíritos”, evidencia o tratamento filosófico das ideias.

    O que caracteriza, por outro lado, a filosofia kardecista, se assim podemos falar, é a sua praticidade. Marx afirmou que “os filósofos limitaram-se a interpretar o mundo de diferentes maneiras; trata-se é de transformá-lo”, exigindo a crítica radical, que vai às raízes e à práxis, isto é, à ação revolucionária. Essa tese foi lançada por Marx por volta de 1845, doze anos antes de “O Livro dos Espíritos”. Pode-se dizer que Kardec também realizou, a seu modo, uma filosofia de ação, de pratos, transformadora e revolucionária, ao propor uma nova reflexão sobre os fundamentos da vida, do ser e do mundo, inaugurando a visão espírita. E, também, promoveu a elevação dos Espíritos à categoria de seres existentes e não potenciais, ao abrir, por assim dizer, a cortina que separava o homem vivente no plano corpóreo ao homem vivente no plano extrafísico.

    A filosofia que Kardec desenvolveu foi discursiva-racional, não considerando a intuição como uma fonte autônoma de conhecimento. Embora reconhecendo a totalidade emocional, volitiva e cognitiva do Espírito, não poderia deixar de cingir-se à razão como juíza do saber. Não nega a intuição como uma das formas de apreensão da realidade. Todavia, “toda intuição tem que legitimar-se perante o tribunal da razão”.

    Embora seguindo, sob certos aspectos, um esquema muito ligado às preocupações teológicas, Kardec manteve-se numa linha de equilíbrio racional, definindo, por fim, o Espiritismo como filosofia moral, com o que se libertou das amarras de uma teologia. A reflexão sobre a reencarnação, como instrumento de desenvolvimento das potências do Espírito, define a filosofia espírita, em oposição à teologia.

    Na verdade, o esquema kardecista seguiu, em linhas gerais, a própria estrutura do pensamento filosófico da época. Foi a partir do século 19 que as ciências se libertaram definitivamente da filosofia, mudando esta seu campo de atividade e atuação formal.

    O didatismo de Kardec não prejudica a sua obra, nem lhe descaracteriza a fundamentação filosófica. Exprime, apenas, uma face da capacidade de comunicação própria do autor, cujo estilo sem adjetivação excessiva, o torna objetivo, desprendido de palavras e formulações tortuosas. Deve-se ter em mente que o professor Rivail mostrou em sua obra — cerca de 21 volumes — um poder de objetividade, de concisão ainda não suficientemente estudado, antecipando-se aos progressos da linguagem atuais tanto da informática, quanto da linguística. O fato de escrever numa linguagem direta, limpa, inova mais uma vez, enriquecendo o conteúdo filosófico.

    Se acompanharmos o pensamento kardecista, não apenas nos livros fundamentais, mas ao longo das edições da “Revista Espírita”, haveremos de reconhecer a posição de Kardec como homem prático, jornalista, administrador, pesquisador, orador, líder, polemista, es¬critor, o que naturalmente não lhe poupava tempo para elucubrações excessivamente teóricas. No espaço de apenas 14 anos escreveu mais de 20 livros, incluindo as edições da “Revista Espírita”, que redigiu sozinho e desenvolveu uma atividade realmente exaustiva. Realizou, todavia, uma teorização sobre os fatos, de modo que não se perdessem os resultados das pesquisas e das observações.

    Flammarion chamou-lhe de “Bom Senso Encarnado”, mas negou-lhe o caráter de cientista. Todavia, com o desenvolvimento das ciências humanas, já não se pode negar a Kardec, também, esse título porque realizou, como Bozzano, embora em menor escala, é verdade, um árduo trabalho de pesquisa, observações pes¬soais e coleta de dados. Com todo esse material, deduziu um conjunto de ideias e fundamentos. Foi filósofo do real, da ação, da prática, apoiando-se em dados experimentais. Deduziu sobre os fundamentos morais do universo — refletindo sobre a natureza do homem, suas dimensões físico-espirituais, o processo evolutivo a que está submetido, sua imortalidade e seu destino. Especulou sobre o absoluto, Deus, como centro de interesse e equilíbrio do Universo.

    Mesmo nos livros que numa falsa visão cultural são chamado de “religiosos”, manteve essa postura filosófica. Tanto no “Evangelho Segundo o Espiritismo”, como no “O Céu e o Inferno”, que abordam temas da teologia, comportou-se de maneira coerente com sua visão filosófica e é sob este ângulo que examina, tanto a contribuição de Jesus de Nazaré, que libera dos aspectos místicos, para concentrar-se no conteúdo moral de seu ensino, quanto os aspectos da Jus¬tiça Divina, em “O Céu e o Inferno”.

    III

    Se Allan Kardec estruturou a Doutrina Espírita como uma filosofia moral, porque, contraditoriamente, adotou o tema “Fé raciocinada”? Se, como ele repetidas vezes afirmou, o Espiritismo é uma doutrina positiva, repudiando todo o misticismo, qual o motivo que o teria levado a mencionar a fé como uma condição importante para o homem?

