Um blog de informações culturais, políticas e sociais, fazendo o contra ponto à mídia de esgoto.
terça-feira, 5 de novembro de 2013
terça-feira, 29 de outubro de 2013
O que Marx e Keynes tem a dizer a 2014
O que Marx e Keynes tem a dizer a 2014
Quem considera indiferente a vitória de Dilma Rousseff, Eduardo Campos ou Aécio Neves em 2014 deve abrir os olhos à experiência da história.
Um congresso sobre marxismo numa Europa devastada pela recessão e o
desemprego, fruto da austeridade pró-mercados, seria a última pauta do
mundo para a grande mídia conservadora.
Esse é um dos motivos pelos quais é importante existir pluralismo informativo (ademais de condições estruturais e econômicas para que ele possa ser exercido).
Carta Maior decidiu cobrir o II Congresso Karl Marx, em Lisboa, por considerar que o Brasil vive uma transição de ciclo de desenvolvimento fortemente condicionada pelas determinações internacionais. E pelas escolhas históricas embutidas nesse divisor.
As condicionalidades precisam ser entendidas para que possam ser afrontadas ou ao menos mitigadas –e isso passa pela compreensão que a análise marxista propicia sobre a natureza da crise atual.
A maior crise do capitalismo desde 1929 marmoriza o debate sobre o passo seguinte do desenvolvimento brasileiro mais do que desconfiam, ou gostariam de admitir, os protagonistas reconhecidos e pretensos da disputa de 2014.
É com esses olhos que devem ser lidos os vários despachos enviados pela correspondente em Lisboa, Cristina Portella.
Não se trata de transpor as condições europeias para a singularidade de nossa equação de desenvolvimento.
Mas o que aqui se apregoa como sendo um ‘novo’ caminho para o Brasil, como alardeiam os presidenciáveis Campos, Marina , Aécio, seus colunistas e o dispositivo emissor que os ancora, encontra preocupantes pontos de identidade com as políticas de ajuste que jogaram a Europa no moedor de carne analisado no II Congresso Karl Marx.
Da entrevista feita por Cristina com o economista português Francisco Louçã, por exemplo, do Bloco de Esquerda, ou da conversa carregada de angústia com o filósofo grego Stathis Kouvelakis, dirigente do Syriza, a Coligação da Esquerda Radical (leia nesta pág), avultam advertências implícitas às receitas de arrocho redentor (contração expansiva, diz-se elegantemente) embutidas no discurso do conservadorismo brasileiro.
Seria essa a alternativa ao que se acusa de ‘intervencionismo de baixo crescimento’ do governo Dilma.
Um aumento brutal da exploração social. Nisso consiste o ajuste a mercado das economias europeias, achatadas em endividamento e déficits fiscais vitaminados pela própria mecânica do arrocho em curso.
“O que a burguesia europeia pretende é a estabilidade de um regime que permita assegurar esse aumento da extração da mais-valia”, diz Louçã na entrevista a Carta Maior. “ A redução da taxa de lucro é respondida pela afirmação das políticas liberais (...) o aumento da dívida (pública) e o aumento da exploração. E a dívida é uma forma de exploração, porque é uma garantia do valor dos salários que é pago no futuro sobre a forma de impostos”, diz Louçã.
As consequências políticas da supremacia da lógica financeira sobre os interesses da sociedade são devastadoras, explica o dirigente do Syriza, Stathis Kouvelakis.
Na Grécia, reduzida a um laboratório de ponta do arrocho neoliberal, todo o antigo sistema político se dissolveu na convulsão mercadista.
“Um pouco da forma como o velho sistema político boliviano ou venezuelano desapareceram depois do choque das reformas neoliberais”, diz ele.
A receita só se viabiliza, na verdade, com a concomitante desintegração do próprio aparelho de Estado, uma vez que se trata de erradicar a dimensão pública da economia.
A singularidade terminal do caso grego, segundo Kouvelakis, é que essa liquefação não se restringiu à esfera social e dos serviços. Sua virulência atingiu o próprio núcleo duro do Estado. “Incluindo o aparelho repressivo, o próprio Exército, que também foi atingido pela contração da atividade e os cortes orçamentais”, explica.
“Há uma atmosfera geral de que a autoridade do Estado já não se sustenta, e isto cria situações absolutamente explosivas na Grécia. E muito contraditórias’, desabafa o dirigente do Syriza na entrevista a Carta Maior.
“Há uma radicalização política tanto na esquerda quanto na direita, e a ascensão pela primeira vez, no contexto da Europa ocidental, de um movimento fascista, com apoio real em certos setores da sociedade, e também com a capacidade de infiltrar-se em certos setores do Estado, e até da polícia, como vimos recentemente”.
A derrota do Syriza nas eleições de 2012, mesmo sendo por pequena margem de votos, teve um efeito desmobilizador dramático na Grécia, facilitando a sangria conservadora.
Quem considera indiferente no Brasil a vitória de Dilma, Campos ou Aécio deve abrir os olhos à experiência da história.
‘Os tempos são muito duros, porque foram implementadas as mesmas políticas, a sociedade está ainda mais traumatizada do que há um ano e meio, os fascistas tornaram-se a terceira força política; existe uma corrida entre as alternativas progressistas, como a do Syriza, ou soluções extremamente perigosas e autoritárias, como as defendidas não só pelos fascistas, mas também por todo um setor do Estado e das forças políticas dominantes’, adverte Kouvelakis.
A tragédia grega exacerba uma marca do nosso tempo.
