sexta-feira, 27 de julho de 2012

Denúncias de trabalho escravo envolvem grifes de Buenos Aires 0




Para quem reclama que a mídia só veicula denúncias de trabalho escravo na produção de roupas de grife quando elas ocorrem no Brasil (como se isso apagasse a nossa responsabilidade nesses casos): flagrantes recentes revelam que, assim como em São Paulo, Buenos Aires também vende roupas caras produzidas com a exploração de escravos. A matéria é de Daniel Santini, da Repórter Brasil, que foi à capital da Argentina para mostrar que o modelo adotado nas oficinas clandestinas de lá é bastante parecido com o que ocorreu aqui na produção de marcas como Gregory e Zara. Segue o texto.
Polícia protege loja em meio a protestos após denúncia de escravidão

“Trata-se de algo sistemático e não pontual. O mesmo modelo que existe no Brasil, existe aqui”, explica Gustavo Vera, da Fundação Alameda, organização que denunciou mais de 100 marcas nos últimos anos, incluindo casos que ganharam destaque, como o das grifes Soho e Cheeky, esta última ligada à Juliana Awada, esposa do prefeito de Buenos Aires, Maurício Macri.
Assim como nas oficinas clandestinas de São Paulo, os costureiros escravizados na Argentina, bolivianos em sua maioria, cumprem jornadas de mais de dez horas por dia, sem descansos semanais e em condições degradantes. Os locais de trabalho funcionam como habitação também, em um ambiente em que famílias são obrigadas a compartilhar quartos apertados, em uma confusão de máquinas, agulhas, linhas e crianças. São ambientes escuros, sem iluminação adequada para costurar, sem ventilação, sem nada. Em um contexto em que direitos trabalhistas como horas extras, férias ou descanso remunerado são ignorados, os trabalhadores são pagos por produção – e normalmente produzem sem parar.
As peças, vendidas a intermediários a preços baixos, acabam com etiquetas caras nas prateleiras das lojas mais luxuosas da cidade. “O pior é que, nas denúncias que fizemos, muitos ficaram chocados não com as condições degradantes, mas com o fato de vestidos e camisas comprados a preços caríssimos terem custado tão pouco na produção. As pessoas se sentem enganadas e isso provoca até mais revolta do que a escravidão em si em alguns casos”, diz Lucas Schaerer, da equipe de jornalismo investigativo da Alameda. As denúncias feitas pelo grupo, baseadas em apurações cuidadosas e registros detalhados, inclusive com o uso de câmaras ocultas, têm servido como subsídio para o combate à prática no país e que ajudado a explicitar a exploração degradante de pessoas.
Entre os problemas recorrentes nas oficinas clandestinas, estão os fios expostos em redes elétricas irregulares instaladas ao lado de estoques de tecidos, combinação que, não raro, resulta em incêndios com mortes. Foi em um deles que, em março de 2006, seis pessoas morreram, entre elas quatro crianças e uma mulher grávida que viviam no mesmo local em que trabalhavam, a oficina Luis Viale. A tragédia expôs as condições degradantes a que trabalhadores do setor têxtil estão submetidos e deu força para o combate à prática. O episódio é considerado emblemático para os que lutam contra o trabalho escravo no país.
Os mecanismos institucionais e legais para o combate ao trabalho escravo contemporâneo ainda estão sendo construídos na Argentina (leia especial com os principais documentos e leis de combate ao trabalho escravo na Argentina). Se no Brasil a fiscalização foi centralizada nos grupos móveis de combate ao trabalho tscravo, do Ministério do Trabalho e emprego, no país as ações ainda não foram unificadas e reúnem agentes do trabalho municipais e federais, representantes do poder judiciário e até a AFIP, órgão equivalente à Receita Federal brasileira, que tem tido papel importante em especial no combate ao tráfico de pessoas.
As ações de responsabilização das grandes marcas têm se baseado na combinação da Lei de Trabalho Domiciliar (Lei 12.1713 – artigos 4, 35 e 35, principalmente), que prevê a responsabilidade do contratante mesmo em casos de terceirização, e na Lei de Migração (Lei 25.871), que condena a exploração de estrangeiros. De acordo com María Ayelén Arcos, pesquisadora do curso de Antropologia da Universidade de Buenos Aires, muitos dos empresários flagrados tentam se eximir da responsabilidade argumentando que desconheciam as condições dos que vivem nas oficinas. Também ligada à Alameda, ela tem estudado como se organizam as redes envolvendo oficinas clandestinas na cidade e ressalta que assim como no Brasil, a Justiça têm considerado que existe sim responsabilidade direta, mesmo no caso de terceirização da produção.
Há casos em que, semelhante ao que acontece na Itália com bens de redes mafiosas, equipamentos caros como máquinas de costura especializadas foram confiscados e destinados a cooperativas de trabalhadores do setor. A escravidão está prevista no artigo 140 do Código Penal argentino. Fortalecem o combate e a prevenção a Lei de Trata de Personas (tráfico de pessoas, em espanhol), promulgada em 2008, e legislações locais, como a Lei de Assistências a Vítimas da Capital Federal (Buenos Aires). A Argentina também é signatária das Convenções 29 e 105 da Organização Internacional do Trabalho, que proíbem o trabalho escravo.

quinta-feira, 26 de julho de 2012

A solução de “um Estado e meio”

  Luiz Eça  no CORREIO DA CIDADANIA 

Ainda neste mês, uma comissão de estudiosos presidida pelo ex-juiz da Suprema Corte de Israel, Eduard Levy, apresentou um estudo ao Chefe do Governo sobre a questão palestina.

O estudo concluía que toda a Palestina, inclusive a Margem Oeste, integrava o Estado de Israel. Em conseqüência, a Margem Oeste não estaria sob “ocupação de Israel e os assentamentos judaicos seriam todos legais, mesmo aqueles construídos sem permissão das autoridades.

Netanyahu recebeu o documento, agradeceu e informou que o submeteria a um fórum que criara especificamente para este fim.

Diz a imprensa local que ele demonstrou certo desconforto. Certamente, porque a ocasião não era adequada, pois a tese do documento contrariava as posições dos EUA e Hillary Clinton estava para chegar, em visita oficial.

O conteúdo de forma alguma poderia contrariar o pensamento de Bibi, já que ele próprio escolheu os três membros da comissão Levy, todos eles notoriamente favoráveis aos assentamentos.

O juiz Levy, por exemplo, foi o único membro da Suprema Corte que, em 2005, se opôs à decisão de retirar os assentamentos de Gaza.

Há fortes suspeitas de que o estudo da “Comissão Levy” representa a justificação ideológica do plano de Bibi para resolver a questão da Palestina.

Não há dúvida de que ele é a favor da existência de dois Estados, sim, como o mundo inteiro quer. Mas não nos limites de 1967, como a ONU estabeleceu, que ele não aceita, pois implica criar, ao lado do Estado de Israel, um Estado palestino em toda a Margem Oeste (também chamada Cisjordânia), onde estão os assentamentos israelenses. Sua solução é muito diferente.

Já ficou claro que Netanyahu não pretende renunciar aos assentamentos da Margem Oeste; do contrário, já teria concordado em interromper sua expansão, satisfazendo assim as exigências da Autoridade Palestina para iniciar negociações de paz.

O que ele tem feito é exatamente o oposto: estimular a criação de novos assentamentos judaicos e favorecer a expulsão de palestinos da chamada Área “C”.

Convém aqui explicar que o governo de Tel-aviv dividiu a Cisjordânia, ou Margem Oeste, em áreas “A”, “B” e “C”, conforme os acordos de Oslo.

Na Área A, a administração civil e de segurança cabe à Autoridade Palestina. Na Área B, administrada pela Autoridade Palestina, a segurança é de responsabilidade israelense. E na Área C, tanto a administração civil quanto a segurança cabem a Israel. Toda a região está sob o controle do exército de Israel.

A Área C é a maior e mais importante, pois ocupa 62% do território, incluindo 90% do vale do Rio Jordão, onde estão os principais aqüíferos do país e as melhores terras. Os assentamentos judaicos localizam-se na Área C.

Enquanto eles são instalados com apoio oficial, os cidadãos palestinos encontram as maiores dificuldades para receberem permissão de fazer construções na região.

A administração civil habilitou apenas 1% das terras para empreendimentos de palestinos, além de promover demolições sistemáticas de suas casas e restrições ao uso da terra, da água e às construções, o que os empobrece. O que levam muitos deles a migrarem.

Recentemente, a União Européia fez fortes críticas a Israel pela mudança forçada de palestinos da Área C para cidades de outras partes da Margem Oeste.

