sexta-feira, 1 de março de 2013


Frente ao Fórum Social Mundial de Túnis. Indignação e altermundialismo: duas décadas de resistências globais

Sergio Ferrari
Colaborador de Adital na Suiça. Colaboração E-CHANGER

Tradução: ADITAL

Foto: Sergio Ferrari
Quando o jovem desempregado tunesino Mohamed Bouazizi se imolou publicamente no dia 17 de dezembro de 2010, não imaginava que sua raiva individual explodiria rapidamente em indignação quase universal. Reconvertido em quitandeiro e farto do acosso oficial que o impedia de trabalhar livremente com sua carreta, a denúncia de Bouazizi detonou em poucos dias mobilizações massivas em seu país. Rapidamente, sua indignação e a de sua terra ultrapassaram as fronteiras regionais e continentais.
O protesto tunesino, que, finalmente, derrubou do poder Bem Ali, estendeu-se ao Egito e a outros países da região, promovendo mudanças significativas em tempos historicamente curtos. Dessa maneira, a assim chamada "primavera árabe” começava a socavar as bases de monarquias duras ou democracias desgastadas mediante relevantes mudanças internas.
Separada apenas pelo Mar Mediterrâneo, a revolta da África nor-sahariana não tardou em acerca margens para transformar-se em indignação europeia.
No dia 15 de maio de 2011, detonou, em Madri, um processo de mobilizações cidadãs massivas que se estenderam por toda a Espanha e se reproduziram em centenas de cidades em mais de quarenta países do mundo. Como resultado de uma marcha multitudinária autoconvocada através da Internet pela coalizão Democracia Real Já, os manifestantes ibéricos decidiram ocupar a Plaza del Sol, convertendo-a, durante semanas, em seu próprio acampamento urbano.
A ocupação, método de luta recorrente empregado por muitos movimentos sociais no mundo inteiro para defender suas reivindicações mais sentidas, como a reforma agrária dos "sem terra”, ou a habitação popular dos "sem teto” brasileiros, deslocava-se ao coração da União Europeia. Estava sendo inaugurada uma massiva modalidade de protesto cidadão, Centenas de praças e parques adquiriram o formato dos conhecidos plásticos negros e das carpas improvisadas dos acampamentos do Sul.
A exclusão social, cada vez mais intensa e dramática; o desemprego crescente, especialmente entre os jovens; as políticas férreas de recortes ao Estado social e o desgaste crônico das democracias tradicionais apareciam como causas comuns da mobilização massificada no Velho Mundo.
Em um marco global caracterizado pelo aprofundamento de uma crise preocupante durante os últimos cinco, em 2010 e 2011 a explosão da "bolha imobiliária” provocou a piora dramática da situação de dezenas de milhares de famílias endividadas em vários países do continente.
Na Espanha, por exemplo, milhares de famílias logo perderam suas casas em um processo que replicava como calcomania uma realidade traumática que já estava causando estragos nos Estados Unidos. Essa crise hipotecária acontecia paralelamente a um brutal aumento do desemprego que em 2012 atingiu, na Espanha, níveis nunca antes conhecidos próximos aos 25% da população economicamente ativa e quase o dobro entre a juventude.
Crises similares, diagnósticos semelhantes, reivindicações comuns... Em meados de setembro de 2011, um grupo de manifestantes também autoconvocado ocupou o Zuccotti Park, em Wall Street, no centro financeiro estadunidense, todo um símbolo do sistema hegemônico em âmbito mundial.
O movimento dos "Ocupa Wall Street” estendeu-se imediatamente até a Plaza de la Libertad, em Washington, a escassos metros da Casa Branca, e a mais de mil cidades por todos os Estados Unidos; sem dúvida, uma das mobilizações cidadãs mais importantes da história contemporânea desse país.
O movimento "Ocupa” estadunidense estende-se como um "espaço aberto e horizontal” contra o capitalismo neoliberal, ao que define em um de seus primeiros comunicados como "um polvo gigante que, como um vampiro, com seus tentáculos, se adere ao rosto da humanidade, chupando-o sem piedade com suas ventosas qualquer coisa que cheire a dinheiro”. Sua consigna central –"somos o 99%; eles, só 1%”- enfatiza sua aberta confrontação com o poder financeiro e com a corrupção política e situa no próprio centro do debate nacional o tema da desigualdade econômica e a crescente polarização social.
A democracia direta, baseada em decisões tomadas coletivamente; a distribuição orgânica de papeis com diferentes comitês e grupos de trabalho claramente estruturados no interior do movimento (imprensa, logística, formação, entre outras); uma liderança horizontal e partilhada e sem nomes próprios e a ação direta, não violenta, constituem os pilares conceituais dos "Ocupa”.
Em poucas semanas, o movimento conseguiu romper o bloqueio midiático e político que tentava sufocá-lo e isolá-lo; monopolizou os refletores, mesmo os da força policial e conseguiu situar-se no centro da agenda política nacional. O próprio Partido Democrata teve que posicionar-se frente a "Ocupa Wall Street” e às suas reivindicações.
O movimento "Ocupa” experimentou rapidamente sua própria globalização "planetária”, protagonizando jornadas como as do 15 de outubro de 2011, com mobilizações em 951 cidades de 82 países praticamente de todos os continentes.
De Chiapas ao iglu resistente em Davos
No final de janeiro de 2012, em pleno inverno glaciar europeu. A uma centena de metros do centro de convenções da cidade suíça de Davos, e protegido militarmente como uma fortaleza, realizava-se o Fórum Econômico Mundial. Uma centena de ativistas do movimento "Ocupa” instalou no coração de Davos um iglu de resistência construído com neve alpina e adornado apenas por uns cartazes e umas bandeiras pretas e vermelhas.
Esse iglu foi a expressão simbólica desse novo processo de resistência cidadã ante um dos eventos do poder econômico internacional. Trata-se de uma resistência que parece não conhecer fronteiras e que aposta, segundo seus princípios, em globalizar a solidariedade e a denúncia do modelo neoliberal, que hoje passa por uma de suas crises mais profundas.
Quase 18 anos antes desse iglu "ocupa”, no dia 1º de janeiro de 1994, o movimento zapatista havia aparecido "do nada” para ocupar San Cristóbal de las Casas e outras cinco cabeceiras do sulista e esquecido Chiapas. Os zapatistas denunciavam o Tratado de Livre Comércio (TLC) que nesse dia estava sendo acordado entre os Estados Unidos, o Canadá e o México. Com essa demonstração, os zapatistas, entre outras coisas, estavam questionando radicalmente um tipo de mecanismo jurídico internacional que as potências do Norte haviam começado a impor a muitas nações do Sul em nome de sua estratégia de capitalismo globalizado. Alçavam uma voz profética para globalizar a esperança.
"Não morrera a flor da palavra. Poderá morrer o rosto oculto de quem a nomeia hoje; porém, a palavra que veio desde o fundo da história e da terra já não poderá ser arrancada pela soberba do poder... Teto, terra, trabalho, pão, saúde, educação, independência, democracia, liberdade, justiça e paz. Essas foram nossas bandeiras na madrugada de 1994. Essas foram nossas demandas na larga noite dos 500 anos. Essas são, hoje, nossas exigências”, enfatizava o Manifesto Zapatista.
Quase duas décadas mais tarde, traços conceituais e metodológicos vitais do zapatismo, como sua reivindicação da participação dos "de baixo”, da democracia direta e da crise ao poder institucionalizado estão se reatualizando, tácita ou abertamente, na prática dos indignados e ocupas do século XXI. E também suas cores.
Indignação e outro mundo possível
Entre aqueles históricos acontecimentos e seus ecos recentes, durante a primeira década do século atual nasce e se fortalece o pensamento altermundialista à luz dos Fóruns Sociais Mundiais, que começaram em Porto Alegre, em 2001. Esses encontros sem fronteiras lançaram o desafio de uma mudança de paradigma, de sistema. Mediante a mobilização ativa, autoconvocada, horizontal, sem protagonismos pessoais, dedicaram-se a fortalecer as redes mundiais de uma comunidade solidária para a construção de "Outro Mundo Possível”.
Esse Outro Mundo Possível, para os altermundialistas, é e será o resultado de uma concepção renovada da participação política; a aposta em uma nova forma de democracia inclusive para todos e com todos; o chamado à participação cidadã ativa; a crítica frontal contra o capitalismo e suas devastadoras consequências sociais e ambientais; o protagonismo coletivo, especialmente o dos mais relegados; a perda do medo e a intensificação da participação popular; a visão ampla de construir inovando, sem esquemas rígidos nem exclusões ideologizantes; a reivindicação da memória histórica frente ao esquecimento do poder...
Trata-se de conceitos e práticas que coincidem com muitas das consignas-reivindicações do zapatismo e do altermundialismo, bem como das mobilizações cidadãs de 2010-2011 nos países árabes como as protagonizadas pelos indignados ou pelo movimento "ocupa”.
"Nossa ira contra a injustiça continua intacta. Não, essa ameaça não desapareceu por completo. Convoquemos uma verdadeira insurreição pacífica contra os meios de comunicação de massas que não proponham como horizonte para nossa juventude outras coisas que não sejam o consumo em massa, o desprezo aos mais débeis e à cultura, a amnésia generalizada e a competição excessiva de todos contra todos”, enfatiza Stéphanne Hessel, em sua "¡Indignaos!”, publicação que se converteu rapidamente em referência conceitual do movimento.
Essa proclama convoca à mobilização da sociedade solidária para construir um novo rumo que vá contra o poder de banqueiros e dos grandes empresários, bem como contra a corrupção dos políticos de uma democracia excludente.
"Nós, os desempregados, os mal remunerados, os subcontratados, os precários, os jovens… queremos uma mudança e um futuro digno. Estamos fartos de reformas antissociais; de que nos deixem sem trabalho; de que os bancos, que provocaram a crise, subam nossas hipotecas ou nos despejem; de que nos imponham leis que limitam nossa liberdade em benefício dos poderosos. Acusamos aos poderes políticos e econômicos de nossa precária situação e exigimos uma mudança de rumo”, protestam os indignados, em uma de suas declarações de imprensa, no início do movimento.
Hoje, a humanidade é testemunha de quase duas décadas (1994-2012) de lutas cidadãs renovadas, novos atores e formas inovadoras de entender e de fazer política. As diversas experiências empíricas enriquecem conceitualmente a busca planetária de opções sistêmicas no econômico, no social e no ecológico.
Fica pendente concretizar ditas alternativas: encher de conteúdo o "Outro Mundo Possível”; amassar aqui e agora "um mundo onde caibam muitos mundos”; transformar a indignação de estado (de ânimo) em ação transformadora. O ano de 2013 será, sem dúvida, outro momento importante desse caminhar coletivo. E a próxima edição do FSM que se realizará entre 26 e 30 de março em Túnis aposta, particularmente, em integrar de maneira muito mais férrea indignação e altermundialismo. Desafio que pode significar um passo adiante na capacidade de convocação-mobilização da sociedade civil planetária e sua busca de alternativas; retomando, ao mesmo tempo, três fontes de contribuição significativas: o capital acumulado nos países árabes nesses últimos dois anos. O reforço da mobilização social-sindical na Europa, como o expressara a greve continental do passado 14 de novembro de 2012. E a experiência enriquecida dos múltiplos processos progressistas – com suas novas formas democráticas de participação cidadã na América Latina.