A mesma que perambula dissimuladamente como virtude no discurso conservador brasileiro. Às vezes fantasiada da leveza verde.
Esse é um tempo em que a saúde dos mercados e a deriva da sociedade e do seu desenvolvimento não são realidades contraditórias.
Antes, exprimem uma racionalidade impossível de se combater sem uma intervenção política que enquadre os mercados e instrumentalize o Estado para agir nessa direção.
Sintomas dessa dualidade funcional podem ser pinçados nesse momento na Espanha, por exemplo.
A austeridade jogou 26% da força de trabalho na rua (seis milhões de pessoas), mas os banqueiros saúdam ‘a recuperação’.
Despejos atingiram milhares de famílias espanholas, enquanto 750 mil imóveis novos encontram-se encalhados e mais 500 mil inconclusos.
Segundo o jornal ‘El país’, especialistas discutem a conveniência de se demolir uma parte dessa ‘sobra’.
Para recuperar os preços do mercado imobiliário.
O absurdo foi implementado nos EUA e na Irlanda. Com bons resultados, dizem os analistas de negócios.
O que parece ser exceção é a norma.
Corporações saudáveis, nações devastadas. Populações acuadas, ambientes asfixiados pela desigualdade, a violência e o desalento.
O que importa reter, das lições ecoadas no II Congresso Karl Marx, é a tendência mais geral de um capitalismo que, deixado à própria sorte, mais que nunca vai operar em condições de baixa demanda efetiva e elevado desemprego.
Ou não será exatamente isso, deixa-lo à vontade para funcionar assim, o que tem pregado a agenda conservadora no Brasil?
Duas em cada três manchetes do jornalismo econômico que a ecoa manifestam irritação com o pleno emprego, com o fomento ‘desenvolvimentista do BNDES’, com as exigências de índice de nacionalidade nas encomendas do pré-sal, com a fórmula ‘inflacionária’ de reajuste do salário mínimo, com a baixa alocação de superávit fiscal aos rentistas e a ‘gastança’ dos programas sociais.
Comandar socialmente o investimento, puxando-o pelas rédeas do Estado, como se inclina a fazer o governo, desde 2008, sem dúvida é uma dos antídotos ao arrocho que devasta a Europa e alguns querem trazer ao Brasil.
Mas ser keynesiano em tempos de capital monopolista e desordem neoliberal tem um preço que o governo brasileiro hesita em pagar.
O keynesianismo em si tornou-se uma teoria desprovida de conteúdo histórico.
A democracia precisa avançar sobre a supremacia dos mercados para abrir espaço de coerência à macroeconomia necessária ao fomento da produção e da justiça social em nosso tempo.
Em outras palavras, o desenvolvimento que afronta a coagulação histórica do capital requer um projeto social que o conduza.
Logo, um protagonista coletivo que o lidere.
Essa defasagem da democracia brasileira explica, em boa medida, o difícil parto do passo seguinte da história nesse momento.
Esgotada a fase alegre dos consensos, como é o caso, e o será cada vez mais, uma sugestão ao governo é de que aproveite a boa fase atual e se articule.
A disputa de 2014 pode ser uma oportunidade para recuperar o tempo perdido nesse quesito incontornável: erguer pontes de compromissos e políticas que harmonizem a democracia política com as tarefas sociais e econômicas de um novo ciclo de desenvolvimento.
A ver.
Esse é um dos motivos pelos quais é importante existir pluralismo informativo (ademais de condições estruturais e econômicas para que ele possa ser exercido).
Carta Maior decidiu cobrir o II Congresso Karl Marx, em Lisboa, por considerar que o Brasil vive uma transição de ciclo de desenvolvimento fortemente condicionada pelas determinações internacionais. E pelas escolhas históricas embutidas nesse divisor.
As condicionalidades precisam ser entendidas para que possam ser afrontadas ou ao menos mitigadas –e isso passa pela compreensão que a análise marxista propicia sobre a natureza da crise atual.
A maior crise do capitalismo desde 1929 marmoriza o debate sobre o passo seguinte do desenvolvimento brasileiro mais do que desconfiam, ou gostariam de admitir, os protagonistas reconhecidos e pretensos da disputa de 2014.
É com esses olhos que devem ser lidos os vários despachos enviados pela correspondente em Lisboa, Cristina Portella.
Não se trata de transpor as condições europeias para a singularidade de nossa equação de desenvolvimento.
Mas o que aqui se apregoa como sendo um ‘novo’ caminho para o Brasil, como alardeiam os presidenciáveis Campos, Marina , Aécio, seus colunistas e o dispositivo emissor que os ancora, encontra preocupantes pontos de identidade com as políticas de ajuste que jogaram a Europa no moedor de carne analisado no II Congresso Karl Marx.
Da entrevista feita por Cristina com o economista português Francisco Louçã, por exemplo, do Bloco de Esquerda, ou da conversa carregada de angústia com o filósofo grego Stathis Kouvelakis, dirigente do Syriza, a Coligação da Esquerda Radical (leia nesta pág), avultam advertências implícitas às receitas de arrocho redentor (contração expansiva, diz-se elegantemente) embutidas no discurso do conservadorismo brasileiro.
Seria essa a alternativa ao que se acusa de ‘intervencionismo de baixo crescimento’ do governo Dilma.
Um aumento brutal da exploração social. Nisso consiste o ajuste a mercado das economias europeias, achatadas em endividamento e déficits fiscais vitaminados pela própria mecânica do arrocho em curso.