É evidente o objetivo de reduzir ao máximo a população palestina, em favor do aumento da população israelense. Que vem tendo êxito: o número de palestinos que vivem na Área C encolheu para 150 mil, ou 6% da população total da Margem Oeste.

Novos fatos reforçam a tese de que o governo de Tel-aviv não pretende abandonar a Área C e seus assentamentos.

Na semana passada, o governo começou a fazer exigências proibitivas para impedir a ação da OCHA (Agência da ONU), que vem apoiando os palestinos na exploração de atividades agrícolas.

Ao mesmo tempo, foi anunciado que a polícia de imigração estava autorizada a expulsar ativistas estrangeiros da Margem Oeste, no dia em que o exército prendeu estrangeiros, inclusive um repórter do New York Times, numa passeata de protesto.

Enquanto de um lado reprimia quem se opunha à expulsão dos palestinos da Área C, de outro lado o governo fundou a Universidade de Ariel – a primeira universidade num assentamento – para dar maior legitimidade à permanência dos assentamentos e do domínio israelense da região.

No entanto, esta iniciativa foi condenada pelo Conselho dos Presidentes das Universidades de Israel por serem os assentamentos considerados ilegais pelas leis internacionais.

Mais de mil acadêmicos assinaram uma moção de protesto. Seu autor, o governador do Instituto Weissman de Ciências, declarou: “Somos contra a tentativa do governo de Israel de usar instituições acadêmicas para promover uma agenda política, à qual somos muito contrários, que é o estabelecimento de assentamentos e a ocupação como algo permanente em Israel”.

O programa de expansão de assentamentos, cuja interrupção Bibi recusa-se a aceitar, combinado com ações que implicam na expulsão da Margem Oeste de habitantes palestinos e entidades que os defendem, alimentam sérias dúvidas sobre as verdadeiras intenções do governo.

De acordo com Jeff Halper, chefe do Comitê Israelense Contra Demolição de Casas, o relatório da Comissão Levy, cujos membros ele escolheu a dedo, estaria preparando terreno para a anexação da Área C por Israel.

Manifesto de importantes líderes judaico-americanos contestaram esse relatório, afirmando que caso Israel não fosse considerado “ocupante” da Margem Oeste seria obrigado a anexar seu território.

Com isso, a população árabe da Margem Oeste, somada aos árabes do Estado de Israel, ficaria próxima da população israelense. Em breve, poderia ultrapassá-la, ameaçando o caráter “judeu” do Estado de Israel.

Estaria fora de questão a hipótese de negar cidadania aos árabes, pois isso configuraria “apartheid”, o que seria repudiado até pelos EUA (o voto negro pesa muito nas eleições de lá).

A solução seria anexar apenas os 62% da Margem Oeste, correspondente à Área C, onde está a maior parte da água e das melhores terras da região.

Como ali só há 150 mil árabes, somando-se a eles o número de árabe-israelenses, resultaria bem menor do que o total de judeus em Israel, que continuaria predominante.

O novo Estado da Palestina poderia ficar com os 38% restantes do território da Margem Oeste. Menos da metade.

Além de lá haver carência de água, o novo Estado não teria exército, nem controlaria a fronteira e o espaço aéreo, estando ainda sujeito a intervenções pelo exército israelense (conforme exigências anteriores de Israel, aprovadas por Obama). E a integração de Jerusalém estaria fora de questão.

Seria um meio Estado, necessitando de vultosos recursos internacionais para poder se viabilizar.
Esta solução de “um Estado e meio” não foi ainda proposta explicitamente por ninguém.

Certamente, seria combatida pelos palestinos, tanto do Fatah quanto do Hamas. Dificilmente a comunidade internacional, inclusive os EUA, a aceitaria.

No entanto, continuando os assentamentos a crescerem e a população árabe da Área C a diminuir, enquanto as negociações, sempre apontadas como solução, jamais começam, dentro de alguns anos o quadro pode mudar.

Teremos uma Área C quase toda judaica, com seus habitantes exigindo o direito até democrático de escolher a qual país querem pertencer.

O relatório Levy poderá fornecer um simulacro legal ao seu desejo.


Luiz Eça é jornalista.
Website: Olhar o Mundo.

Impasse deve continuar na greve das universidades federais



Por Juliana Sada

Foi somente após dois meses, e com a quase totalidade de universidades federais em greve, que o governo federal dispôs-se a abrir negociações com os docentes. A data marcada: uma sexta-feira 13. Confirmando o suposto mau presságio, a reunião foi considerada infrutífera pelos docentes. Mais do que isso, o governo fez uma proposta considerada, pelo movimento, um retrocesso em vários pontos.
A proposta foi, então, apresentada às bases do movimento. De acordo com o Andes-SN (sindicato que representa os docentes), foram realizadas 58 assembleias gerais que rejeitaram a proposta do governo e reafirmaram a continuidade da greve. As negociações tiveram continuidade nesta segunda-feira, 23, com a apresentação da posição dos docentes, com destaques para pontos inaceitáveis, e a formulação de 13 itens que devem ser levados em consideração para a continuidade das negociações.
Já no dia seguinte houve uma nova reunião e o governo fez alguns ajustes em sua proposta, aumentando a perspectiva de reajuste salarial para parte dos professores e “empurrando” alguns pontos polêmicos de sua proposta para a definição em um Grupo de Trabalho que reuniria representantes dos docentes e do governo. Durante esta semana ocorrerão novas assembleias de base e uma nova reunião foi marcada para quarta-feira, dia 1. As primeiras plenárias já demonstram uma provável rejeição da proposta, como aconteceu nas universidades federais da Bahia, Uberlândia, Triângulo Mineiro, Paraíba e Pelotas.

Carreira desestruturada
 
O governo, entretanto, não discute o que de fato está sendo reivindicado pelos grevistas: a reestruturação da carreira dos docentes federais. Desde 2011, o governo instalou junto aos professores um grupo de trabalho para debater a questão. Mas os trabalhos pouco avançaram e então a greve acabou deflagrada. Entre outros pontos, os docentes desejam o fim de obstáculos para ascensão na carreira; a diminuição de sub categorias de professores; a determinação de porcentuais fixos para variação salarial entre um estágio da carreira e outro; o fim da “retribuição por titulação” no contracheque, e que tal gratificação seja incorporada ao vencimento básico; e que seja reservado a cada universidade a definição dos mecanismos de avaliação do trabalho docente.
O vice-presidente do Andes-SN, Luiz Henrique Schuch, avalia que na proposta do governo “a desestruturação [da carreira] continua, sem nenhuma relação lógica na evolução entre os níveis e as classes, os regimes de trabalhos e as titulações, desconstituindo direitos, e para a maioria dos docentes as alterações salariais são apenas nominais, pois não acompanham sequer a inflação”.
De maneira mais ampla, o professor da Universidade Federal do ABC (UFABC) Giorgio Romano avaliou, em entrevista coletiva juntamente com docentes da Unifesp, que “se o Brasil realmente quer avançar nesse projeto desenvolvimentista tem que valorizar o ensino superior” e para isso é necessário “estruturar uma carreira para que o professor alcance um nível de excelência”.

Qualidade x quantidade
 
Outro ponto de reivindicação dos docentes é uma expansão com qualidade da educação superior. Durante o governo Lula foram criadas 14 novas universidades federais e as já existentes foram ampliadas com novos campi. Entretanto, as condições de ensino e trabalho não receberam a devida atenção. Há faculdades funcionando em sedes provisórias, outras unidades não possuem bibliotecas ou laboratórios suficientes. Em algumas universidades que funcionam em diferentes campi, não há transporte entre as unidades. Em outros casos, faltam restaurantes e moradias para os estudantes.
Apesar de a precariedade de infraestrutura ser presente em grande parte das unidades da expansão, universidades mais antigas também sofrem com o sucateamento de suas instalações. É o caso do campus de São Paulo, da Unifesp, que abriga a Escola Paulista de Medicina e outros cursos da área de saúde, criada na década de 30, e que tem o restaurante universitário funcionando em espaço provisório, após um incêndio ter atingido um prédio da instituição em janeiro.
A precariedade de muitas instituições levou estudantes de diversas federais a entrarem em greve, apoiando os docentes e reivindicando melhores condições de estudo. Os servidores técnico-administrativos das universidades federais também estão em uma paralisação nacional, a categoria reivindica melhorias na carreira e aumento salarial. Até agora o governo não abriu negociações com estas categorias.

