Confesso que ainda estou chocado com o voto de Ayres Britto, ao condenar oito réus do mensalão, ontem.
O ministro disse:
“[O objetivo do esquema era] um projeto de poder quadrienalmente
quadruplicado. Projeto de poder de continuísmo seco, raso. Golpe,
portanto”.
Denunciar golpes de Estado em curso é um dever de quem tem compromissos com a democracia.
Denunciar golpes de Estado imaginários é um recurso frequente quando se pretende promover uma ruptura institucional.
O caso mais recente envolveu Manoel Zelaya, o presidente de Honduras. Em
2009 ele foi arrancado da cama e, ainda de pijama, conduzido de avião
para um país vizinho.
Acusava-se Zelaya de querer dar um golpe para mudar a Constituição e
permanecer no poder. Uma denúncia tão fajuta que – graças ao Wikileaks –
ficamos sabendo que até a embaixada dos EUA definiu a queda de Zelaya
como golpe. Mais tarde, ao reavaliar o que mais convinha a seus
interesses de potência, a Casa Branca mudou de lado e encontrou
argumentos para justificar a nova postura, fazendo a clássica conta de
chegar para arrumar fatos e os argumentos.
Em 31 de março de 64, tivemos um golpe de Estado de verdade, que jogou o país em 21 anos de ditadura.
O golpe foi preparado pela denúncia permanente de um golpe imaginário,
que seria preparado por João Goulart para transformar o país numa
“república sindicalista.” Basta reconstituir os passos da conspiração
civil-militar para reconhecer: o toque de prontidão do golpismo
consistia em denunciar projetos anti democráticos de Jango.
Considerando antecedentes conhecidos, o voto de Ayres Britto é preocupante porque fora da realidade.
Vamos afirmar: não há e nunca houve um projeto de golpe no governo Lula.
Nem de revolução. Nem de continuísmo chavista. Nem de alteração
institucional que pudesse ampliar seus poderes de alguma maneira.
Lula poderia ter ido as ruas pedir o terceiro mandato. Não foi e não
deixou que fossem. Voltou para São Bernardo mas, com uma história maior
do que qualquer outro político brasileiro, não o deixam em paz. Essa é a
verdade. Temos um ex grande demais para o papel. Isso porque o PT quer
extrair dele o que puder de prestígio e popularidade. A oposição quer o
contrário. Sabe que sua herança é um obstáculo imenso aos planos de
retorno ao poder.
Ouvido pelo site Consultor Jurídico, o professor Celso Bandeira de
Mello, um dos principais advogados brasileiros, deu uma entrevista sobre
o mensalão, ainda no começo do processo:
ConJur: Como o senhor vê o processo do mensalão?
Celso Antônio
Bandeira de Mello: Para ser bem sincero, eu nem sei se o mensalão
existe. Porque houve evidentemente um conluio da imprensa para tentar
derrubar o presidente Lula na época. Portanto, é possível que o mensalão
seja em parte uma criação da imprensa. Eu não estou dizendo que é, mas
não posso excluir que não seja.
Bandeira de Mello é amigo e conselheiro de Lula. Foi ele quem indicou
Ayres Britto para o Supremo. A nomeação de Brito – e de Joaquim Barbosa,
de Cesar Pelluzzo – ocorreu na mesma época em que Marcos Valério e
Delúbio Soares andavam pelo Brasil para, segundo o presidente do
Supremo, arrumar dinheiro para o “continuísmo seco, raso.”
Os partidos políticos podem ter, legitimamente, projetos duradouros de
poder. É inevitável, porque poucas ideias boas podem ser feitas em
quatro anos.
Os tucanos de Sérgio Motta queriam ficar 25 anos. Ficaram oito. Lula e Dilma, somados, já garantiram uma permanência de 12.
Tanto num caso, como em outro, tivemos eleições livres, sob o mais amplo regime de liberdades de nossa história.
Para quem gosta de exemplos de fora, convém lembrar que até há pouco o
padrão, na França, eram governos de 14 anos – em dois mandatos de sete.