“O que a burguesia europeia pretende é a estabilidade de um regime que permita assegurar esse aumento da extração da mais-valia”, diz Louçã na entrevista a Carta Maior. “ A redução da taxa de lucro é respondida pela afirmação das políticas liberais (...) o aumento da dívida (pública) e o aumento da exploração. E a dívida é uma forma de exploração, porque é uma garantia do valor dos salários que é pago no futuro sobre a forma de impostos”, diz Louçã.
As consequências políticas da supremacia da lógica financeira sobre os interesses da sociedade são devastadoras, explica o dirigente do Syriza, Stathis Kouvelakis.
Na Grécia, reduzida a um laboratório de ponta do arrocho neoliberal, todo o antigo sistema político se dissolveu na convulsão mercadista.
“Um pouco da forma como o velho sistema político boliviano ou venezuelano desapareceram depois do choque das reformas neoliberais”, diz ele.
A receita só se viabiliza, na verdade, com a concomitante desintegração do próprio aparelho de Estado, uma vez que se trata de erradicar a dimensão pública da economia.
A singularidade terminal do caso grego, segundo Kouvelakis, é que essa liquefação não se restringiu à esfera social e dos serviços. Sua virulência atingiu o próprio núcleo duro do Estado. “Incluindo o aparelho repressivo, o próprio Exército, que também foi atingido pela contração da atividade e os cortes orçamentais”, explica.
“Há uma atmosfera geral de que a autoridade do Estado já não se sustenta, e isto cria situações absolutamente explosivas na Grécia. E muito contraditórias’, desabafa o dirigente do Syriza na entrevista a Carta Maior.
“Há uma radicalização política tanto na esquerda quanto na direita, e a ascensão pela primeira vez, no contexto da Europa ocidental, de um movimento fascista, com apoio real em certos setores da sociedade, e também com a capacidade de infiltrar-se em certos setores do Estado, e até da polícia, como vimos recentemente”.
A derrota do Syriza nas eleições de 2012, mesmo sendo por pequena margem de votos, teve um efeito desmobilizador dramático na Grécia, facilitando a sangria conservadora.
Quem considera indiferente no Brasil a vitória de Dilma, Campos ou Aécio deve abrir os olhos à experiência da história.
‘Os tempos são muito duros, porque foram implementadas as mesmas políticas, a sociedade está ainda mais traumatizada do que há um ano e meio, os fascistas tornaram-se a terceira força política; existe uma corrida entre as alternativas progressistas, como a do Syriza, ou soluções extremamente perigosas e autoritárias, como as defendidas não só pelos fascistas, mas também por todo um setor do Estado e das forças políticas dominantes’, adverte Kouvelakis.
A tragédia grega exacerba uma marca do nosso tempo.
A mesma que perambula dissimuladamente como virtude no discurso conservador brasileiro. Às vezes fantasiada da leveza verde.
Esse é um tempo em que a saúde dos mercados e a deriva da sociedade e do seu desenvolvimento não são realidades contraditórias.
Antes, exprimem uma racionalidade impossível de se combater sem uma intervenção política que enquadre os mercados e instrumentalize o Estado para agir nessa direção.
Sintomas dessa dualidade funcional podem ser pinçados nesse momento na Espanha, por exemplo.
A austeridade jogou 26% da força de trabalho na rua (seis milhões de pessoas), mas os banqueiros saúdam ‘a recuperação’.
Despejos atingiram milhares de famílias espanholas, enquanto 750 mil imóveis novos encontram-se encalhados e mais 500 mil inconclusos.
Segundo o jornal ‘El país’, especialistas discutem a conveniência de se demolir uma parte dessa ‘sobra’.
Para recuperar os preços do mercado imobiliário.
O absurdo foi implementado nos EUA e na Irlanda. Com bons resultados, dizem os analistas de negócios.
O que parece ser exceção é a norma.
Corporações saudáveis, nações devastadas. Populações acuadas, ambientes asfixiados pela desigualdade, a violência e o desalento.
O que importa reter, das lições ecoadas no II Congresso Karl Marx, é a tendência mais geral de um capitalismo que, deixado à própria sorte, mais que nunca vai operar em condições de baixa demanda efetiva e elevado desemprego.
Ou não será exatamente isso, deixa-lo à vontade para funcionar assim, o que tem pregado a agenda conservadora no Brasil?
Duas em cada três manchetes do jornalismo econômico que a ecoa manifestam irritação com o pleno emprego, com o fomento ‘desenvolvimentista do BNDES’, com as exigências de índice de nacionalidade nas encomendas do pré-sal, com a fórmula ‘inflacionária’ de reajuste do salário mínimo, com a baixa alocação de superávit fiscal aos rentistas e a ‘gastança’ dos programas sociais.
Comandar socialmente o investimento, puxando-o pelas rédeas do Estado, como se inclina a fazer o governo, desde 2008, sem dúvida é uma dos antídotos ao arrocho que devasta a Europa e alguns querem trazer ao Brasil.
Mas ser keynesiano em tempos de capital monopolista e desordem neoliberal tem um preço que o governo brasileiro hesita em pagar.
O keynesianismo em si tornou-se uma teoria desprovida de conteúdo histórico.
A democracia precisa avançar sobre a supremacia dos mercados para abrir espaço de coerência à macroeconomia necessária ao fomento da produção e da justiça social em nosso tempo.
Em outras palavras, o desenvolvimento que afronta a coagulação histórica do capital requer um projeto social que o conduza.
Logo, um protagonista coletivo que o lidere.
Essa defasagem da democracia brasileira explica, em boa medida, o difícil parto do passo seguinte da história nesse momento.