Portas fechadas
 
A postura do governo frente às greves, que já atingem quase 30 categorias do serviço público federal, tem sido de intransigência. O governo ameaçou suspender os salários de 14 setores e o ministro da educação Aloisio Mercadante chegou a afirmar que não negociaria com grevistas. Ao invés de enfraquecer o movimento, a postura do governo tem acirrado os ânimos. É o que relata Giorgio Romano, da UFABC, que aponta que a última plenária de docentes “foi a maior assembleia já realizada e o clima era de indignação”. A opinião é compartilhada por Marian Ávila de Dias e Lima, da Unifesp, que vê uma “crescente adesão ao movimento” e afirma que o sentimento dos professores é de que a “educação é tratada com descaso” pelo governo.
Outro ponto muito questionado pelos docentes é o fato de as reuniões serem conduzidas pelo Ministério de Orçamento, Planejamento e Gestão tendo o Ministério da Educação como coadjuvante. Na visão do professor Denílson Cordeiro, da Unifesp, a “educação do país é tratada como mais um item da questão orçamentária”.
Ainda com a lógica orçamentária prevalecendo, os docentes escutaram do ministro Mercadante que “não há margem” para ir além da proposta já apresentada. Para a professora Márcia Aparecida Jacomini, também da Unifesp, é uma questão de opção política do governo e cita o recente perdão de uma dívida de R$15 bilhões ao setor da educação privada em troca de bolsas de estudo nos próximos anos: “a questão é se o governo está disposto a investir na educação pública”.

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Síria, uma questão democrática?

  Wladimir Pomar no CORREIO DA CIDADANIA   

Já não parece haver dúvidas de que a Síria está envolvida numa profunda e destrutiva guerra civil. Como também não parece haver qualquer dúvida de que toda a grande mídia brasileira (e também parte considerável da pequena) tem como única fonte de informações a chamada oposição síria.

Diante da constante repetição de pretensos números exatos de mortos e dos massacres, mais tarde colocados em dúvida por outras fontes informativas, alguns órgãos de imprensa começaram a se preocupar em colocar os dados no condicional, numa tentativa de pelo menos salvar a face, caso se vejam diante da publicação de uma notícia comprovadamente falsa.

Por outro lado, a insinuação constantemente martelada de que os acontecimentos na Síria têm por base uma revolta popular e democrática contra uma ditadura prolongada empanou a visão de vários setores da população brasileira, que se sentem incomodados em apoiarem o governo sírio contra as tentativas dos Estados Unidos e de outras potências ocidentais de imporem sanções, ou mesmo intervirem nos problemas internos daquele país. Para esses setores, seria necessário ter em conta a questão democrática que envolve a guerra civil síria.

É evidente que o governo sírio de Assad é uma ditadura hereditária, embora cumpra vários ritos democráticos. No entanto, supor que o que está em jogo na Síria é uma disputa entre democracia e ditadura pode representar uma miopia considerável sobre o que realmente está sendo disputado naquela região. Basta ver que a Liga Árabe, tendo à frente a Arábia Saudita, é uma das principais promotores da oposição síria, fornecendo a ela combatentes e armas. E, que se saiba, nenhum dos países que compõem a Liga Árabe, muito menos a Arábia Saudita, se destaca por ser algum tipo de democracia, o mínimo que seja.

Assim, na melhor das hipóteses, estamos diante da luta entre diferentes ditaduras, não havendo qualquer evidência real, a não ser pela propaganda, de que estejamos diante de forças democráticas combatendo contra forças ditatoriais e, portanto, de que a questão democrática deva ser óbice para uma posição mais firme diante do que verdadeiramente está em disputa naquela região. Isto é, da tentativa, nem sempre velada, do esforço imperial norte-americano de reestruturar suas forças de apoio no Oriente Médio, desorganizadas pela primavera árabe, em especial no Egito.

Os Estados Unidos buscam recuperar a hegemonia através da nova estratégia de combinar sua ação diplomática e seu fornecimento de armas com a ação de combatentes “aliados”, que marotamente elevam à condição de “combatentes pela democracia”. Isso deu certo na Líbia, que continua tão longe da democracia quanto estava na época de Kadafi, e em certa medida está tendo sucesso na Síria. Aqui, com muito maior dificuldade, seja porque o governo sírio conta com um apoio popular mais amplo do que Kadafi, seja porque a Rússia e a China se deram conta de que a conquista da Síria pela Liga Árabe não tem como objetivo parar aí, mas preparar as condições para atacar o Irã.

Portanto, além de não haver qualquer questão democrática realmente envolvida, a ação combinada dos Estados Unidos e de suas ditaduras aliadas contra a Síria tem como alvo principal o Irã, que o governo norte-americano continua considerando um dos “eixos do mal”, e não desistiu de submeter a qualquer custo. Os falcões estadunidenses, desse modo, operam para superar a sua crise sistêmica através do velho e ultrapassado método das guerras, que pode envolver a humanidade numa nova conflagração mundial.

Diante disso, as forças democráticas e o governo brasileiro não deveriam vacilar na oposição à trama do governo norte-americano e de seus aliados ditatoriais do Oriente Médio. Deveriam contrapor-se a toda e qualquer tentativa de interferir nos assuntos internos da Síria, ao envio de armas e combatentes para a chamada “oposição” síria e a qualquer bloqueio ou invasão de tropas estrangeiras contra aquele país. Se as ditaduras árabes derrotarem o governo Assad, implantarem sua própria ditadura pró-americana naquele país, e os planos dos falcões norte-americanos contra o
Irã se concretizarem, os danos à questão democrática em todo o mundo serão muito mais profundos do que o possível sucesso da resistência do governo sírio contra sua oposição. E o arrependimento, se houver, poderá ser inócuo.

Leia também:

Wladimir Pomar é escritor e analista político.

terça-feira, 24 de julho de 2012

EUGENIO SALES: O CARDEAL DA DITADURA


 
Por José Ribamar Bessa Freire

O tratamento que a mídia deu à morte do cardeal dom Eugênio Sales, ocorrida na última segunda-feira, com direito à pomba branca no velório, me fez lembrar o filme alemão “Uma cidade sem passado”, de 1990, dirigido por Michael Verhoven. Os dois casos são exemplos típicos de como o poder manipula as versões sobre a história, promove o esquecimento de fatos vergonhosos, inventa despudoradamente novas lembranças e usa a memória, assim construída, como um instrumento de controle e coerção.

Comecemos pelo filme, que se baseia em fatos históricos. Na década de 1980, o Ministério da Educação da Alemanha realiza um concurso de redação escolar, de âmbito nacional, cujo tema é “Minha cidade natal na época do III Reich”. Milhares de estudantes se inscrevem, entre eles a jovem Sônia Rosenberger, que busca reconstituir a história de sua cidade, Pfilzing – como é denominada no filme – considerada até então baluarte da resistência antinazista.

Mas a estudante encontra oposição. As instituições locais de memória – o arquivo municipal, a biblioteca, a igreja e até mesmo o jornal Pfilzinger Morgen – fecham-lhe suas portas, apresentando desculpas esfarrapadas. Ninguém quer que uma “judia e comunista” futuque o passado. Sônia, porém, não desiste. Corre atrás. Busca os documentos orais. Entrevista pessoas próximas, familiares, vizinhos, que sobreviveram ao nazismo. As lembranças, contudo, são fragmentadas, descosturadas, não passam de fiapos sem sentido.

A jovem pesquisadora procura, então, as autoridades locais, que se recusam a falar e ainda consideram sua insistência como uma ameaça à manutenção da memória oficial, que é a garantia da ordem vigente. Por não ter acesso aos documentos, Sônia perde os prazos do concurso. Desconfiada, porém, de que debaixo daquele angu tinha caroço – perdão, de que sob aquele chucrute havia salsicha – resolve continuar pesquisando por conta própria, mesmo depois de formada, casada e com filhos, numa batalha desigual que durou alguns anos.

Hostilizada pelo poder civil e religioso, Sônia recorre ao Judiciário e entra com uma ação na qual reivindica o direito à informação. Ganha o processo e, finalmente, consegue ingressar nos arquivos. Foi aí, no meio da papelada, que ela descobriu, horrorizada, as razões da cortina de silêncio: sua cidade, longe de ter sido um bastião da resistência ao nazismo, havia sediado um campo de concentração. Lá, os nazistas prenderam, torturaram e mataram muita gente, com a cumplicidade ou a omissão de moradores, que tentaram, depois, apagar essa mancha vergonhosa da memória, forjando um passado que nunca existiu.