    Mostramos que a estrutura filosófica do Espiritismo é discursiva-racional e que abrange tanto uma concepção do ser, como uma concepção do universo e, mais ainda, projeta-se como uma práxis, atuando no mundo para modificá-lo. Trata-se como se vê, de tentativa para sintetizar a angústia humana, convergindo, inevitavelmente, para o campo moral. Ora, as religiões sempre se colocaram como guardiãs da moralidade, embora, quase sempre, decaindo para um moralismo. Kardec não podia negligenciar o fato de que a moralidade é a meta principal do Espiritismo — embora enfocada sob uma visão libertadora. Daí o ter afirmado que o Espiritismo é forte por tocar os pontos principais das religiões: Deus, o espírito e as penas futuras. Chegou mesmo a tentar colocar o Espiritismo como o elo, a aliança entre a ciência e a religião.

    E aí se situa a sabedoria da proposta espírita. Não é uma postura inflexível porque é progressiva e isso lhe garante a mobilidade, abrindo-se para compreender as múltiplas formas de expressão do Espírito em sua caminhada evolutiva. E, nessa caminhada, a religião tem sido um fator marcante, embora nem sempre positivo, ao contrário, o que levou Kardec a lamentar que “infelizmente as religiões hão sido sempre instrumentos de do¬minação” (“A Gênese”, cap. I, item 8).

    No domínio da fé, temos uma atitude específica do Espírito. Ela é intuitiva, é a apreensão da totalidade, a germinação da certeza interna, surgida da vivência, dos valores. David Hume, filósofo inglês, definiu-a dessa forma: “a fé é muito mais um ato da parte afetiva de nossa natureza do que de sua parte pensante”.

    Ao postular a “fé raciocinada”, Kardec inseria um paradoxo, considerando as bases da filosofia espírita, chamando-nos à reflexão. Definindo essa contradição, Kardec afirma: “fé inabalável só o é a que pode encarar frente a frente a razão, em todas as épocas da humanidade” (“O Evangelho Segundo o Espiritismo”, tradução de Guillon Ribeiro - FEB). Quer dizer, ele afirma que a inabalavidade da fé depende da razão, ou seja, que a apreensão intuitiva da totalidade, como uma certeza interna, pode ser falsa, incorrer em erro de interpretação, se não passar pelo crivo da razão. Dessa atitude surge uma nova fé que seria motivadora, totalizadora, porque submetida ao juízo racional.

    Dentro dessa perspectiva, o Espiritismo se propõe a aliar a ciência e a religião, mas, todavia, não se reduz nem a uma nem a outra, mas transcende-as. Dialeticamente, aceitando a ciência e a religião como posições reais no conhecimento e vivência humanas, o Espiritismo procura transformá-las. De um lado, sendo ciência do Espírito, completa a ciência convencional cujo objeto é o conhecimento do meio físico como o único concreto e possível. De outro, destruindo o sobrenatural em que a religião se assenta, liberta o homem de um conceito estreito e falacioso da vida, propondo-se como filosofia moral, onde os con¬ceitos morais coexistem com a racionalidade e desataviados dos prejuízos do culto.

    Kardec rejeitou o fato de que o ho¬mem crer em Deus e orar se caracterizasse como um ato místico. Ao contrário, afirmou ser uma atitude positiva, decorrente da abertura que o Espiritismo, filosoficamente, promove. Logo, a fé que Kardec aborda é, sobretudo, saber, crença baseada na razão. E se estrutura como uma nova postura do homem perante a vida, pois que não nega o impulso da experiência interna na apreensão da totalidade, mas indica o caminho da crítica e da atividade construtiva, para que a fé não continue sendo contemplação e alienação místicas.

    IV

    Sendo o Espiritismo uma nova visão do homem e do mundo, caracteriza-se como um pensar filosófico, como uma filosofia estruturada na pesquisa do conhecimento, do ser e do universo. Tendo base experimental, seu filosofar é existencial, atua no mundo para modificá-lo. O pensamento kardecista — isto é, espírita — apresenta-se como um sistema de ideias claramente definido e eficien¬temente deduzido. Essa afirmativa nos leva à conclusão de que o professor Hipollyte Léon Denizard Rivail — Allan Kardec — pode ser conceituado como um autêntico filósofo, na lídima acepção do termo.

    Observação: No tocante às definições de filosofia, usamos expressões do livro “Teoria do Conhecimento”, do professor Johannes Hessen, 3a ediçã.o - Armênio Amado Editor, Coimbra - Portugal.

    Fonte: revista “A Reencarnação”, n º 401 - Ano L - outubro de 1984, órgão de divulgação da Federação Espírita do Rio Grande do Sul.

    Jaci Regis (1932-2010), psicólogo, jornalista, economista e escritor espírita, foi o fundador e presidente do Instituto Cultural Kardecista de Santos (ICKS), idealizador do Simpósio Brasileiro do Pensamento Espírita (SBPE), fundador e editor do jornal de cultura espírita “Abertura” e autor dos livros “Amor, Casamento & Família”, “Comportamento Espírita”, “Uma Nova Visão do Homem e do Mundo”, “A Delicada Questão do Sexo e do Amor”, “Novo Pensar - Deus, Homem e Mundo”, dentre outros