Esgotada a fase alegre dos consensos, como é o caso, e o será cada vez mais, uma sugestão ao governo é de que aproveite a boa fase atual e se articule.
A disputa de 2014 pode ser uma oportunidade para recuperar o tempo perdido nesse quesito incontornável: erguer pontes de compromissos e políticas que harmonizem a democracia política com as tarefas sociais e econômicas de um novo ciclo de desenvolvimento.
A ver.
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domingo, 27 de outubro de 2013
Filme sobre Yuriy Gagárin ganha legendas em português
CINEMA: Filme sobre Yuriy Gagárin ganha legendas em português
"Gagarin, perviy v kosmose" revela um dos maiores feitos da humanidade, seu primeiro voo espacial |
Há 52 anos atrás o cosmonauta soviético Yuriy Gagárin concluía um feito
almejado pela humanidade há mais de 2000 anos, isto é, a chegada até o
espaço. Gagárin era a prova viva de que era possível um ser humano
manter-se consciente sem a presença da gravidade terrestre, avistando o
nosso planeta Terra do espaço. Sua realização também demonstrava que um
país governado por trabalhadores poderia chegar a um nível tecnológico
superior ao dos países capitalistas. A história do herói comunista,
entretanto, nem sempre foi conhecida por todos.
O filme "Gagárin, perviy v kosmose"(Gagárin, o primeiro no espaço) foi
produzido por Oleg Kapanets. A decisão de produzi-lo surgiu quando
este, que então trabalhava nos Estados Unidos, percebeu um nível
intenso de ignorância dos americanos acerca do primeiro homem no
espaço, segundo ele "fora da Rússia, pelo menos nos Estados Unidos,
acredita-se que o primeiro homem enviado ao espaço foi um cidadão
norte-americano. É muito triste as pessoas não saberem a verdade e, por
isso, o nosso grande objetivo é restabelecer a verdade histórica,
fazendo justiça e prestando as devidas homenagens a Yuri Gagarin, o
autêntico pioneiro dos voos espaciais.”1
O filme sobre Gagárin levou mais de cinco anos para ficar pronto, tendo
sido lançado no Dia do Cosmonauta, comemorado na Rússia no dia 12 de
abril. Segundo Oleg Kapanets, “a autorização concedida pela viúva e
pelas filhas de Yuri Gagarin foi muito importante para nós, até porque,
antes elas haviam vetado diversas outras propostas de realização de
filmes sobre Yuri Gagarin. Discutimos com elas todo o roteiro e alguns
fragmentos que havíamos filmado previamente. A família de Yuri Gagarin
não queria nada de especial. A viúva e as filhas nos pediram apenas
para não deturparmos os fatos e revelarmos a verdade sobre aquele voo.
Toda a equipe de filmagens tinha o mesmo objetivo: ao invés de um
ícone, queríamos mostrar um ser humano que sabia sonhar, pensar e amar.
Assim, pode-se ver no filme um Yuri Gagarin rodeado de amigos e, ao
mesmo tempo, como um verdadeiro vencedor.”2
O então major Gagárin e a Rainha Elizabeth II no Reino Unido, onde recebeu honrarias, inclusive de sindicatos de operários que visitou. Ele fez questão de cumprimentar, sob chuva, a multidão |
O papel de Gagárin é representado por diferentes atores, uma vez que
são retratados diferentes momentos de sua vida, inclusive os tenebrosos
dias em que viveu em território ocupado pelos nazistas, tendo alguns de
seus irmãos raptados pelo fascismo alemão. Durante a maior parte do
filme, entretanto, ele é retratado pelo ator russo Yaroslav Jalnin,
escolhido por sua semelhança com Yuriy Gagárin, a despeito de ser 4
polegadas mais alto que ele. Jalnin e outros atores do filme passaram
pelos mesmos testes do programa espacial, inclusive a Centrífuga, onde
Jalnin suportou apenas 4G, contra os 10G ao qual eram submetidos os
cosmonautas.
Jalnin, em entrevista ao jornal Izvestiya, conta que foi escolhido em
parte por causa de sua forma de ser, que lembrava a idiossincrasia do
herói comunista. De fato, Yuriy Gagárin, como demonstrado em vários
vídeos documentados, era um homem carismático, sorria constantemente,
tinha um grande apreço por todos os povos e etnias, tendo inclusive
estado no Brasil, onde recebeu do então presidente Jânio Quadros a mais
alta honraria do país, a Ordem do Cruzeiro do Sul, e entregando ao
presidente brasileiro uma mensagem de Nikita Hruschov; atos que
enfureceram o público conservador do Brasil, o que seria ainda mais
intensificado, semanas depois, com a entrega da mesma honraria a
Ernesto Che Guevara, outro comunista igualmente famoso e carismático. A
visita de Gagárin a São Paulo despertou uma grande mobilização popular
para receber o herói soviético, lá ele provou a comida típica
brasileira, o café brasileiro. Também visitou a cidade de Brasília, da
qual teve boa impressão, mencionando que "pareceu ter chegado a outro
planeta", por causa de sua arquitetura, projetada também por um
comunista, o saudoso arquiteto Oscar Niemeyer.