Os documentos registraram inclusive a prisão de um judeu, denunciado na época por dois padres, que no momento da pesquisa continuavam ainda vivos, vivíssimos, tentando impedir o acesso de Sônia aos registros. No entanto, o mais doloroso, era que aqueles que, ontem, haviam sido carrascos, cúmplices da opressão, posavam, hoje, como heróis da resistência e parceiros da liberdade. Quanto escárnio! Os safados haviam invertido os papéis. Por isso, ocultavam os documentos.

Deus tá vendo

E é aqui que entra a forma como a mídia cobriu a morte do cardeal dom Eugênio Sales, que comandou a Arquidiocese do Rio, com mão forte, ao longo de 30 anos (1971-2001), incluindo os anos de chumbo da ditadura militar. O que aconteceu nesse período? O Brasil já elegeu três presidentes que foram reprimidos pela ditadura, mas até hoje, não temos acesso aos principais documentos da repressão.

Se a Comissão Nacional da Verdade, instalada em maio último pela presidente Dilma Rousseff, pudesse criar, no campo da memória, algo similar à operação “Deus tá vendo”, organizada pela Policia Civil do Rio Grande do Sul, talvez encontrássemos a resposta. Na tal operação, a Polícia prendeu na última quinta-feira quatro pastores evangélicos envolvidos em golpes na venda de automóveis. Seria o caso de perguntar: o que foi que Deus viu na época da ditadura militar?

Tem coisas que até Ele duvida. Tive a oportunidade de acompanhar a trajetória do cardeal Eugênio Sales, na qualidade de repórter da ASAPRESS, uma agência nacional de notícias arrendada pela CNBB em 1967. Também, cobri reuniões e assembleias da Conferência dos Bispos para os jornais do Rio – O Sol, O Paiz e Correio da Manhã, quando dom Eugênio era Arcebispo Primaz de Salvador. É a partir desse lugar que posso dar um modesto testemunho.

Os bispos que lutavam contra as arbitrariedades eram Helder Câmara, Waldir Calheiros, Cândido Padin, Paulo Evaristo Arns e alguns outros mais que foram vigiados e perseguidos. Mas não dom Eugênio, que jogava no time contrário. Um dos auxiliares de dom Helder, o padre Henrique, foi torturado até a morte em 1969, num crime que continua atravessado na garganta de todos nós e que esperamos seja esclarecido pela Comissão da Verdade. Padres e leigos foram presos e torturados, sem que escutássemos um pio de protesto de dom Eugênio, contrário à teologia da libertação e ao envolvimento da Igreja com os pobres.

O cardeal Eugenio Sales era um homem do poder, que amava a pompa e o rapapé, muito atuante no campo político. Foi ele um dos inspiradores das “candocas” – como Stanislaw Ponte Preta chamava as senhoras da CAMDE, a Campanha da Mulher pela Democracia. As “candocas” desenvolveram trabalhos sociais nas favelas exclusivamente com o objetivo de mobilizar setores pobres para seus objetivos golpistas. Foram elas, as “candocas”, que organizaram manifestações de rua contra o governo democraticamente eleito de João Goulart, incluindo a famigerada “Marcha da família com Deus pela liberdade”, que apoiou o golpe militar, com financiamento de multinacionais, o que foi muito bem documentado pelo cientista político René Dreifuss, em seu livro “1964: A Conquista do Estado” (Vozes, 1981). Ele teve acesso ao Caixa 2 do IPES/IBAD.

Nós, toda a torcida do Flamengo e Deus que estava vendo tudo, sabíamos que dom Eugênio era, com todo o respeito, o cardeal da ditadura. Se não sofro de amnésia – e não sofro de amnésia ou de qualquer doença neurodegenerativa – posso garantir que na época ele nem disfarçava, ao contrário manifestava publicamente orgulho do livre trânsito que tinha entre os militares e os poderosos.

“Quem tem dúvidas…basta pesquisar os textos assinados por ele no JB e n’O Globo” – escreve a jornalista Hildegard Angel, que foi colunista dos dois jornais e avaliou assim a opção preferencial do cardeal:

“A Igreja Católica, no Rio, sob a égide de dom Eugenio Salles, foi cada vez mais se distanciando dos pobres e se aproximando, cultivando, cortejando as estruturas do poder. Isso não poderia acabar bem. Acabou no menor percentual de católicos no país: 45,8%…”

Portões do Sumaré

Por isso, a jornalista estranhou – e nós também – a forma como o cardeal Eugenio Sales foi retratado no velório pelas autoridades. Ele foi apresentado como um combatente contra a ditadura, que abriu os portões da residência episcopal para abrigar os perseguidos políticos. O prefeito Eduardo Paes, em campanha eleitoral, declarou que o cardeal “defendeu a liberdade e os direitos individuais”. O governador Sérgio Cabral e até o presidente do Senado, José Sarney, insistiram no mesmo tema, apresentando dom Eugênio como o campeão “do respeito às pessoas e aos direitos humanos”.

Não foram só os políticos. O jornalista e acadêmico Luiz Paulo Horta escreveu que dom Eugênio chegou a abrigar no Rio “uma quantidade enorme de asilados políticos”, calculada, por baixo, numa estimativa do Globo, em “mais de quatro mil pessoas perseguidas por regimes militares da América do Sul”. Outro jornalista, José Casado, elevou o número para cinco mil. Ou seja, o cardeal era um agente duplo. Publicamente, apoiava a ditadura e, por baixo dos panos, na clandestinidade, ajudava quem lutava contra. Só faltou arranjarem um codinome para ele, denominado pelo papa Bento XVI como “o intrépido pastor”.

Seria possível acreditar nisso, se o jornal tivesse entrevistado um por cento das vítimas. Bastaria 50 perseguidos nos contarem como o cardeal com eles se solidarizou. No entanto, o jornal não dá o nome de uma só – umazinha – dessas cinco mil pessoas. Enquanto isto não acontecer, preferimos ficar com o corajoso depoimento de Hildegard Angel, cujo irmão Stuart, foi torturado e morto pelo Serviço de Inteligência da Aeronáutica. Sua mãe, a estilista Zuzu Angel, procurou o cardeal e bateu com a cara na porta do palácio episcopal.

Segundo Hilde, dom Eugênio “fechou os olhos às maldades cometidas durante a ditadura, fechando seus ouvidos e os portões do Sumaré aos familiares dos jovens ditos “subversivos” que lá iam levar suas súplicas, como fez com minha mãe Zuzu Angel (e isso está documentado)”. Ela acha surpreendente que os jornais queiram nos fazer acreditar “que ocorreu justo o contrário!”, como no filme “Uma cidade sem passado”.

Mas não é tão surpreendente assim. O texto de Hildegard menciona a grande habilidade, em vida, de dom Eugenio, em “manter ótimas relações com os grandes jornais, para os quais contribuiu regularmente com artigos”. As azeitadas relações com os donos dos jornais e com alguns jornalistas em postos-chave continuaram depois da morte, como é possível constatar com a cobertura do velório. A defesa de dom Eugênio, na realidade, funciona aqui como uma autodefesa da mídia e do poder.

Os jornais elogiaram, como uma virtude e uma delicadeza, o gesto do cardeal Eugenio Sales que cada vez que ia a Roma levava mamão-papaia para o papa João Paulo II, com o mesmo zelo e unção com que o senador Alfredo Nascimento levava tucumã já descascado para o café da manhã do então governador Amazonino Mendes. São os rituais do poder com seus rapapés.

“Dentro de uma sociedade, assim como os discursos, as memórias são controladas e negociadas entre diferentes grupos e diferentes sistemas de poder. Ainda que não possam ser confundidas com a “verdade”, as memórias têm valor social de “verdade” e podem ser difundidas e reproduzidas como se fossem “a verdade” – escreve Teun A. van Dijk, doutor pela Universidade de Amsterdã.

A “verdade” construída pela mídia foi capaz de fotografar até “a presença do Espírito Santo” no funeral. Um voluntário da Cruz Vermelha, Gilberto de Almeida, 59 anos, corretor de imóveis, no caminho ao velório de dom Eugênio, passou pelo abatedouro, no Engenho de Dentro, comprou uma pomba por R$ 25 e a soltou dentro da catedral. A ave voou e posou sobre o caixão: “Foi um sinal de Deus, é a presença do Espírito Santo” – berraram os jornais. Parece que vale tudo para controlar a memória, até mesmo estabelecer preço tão baixo para uma das pessoas da Santíssima Trindade. É muita falta de respeito com a fé das pessoas.