[*Sergio Ferrari, em colaboração com a Agenda Latino-americana; E-CHANGER (ONG de cooperação solidária ativa); FEDEVACO (Federação de Vaud de Cooperação) y FGC (Federação Genebrina de Cooperação)].

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Revelado elo entre escravidão e riqueza de ingleses

Pesquisa disponibiliza documentos inéditos com valores e nomes de donos de escravos que foram beneficiados com indenizações públicas após a abolição.

A reportagem é de Maurício Hashizume e publicada pela agência Repórter Brasil.

Além do retorno financeiro obtido pelo próprio negócio da escravidão transatlântica (que funcionava de modo bastante similar ao de uma bolsa de valores dos dias de hoje), “investidores” privados da venda de pessoas ainda foram recompensados com grandiosas indenizações do governo inglês quando da abolição legal.

Dados tornados públicos a partir desta quarta-feira (27/02) em um arquivo na internet disponível para consulta revelam que quantias equivalentes a bilhões de libras esterlinas foram transferidas dos cofres públicos para “empreendedores” escravagistas, ou seja, muitas das fortunas de hoje estão diretamente ligadas à abolição da escravidão.

Pelos cálculos dos responsáveis pela pesquisa – centralizada na University College, de Londres –, nada menos que um quinto da riqueza dos britânicos da Era Vitoriana guardava relação com a escravidão. Entre os beneficiados, encontram-se, por exemplo, parentes do atual primeiro-ministro inglês, David Cameron, do Partido Conservador, assim como familiares do escritor George Orwell.

“Ao focalizar os proprietários de escravos, o nosso objetivo não é ‘nomear para envergonhar’ ['naming and shaming', na expressão em inglês]. Buscamos desfazer o esquecimento: a ‘re-relembrar’, como diz Toni Morrison, reconhecer as formas pelas quais os frutos da escravidão fazem parte da nossa história coletiva – incorporado em nosso país, nas casas de nossas cidades, nas instituições filantrópicas, nas coleções de arte , nos bancos comerciais e nas pessoas jurídicas, nas estradas de ferro, e nas formas que continuamos a pensar sobre raça”, explica Catherine Hall, pesquisadora-chefe da iniciativa, em artigo publicado no diário inglês The Guardian. “Proprietários de escravos estavam ativamente envolvidos na reconfiguração de corrida após a escravidão, popularizando novas legitimações para a desigualdade que permanecem parte do legado do passado colonial da Grã-Bretanha”, emenda.

O arquivo reúne 46 mil pedidos de “indenização” encaminhados por ex-donos de escravos ao governo britânico. São registros detalhados que, conforme descreve Catherine, “foram mantidos longe de todos aqueles que reivindicavam compensações” e que tinham sido sistematicamente estudados antes. Segundo ela, os documentos consistem em uma “nova luz” para se entender “como o negócio da escravidão contribuiu de forma significativa para a Grã-Bretanha tornar-se a primeira nação industrial”. O esforço de pesquisa vai de encontro, segundo a historiadora, ao desejo de homens e mulheres que almejavam que suas identidades como proprietários de escravos fossem esquecidas.

A exposição das entranhas políticas, econômicas e culturais da escravidão antiga se dá no mesmo contexto em que se fortalece um movimento nos países do Caribe (com Barbados à frente) que reivindica, junto aos governos das nações colonizadoras, formas de compensação pelos profundos danos causados pela exploração do comércio transatlântico de vidas humanas ao conjunto de ex-colonizados. Para a responsável pela pesquisa, o trabalho, que dá contornos mais palpáveis à dívida da “moderna” Grã-Bretanha com a escravidão “antiga”, tem o objetivo de contribuir “para uma compreensão mais rica e mais honesta das histórias conectadas do império”.