Dois dos mais famosos comunistas dos anos 60, o já coronel Yuri Gagárin e Che Guevara |
Gagárin era tão bem preparado quanto os demais cosmonautas, também era
membro do partido como os demais, todavia o seu carisma foi fundamental
para a sua escolha, fato abordado no filme. Sendo o povo soviético
descrito no resto do mundo como um povo "sisudo", "muito sério" e o
próprio socialismo apresentado de forma vilanesca como um sistema de
"bárbaros malvados e barbudos", o sorriso de Yuriy Gagárin conquistava
a todos que o cercavam, inclusive seus inimigos, fazendo dele a escolha
perfeita para se tornar mais famoso comunista soviético de seu tempo.
O filme retrata também as relações entre Gagárin e seus companheiros do
programa espacial, especialmente Guermán Titov, o segundo homem no
espaço, e Grigoriy(Grisha) Nelyubov, procurando mostrar mais o homem em
si, com suas alegrias e tristezas, do que o "herói". Também são
retratados os riscos do programa espacial ao qual Gagárin se submeteu,
pois hoje se sabe que não havia garantia de seu retorno à Terra e mesmo
de que o Dispositivo do Motor de Parada(DMP) funcionaria para
reintroduzi-lo ao planeta. A família de Gagárin, sua esposa e suas duas
filhas, também é retratada. Importantes personagens da época também não
são deixados de lado, dentre os quais Sergey Korolyov, os
políticos(especialmente Hruschov e Mikoyan) que enxergavam no feito uma
boa peça de propaganda política, Nikolay Kamanin, um dos primeiros a
receber o título e a medalha de Herói da União Soviética, além dos
construtores do foguete e outros cosmonautas que mais tarde se
eternizariam. É feita uma referência ao "camarada Levitan", isto é,
Yuriy Levitan, famoso radialista soviético de origem judia que anunciou
alguns dos mais importantes eventos da URSS, dentre os quais o início
da Grande Guerra e seu fim.
Gagarin(Yaroslav Jalnin) e o construtor chefe S. Korolyov(Mihail Filippov) |
O personagem Sergey Korolyov, o construtor-geral do foguete de Gagárin,
demonstra um diretor preocupado com todos os aspectos do programa,
aspecto fundamental para que tudo desse certo e não houvesse perdas
humanas.
O filme retrata o drama vivido pelas esposas dos cosmonautas, que acreditavam que o voo espacial seria morte certa, destino que vitimou Vladimir Komarov, o primeiro a ir duas vezes ao espaço |
"Gagarin, o primeiro no espaço"(tradução optada pelo autor deste
artigo) é, além de um filme biográfico, uma perfeita refutação da ideia
de que "no socialismo não existe competitividade", retratando bem o
espírito de "emulação socialista" existente no grupo de cosmonautas. A
emulação socialista, como bem colocado por Lenin, era um princípio
socialista que substituía a "concorrência" do capitalismo. Ao passo que
na última há um forte estímulo ao progresso através da competitividade,
mas apenas um é beneficiado, na emulação socialista premia-se o
primeiro, mas todos são beneficiados. É estranho ao socialismo a ideia
de um "relaxamento generalizado" no trabalho. O filme também refuta a
ideia de que o Estado não pode trazer nada de bom em termos de
tecnologia, de que socialismo é atraso ou que num país onde os
trabalhadores detém o poder nada de bom pode ser efetuado. Ele
demonstra uma grande conquista num país que investiu pesado em
educação, saúde e tecnologia, que na época de Stalin avançou 100 anos
em 10, saindo do arado para entrar na era espacial.
Thomas Statford, astronauta americano, Elena Gagarina(filha de Yuri Gagarin) e Alexei Leonov, num encontro em homenagem aos 50 anos do primeiro homem no espaço, em Moscou |
O filme sobre o cosmonauta soviético reúne muitos elementos que fazem
valer a pena assisti-lo, longe de ser uma mera biografia, "Gagárin, o
primeiro no espaço" é um filme sobre o direito de ser o primeiro, de
ser o escolhido, ele também faz jus ao feito do primeiro cosmonauta,
geralmente relegado a uns três ou quatro verbetes em livros de história
com nítidas inclinações pró-americanas. É um filme para todas as
idades, seguindo os padrões soviéticos de "filme sem palavrão", sendo
sua classificação etária em 6 anos, recomendado para fãs de filmes
sobre o espaço, para quem quer história ou bons efeitos especiais, para
comunistas, saudosistas da URSS ou simplesmente para grupos em
treinamento, uma vez que expõe a importância da preparação psicológica
para ser o primeiro e o fardo da ganância e da soberba. Um filme para
todas as idades, para todos os tempos, sucesso de crítica, seguindo
outros dois grandes sucessos sobre heróis soviéticos, Legenda nº 17,
sobre um herói do hockey soviético, e Vysotskiy, sobre o famoso bardo e
músico soviético.
O filme russo sobre Gagárin não foi o primeiro sobre as conquistas espaciais soviéticas, ainda em 1959, uma famosa comédia chamada "O homem do Sputnik", que tinha no seu elenco Jô Soares, baseado no romance "O inspetor-geral", de Nikolay Gógol, dramatizou uma suposta queda do primeiro satélite artificial humano no Brasil, dando início a um jogo de espionagem para recuperar o artefato.
O filme russo sobre Gagárin não foi o primeiro sobre as conquistas espaciais soviéticas, ainda em 1959, uma famosa comédia chamada "O homem do Sputnik", que tinha no seu elenco Jô Soares, baseado no romance "O inspetor-geral", de Nikolay Gógol, dramatizou uma suposta queda do primeiro satélite artificial humano no Brasil, dando início a um jogo de espionagem para recuperar o artefato.
As legendas do filme Yuri Gagárin foram traduzidas direto do russo para
o português pelo autor de A Página Vermelha, Cristiano Alves.