“A mídia deve ser pensada não como um lugar neutro de observação, mas como um agente produtor de imagens, representações e memória” nos diz o citado pesquisador holandês, que estudou o tratamento racista dispensado às minorias étnicas pela imprensa europeia. Para ele, os modos de produção e os meios de produção de uma imagem social sobre o passado são usados no campo da disputa política.

Nessa disputa, a mídia nos forçou a fazer os comentários que você acaba de ler, o que pode parecer indelicadeza num momento como esse de morte, de perda e de dor para os amigos do cardeal. Mas se a gente não falar agora, quando então? Stuart Angel e os que combateram a ditadura merecem que a gente corra o risco de parecer indelicado. É preciso dizer, em respeito à memória deles, que Dom Eugênio tinha suas virtudes, mas uma delas não foi, certamente, a solidariedade aos perseguidos políticos para quem os portões do Sumaré, até prova em contrário, permaneceram fechados. Que ele descanse em paz!

P.S: O jornalista amazonense Fábio Alencar foi quem me repassou o texto de Hildegard Angel, que circulou nas redes sociais. O doutor Geraldo Sá Peixoto Pinheiro, historiador e professor da Universidade Federal do Amazonas, foi quem me indicou, há anos, o filme “Uma cidade sem passado”. Quem me permitiu discutir o conceito de memória foram minhas colegas doutoras Jô Gondar e Vera Dodebei, organizadoras do livro “O que é Memória Social” (Rio de Janeiro: Contra Capa/ Programa de Pós- Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2005). Nenhum deles tem qualquer responsabilidade sobre os juízos por mim aqui emitidos.

* José Ribamar Bessa Freire e professor, coordena o Programa de Estudos dos Povos Indígenas (UERJ) e pesquisa no Programa de Pós-Graduação em Memória Social (UNIRIO)

Mídia tenta intimidar Lula e o PT para proteger Serra da CPI



Na semana passada, este blogueiro participou de um lauto almoço em que o prato principal foi a CPI do Cachoeira. O repasto veio com um ingrediente especial: picadinho de José Serra ensopado com molho de Paulo Preto e Delta.
O que posso relatar é que vai se tornando inevitável que a CPI se debruce sobre os maiores contratos da Delta em todo país, os contratos de São Paulo, os quais estão sob escrutínio do Ministério Público.
A ocultação do escândalo pela mídia, aliás, é criminosa.  Um escândalo dessas proporções não aparece em parte alguma devido ao envolvimento de alguns veículos que, inclusive, estão cada vez mais próximos de ser acusados.
A convocação de Serra seria, também, um desastre eleitoral para a sua cambaleante candidatura a prefeito de São Paulo, recentemente ferida de morte pela crescente desmoralização da administração Gilberto Kassab.
É nesse contexto que entra Roberto Jefferson, o golden boy da mídia tucana, o patrono de toda a sua cruzada contra o PT desencadeada em meados da década passada e que até hoje constitui a grande aposta da oposição para ao menos se manter viva.
Jefferson, que teve seu mandato de deputado cassado por não ter conseguido comprovar a existência do mensalão e que, à época de sua denúncia, inocentou Lula, agora muda a versão e tenta envolver o ex-presidente acusando-o de ser o mentor de tudo.
A acusação de Jefferson está sendo fermentada pela mídia apesar de ser um nada, inverossímil e descartável, pois, à época da denúncia do mensalão, a Polícia Federal e todos os órgãos de controle investigaram Lula exaustivamente e nada encontraram.
A denúncia contra Lula é tão débil que nem a peça delirante do ex-procurador-geral da República Antonio Fernando de Souza, construída exclusivamente sobre suposições, ousou sequer se aproximar do então presidente.
Todavia, como se sabe, o mundo midiático não precisa de fatos para construir suas campanhas difamatórias. É incontável o contingente de acusados pela mídia tucana que depois foram inocentados pela Justiça, mas que foram punidos antes do julgamento.
Um dos exemplos mais candentes é o ex-ministro do Esporte Orlando Silva, literalmente chacinado pela mídia e contra quem a Justiça nada encontrou que justificasse a sua demissão além das opiniões de pistoleiros midiáticos.
Como de costume, portanto, não faltaram esses pistoleiros de Serra na mídia a saírem disparando contra Lula por conta de uma declaração mal-explicada e sem qualquer elemento probatório, amparada apenas nas palavras vazias de Jefferson.
Pelo que sabe este blogueiro, porém, o esforço midiático é vão. O envolvimento de Serra e de outros paulistas no escândalo do Cachoeira, serão inevitáveis. A própria oposição, diante de fatos que ainda vão se tornar públicos, não terá como sequer reclamar.
O mês de agosto de 2012, assim, ficará marcado como um dos períodos mais conturbados da história política recente do país. Globo, Folha, Estadão e Veja já posicionaram seus principais pistoleiros para abrirem guerra contra Lula e o PT a partir da semana que vem.
Apesar do noticiário massacrante, porém, o fato é que a direita midiática está às portas de descobrir que o que começará a fazer a partir de agosto já era esperado e que, por conta disso, seus alvos se prepararam muito bem.
Aguardem.

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Pedro Abramovay: “Usuário pobre está sendo tratado como traficante”


Advogado foi demitido de Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas ao defender penas alternativas para pequenos traficantes | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Felipe Prestes no SUL21

O advogado Pedro Abramovay foi secretário nacional de Justiça durante o Governo Lula, mas sua atuação chamou atenção do grande público no início do Governo Dilma. Convidado pela presidenta para ocupar a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas, ele foi demitido algumas semanas depois, após o jornal O Globo ter publicado uma entrevista na qual ele teria defendido penas alternativas para pequenos traficantes. “Na entrevista eu não usei o termo “pequenos traficantes”, porque não é disto que estamos falando. Estamos falando muito mais de usuários que de traficantes. Não é uma fronteira muito clara, mas estamos falando, sobretudo, de usuários”, explica.
Agora, Abramovay continua defendendo mudanças na legislação antidrogas do país à frente do projeto Banco de Injustiças, que tem como objetivo mostrar que muitos usuários têm sido classificados como traficantes e presos equivocadamente. “O usuário pobre está sendo classificado como traficante e isto é uma injustiça brutal”.

O Sul21 conversou com o advogado durante o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, realizado em Porto Alegre na semana passada. Abramovay falou sobre vários temas relacionados às drogas, como a proposta de José Mujica, de que o governo uruguaio plante maconha e forneça determinadas quantidades aos usuários.
“Estamos em uma política de produção e reprodução da dor e do sofrimento. É uma política que não soluciona nenhum dos problemas que a droga causa”

Sul21 – Há organizações, o Banco de Injustiças entre elas, apontando que a nova legislação sobre drogas tem causado uma série de situações injustas. Que situações são estas?

Pedro Abramovay – A lei de 2006 disse que não cabe prisão para o consumidor e determinou penas altas para o traficante. Mas como ela não define quem é o consumidor e quem é o traficante, tem uma área cinza entre o consumidor e o traficante – que vai desde o consumidor até a pessoa que, eventualmente, vendeu droga para sustentar seu uso – que passou a ir para a cadeia. Se a gente olhar quem está sendo preso no Brasil hoje, 60% eram réus primários, com pequeníssimas quantidades, estavam sozinhos quando presos e desarmados. Este não é o perfil do traficante, é um perfil muito mais próximo do usuário. Só que são pessoas pobres – 80% destas pessoas só tinha até 1º grau completo. O usuário pobre está sendo classificado como traficante e isto é uma injustiça brutal.
"Se a gente olhar quem está sendo preso no Brasil hoje, 60% eram réus primários, com pequenas quantidades, estavam sozinhos quando presos e desarmados. Este não é o perfil do traficante" | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – O senhor falou na palestra sobre uma série de arbitrariedades que estariam sendo cometidas em nome da Guerra às Drogas. Como está ocorrendo isto?

Pedro Abramovay – A lei de drogas fala que a pessoa tem que esperar o julgamento presa. Então, se você mata alguém, pode esperar em liberdade, mas se você é acusado de tráfico de drogas você tem que ficar preso até ser julgado. O Supremo já disse que isto é inconstitucional, mas muitos juízes continuam descumprindo esta decisão. No Banco de Injustiças, há o caso de uma senhora de 70 anos que foi presa, porque a polícia chegou na casa dela e encontrou crack que era do filho dela. Ela ficou três meses na prisão, porque tinha que aguardar julgamento, até perceberem que não tinha nada a ver com aquilo. Quem devolve este tempo de vida para ela? Ela ficou deprimida, foi internada. Este tipo de injustiça não é pontual. Está acontecendo o tempo inteiro, com pessoas pobres, sobretudo. Estamos em uma política de produção e reprodução da dor e do sofrimento. É uma política que não soluciona nenhum dos problemas que a droga causa, que são muitos, e agrava este problema. A gente precisa sair disto, precisa construir uma política que solucione problemas.