Marcação a ferro, prática recorrente nas antigas formas de escravidão (Foto: Reprodução)

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Franz Kafka e a Segunda-feira


Ao contrário do que dizem os apologistas do fim da História, a luta de classes não se calou. No entanto, diante da assepsia publicitária por que passam os discursos contestatórios, a lógica poética de Kafka nos leva a pensar a contrapelo de nós mesmos: se o movimento da contradição histórica não for estancado e reconfigurado, continuaremos a figurar como coadjuvantes da cadeia alimentar que nos coage à frieza, à brutalidade e ao cinismo do entrechoque entre gato e rato, de modo que a "Pequena Fábula" possa receber um título mais adequado aos tempos atuais: "segunda-feira". O artigo é de Flávio Ricardo Vassoler.


No início do século XX, Franz Kafka escreveu uma

Pequena Fábula (*)

“‘Ah’, disse o rato, ‘o mundo torna-se cada dia mais estreito. A princípio era tão vasto que me dava medo, eu continuava correndo e me sentia feliz com o fato de que finalmente via à distância, à direita e à esquerda, as paredes, mas essas longas paredes convergem tão depressa uma para a outra, que já estou no último quarto e lá no canto fica a ratoeira para a qual eu corro’. – ‘Você só precisa mudar de direção’, disse o gato e devorou-o”.

Muitas teses e antíteses já entraram em entrechoque para tentar determinar o sentido cabal que daria conta da labiríntica fábula em questão. Assim, ora a vastidão inicial do mundo estaria relacionada ao Jardim do Éden, a utopia mítica, ora ela diria respeito aos primórdios das revoluções, em que a euforia coletiva pela nova miríade de oportunidades daria vazão a um perigoso caos político que logo precisaria de restrições para não se transformar em completa balbúrdia. As paredes que acabam por despontar à direita e à esquerda seriam, então, o sinal da Queda dos homens – a perda da liberdade original pela expulsão do Éden idílico – e/ou a chegada de um ditador que, com pulso firme, colocaria ordem na desordem, uma vez que não poderia haver vácuo no poder. Religiosos e políticos fariam um breve armistício, no entanto, diante da fraqueza original do homem – o rato trêmulo – que demandaria a tutela infalível de Deus e/ou do Guia Genial dos Povos – eis a onisciência e a onipresença do gato. (Iconoclastas tanto da tradição quanto do poder, os anarquistas de plantão discordariam de ambos os lados e diriam ser necessário pôr abaixo o labirinto; se tal fato acontecesse – dizem os religiosos e políticos que apenas por ora voltam a concordar –, o bebê seria jogado fora junto com a água do banho, já não haveria motivo para discordâncias, já não haveria nem mesmo a fábula de Kafka, “nós não teríamos o que fazer, ficaríamos todos desempregados, e vocês, anarquistas, já não teriam o que destruir”.)

Diante do labirinto polissêmico de Kafka, que arremessa as interpretações contrárias e contrariadas em um turbilhão infindável de contradições, uma máxima de Oscar Wilde parece dar o tom para a contenda fabular entre Tom e Jerry. “Quando os críticos discordam entre si, o artista concorda consigo mesmo” (**).

E se ao invés de perguntarmos o que a pequena fábula quis dizer, passarmos a interrogar como ela o fez? Se voltarmos nossas atenções para a forma kafkiana de estruturação e movimentação dos conflitos, talvez cheguemos à conclusão de que a dinâmica da História está inconclusa; de que a desigualdade entre gato e rato permanece, de modo a conferir atualidade à dialética entre liberdade e autoritarismo; de que o sentido está não no conteúdo unívoco que a fábula possa conter, mas na forma polissêmica que norteia e desnorteia as mais diversas interpretações e cuja dinâmica prolonga as contradições sem reconciliar os conflitos que a História ainda não resolveu. A meu ver, a atualidade de Kafka reside na plasticidade da moldura de seu labirinto, cujas galerias comportam os entrechoques das mais diversas teses e antíteses. Analisemos, então, o modo pelo qual a forma distópica, em estreito diálogo com as contradições históricas, transforma os discursos utópicos em antecâmaras do labirinto, ao fim do qual a saída não passa de uma nova entrada. Senão, vejamos.

Em primeiro lugar, é preciso salientar o caráter fabular da breve estória kafkiana. Animais com características humanas vivenciam experiências e procuram torná-las inteligíveis para si próprios – e para os leitores. Animais sociais que somos, nós não vivemos em meio à natureza sem a mediação das transformações históricas. Assim, o processo de identificação entre o leitor humano e as personagens animais apresenta, desde o princípio, um sentido trágico e cínico para a fábula: como a humanidade ainda não conseguiu superar as contradições de um capitalismo voraz que arremessa seus súditos em relações de competição contínua e autofágica, a personificação dos animais e a animalização das pessoas medem a distância histórica entre a utopia não realizada e a distopia de nosso cotidiano. Ademais, a cadeia alimentar que coage os animais – mas que não deveria coagir os animais racionais – estabelece uma hierarquia inequívoca entre gato e rato: predador e presa. Quando entreveem essa assimetria, muitos leitores associam imediatamente a figura do gato ao poder, enquanto o rato representaria o povo secularmente acossado. Tal leitura não leva em consideração a lógica impessoal do poder que subjaz à construção kafkiana.

O século XX, século kafkiano, demonstrou que a revolução bem pode degringolar em contrarrevolução. O líder fascista Benito Mussolini certa vez afirmou que, após a revolução, resta o problema dos revolucionários. Seria possível exercer contínuas autocríticas sem municiar os opositores que almejam o poder? Mas sem o exercício contínuo da crítica e da autocrítica, como garantir que o poder e os poderosos não demandarão a autocracia? Ora, os primórdios da revolução pareciam ter transformado o mundo em mera imagem e representação, tudo parecia possível. Trótski certa vez profetizou que, em meio à sociedade transformada pelo socialismo, o nível médio dos cidadãos seria comparável a Marx e a Aristóteles. Antes que conservadores onipresentes riam do revolucionário russo, é preciso levar em consideração o profundo otimismo histórico que embasava tal colocação. A revolução prometia romper os aguilhões que impediam o desenvolvimento humano. Artistas russos chegaram a declinar da autoria de suas obras. “Não fomos nós que as criamos, a história falou através de nós, o proletariado é o grande autor”. Mas os interrogatórios vindouros da polícia política de Stálin acabariam com o otimismo da autoria coletiva. “Vamos, confesse!” O patíbulo e o degredo na Sibéria como testemunhas oculares.

A esquerda tende a se endireitar quando toma as rédeas do poder. A direita não sabe bem o que fazer com o bastão da oposição, mas precisa minimamente contestar se quiser sobreviver em sua mais nova e insólita posição. A História nos ensina que a lógica do poder tende a subverter e a inverter as prerrogativas do líder, grupo e partido que ocupam o trono.

Nesse sentido, gato e rato são menos papéis demarcados e unívocos do que funções dinâmicas a serem ocupadas ora por um ator, ora por outro. Se os esquerdistas não estudarmos as lições de Kafka, estaremos fadados a vestir ainda uma vez a fantasia do gato para colocarmos os trajes de rato naqueles que a revolução obrigou a ceder as velhas vestes de felino. Assim, campos de concentração siberianos, os Gulags de Stálin, revoluções culturais que queimaram livros e paredões não conseguiram romper a lógica taliônica do poder que os revolucionários outrora afirmavam utilizar apenas momentaneamente enquanto o capitalismo não era superado por completo. (Quando os porões da Estação da Luz ficavam superlotados, os torturadores do DOPS paulistano não tinham quaisquer escrúpulos em voltar a dar aulas prática de lógica do poder àqueles que ousavam não delatar os camaradas que ainda não haviam sido presos.)