Disponíveis no site "Opensubtitles".3
Trailer(legendado):
1- http://www.diariodarussia.com.br/cultura/noticias/2013/04/15/lancado-na-russia-o-filme-gagarin-o-pioneiro-do-espaco/
2- ibid.
3- http://www.opensubtitles.org/en/subtitles/5231887/gagarin-pervyy-v-kosmose-pb
*Se você gostou das legendas, não deixe de doar para o nosso Paypal: apaginavermelha@gmail.com
sexta-feira, 25 de outubro de 2013
Classes e luta de classes: feudalismo
Por Wladimir Pomar*
O processo de
transformação do escravismo em feudalismo ocorreu de forma generalizada
na Ásia, Oriente Médio e Europa, mas não nas Américas, África e
Oceania. Nestes continentes, pelo menos até o início do século 16,
sobreviviam povos ainda nos estágios históricos anteriores, como o
comunista primitivo, o patriarcal e o escravista.
As civilizações
asteca, maia e inca já eram escravistas. Mas ao norte, no atual Estados
Unidos e Canadá, viviam tribos organizadas segundo o sistema
matrilinear comunitário. O mesmo ocorria entre as tribos que habitavam
a Amazônia e o atual litoral brasileiro, inclusive entre aquelas que já
praticavam a agricultura de coivara. Na África competiam tribos vivendo
no comunismo primitivo, como os bosquímanos, com outras que haviam
ingressado no escravismo, como os reinos de Abissínia, Darfur, Kaffa e
Hausa. Na Oceania, os polinésios também viviam no sistema matrilinear.
As transições
conflituosas do escravismo para o feudalismo, nas regiões do Oriente e
do Ocidente em que ocorreram, transformaram um sem número de escravos e
homens livres em servos da gleba, ao invés de servos diretos dos
senhores fundiários. Isto é, ao contrário dos clientes ou servos do
patriarcado, os servos feudais eram camponeses livres para
produzir seus meios de vida, sendo proprietários de seus meios de
produção, com exceção da terra. Porém, por pertencerem à gleba, não
podiam migrar para outras terras. Por outro lado, formalmente, os
senhores feudais também não podiam expulsá-los da terra a que
pertenciam, mesmo em caso de venda da gleba a outro senhor feudal.
Muitos plebeus
livres e escravos aproveitaram-se da situação conflituosa, que retirou
parte do poder dos proprietários fundiários, para se transformarem em
lavradores ou criadores livres, assim como em artesãos. Criou-se uma
economia agrária que tinha os camponeses como base principal do
processo produtivo, introduzindo uma transformação qualitativa no
caráter da classe trabalhadora de então.
Ao contrário do
período escravista, os trabalhadores deixaram de ser propriedade de
homens livres. Em termos econômicos e sociais vingou a liberdade formal
dos trabalhadores agrícolas e dos artesãos em relação aos senhores
feudais. Eles conquistaram o direito de propriedade sobre seus meios de
produção. Mas os camponeses servos eram subordinados não só à terra,
mas também às várias obrigações que deviam observar diante dos
proprietários ou concessionários feudais.
Essas obrigações
incluíam a entrega de parcela de sua produção, no início em espécie,
tanto ao senhor feudal quanto ao monarca. Incluíam, ainda, a corveia. Isto
é, a prestação de trabalho gratuito nas terras ou benfeitorias do
senhor feudal, ou a participação nas hostes armadas do feudo e/ou do
monarca. Em várias regiões do mundo, como na Escócia, por exemplo, as
obrigações também incluíam outros itens, como o direito de pernada, que
constrangia as camponesas a se entregarem ao senhor na primeira noite
de seu casamento. Os camponeses e os artesãos, por outro lado, eram
proibidos de casar-se com pessoas alheias à sua classe social.
Na China, as
guerras de transição do escravismo para o feudalismo levaram à
constituição de uma monarquia feudal centralizada no século 2 antes de
nossa era. Mas isso não impediu que revoluções, guerras e divisões
monárquicas se sucedessem por séculos. Na Europa feudal, resultante dos
conflitos promovidos pela decadência do Império Romano e pelas invasões
bárbaras, por volta dos séculos 7 a 10 de nossa era, emergiu uma
miríade de reinos feudais. Estes também viveram às turras por vários
outros séculos, antes de alguns se unificarem nas nações atuais. Algo
idêntico ocorreu na Índia, Japão, Ásia Central e Oriente Médio.
A consolidação
do feudalismo, após o longo período de destruições causadas pelas
guerras de transição do escravismo, foi acompanhada da recuperação da
agricultura e do artesanato, do surgimento de novas técnicas, e do
crescimento da população. O comércio voltou a ocupar um papel
importante na destinação dos excedentes agrícolas e da produção
artesanal. O Estado feudal tinha em seu ápice o rei ou monarca por
desígnio divino, proprietário de todas as terras, ou apenas o maior
proprietário fundiário. Sua corte era constituída pela nobreza, seja
senhores de feudos cedidos pelo rei, seja de senhores proprietários de
feudos menores.
Olhando-se com
atenção, o feudalismo constituiu uma formação social e política
conflituosa, não apenas em sua origem, mas também em seu
desenvolvimento. Suas classes sociais, a nobreza, o campesinato, os
artesãos e os comerciantes, mantinham relações extra-econômicas entre
si, permeadas por contradições e conflitos constantes.