Nos Estados Unidos, Franklin Roosevelt foi eleito para quatro mandatos
consecutivos, iniciando um período em que os democratas passaram 20 anos
seguidos na Casa Branca. Os democratas de Bill Clinton poderiam ter
ficado 12 anos. Mas a Suprema Corte, com maioria republicana, aproveitou
uma denúncia de fraude na Flórida para dar posse a George W. Bush,
decisão ruinosa que daria origem a uma tragédia de impacto
internacional, como todos sabemos.
O ministro me desculpe mas eu acho que, para falar do mensalão como
parte de projeto de “continuísmo seco, raso,” é preciso considerar o
Brasil uma grande aldeia de Gabriel Garcia Márquez. Em vez da quinta ou
sexta economia do mundo, jornais, emissoras de TV, bancos poderosos,
um empresariado dinâmico, trabalhadores organizados e 100 milhões de
eleitores, teríamos de coronéis bigodudos com panças imensas,
latifúndios a perder de vista, cidadãos dependentes, morenas lindas e
apaixonadas, capangas de cartucheira.
No mundo de Garcia Marquez, não há democracia, nem conflito de ideias.
Não há desenvolvimento, apenas estagnação, tédio e miséria. Naquelas
aldeias do interior remoto da Colômbia, homens e mulheres famintos
vivem às voltas de um poder único e autoritário. Esmolam favores,
promoções, presentes, pois ninguém tem força, autonomia e muito menos
coragem para resolver a própria vida. Desde a infância, todos os
cidadãos são ensinados a cortejar o poder, bajular. É seu modo de vida.
Como recompensa, recebem esmolas.
No mensalão de Macondo, seria assim.
Será esta uma visão adequada do Brasil?
Em 1954, no processo que levou ao suicídio de Getúlio Vargas, também se falou em golpe.
Com apoio de uma imprensa radicalizada, em campanhas moralistas e
denuncias – muitas vezes sem prova – contra o governo, dizia-se que
Vargas pretendia permanecer no posto, num golpe continuísta, com apoio
do ”movimento de massas.”
Era por isso, dizia-se, que queria aumentar o salario mínimo em 100%.
Embora o mínimo tivesse sido congelado desde 1946, por pressão
conservadora sobre o governo Eurico Dutra, a proposta de reajuste era
exibida como parte de um plano continuísta para agradar aos pobres –
numa versão que parece ter lançado os fundamentos para as campanhas
sistemáticas contra o Bolsa-Família, 50 anos depois.
Embora falasse em mercado interno, desenvolvimento industrial e até
tivesse criado a Petrobrás, é claro que Vargas queria apenas, em
aliança com o argentino Juan Domingo Perón (o Hugo Chávez da época?),
estabelecer uma comunhão sindicalista na América do Sul e transformar
todo mundo em escravo do peleguismo, não é assim? E agora você, leitor,
vai ficar surpreso. Um dos grandes conspiradores contra Getúlio Vargas,
especialista em denunciar golpes imaginários, foi parar no Supremo.
Chegou a presidente, teve direito a um livro luxuoso com uma antologia
de suas sentenças.
Estou falando de Aliomar Baleeiro, jurista que entrou no tribunal em
1965, indicado por Castelo Branco, o primeiro presidente do ciclo
militar, e aposentou-se em 1975, o ano em que o jornalista Vladimir
Herzog foi morto sob tortura pelo porão da ditadura.
Baleeiro deixou bons momentos em sua passagem pelo Supremo. Defendeu várias vezes o retorno ao Estado de Direito.
Chegou a dar um voto a favor de frades dominicanos que faziam parte do
círculo de Carlos Marighella, principal líder da luta armada no Brasil.
A ditadura queria condenar os frades. Baleeiro votou a favor deles.
Tudo isso é muito digno mas não vamos perder a o fio da história que nos ajuda a ter noção das coisas e aprender com elas.
Em várias oportunidades, o ministro que faria a defesa do Estado de Direito contribuiu para derrotá-lo.
O ministro chegou ao STF com uma longa folha de serviços anti democráticos.