Ao voltarmos ainda uma vez para a Pequena Fábula, descobrimos que, a princípio, o rato se lamenta pela crescente estreiteza do mundo. O rato, animal combalido em face do gato vindouro, parece demandar maior liberdade. (Se a estória parasse por aqui, os anarquistas iriam a Praga a fim de convidar Franz Kafka para o congresso literário de maio de 1968.) Mas a frase seguinte – a antítese em face da tese que a primeira frase apresenta – narra um ratinho temerário em relação à vastidão inicial do mundo. Podemos deduzir, então, que havia uma imensidão anterior à contínua estreiteza do mundo com a qual o rato se depararia posteriormente. Como decidir qual a posição efetiva do rato? Ele teme as múltiplas possibilidades de um mundo vasto, mas ao mesmo tempo se lamenta por conta do contínuo emparedamento a que o mundo transformado o coage. Enquanto os críticos partidários quiserem atribuir um conteúdo unívoco à trajetória do rato, não será possível ver que a lógica poética de Kafka, ao mimetizar os movimentos contraditórios da História, arremessa o roedor ora à direita, ora à esquerda, ora como sujeito de suas demandas, ora como súdito de seu medo, de modo que a leitura que opte por um único sentido acaba resolvendo artisticamente um conflito que, no terreno da luta de classes, ainda não foi superado. Assim, a despeito da boa intenção inicial que não sabe agir sem tachar amigos e inimigos, camaradas e inimigos do Estado, companheiros e opositores, a tentativa de arregimentar Kafka em um partido ou tendência únicos dilui a enorme atualidade de sua forte crítica social que está presente na dinâmica de sua estória, na lógica poética de sua fábula. O problema para a crítica partidária é que a crítica social kafkiana não resolve as contradições que a História só faz prolongar, e então ela se mostra impessoal e sem muita utilidade para aqueles que só cumprirão os desígnios do poder sem romper com a sua lógica histórica que delineia e define as fronteiras das ações políticas.

O advérbio finalmente, na segunda frase da fábula, traz um certo alento ao pobre ratinho que, enfim, vê as paredes de Deus, do Pai, do pai, do partido, da empresa, do casamento, do clube etc. do etc. lhe darem novamente um mínimo de segurança. Para aqueles que não estamos acostumados a viver segundo o ritmo incerto da liberdade socialmente construída, as contradições históricas sussurram que tende a haver uma grande contiguidade entre o medo de caminhar com as próprias pernas e a entrega da própria autonomia a terceiros para que a incerteza pessoal seja permutada pela tutela alheia. (Se o labirinto de Kafka tivesse os contornos de uma catedral, o ratinho comeria a hóstia e se confessaria com o padre “por séculos e séculos, amém”.) Mas, novamente, Kafka dá dinamismo ao movimento da contradição, já que o ratinho passa a sentir que, agora, “essas longas paredes convergem tão depressa uma para a outra”. Vale a pena retomarmos o fio da meada: primeiro o rato é altivo, pois reclama da estreiteza do mundo – rato revolucionário; depois o ratinho sente medo pela vastidão inicial e se alivia com o fato de que, à distância, à direita e à esquerda, as paredes, isto é, os limites, passam a se delinear – ratinho reacionário; agora, ele volta a se contrapor ao movimento do labirinto, uma vez que as paredes que se estreitam cada vez mais passam a coagi-lo. Além de sugerir que há uma contiguidade entre os extremos, como se a liberdade total e a coação totalitária trouxessem temores e tremores parelhos, a pequena fábula de Kafka nos leva ao “último quarto”, em cujo canto fica a ratoeira para a qual o rato se encaminha.

Abstraiamos o conteúdo da micronarrativa e tentemos desenhar o trajeto patibular de Mickey Mouse. O descampado idílico do Gênesis não tem fronteiras. O olhar do roedor não consegue abraçar o horizonte. (E, se pensarmos bem, será que conseguimos imaginar a noção do infinito sem que, no limite, coloquemos algum tipo de delimitação – uma cerca – para nos dar guarida?) De repente, o rato marcha – começa a correr de medo, a bem dizer – e as paredes convergem, à direita e à esquerda. Ora, salvo engano – e o poder bem gosta de nos ludibriar –, estamos cada vez mais diante de um funil, a metade de um losango, em cujo extremo desponta a ratoeira. Ora, o ratinho revolucionário e reacionário é provido de razão, só que o cérebro roedor precisa das proteínas do queijo para continuar a pensar, a questionar – e a temer. Mas – e o fluido das contradições kafkianas sempre desliza ao sabor de conjunções adversativas –, se as paredes convergem unidirecionalmente, basta ao rato dar meia-volta – a História fardada diria: “volver!” – para que as paredes antes convergentes passem a divergir e a se distanciar. O mundo voltará a ficar vasto, o Éden será então recuperado, mas e quanto ao medo, o irmão mais novo do pecado original? A Pequena Fábula de Kafka seria uma estória sem fim, já que a retomada da vastidão levaria o rato novamente à fuga para o extremo oposto em que está a ratoeira, e, ao se deparar com o beco sem saída, ele sentiria a nostalgia do paraíso perdido do qual fugiria ainda uma vez para logo em seguida voltar a buscá-lo – “por séculos e séculos, amém”.

Mas eis que a criatividade de Kafka acompanha as contradições irresolutas da História e faz surgir na estória uma nova personagem, o bichano que esta análise já havia anunciado. Leiamos o conselho que o gato, possível autor de best-sellers de autoajuda, tem a dar ao roedor – e aos leitores:

– Você só precisa mudar de direção.

Por um lado, se o rato seguir o conselho do gato, logo encontrará a diluição de seus temores e tremores no suco gástrico do estômago felino. Por outro, se o rato degustar o queijo gorgonzola que o magnetiza sobre a ratoeira, já não haverá mais choro e ranger de dentes. Que fazer?

Neste momento, o leitor me permitirá a heresia de apontar um certo anacronismo na Pequena Fábula kafkiana. O escritor tcheco complementou a colocação do gato com o seguinte arremate: “disse o gato e devorou-o”. Será que, no atual contexto histórico, seria preciso dizer que o gato devorou o rato? Onde estão as efetivas contestações? Onde está a revolução? Quando uma rede de fast food árabe utilizou, há alguns anos, o mote revolução nos preços para os preços revolucionários de suas esfihas abertas, cujos anúncios eram apresentados com a boina de Che Guevara, entrevi o labirinto histórico em que estamos encurralados. O discurso potencialmente emancipatório é cooptado como um lucrativo slogan de mercado. Ao contrário do que diziam os revolucionários de maio de 68, o capitalismo tardio sentencia que a revolução será televisionada.

O arremate de Kafka mostrou-se profético diante do espectro nazista que, nas primeiras décadas do século XX, já rondava a Europa. Hoje, no entanto, o carrasco parece ter sido introjetado, não sabemos muito bem onde está o poder – quem, ou pior, o que ele é. Mas ele nos acorda cotidianamente às 5h – ou às 8h, para o privilégio dos paulistanos que moram dentro do perímetro central circundado pelas marginais. Se retirarmos a última parte da frase que conclui a Pequena Fábula, levaremos às últimas consequências o labirinto kafkiano. Afinal, após o conselho do gato, o que é que o rato vai fazer? Fugirá do gato e correrá para o patíbulo da ratoeira? Tapeará a fome e renegará a ratoeira apenas para correr em direção ao corredor polonês da garganta do gato? Ou será que, diante deste novo fim não finalizado, desta nova resolução irresoluta que propomos, o rato não lançará mão de um dos últimos redutos que (ainda) não foram totalmente cooptados pelo poder – a imaginação? Por mais exígua e improvável que a escapatória se apresente, um final que pressuponha maior abertura daria continuidade à contradição da estória e da História: a possibilidade de fuga caminharia lado a lado com o prolongamento sádico da tortura do ratinho.