Os nobres viviam
em constante pé de guerra com a realeza e entre si, seja para
apropriar-se totalmente da riqueza gerada pelo campesinato e pelo
artesanato, seja para dominar novos territórios, seja ainda para
tornar-se o proprietário fundiário mais poderoso e dominar o Estado
feudal. O campesinato, por sua vez, vivia em confronto com os senhores
feudais, principalmente pela voracidade destes em apropriar-se das
terras dos camponeses livres, de parcelas maiores da produção de
camponeses servos, exigir mais corveias do que o que estava instituído
nas obrigações, e praticar toda sorte de arbitrariedades. Também se
chocava com os comerciantes em relação aos preços dos produtos
agrícolas, que vendia a eles, e aos preços dos produtos artesanais, que
comprava.
Os artesãos
trabalhavam sob regras rígidas, vendo-se constantemente pressionados
pelos senhores feudais e pela realeza, ao mesmo tempo em que procuravam
explorar os camponeses. As atividades dos comerciantes, por outro lado,
dependiam de licença real e do direito de passagem através dos feudos.
Ou seja, pagavam tributos tanto ao rei quanto aos senhores feudais,
numa intensidade que os transformou paulatinamente numa classe em
revolta, embora explorassem os camponeses e artesãos o máximo possível.
Embora no
feudalismo, como no patriarcado e no escravismo, a mobilidade social de
uma classe para outra fosse extremamente difícil, isso não impediu que
a luta de classes se desenvolvesse e criasse situações em que membros
das classes consideradas inferiores ascendessem a classes consideradas
superiores. Tanto no Oriente quanto no Ocidente, a necessidade do
Estado e a luta de classes abriram brechas para tal ascensão política,
social e econômica. Exemplo disso foi Liu Ban, um camponês livre que,
no século 2 antes de nossa era, comandou a revolta vitoriosa contra a
monarquia Qin e, após também derrotar seus aliados feudais, tornou-se o
primeiro imperador da dinastia Han.
De qualquer
modo, essa mobilidade pouco tinha a ver com as contradições que estavam
sendo gestadas nas entranhas das próprias sociedades feudais e iriam
modificar seu curso histórico, transformando as classes sociais
existentes em novas classes e dando surgimento a novas formações
sociais.
*Wladimir Pomar é analista político e escritor.
Marcadores:
critica social,
educação,
Historia,
imperialismo
Libertadores da América
Simón Rodríguez: plantador de uma nova América
22 outubro, 2013 - 15:17 — Michelle
“Professor é o que ensina a aprender e ajuda a compreender”
22/10/2013
Elaine Tavares
Findava
o século 18 quando nesse continente dominado pela ocupação espanhola
uma voz solitária propõe outra forma de educar as crianças, para além
do simplesmente escrever o nome e soletrar algumas palavras. Era o
jovem Simón Rodríguez, professor numa pequena escola da cidade de
Caracas, Venezuela. Num documento que entra para a história, ele faz
uma ácida crítica ao sistema educacional da época e expõe suas ideias.
Segundo ele, o estado tinha de investir na formação de professores e a
educação não podia mais ficar restrita aos jovens brancos bem nascidos.
Era necessária uma educação popular capaz de formar meninos, meninas,
negros e índios. Essa proposta, revolucionária para aquele então, o
colocaria para fora da escola, mas começava aí a incrível trajetória
desse educador sem igual na América Latina.
O começo
Simón
Rodríguez nasce em Caracas no ano de 1771. Ele mesmo contava que fora
um menino exposto, daqueles que são colocados nas portas dos conventos.
Foi criado por Caetano e Rosália Rodríguez, embora sua educação
estivesse a cargo do tio, que era sacerdote. Naqueles dias, a cidade de
Caracas era um lugar aprazível, de grandes solares onde viviam os
espanhóis e os criollos, servidos por escravos. Para essa sociedade, o
trabalho era basicamente uma desonra e aos filhos da classe dominante
se permitia unicamente a carreira militar além dos postos de mando da
vida cotidiana. Havia apenas três estabelecimentos de educação na
cidade: o convento dos Franciscanos, uma escola pública e a
Universidade. Simón foi alfabetizado em casa, pelo tio, mas era um
garoto aplicado e observador. Amava ler e devorou cada livro que
encontrou na biblioteca do tio, que era bem servida. Na Caracas
daqueles dias chegavam os franceses da ilustração (Montesquieu,
Voltaire, Rousseau) e Simón os conhecia. Também tinha acesso aos
escritos que chegavam dos Estados Unidos e acompanhou o processo de
independência daquele país, bem como o da Revolução Francesa.
Forjava-se nele o espírito da rebelião.
Em 1791,
com apenas 20 anos, consegue o cargo de professor na escola pública e
tem sob seu comando 114 alunos. Simón não tem experiência, mas observa
que o ensino ministrado não tem um método e começa a matutar sobre essa
deficiência. Amante de Rousseau, quer estabelecer outra relação com os
alunos, mas fica prisioneiro das regras. Então, decide ensinar alguns
dos alunos em sua própria casa, que gradativamente torna-se uma escola.
A cidade olha curiosa para aquele garoto de aparência séria que dedica
sua vida ao ensino. E é essa pequena “fama” que faz com que o tutor de
Simón Bolívar peça ao educador que assuma a educação do garoto, então
com nove anos. Começa aí a relação dos dois Simóns que mudará a face da
colônia.
No começo Simón atende o garoto Bolívar
na casa da família e passa a usar com ele as ideias de Rousseau. Uma
educação ao ar livre, repleta de brincadeiras e exercícios físicos. O
ensino das letras vai devagar. Com o passar do tempo, a família de
Bolívar percebe que não há muito avanço e exige mais. Então, Simón
propõe que o garoto fique na escola que mantém em sua casa, junto com
os demais alunos. Já naqueles dias a escola de Simón era bem diferente.