Sul21 – Então, quando o senhor deu aquela declaração que gerou polêmica, de que pequenos traficantes deveriam ter penas alternativas, não se referia a pequenos traficantes, mas a pessoas que, muitas vezes, estão sendo acusadas de forma equivocada.

Pedro Abramovay – Na entrevista a O Globo eu não usei o termo “pequenos traficantes”, porque não é disto que estamos falando. Estamos falando muito mais de usuários que de traficantes. Não é uma fronteira muito clara, mas estamos falando, sobretudo, de usuários. A gente está, sim, prendendo usuários no Brasil. A gente precisa desarmar o que montamos para nós mesmos.
Na visão de Pedro Abramovay, modelo brasileiro retira pessoas da sociedade, as coloca na prisão e as devolve com a pecha de criminosos | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – Que efeito traz para estes usuários pobres estarem indo para a cadeia?

Pedro Abramovay – Tem uma pesquisa feita em São Paulo que mostra que, destas pessoas que estão indo presas, 62% tinham emprego e 9% tinham estudado. Estamos falando de pessoas produtivas, de alguma maneira, que a gente retira da sociedade, coloca na prisão e devolve para a sociedade com ligação com o crime organizado, com estigma de criminoso, que ninguém vai empregar. Então, a gente pega pessoas que não são criminosas e devolve para a sociedade criminosas. Não me parece um modelo adequado.

Sul21 – Quais poderiam ser as penas alternativas?

Pedro Abramovay – Podem ser diversas. Tem que dosar a partir de qual seja a conduta. No caso do usuário, o que a gente propõe não é nem que tenha pena alternativa, mas que sejam medidas administrativas, que podem ser desde advertência, frequentar um curso. Podem ser várias medidas, mas que não passem pelo sistema penal, porque o sistema penal impede o tratamento. Quando você diz que alguma coisa é crime, a primeira pessoa que vai olhar o usuário é o policial, não é um médico, não é uma assistente social. Enquanto for o policial, a saúde não entra.
Sul21 – As pessoas refutam o tratamento por medo?
Pedro Abramovay – Claro, o próprio médico também fica com uma aflição. Ele não é preparado para lidar com criminosos, mas com doentes.
“Os indicadores da guerra às drogas são apreensões, prisões, mortes de traficantes. Se não significam que o consumo e a violência estão caindo, não são indicadores de sucesso, mas de fracasso”
Sul21 – A comissão de juristas que discutiu o novo Código Penal previu a descriminalização do consumo de drogas.

Pedro Abramovay – Acho um grande passo. Mas acho que Portugal ensina para a gente que, além de não criminalizar, tem que ficar muito claro que aquela pessoa não vai para o sistema penal. Não é o juiz que tem que cuidar do usuário. Ninguém é a favor de legalizar passar (um carro) no sinal vermelho, mas ninguém acha que isto tem que ser crime, que o Ministério Público tem que fazer uma denúncia e que um juiz tem que condenar esse infrator. Não é esta a estrutura, é uma estrutura administrativa. O que a gente quer é que a pessoa que seja pega com drogas vá para uma comissão de especialistas que pense qual a melhor alternativa para ela, se uma advertência, uma multa, um tratamento, e construir uma saída, que não seja a saída criminal. Isto para pessoas que sejam pegas com uma quantidade abaixo de um determinado valor fixo, para que não se tenha a possibilidade de se cometer as arbitrariedades que são cometidas hoje – um modelo semelhante ao que é feito em Portugal.
Guerra às Drogas fracassou, defende Abramovay: "está se trabalhando muito, gastando muito dinheiro e muita energia para não alcançar os objetivos mais importantes" | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – O senhor critica que os resultados da política de drogas sejam mais prisões e apreensões. Por quê?

Pedro Abramovay – Uma política consistente de drogas tem que ter como objetivos a redução da violência e acesso à saúde, que as pessoas tenham uma vida mais saudável. Como a repressão e a Guerra às Drogas nunca conseguiram reduzir o consumo nem a violência, os indicadores que se criam são indicadores que não dizem nada. São apreensões, prisões, mortes de traficantes. Se estes indicadores não significam que o consumo e a violência estão caindo, não são indicadores de sucesso, mas de fracasso. Significa que está se trabalhando muito, gastando muito dinheiro e muita energia para não alcançar os objetivos mais importantes.

Sul21 – O indicador deveria ser, por exemplo, quantas pessoas foram ressocializadas?

Pedro Abramovay – Mortes por overdose, quanto é? Em Portugal, ao descriminalizar, despencou o número de mortes por overdose. Este é um indicador de sucesso. As pessoas muitas vezes imaginam que a descriminalização aumenta o consumo, mas foi feita uma pesquisa por um instituto inglês em 21 países que tiveram medidas de flexibilização da legislação. Em nenhum deles aumentou o consumo. Em alguns até caiu. Não se diminuiu o consumo de nenhuma droga ilícita por meio da repressão. A única droga que se conseguiu diminuir o consumo por meio de atitude do Estado foi uma droga lícita: o tabaco. O caso do tabaco mostra que é possível reduzir consumo, mas se faz isto com regulação, não com cadeia. Com a criminalização, todo mundo tem acesso à droga, mas você não consegue tratar ninguém e prende pessoas que não cometeram violência contra ninguém.

Sul21 – Num segundo momento, o senhor defende a legalização do comércio, ou o plantio (de cannabis) em casa?

Pedro Abramovay – O tema do plantio em casa sem dúvida deve ser discutido. Há experiências bastante bem-sucedidas na Espanha. Acho que temos que debater isto no Brasil. A legalização é algo que nenhum país fez. Eu me sinto mais confortável em falar sobre a descriminalização, que é um modelo que deu certo onde tentaram, do que no modelo de legalização, que nunca ninguém testou.

Sul21 – Na Holanda não foi testado?

Pedro Abramovay – Na Holanda não é legalizado, porque a venda é permitida em pequenas quantidades, mas a produção não é. Então, os coffee shops compram ilicitamente a droga. Então, é um modelo que tem uma hipocrisia. A impressão que eu tenho é que pior que a atual política (do Brasil) não tem, uma política que não consegue frear o consumo e que causa tantos danos. Tem coisas que claramente já deram certo, como a descriminalização e o cultivo pessoal. Os outros passos têm que ser debatidos com muito cuidado e com atenção às experiências que outros países têm feito. Na Califórnia, por exemplo, se diz que foi regularizada a maconha medicinal, mas existe um milhão de pacientes cadastrados. A pessoa vai na farmácia, compra, e a sociedade californiana não teve nenhum prejuízo com esta medida. A gente tem que ter um debate baseado em dados concretos, na ciência, e não baseado na ideologia, no medo, na raiva – em geral, o tema de drogas é debatido assim. A gente quer debater como quem quer resolver o problema, e não como quem quer fazer barulho, dar a impressão de que está dando uma resposta sem, até agora, ter chegado perto de solucionar o problema.
“Até pouco tempo atrás, o tema das drogas no Brasil estava sob a guarda dos militares. Hoje, a Secretaria Nacional de Política sobre Drogas está no Ministério da Justiça. É um avanço extraordinário”
Fracasso da política de guerra contra drogas cria necessidade de testar outros mecanismos, defende Pedro Abramovay | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – Como o senhor vê a proposta do presidente José Mujica, do Uruguai, de que o Estado plante maconha e de que isto separaria o usuário de maconha das drogas mais pesadas?

Pedro Abramovay – Nesta lógica de tanto esgarçamento da atual política é o momento de testar novas coisas, porque insistir no erro a gente sabe que não funciona. O caso do Uruguai tem algumas questões. Primeiro: a gente precisa descriminalizar não só a maconha, mas todas as drogas. Quanto maior efeito da droga sobre a pessoa, mais próxima de um doente esta pessoa vai estar e mais atenção de saúde, e não de prisão, esta pessoa deve ter. Então, não é que a droga mais grave deve ser criminalizada e a mais leve não. A gente não pode tratar nenhum usuário como criminoso. Do ponto de vista da legalização, muitas pessoas dizem que a maconha é a porta de entrada para outras drogas. Tem um estudo neozelandês que afirma isto, mas o próprio autor diz que a maconha é a porta de entrada porque a gente força os jovens a comprarem maconha da mesma pessoa que vende cocaína, que vende crack. Quando você vai no supermercado comprar arroz, você acaba comprando outras coisas. Então, o que torna a maconha uma porta de entrada é o fato de ela ser considerada ilícita. Acho que, de alguma maneira, separar a maconha — que é a droga responsável, de longe, pela maior parte do consumo de drogas ilícitas — é afastar os jovens do crime. Então, acho que tem algum sentido nisto. São experiências, inovações que a gente tem que olhar com calma, avaliar, ter a serenidade de ver quais são os resultados concretos disto, sem nenhum clima de oba-oba e nem de cegueira, como é o clima com que se convive com a política atual.