Ao contrário do que dizem os apologistas do fim da História, a luta de classes não se calou. No entanto, diante da assepsia publicitária por que passam os discursos contestatórios, a lógica poética de Kafka nos leva a pensar a contrapelo de nós mesmos: se o movimento da contradição histórica não for estancado e reconfigurado, continuaremos a figurar como coadjuvantes da cadeia alimentar que nos coage à frieza, à brutalidade e ao cinismo do entrechoque entre gato e rato, de modo que a Pequena Fábula possa receber um novo título mais condigno com o prosaísmo (supostamente) despolitizado dos tempos atuais: Segunda-feira.

(*) In Narrativas do Espólio, tradução de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 138.

(**) Aforismos ou mensagens eternas, tradução de Duda Machado. São Paulo: Landy Editora, 2006, p. 69.

Flávio Ricardo Vassoler é mestre e doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP e escritor. Seu primeiro livro, O Evangelho segundo Talião (Editora nVersos), será publicado em abril. Periodicamente, atualiza o Subsolo das Memórias, www.subsolodasmemorias.blogspot.com, página em que posta fragmentos de seus textos literários e fotonarrativas de suas viagens pelo mundo.

Cantor Daniel Viglietti denuncia golpe de estado jurídico no Uruguai



Preso pela ditadura em 1972, Viglietti afirmou que a Suprema Corte de Justiça deu um golpe de Estado jurídico | Foto: Libertinus
Da Redação do SUL21
O cantor uruguaio Daniel Viglietti denunciou que a Suprema Corte de Justiça do Uruguai (SCJ) deu “um tipo de golpe de Estado jurídico” que pretende liquidar com os processos contra os criminosos da ditadura (1973 – 1985). Viglietti afirmou que a SCJ busca impedir que sejam julgados os “que torturaram, assassinaram e sequestraram”.
“Se, por um lado, o estado escavou a terra para encontrar os corpos, é preciso continuar escavando a sociedade para encontrar os responsáveis por tudo isso”, afirmou o cantor e compositor de 73 anos de idade à Prensa Latina.
Nesta sexta-feira (22), a Suprema Corte emitiu uma sentença considerando inconstitucional a lei aprovada em 2011 que permitia a investigação de crimes ocorridos durante a ditadura, antes abrigados sob a lei da anistia, aprovada em 1986. A decisão ganhou o apoio da direita e foi condenada pelo governo esquerdista.
Para o vice-presidente da coalizão governista Frente Ampla, Juan Castillho, a decisão foi “uma barbaridade”. “O recado que está sendo dado às vítimas e a suas famílias é aterrorizante”, lamentou o político. O partido do presidente José Mujica emitiu um comunicado na segunda-feira (25) afirmando que “a maioria da SCJ é responsável pela manutenção da impunidade”. O PVP, outro partido que integra a Frente Ampla, afirmou que irá denunciar a SCJ à Corte Interamericana de Direitos Humanos.
A oposição direitista criticou o posicionamento do governo após a decisão: “Não respeitam o povo quanto vota, nem os juízes quando ditam sentença; acreditam estar por cima da Constituição”, escreveu o senador Ope Pasquet, do Partido Colorado, no Twitter.
O porta-voz da SCJ, Raúl Oxandabart, afirmou que “o destino de cada um dos procedimentos ou julgamentos sobre os crimes da ditadura dependem do juiz da causa, e nisso a SCJ não pode intervir”. Segundo o El País, a decisão determina que causas judiciais abertas nas quais não há militares processados por crimes na ditadura devem ser arquivadas. As causas nos quais já há processados, no entanto, poderão continuar a ser investigadas.

| Foto: Victor Farinelli/Opera Mundi
Protesto
Nesta segunda-feira (25), milhares de uruguaios, entre eles o escritor Eduardo Galeano, protestaram contra a decisão e exigiram o fim da impunidade pelos crimes da ditadura. Os manifestantes, convocados pela Frente Ampla e por várias organizações de defesa dos direitos humanos, se concentraram na Praça Cagancha, em frente à sede da SCJ. Ao redor da Coluna da Paz, monumento simbólico da Plaza Cagancha, em Montevidéu, havia pouco mais de 25 mil uruguaios em protesto. Após cinco minutos de silêncio, vieram os aplausos, abraços, lágrimas e o hino do país.
Terminada a parte protocolar do ato, os gritos passaram a ser variados, e direcionados a um dos flancos da praça, onde está o prédio da Suprema Corte de Justiça do Uruguai. Foi de lá que saiu, na última sexta-feira (22/02), a decisão que motivou o evento.
O tribunal de justiça do país declarou inconstitucionais os dois artigos centrais da chamada Lei de Interpretação, aprovada pelo Congresso do país em 2011, e que anulava os efeitos da Lei de Caducidade (similar à Lei de Anistia no Brasil), pela qual se determina a prescrição dos crimes da ditadura uruguaia (1973-1985).

A Cagancha, ontem | Foto: Victor Farinelli/Opera Mundi
Com informações da Radil Del Sur, Opera Mundi, Terra e O Globo

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Medvedev destaca laços estratégicos da Rússia com América Latina



Os laços com a América Latina e o Caribe, considerados estratégicos, e o bloqueio dos Estados Unidos contra Cuba, que considerou anacrônico, foram alguns dos tópicos tratados pelo primeiro-ministro da Rússia, Dimitri Medvedev, em entrevista à agência noticiosa cubana Prensa Latina.


Para o primeiro-ministro russo, “as relações com os países da América Latina e Caribe não são conjunturais e nada têm a ver com as relações com outros países, sejam os Estados Unidos ou outras nações; aqui temos vários países amistosos com os quais estamos desenvolvendo uma colaboração em todos os níveis”.

Tendo em conta a análise do papel político e econômico da região, Medvedev afirma que se trata de uma região “de interesse estratégico e de aliados, por isso mantemos excelentes relações diplomáticas e econômico-comerciais com os países da região”.

O governante russo conta que acaba de visitar o Brasil, “o maior país da região, a quinta economia do mundo, que participa do Brics e com o qual mantemos vínculos muito variados”. Destacando o papel de outros países da região, assinala: “Podemos dizer o mesmo sobre a Argentina, o Chile, a Venezuela, o Equador e outros países com os quais mantemos relações muito avançadas”.

Rússia e Cuba

O primeiro-ministro russo se considera “otimista” quanto ao desenvolvimento das relações com Cuba. E explica os motivos. “Agora estou realizando uma visita a Cuba, que inclui todos os principais componentes de nossas relações, boas, tradicionais e avançadas. Nos últimos anos temos conseguido restabelecer um alto nível das relações cubano-russas e russo-cubanas. Nesta visita mantivemos negociações sobre todos os aspectos de nossa cooperação, seja econômica, humanitária e de política externa”.

Medvedev explica ainda que as relações entre a Rússia e Cuba não têm nenhum tema problemático. “Pelo contrário, avançamos em todas as direções”, enfatiza. Ele exemplifica que os dois governos assinaram 10 documentos muito importantes, cada um dos quais inclui oportunidades econômicas e soluções estatais e conta que manteve negociações amistosas e de confiança com o presidente do Conselho de Estado e de Ministros da República de Cuba, Raúl Castro Ruz. “Foi o nosso segundo encontro, já que nosso colega cubano visitou a Rússia há pouco.” Medvedev lembrou que em 2009 ele e Raúl Castro assinaram o memorando sobre relações estratégicas entre Cuba e a Federação Russa e que o desenvolvimento das relações entre os dois países se rege por este plano.