Em 1954, ele era deputado da UDN, aquele partido que reunia a fina flor
de um conservadorismo bom de patrimônio e ruim de votos.
Um dos oradores mais empenhados no combate a Getúlio Vargas , Baleeiro
foi a tribuna da Câmara para pedir um “golpe preventivo”. ( Pode-se
conferir em “Era Vargas — Desenvolvimentismo, Economia e Sociedade,”
página 411, UNESP editora.)
Os adversários de Vargas tentaram a via legal, o impeachment. Tiveram
uma derrota clamorosa, como diziam os locutores esportivos de vinte anos
atrás: 136 a 35.
Armou-se, então, uma conspiração militar. Alimentada pelo atentado
contra Carlos Lacerda, que envolvia pessoas do círculo de Vargas,
abriu-se uma pressão que acabaria emparedando o presidente, levado ao
suicídio.
Baleeiro permaneceu na UDN e conspirou contra a campanha de JK, contra a
posse de JK e contra o governo JK. Sempre com apoio nos jornais, foi
um campeão de denúncias. Era aquilo que, mais uma vez com ajuda da
mídia, muitos brasileiros pensavam que era o Demóstenes Torres – antes
que a verdade do amigo Cachoeira viesse a tona.
Baleeiro estava lá, firme, no golpe que derrubou Jango para combater a subversão e a …corrupção.
Foi logo aproveitado pelo amigo Castelo Branco para integrar o STF. Já
havia denuncia de tortura e de assassinatos naqueles anos. Mortos que
não foram registrados, feridos que ficaram sem nome. Não foram apurados,
apesar do caráter supremo das togas negras.
Entre 1971 e 1973, Baleeiro ocupava a presidência do STF. Nestes dois anos, o porão do regime militar matou 70 pessoas.
Nenhum caso foi investigado nem punido, como se sabe. Nem na época,
quando as circunstâncias eram mais difíceis. Nem quarenta anos depois,
quando pareciam mais fáceis.
Em 1973, José Dirceu, que pertenceu a mesma organização que Marighella,
vivia clandestinamente no Brasil. Morou em Cuba mas retornou para seguir
na luta contra o regime militar. Infiltrado no grupo, o inimigo atirou
primeiro e todos morreram. Menos Dirceu. Os ossos de muitos levaram anos
para serem identificados. Nunca soubemos quem deu a ordem.
Não se apontou, como no mensalão, para quem tinha o domínio do fato para a tortura, as execuções.
Um dos principais líderes do Congresso da UNE, entidade que o regime
considerava ilegal, Dirceu foi preso em 1968 e saiu da prisão no ano
seguinte. Não foi obra da Justiça, infelizmente, embora estivesse detido
pela tentativa de reorganizar uma entidade que desde os anos 30 era
reconhecida pelos universitários como sua voz política.
(Figurões da ditadura, como o pernambucano Marco Maciel, que depois
seria vice presidente de FHC, Paulo Egydio Martins, governador de São
Paulo no tempo de Geisel, tinham sido dirigentes da UNE, antes de
Dirceu).
A Justiça era tão fraca , naquele período, que Dirceu só foi solto como
resultado do sequestro do embaixador Charles Elbrick, trocado por um
grupo de presos políticos. Mas imagine.
Foi preciso que um bando de militantes armados, em sua maioria garotos
enlouquecidos com Che Guevara, cometesse uma ação desse tipo para que
pessoas presas arbitrariamente, sem julgamento, pudessem recuperar a
liberdade. Que país era aquele, não? Que Justiça, hein?
Preso no Congresso da UNE, também, Genoíno foi solto e ingressou na guerrilha do Araguaia.
Apanhado e torturado em 1972, Genoíno conseguiu esconder a verdadeira
identidade durante dois meses. Estava em Brasília quando a polícia
descobriu quem ele era. Foi levado de volta a região da guerrilha e
torturado em praça pública, como exemplo.
Ontem a noite, José Dirceu e José Genoíno foram condenados por 8 votos a 2 e 9 votos a 1.
Foi no final da sessão que Ayres Britto falou em “projeto de poder de continuísmo seco, raso. Golpe, portanto”.