Sul21 – Qual é a visão do senhor sobre a internação compulsória dos dependentes químicos?

Pedro Abramovay – Eu não sou médico, mas li muitos artigos científicos sobre isto e vários mostram que a eficiência da internação compulsória é baixíssima, de menos de 10%. É claro que existem situações absolutamente excepcionais – menos de 5% dos casos – em que a pessoa pode ser avaliada como psicopata e não tem juízo sobre a situação e pode se matar, ou matar outra pessoa. Mas estes casos são exceção até no caso do crack. Na grande maioria dos casos, as pessoas têm, sim, total consciência nos momentos de abstinência e podem decidir por tratamento. Quando elas tomam esta decisão, a eficiência do tratamento é muito maior. E o tratamento ambulatorial e a rua têm eficiência muito maior que a internação, porque a relação da droga com a dependência não está na própria substância. O que faz a pessoa se tornar dependente é a relação da pessoa com a droga dentro de uma circunstância social específica. Então, se a pessoa está desempregada, vê naquilo uma muleta para seus problemas ou algo assim, a chance dela se tornar dependente é muito maior. Quando você interna a pessoa, desintoxica ela, mas devolve para o meio que gerou a dependência, ela vai voltar a ser dependente. Por isto é que a maioria dos casos de internação não funciona. Quando você consegue tratar a pessoa no meio em que ela vive e fazer ela lidar com os problemas que levaram à dependência, aí a pessoa consegue sair da tragédia das drogas.
"Hoje é possível debater o tema das drogas no Brasil. Antes, qualquer pessoa que levantasse essas questões era tachada de maluca" | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – Como o senhor avalia a atual política do Governo Federal na questão de drogas?

Pedro Abramovay – Acho que o Governo Federal avançou em várias áreas no tema das drogas. Até pouco tempo atrás, o porta-voz do tema das drogas no Brasil era um general, o tema estava sob a guarda dos militares. Hoje, a Secretaria Nacional de Política sobre Drogas está no Ministério da Justiça e o grande porta-voz do plano tem sido o ministro da Saúde. É um avanço extraordinário que a gente possa ter este olhar sobre o tema e não o olhar de guerra. O Plano de Enfrentamento ao Crack pela primeira vez dá dinheiro para o tratamento ambulatorial, mas também dá dinheiro para a internação, e aí é uma contradição. Claro, há momentos em que você precisa de internação, mas são casos mais raros. Mas como não é o Governo Federal que executa, lá na ponta, nos municípios, você pode transformar o consultório de rua em uma carrocinha de pegar usuários pobres e levar para esconder na internação. Então, a gente tem quer vigiar muito de perto o plano para apoiar o que ele tem de muito positivo, que é incentivar o tratamento de rua, incentivar o olhar de saúde, e não deixar que setores mais conservadores se apropriem deste plano pelo lado da internação compulsória, não respaldada na ciência.

Sul21 – Em que pé está o debate sobre drogas neste momento no país? Avançamos?

Pedro Abramovay – Acho que pela primeira vez a gente tem o debate aparecendo de maneira séria. Agora, é possível debater o tema. Antigamente, qualquer pessoa que levantasse essas questões era taxada de maluca. Agora, é um tema sério, há grandes personalidades que discutem este tema, apresentam suas propostas. Acho que é um cenário positivo. Ainda está longe de ser um tema discutido sem preconceito, mas acho que a gente pode finalmente discutir o tema com base em dados, em pesquisas, e não só em ideologia e impressões.

sábado, 21 de julho de 2012

Greve nas universidades


Quando o governo acabará com a greve dos professores das universidades públicas, que já dura mais de 60 dias?


Frei Betto no BRASIL DE FATO

Eis que esbarro no aeroporto com um amigo, alto funcionário do governo federal. Fomos colegas de Planalto nos idos de 2004. Fui direto ao ponto:
- E quando o governo acabará com a greve dos professores das universidades públicas, que já dura mais de 60 dias? Ela paralisa 57 das 59 universidades federais e 34 dos 38 institutos federais de educação tecnológica. São 143 mil profissionais de ensino de braços cruzados.
- O governo? – reagiu surpreso. - Eles é que decidiram parar de trabalhar. Já é hora de descruzarem os braços e aceitar nossa proposta apresentada na sexta, 13 de julho. A partir do ano que vem um professor titular com dedicação exclusiva poderá ter aumento de 45,1%.
- Sexta-feira 13 não é um bom dia para negociar... Sei que o PT tem tido sorte com o 13. Mas, pelo que me disseram professores, a proposta do governo está aquém do que eles querem. E só favorece os professores que atingiram o topo da carreira, e não os iniciantes. Como é possível um professor adjunto, com doutorado, ganhar R$ 4.300, e um policial rodoviário com nível superior R$ 5.782,11?
- O que pedem é acima do razoável. E se a greve prosseguir, nem por isso o país para.
- Você parece esquecer que o PT só chegou à Presidência da República porque o movimento grevista do ABC, liderado por Lula, encarou a ditadura, desmascarou as fraudes dos índices econômicos emitidos pelo ministério de Delfim Netto e exigiu reposição salarial.
O amigo me interrompeu:
- Aquilo foi diferente. Máquinas paradas atrasam o país.
- Este o erro do governo, meu caro. Não avaliar que escola fechada atrasa muito mais. Quem criará as máquinas ou, se quiser, trará ao país inovação tecnológica se os universitários não têm aulas? Quem estanca a fuga de cérebros do Brasil, com tantos cientistas, como Marcelo Gleiser, preferindo as condições de trabalho no exterior? A maior burrice do governo é não investir na inteligência. Já comparou o orçamento do Ministério da Cultura com os demais? É quase uma esmola. Como está difícil convencer o Planalto de que o Brasil só terá futuro se investir ao menos 10% do PIB na educação.
Meu amigo tentou justificar:
- Mas o governo tem que controlar seus gastos. Se ceder aos professores, o rombo nas contas públicas será ainda maior.
- Como pode um professor universitário ganhar o mesmo que um encanador da Câmara Municipal de São Paulo? Um encanador, lotado no Departamento de Zeladoria daquela casa legislativa, ganha R$ 11 mil. Um professor universitário com dedicação exclusiva ganha R$ 11,8 mil. Agora o governo promete que, em três anos, ele terá salário de R$ 17,1 mil.
- O governo vai mudar o plano de carreira. Professores passarão a ganhar mais em menos tempo de trabalho.
- Ora, não me venha com falácias. Quando se trata do fundamental –saúde, educação, saneamento– o governo nunca tem recursos suficientes. Mas sobram fortunas para o Brasil sediar eventos esportivos internacionais protegidos por leis especiais e comprar jatos de combate para um país que já deveria estar desmilitarizado.
- Você não acha que é uma honra o Brasil sediar as Olimpíadas e a Copa do Mundo? Não é importante atualizar os equipamentos de nossa defesa bélica?
- Esses eventos esportivos estarão abertos ao nosso povo, ou apenas aos turistas e cambistas? E quanto à defesa bélica, há tempos o Brasil deveria ter adotado a postura de neutralidade da Suíça e abolir suas Forças Armadas, como fez a Costa Rica em 1949. Quem nos ameaça senão nós mesmos ao não promover a reforma agrária para reduzir a desigualdade social e manter a saúde e a educação sucateadas?
Meu amigo, ao se despedir, admitiu em voz baixa:
- O problema, companheiro, é que, por estar no governo, não posso criticá-lo. Mas você tem boa dose de razão.

Frei Betto é escritor, autor de "A obra do Artista – uma visão holística do Universo” (José Olympio), entre outros livros. www.freibetto.org - Twitter:@freibetto.