Medvedev detalha os aspectos que considera importantes nessas relações: “Colaboramos em muitas esferas, tanto tradicionais como novas. Não vou falar muito sobre projetos energéticos, pois uma parte deles já está realizada, ao passo que a outra parte será realizada. Gosto muito de nossos projetos no âmbito das altas tecnologias, seja a medicina, o espaço ou alguns planos industriais nos quais temos avançado muito”.

O primeiro-ministro teceu considerações sobre o estágio de desenvolvimento das relações comerciais e econômicas: “Provavelmente o atual intercâmbio comercial não esteja no nível que deveria, um pouco mais de US$ 200 milhões, o que não é muito. Os planos de investimentos são bons e crescerão, mas a circulação de mercadorias não é muito grande. Contudo, estou seguro de que é um assunto em mutação e que este indicador irá subindo e adquirindo novas formas de colaboração”.

Uma das áreas mencionadas por Medvedev foi o turismo. “Recuperamos em grande parte os contatos de circulação de pessoas. No ano passado, cerca de 90 mil turistas russos visitaram Cuba, apesar da enorme distância entre os dois países. Nossa gente conscientemente escolhe Cuba como destino para descanso e turismo. As pessoas gostam daqui, sentem-se cômodas aqui e têm sentimentos amistosos para com os cubanos, gostam de descansar aqui. Temos um fundamento muito sólido criado em outro período histórico e creio que é sumamente importante para nós não só conservar o que foi feito, mas também fortalecê-lo”.

Medvedev encerra seus comentários sobre as relações com Cuba, mencionando os encontros que manteve com os líderes da Revolução. “Depois da reunião com Raúl Castro tive uma conversação com o comandante Fidel, de carácter informal. Foi meu segundo encontro desse tipo com ele, o primeiro foi em 2008. Foi muito interessante falar com Fidel, escutar suas sensações sobre o que está ocorrendo, ele está muito bem informado sobre todos os acontecimentos internacionais. Falamos de distintos assuntos, como o desenvolvimento da economia cubana e os problemas mundiais. Em geral, falamos das coisas mais diversas e até de alguns fatos extraordinários como a explosão de um meteorito no céu sobre a Rússia ou o problema do gás de xisto. Parece-me que conversações como estas demonstram que o potencial de nossas relações não só tem muita história, mas também um futuro maravilhoso. Para mim pessoalmente é muito interessante.”

Rússia e EUA

A entrevista com o primeiro-ministro russo abordou temas estratégicos de interesse mundial, nomeadamente as relações bilaterais com os Estados Unidos. “Temos passado por diferentes períodos em nossas relações. É preciso reconhecer que em geral nos últimos anos nossas relações não se desenvolveram mal, porque temos conseguido preparar e assinar documentos muito importantes, inclusive o Tratado de Redução de Armas Estratégicas Ofensivas e alguns acordos comerciais. Nossos colegas estadunidenses favoreceram nosso ingresso na Organização Mundial de Comércio (OMC). São fatos positivos.

Contudo, nossas atitudes a respeito de alguns assuntos se diferenciam seriamente. Um deles é o armamento, inclusive a defesa antimísseis. Apesar de todas as nossas tentativas de explicar aos estadunidenses que vemos a defesa antimísseis europeia em seu estado proposto como um sistema dirigido contra a Federação Russa e nosso potencial atômico (com o qual agora se mantém uma paridade nuclear no mundo), os Estados e a Otan não gostam dos nossos argumentos. Tratam de tranquilizar-nos dizendo ‘não é contra vocês, mas contra outros países’. Infelizmente, estas considerações não nos parecem convincentes”.

Medvedev adverte para os perigos que tais divergências encerram para a situação internacional. “Se não conseguimos chegar a nenhum acordo, as consequências para as relações internacionais poderiam ser muito desagradáveis, porque teríamos que tomar medidas de resposta; qualquer governo russo, teria que tomar, qualquer dirigente da Rússia teria que tomar medidas, simplesmente porque assim determinam os nossos interesses estratégicos.”

O chefe do governo russo menciona ainda outros fatores agravantes nas relações com os Estados Unidos. “De fato, depois de nosso ingresso na OMC e de uma aparente normalização das relações econômico-comerciais e da abolição de certas emendas discriminatórias muito conhecidas... os Estados Unidos gostam de aprová-las e algumas eram dirigidas contra nosso país; mencionaremos também o bloqueio econômico a Cuba e por certo, quero destacar que não mudaremos nossa posição e consideramos que é uma medida indigna, um anacronismo e quanto antes seja eliminado, melhor será para todos, não só para os cubanos, mas para os estadunidenses em primeiro lugar. Voltando às nossas relações com os Estados Unidos, simultaneamente com a revogação da chamada emenda Jackson-Vanik, aprovaram um documento claramente anti-Rússia, a chamada 'Ley Magnitski'.”

“Em reiteradas ocasiões, dei minha visão sobre a natureza deste documento e considero que se trata da politização de um caso muito triste que ocorreu com um cidadão da Rússia. Mas algumas forças políticas, não digo que seja a administração dos Estados Unidos no sentido estrito da palavra, fizeram aprovar este documento, com o apoio dos legisladores. Tivemos que responder. Eu falei sobre isso quando era presidente e o mandatário atual, Vladimir Putin, também tinha avisado os Estados Unidos. Mas tivemos que tomar medidas em resposta como a lei sobre a responsabilidade das pessoas que violam os direitos humanos e interesses dos cidadãos russos. Este é um bom caminho? Não. É um mau caminho e quanto menos motivos surjam, melhor será para as relações russo-americanas em particular e as relações internacionais em geral.”

O primeiro-ministro da Federação Russa também discorreu sobre a crise econômica internacional e se mostrou otimista com o desenvolvimento de seu país nos campos econômico, social, científico e tecnológico. Medvedev crê que a Rússia pode desempenhar um papel ativo na construção de uma nova arquitetura econômico-financeira mundial, baseada na cooperação e no policentrismo.

Com Prensa Latina

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Cuba, seu povo, seus sonhos

Por Mauro Santayana, em seu blog: via BLOG DO MIRO
Podemos discordar do regime político de Cuba, que se mantém sob o domínio de um partido único. Mas é preciso seguir o conselho de Spinoza: não lisonjear, não detestar, mas entender. Entender, ou procurar entender. A história de Cuba – como, de resto, de quase todo o arquipélago do Caribe e a América Latina – tem sido a de saqueio dos bens naturais e do trabalho dos nativos, em benefício dos colonizadores europeus, substituídos depois pelos anglossaxões.
E, nessa crônica, destaca-se a resistência e a luta pela soberania de seu povo não só contra os dominadores estrangeiros, mas, também, contra seus vassalos internos.
Já se tornou lugar comum lembrar que, sob os governos títeres, Havana se tornara o maior e mais procurado bordel americano. A legislação, feita a propósito, era mais leniente, não só com o lenocínio, e também com o jogo, e os mais audazes gangsters de Chicago e de Nova Iorque tinham ali os seus negócios e seus retiros de lazer. E, mais: as mestiças cubanas, com sua beleza e natural sensualidade, eram a atração irresistível para os entediados homens de negócios dos Estados Unidos.
A Revolução Cubana foi, em sua origem, o que os marxistas identificam como movimento pequeno burguês. Fidel e seus companheiros, no assalto ao Quartel Moncada – em 1953, já há quase 60 anos - pretendiam apenas derrocar o governo ditatorial de Fulgencio Batista, que mantinha o país sob cruel regime policial, torturava os prisioneiros e submetia a imprensa à censura férrea. A corrupção grassava no Estado, dos contínuos aos ministros. O enriquecimento de Batista, de seus familiares e amigos, era do conhecimento da classe média, que deu apoio à tentativa insurrecional de Fidel, derrotada então, para converter-se em vitoria menos de 6 anos depois. Os ricos eram todos associados à exploração, direta ou indireta, da prostituição, disfarçada no turismo, e do trabalho brutal dos trabalhadores na indústria açucareira.
Foi a arrogância americana, na defesa de suas empresas petrolíferas, que se negaram a aceitar as novas regras, que empurrou o advogado Fidel Castro e seus companheiros, nos dois primeiros anos da vitória do movimento, ao ensaio de socialismo. A partir de então, só restava à Ilha encampar as refinarias e aliar-se à União Soviética.
Os americanos, sob o festejado Kennedy – que o reexame da História não deixa tão honrado assim – insistiram nos erros. A tentativa de invasão de Cuba, pela Baía dos Porcos, com o fiasco conhecido, tornou a Ilha ainda mais dependente de Moscou, que se aproveitou do episódio para livrar-se de uma bateria americana de foguetes com cargas atômicas instalada na Turquia, ao colocar seus mísseis a 100 milhas da Flórida, no território cubano.
A solução do conflito, que chegou a assustar o mundo com uma guerra atômica, foi negociada pelo hábil Mikoyan: Kruschev retirou os mísseis de Cuba e os Estados Unidos desmantelaram sua bateria turca, ao mesmo tempo em que assumiram o compromisso de não invadir Cuba – mas mantiveram o bloqueio econômico e político contra Havana. Enfim, ganharam Moscou e Washington, com a proteção recíproca de seus espaços soberanos – e Cuba pagou a fatura com o embargo.
O malogro do socialismo cubano nasceu desse imbróglio de origem. Tal como ocorrera com a Rússia Imperial e com a China, em movimentos contemporâneos, o marxismo serviu como doutrina de empréstimo a uma revolução nacional. O nacionalismo esteve no âmago dos revolucionários cubanos, tal como estivera entre os social-democratas russos, chefiados por Lenine e os companheiros de Mao.
Os cubanos iniciaram reformas econômicas recentes, premidos, entre outras razões, pelo fim do sistema socialista. Ao mesmo tempo tomaram medidas liberalizantes, permitindo as viagens ao exterior de quem cumprir as normas habituais. É assim que visita o país a dissidente Yoani Sánchez (que mantém seu blog na internet de oposição ao governo cubano). Ocorre que ela não é tão perseguida em Havana como proclama e proclamam seus admiradores. Tanto assim é que, em momento delicado para a Ilha, quando só pessoas de confiança do regime viajavam para o Exterior, ela viveu 2 anos na Suíça, e voltou tranquilamente para Havana.
É sabido que ela mantém encontros habituais com o escritório que representa os interesses norte-americanos em Cuba, como revelou o WikeLeaks. Há mais, ela proclama uma audiência que não tem, como assegura o sistema de registro mais confiável, o da Alexa.com. (citado por Altamiro Borges em seu site) em que ela se encontra no 99.944º lugar na audiência mundial, enquanto o modesto jornal O Povo, de Fortaleza, se encontra na 14.043ª posição, ou seja dispõe de sete vezes mais seguidores do que Yoani. Há mais: ela afirma que tem 10 milhões de acessos por mês, o que contraria a lógica de sua posição no ranking citado. O site de maior tráfego nos Estados Unidos é o do New York Times, com 17 milhões de acessos mensais.
Apesar de tudo isso, deixemos essa senhora defender o seu negócio na internet. É seu direito dizer o que quiser, mas não podemos tolerar que exija do Brasil defender os direitos humanos, tal como ela os vê, em Cuba ou alhures. Um dos princípios históricos do Brasil é o da não interferência nos assuntos internos dos outros países. O problema de Cuba é dos cubanos, que irão resolvê-lo, no dia em que não estiverem mais obrigados a se defender da intervenção dos estrangeiros, que vêm sofrendo desde que os espanhóis, ainda no século 16, ali se instalaram. Foram substituídos pelos Estados Unidos, depois da guerra vitoriosa de Washington contra o frágil governo da Regente Maria Cristina da Espanha. Enfim, o generoso povo cubano, tão parecido ao nosso, não teve, ainda, a oportunidade de realizar o seu próprio destino, sem as pressões dos colonizadores e seus sucessores.
Dispensamos os conselhos da Sra. Sánchez. Aqui tratamos, prioritariamente, dos direitos humanos dos brasileiros, que são os de viver em paz, em paz educar-se, e em paz trabalhar, e esses são os direitos de todos os povos do mundo. Ela, não sendo cidadã de nosso país, não deve, nem pode, exigir nada de nosso governo ou de nosso povo. Dispensamos seus avisos mal-educados e prepotentes, e esperamos que seja festejada pela direita de todos os países que visitará, à custa de seus patrocinadores (como o Instituto Millenium), iludidos pelo seu falso prestígio entre os cubanos.

Um freiriano de verdade

Elaine Tavares



Conheço educadores demais que falam de Paulo Freire, citam Paulo Freire, idolatram Paulo Freire, que têm retratos de Paulo Freire pendurados em suas salas. Mas os conheço de menos na prática cotidiana daquilo que o mestre pernambucano ensinou: respeito ao conhecimento do outro, espaço para a autonomia, relações verdadeiramente amorosas, construção solidária e cooperativa do saber. 

Dentre esses poucos há um em particular que me emociona. Chama-se Leopoldo Nogueira. É formado em Pedagogia e é mais um dos tantos professores temporários da rede municipal de ensino de Florianópolis. Ser um "temporário" já é uma grande barra. O professor não tem direito algum, não tem férias, nem segurança, nem décimo terceiro. Quando chega o final do ano ele é demitido e tem de fazer a cada ano o processo seletivo. Nada garante que ele vá passar, nem, se passando, vá voltar para a mesma escola, o que faz com que seja quase impossível estabelecer um vínculo amoroso com os educandos e com a escola. 

O Leopoldo faz das tripas coração para driblar essa forma perversa que o estado encontrou para "deseducar". Afinal, como é possível uma educação sem a quentura amorosa da proximidade do professor, da relação humana, do compromisso? Um professor paulofreiriano precisa inventar-se a toda hora para superar o crime imposto pela irresponsabilidade do estado. Leopoldo foi chamado para atuar na sala de informática da Escola Beatriz de Souza Brito, que fica no bairro Pantanal. Em poucos meses ele já havia estabelecido uma ligação tão profunda com estudantes e professores que as belezas escondidas da educação começaram a fluir. Seu método de trabalho é o amor. Não a coisa piegas do sentimento. Não. É o amor compromisso, do qual fala Enrique Dussel, o que se compromete com o outro, diferente, mas real. Seu campo de "brincadeiras educativas" é a América Latina, ou Abya Yala (o nome originário) a qual faz questão de carregar por onde vai. Nenhuma criança que passe por seu caminho sai dele sem conhecer as raízes profundas do espaço geográfico onde vive. Leopoldo atua na educação fundamental e sua pedagogia é a brincadeira, o riso, o trabalho verdadeiramente solidário e participativo. Cada ação promovida na escola tem a mão, a mente e o coração de todas as crianças. Não é sem razão que quando ele chega no portão, elas irrompam em transloucada gritaria, de pura festa. 

Com os alunos ele produz vídeos, imagens, pesquisas, saberes, conhecimento. É sempre uma educação "com" a criança, nunca para a criança. Na alegria das peraltices, como subir nas árvores para descobrir os passarinhos, ele vai descortinando a vida e promovendo a educação. No final do ano, mesmo sem saber se voltaria no ano seguinte, ele iniciou a construção de um calendário para 2013. Cada grupo de alunos iria pesquisar sobre uma árvore. E assim foi. Os pequenos ocuparam seus dias na incessante busca de informação que se concretizou num trabalho lindo, totalmente feito por dezenas de mãos. Em cada mês do ano, ali está, a árvore, sua história, suas funções, sua flor e suas semente, assim como a carinha sorridente da equipe que a desvelou. Na pedagogia do Leopoldo, os alunos não são "atores sociais", aqueles que falam com a voz do outro. Eles são "autores", aqueles que criam a sua própria palavra. 