Em defesa das cotas “raciais” e contra os lacerdinhas

  Juremir Machado no CORREIO DO POVO

Não se pode fugir do passado. Assim como não é correto tapar o sol com a peneira em relação aos crimes da ditadura de 1964, não haveria como negar para sempre a dívida com os negros produzida pelos séculos de escravidão. Toda fortuna de mais de quatro gerações deve aos escravos. Num país capitalista democrático a educação é o caminho para acertar contas com o que ficou para trás. Ou se tem educação gratuita para todo mundo (França e outros países europeus) ou se tem educação gratuita para os mais carentes. O sistema universitário público brasileiro fez o contrário durante muito tempo: garantiu educação superior gratuita para os mais ricos. Especialmente nos cursos mais procurados como medicina.
É simples assim: costuma chegar primeiro quem sai primeiro.
O modelo do mérito, os melhores entram e não pagam, é um sistema de hierarquia social, um modo de reprodução da desigualdade, uma maneira de manter privilégios. Quando não há igualdade de preparação no ponto de partida, não há condições equivalentes de competição no ponto de ingresso, o vestibular. Sou totalmente favorável às cotas. Sempre há exceções: o menino pobre que supera todas as barreiras e conquista uma vaga improvável. O que é interessa é a média. A universidade pública gratuita para os mais ricos, por serem os “melhores”, é uma perversão, um efeito perverso da meritocracia.
Só tem uma maneira legítima de não precisar de cotas: bancar vagas gratuitas para todos os que atingirem determinada média. O resto é enrolação. Só que útil para alguns.
Até a controvérsia entre cotas sociais e cotas raciais é conversa fiada, coisa de quem quer tergiversar. Os negros, entre os pobres, são mais prejudicados que os brancos.
A elite branca, acostumada a ficar com as mais cobiçadas vagas das universidades públicas, com base nesse sistema de reprodução da desigualdades pelas diferenças sociais, econômicas e históricas de preparação, continua esperneando. Não é absurdo se propor um aumento das vagas destinadas às cotas. Enquanto o passivo persistir, será preciso enfrentá-lo com medidas fortes. Sem cotas, o acesso de certos grupos às universidades públicas brasileiras permaneceria o mesmo pelos próximos 500 anos.
É claro que os lacerdinhas, ideólogos da meritocracia com método pretensamente neutro e universal, vão continuar berrando. A meritocracia é um dispositivo de dominação baseado numa mentira: a igualdade de oportunidades. Vou repetir: não é porque todos respondem questão iguais, na mesma sala e na mesma hora, que há paridade no jogo. Essa é a ilusão da banca, o engano calculado para vender uma neutralidade falsa.
As cotas são um contraveneno contra o veneno da meritocracia estimulada como esporte de combate. A meritocracia transforma os derrotados em incompetentes ou preguiçosos. Grande parte simplesmente não pode treinar. Ainda existem aqueles que defendem a formação de elites, um ensino de elite, e lamentam a massificação do ensino superior. São ganidos de lacerdinhas inconformados com os novos tempos, uivos em defesa de uma época em decomposição, réquiens por um sistema de hierarquia social a caminho de tornar-se defunto. Os donos do poder, contudo, não morrem de boca fechada. Abrem o berreiro. Soltam o verbo, clamam por objetividade. Ai, ai, ai…
Raças não existem, o que existe é preconceito de cor.
Esse preconceito ganhou, ao longo do tempo, uma legitimação “racial”.
Aos se falar em cotas “raciais” se está, na verdade, defendendo uma compensação aos que, pela cor, foram prejudicados em nome de um preconceito dito racial.
A questão não é só de escola pública ou de pobreza, é de cor mesmo.
Há um lastro de pobreza intensa e falta de oportunidades derivado da cor.
Basta espiar os dados do IBGE para se ter certeza disso.
Tem muita gente querendo confundir as coisas.
É pura estratégia, jogada, malandragem.
Mérito é ganhar um jogo em que os competidores têm equivalência de preparação.
Meritocracia é ganhar um jogo em que só um dos competidores, favorecido no ponto de partida, pôde realmente se preparar. É, como se diz, jogo jogado.
Salvo quando dá zebra.
O mundo não é simples.
Tem sido simplificado.
Complexificar demais pode ser uma maneira de complicar e esconder as simplificações.
As cotas acarretam distorções.
O sistema, sem elas, é pura distorção.
A universidade pública branca gaúcha ainda não é suficientemente colorida.
Pode mais.
Vai dar.
Para desespero dos lacerdinhas.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

A greve do ensino público e as engenharias

Engenheiros deslocados da realidade de seu país, avessos às lutas dos trabalhadores e preocupados com seu próprio umbigo. Esses são os profissionais que queremos formar nas universidades públicas brasileiras?

Por Felipe Addor*, para o Canal Ibase

Afinal, em que mundo vivem os cursos de engenharia das universidades públicas brasileiras?
Na minha primeira greve como professor, tive a oportunidade de ver de outra perspectiva o mundo em que vivemos no ensino de engenharia em uma universidade pública. O que se vê é um retrato da formação que nossos estudantes recebem.
Após alguns dias acompanhando o vigor do movimento, resolvo aderir à greve. A essa altura, mais de 40 universidades públicas já estavam em greve. Reuniões, assembleias, mobilizações, passeatas, movimentação virtual; todos na luta por uma universidade pública, gratuita e de qualidade. Enquanto isso, no Reino da Tecnologia, a movimentação é quase nula. Ninguém sabe, ninguém fala, ninguém vê. Estacionamentos lotados, salas de aula cheias, restaurantes com as tradicionais filas.
Afinal, em que mundo vivem os cursos de engenharia das universidades públicas brasileiras? (Foto: Guilerme Souza/Flickr)
Resolvi fazer uma última aula de debate sobre a greve. Nas trocas de ideias e argumentos, três questões subjetivas se destacam. Primeiro, a completa alienação sobre a situação. Para eles, que viviam naquela redoma tecnológica, nada estava ocorrendo; ou, pelo menos, nada que lhes dissesse respeito. “Professor, essa greve não vai dar em nada, quase ninguém está participando, só tem meia dúzia de professores”. Independente da posição dos professores das engenharias, é impressionante a capacidade de isolar seus alunos do mundo externo, do mundo real.
Segundo, a aversão às lutas dos trabalhadores. Embora essa palavra não tivesse saído em nenhum momento da boca dos estudantes, a clara impressão é que, na cabeça deles, grevistas são baderneiros, comunistas, preguiçosos; isto é, gente que não está a fim de trabalhar e que busca, por meio da greve, conquistar ainda melhores salários, mordomias; “esses professores querem que não haja avaliação para que subam na carreira e pedem melhores salários” (numa clara interpretação distorcida da proposta de novo formato de avaliação levada ao governo pelo Andes). Ou seja, estamos formando profissionais com a visão do patrão, do capital, em oposição ao trabalhador.
Terceiro, e mais pesado, é o enorme individualismo presente. Na verdade, é um individualismo burro, pois é imediatista. Preocupados com seus estágios, suas promessas de efetivação, suas possíveis oportunidades de concurso, suas viagens de férias, seus intercâmbios para a Europa, os alunos sequer consideram como algo relevante para suas vidas a luta por uma universidade pública decente, estruturada, de qualidade. É recorrente o argumento: os alunos são os únicos prejudicados, são as grandes vítimas das greves. Mentira, pois são os que mais se beneficiarão, no longo prazo, dos seus frutos. Não é preciso destacar que os avanços na estrutura e qualidade do ensino público superior (assim como as principais conquistas de lutas das classes trabalhadoras no mundo) são resultados unicamente das lutas travadas anteriormente (resumo das reivindicações e resultados das greves desde 1980: http://www.sedufsm.org.br/index.php?secao=greve).
O mais triste dessa última constatação é a consciência de que essa percepção individualista e imediatista é apenas o reflexo do raciocínio, da postura, dos ensinamentos da maioria dos professores dos cursos de engenharia em uma universidade pública. A corrente de vitimização dos alunos enquanto maiores prejudicados com a greve rompeu-se quando uma aluna disse: “eu defendo a greve, pois eu quero que, daqui a vinte anos, meu filho possa ter a oportunidade que eu tive de estudar de graça num dos melhores cursos universitários do Brasil”. O silêncio que se seguiu escancarava como aquela reflexão simples, ainda individualista, mas numa perspectiva inteligente, de longo prazo, foi um choque na estrutura de pensamento daqueles jovens e promissores engenheiros.
Engenheiros deslocados da realidade de seu país, avessos às lutas dos trabalhadores e preocupados com seu próprio umbigo. Esses são os profissionais que queremos formar nas universidades públicas brasileiras?

*Felipe Addor é professor do Departamento de Engenharia Industrial da UFRJ (Centro de Tecnologia), onde se formou em Engenharia de Produção. É fundador e pesquisador do Núcleo de Solidariedade Técnica da UFRJ (SOLTEC/UFRJ).