Eu, que acompanho o delicado trabalho que Leopoldo faz, me pego em lágrimas quando o vejo, nas férias, já sem vencimentos, suando em bicas, carregando seu laptop velho, buscando um ponto de internet para terminar seu trabalho, com aquele entusiasmo só possível em pessoas que se doam inteiras para seus sonhos. E os olhos brilhantes varam as noites em busca da melhor imagem, a melhor palavra, a melhor ideia. Tudo para depois compartilhar nas manhãs ensolaradas do Pantanal em meio a insana gritaria criadora. 

Às vezes, de dentro do ônibus que me leva para o centro, o vejo descendo a ladeira da Escola, cercado pelos alunos, na algaravia infernal. E ele, gordito e sorridente, vai contando histórias, registrando carinhas, fazendo brincadeiras, girando o guarda-chuva colorido. E tem essa capacidade tão imensa de se fazer igual que, num átimo, ele se apequena, perde a barba branca, se adelgaça e vira mais um menino, de olhos graúdos feito jabuticaba  a fazer traquinagens pelas ruas do Pantanal. Paulo Freire deve olhar para ele lá de cima e sorrir, satisfeito.

domingo, 24 de fevereiro de 2013

Louis Armstrong - First Class Jazz - 2006




01 - Louis Armstrong - Coal Cart Blues [02:57]
02 - Louis Armstrong With Gordon Jenkin's Orch [02:54]
03 - Louis Armstrong & The Allstars - New Orle [06:45]
04 - Louis Armstrong With Louis Jordan & His T [03:07]
05 - Louis Armstrong - When It's Sleepy Time D [03:16]
06 - Louis Armstrong - Introduction + Basin St [06:19]
07 - Louis Armstrong & Ella Fitzgerald - Moonl [03:44]
08 - Louis Armstrong - Introduction + Dear Old [04:21]
09 - Louis Armstrong - And the Angels Sing [02:55]
10 - Louis Armstrong & Ella Fitzgerald - I Won [04:47]
11 - Louis Armstrong & Ella Fitzgerald - Bess, [05:31]
12 - Louis Armstrong & Oscar Peterson - Blues [05:16]
13 - Louis Armstrong & Oscar Peterson - What's [02:43]
14 - Louis Armstrong - Shadrack [02:47]
15 - Duke Ellington & Louis Armstrong - Solitu [04:55]
16 - Duke Ellington & Louis Armstrong - It Don [03:58]
17 - Louis Armstrong - A Kiss to Build A Dream [04:35]


Pablo Milanés: 70 anos hoje


Urariano Mota: Começam a justificar a tortura, perigo à vista

Do blog VIOMUNDO


por Urariano Mota, em Direto da Redação, dica de Paulo Dantas e Artur Scavone
Recife (PE) – Nesta quinta-feira, Contardo Calligaris na Folha de São Paulo deu à sua coluna o mesmo título desta agora. Diz ele:
“O saco plástico do capitão Nascimento funciona. Os ‘interrogatórios’ brutais do agente Jack Bauer, na série “24 Horas”, funcionam. E, de fato, como lembra ‘A Hora Mais Escura’, de Kathryn Bigelow, que acaba de estrear, o afogamento forçado e repetido de suspeitos detidos em Guantánamo forneceu as informações que permitiram localizar e executar Osama bin Laden.
Nos EUA, na estreia do filme, alguns se indignaram, acusando-o de fazer apologia da tortura. Na verdade, o filme interroga e incomoda porque nos obriga a uma reflexão moral difícil e incerta: a tortura, nos interrogatórios, não é infrutuosa -se quisermos condená-la, teremos que produzir razões diferentes de sua inutilidade”.
Antes de mais nada, vale ressaltar que há muito o cinema norte-americano naturaliza a tortura, a injustiça, a exclusão. Desde Hollywood ele tem sido sentinela avançado do modo capitalista, na propaganda dos valores da formação do homem norte-americano. De passagem, lembro um filme de Ford (sim, do grande Ford) em que John Wayne ouve a seguinte frase do empregado do hotel: “você e o cachorro sobem, mas o índio não”. O que dizer de 007, por exemplo, em sua cruzada contra os comunistas? O que falar dos mexicanos e índios, sempre pintados como bandidos desde a nossa infância? O que dizer da ausência de interioridade nos personagens negros que apareciam em seus filmes, sempre em posição subalterna ou de pianista para o amor do casal romântico?
O fundamental é que no fim do texto Calligaris conclui:
“Uma criança foi sequestrada e está encarcerada em um lugar onde ela tem ar para respirar por um tempo limitado. Você prendeu o sequestrador, o qual não diz onde está a criança sequestrada. Infelizmente, não existe (ainda) soro da verdade que funcione. A tortura poderia levá-lo a falar. Você faz o quê?”.
Esse é um recurso de justificativa da tortura é manjado. Seria algo como:
- Você é capaz de matar uma criança?
- Não, claro que não.
- E se a criança fosse uma terrorista?
- Crianças não são terroristas.
- E se ela estivesse domesticada, com lavagem cerebral, que a tornasse uma terrorista?
- Ainda assim, de modo algum eu a veria como uma terrorista.
- E se essa criança trouxesse o corpo cheio de bombas?
- Eu preferiria morrer a matá-la.
- E se essa criança, com o corpo de bombas, entrasse para explodir uma creche?
- Não sei.
- E se nessa creche estivessem os seus filhos e as pessoas que você ama?
- Neste caso…
E neste caso estariam justificados os fuzilamentos de meninos que atiram pedras em tanques de Israel. E neste caso, num desenvolvimento natural, estaria justificado até o assassinato dos que lutam contra a opressão, porque mais cedo ou mais tarde se tornarão terroristas. E para que não vejam nisto um exagero, citamos as palavras de Kenneth Roth, da Human Rights Watch: `Os defensores da tortura sempre citam o cenário da bomba-relógio. O problema é que tal situação é infinitamente elástica. Você começa aplicando a tortura em um suspeito de terrorismo, e logo estará aplicando-a em um vizinho dele` “.
É monstruoso, é um atestado absoluto do desprezo pela pessoa, que na mídia se discuta hoje não a moralidade da tortura, mas a sua eficiência. Esse deslocamento de humanidade – que sai da moral para descer no mais útil -  é sintomático de que não basta mais ser brutais em segredo, na privacidade, escondido. Não. Há de se proclamar que princípios fundamentais da barbárie sejam fundamentos de cidadania. Assim como os defensores  da ditadura têm a petulância de vir a público dizer que apenas se matavam terroristas, portanto, nada de mais; assim como o cão hidrófobo que leva o nome de Bolsonaro – e nesse particular, ele é da mesma raça e doença dos fascistas em geral – zomba sobre os cadáveres de socialistas, agora nas tevês, no cinema, passam à justificação moral da tortura.
Perigo à vista. Nós, os humanistas, temos adotado até aqui uma atitude passiva, ordeira, o que é um claro suicídio. Esse ar de bons-moços que andam pela violência como Cristo sobre as águas, além de suicídio, porque nos afundaremos todos,  é, antes do desastre,  um recolhimento da ética para os fundos que defecam.
Entendam. Longe está este colunista da valentia e poderosas forças. Mas nós que não sabemos atirar balas ou socos,  temos que agir com as armas que a dura vida nos ensinou: escrevendo. E como temos sido omissos.