Recebia, além de filhos da aristocracia, crianças de famílias pobres,
uma coisa praticamente inédita para a época. E lá se vai Bolívar
estudar com negros e índios, além de dividir o quarto, coisa até então
impensável para um herdeiro criollo. Há quem diga que foi aí que aquele
que seria o “libertador” forjou seu amor pelas gentes da América. Mas,
isso são especulações.
O certo é que Simón não
se conformava em ver a educação das crianças colocada nas mãos de gente
sem formação e sem método. Então se dispõe a registrar uma crítica
avassaladora do sistema. Escreve o texto: “Reflexões sobre os defeitos
que viciam a Escola de Primeiras Letras de Caracas e os meios para uma
reforma por um novo estabelecimento”. Nele, o jovem professor arrasa
com o sistema vigente, critica o fato de só ser oferecida educação às
crianças brancas e aponta a necessidade de educar as crianças pobres,
aos agricultores, aos artesãos. “O regime deve ser de igualdade”, diz.
Mostra também que o sistema não se preocupa com a formação dos
professores e insiste que esse deve ser o principal fator de mudança.
Como proposta exige o aumento do número de escolas, capaz de atender
todas as crianças em idade escolar, a formação de professores
profissionais, salários dignos para os educadores, jornada de seis
horas, móveis adequados para o ensino e finalizava exigindo que se
tomasse a sério a escola de primeiras letras. “Uma escola até pode ser
superficial, mas não inútil. O aluno não pode esquecer o que aprendeu.
Há que ter cuidado e delicadeza para dar às crianças a primeira ideia
de uma coisa”. Dizia isso porque havia a tradição de ensinarem até nas
barbearias, enquanto afeitavam os clientes. Simón abominava isso.
Defendia que como nessa idade a criança se distrai com qualquer coisa,
era necessário um ambiente adequado e que o professor também prestasse
atenção nas brincadeiras. “É necessário saber ler em todos os sentidos
e dar a cada expressão o seu próprio valor”.
As
reflexões de Simón não são bem vindas, nem na escola nem na
administração. Ele se indigna e deixa o cargo, seguindo apenas com sua
escola, em casa. Nesse meio tempo se engaja num movimento conspiratório
pela independência que já existia em Caracas. O grupo é descoberto e
Simón acaba fugindo para a Jamaica, visando escapar da justiça
colonial. No dia do embarque recebe a visita de seu aluno, Bolívar, do
qual se despede. Chegando à Jamaica Simón troca de nome, passa a
chamar-se Samuel Robinson. Não quer nenhuma ligação com a vida antiga e
jura nunca mais voltar à Venezuela. Pouco tempo depois vai para os
estados Unidos onde fica por três anos trabalhando numa gráfica. Lá,
ele aprende a editar e inventa uma nova forma de montar os textos,
usando letras maiúsculas para destacar bem como criando manchetes.
Tem
30 anos (1801) quando embarca finalmente para a França. Lá abre
escolas, ensina espanhol e inglês, lê como um louco e vai consolidando
seu pensamento educativo. Três anos depois encontra, em Viena, seu
antigo aluno, Bolívar, que passa a conviver com o mestre. Eles leem,
estudam e viajam juntos. No ano de 1805 os dois seguem à pé até a
Itália, aproveitando para discutir a realidade do mundo e da velha
pátria colonizada. E é justamente no Monte Sacro que os dois fazem seu
histórico juramento: libertar a pátria ou morrer. A partir daí, Bolívar
retorna para a Venezuela, onde nos anos seguintes vai dar consequência
a essa promessa. Simón segue no velho mundo criando escolas por todo o
lugar onde passa: Itália, Alemanha, Prússia, Polônia e Rússia. O
educador acompanha as façanhas de seu aluno na colônia e percebe que a
vida por ali está prestes a sofrer uma grande transformação. Decide
então, voltar para casa.
O retorno para a América
Simón
tem 52 anos quando desembarca em Cartagena em 1823, disposto a dar todo
o seu conhecimento para construir a Pátria Grande, liberta do jugo
espanhol. Vinha honrar o juramento que fizera com Bolívar há quase 20
anos. As guerras de independência já estavam quase consolidadas.
Bolívar era o grande libertador e comandava os destinos de toda a Gran
Colômbia. Simón então viaja até Bogotá onde começa a pôr em prática a
sua proposta pedagógica, amadurecida por longos anos de estudo e
prática. Todos ali já sabem que ele é o grande mestre de Bolívar e
todos os recursos são colocados à sua disposição para a criação da Casa
de Indústria Pública, o que vem a ser o inovador método educativo de
Simón. Nessa casa as crianças teriam ensino por tempo integral e além
de estudarem as matérias clássicas aprenderiam também um ofício,
aprendendo artes mecânicas. Seu foco eram as crianças mais pobres, que
precisariam enfrentar o mundo que nascia com uma formação adequada. O
educador entendia que o que estava nascendo era uma forma nova de ser
nação e por conta disso era necessária também uma nova educação.
“Formar o povo deve ser a única ocupação dos que se ligam a uma causa
social”, dizia e, para ele, as novas repúblicas eram essa causa social.
Toda
a sua linha de agir pedagógico já tinha sido eternizada num escrito
chamado: “Sociedades Americanas”, que ele só conseguirá editar em 1828.
Nele, Simón defendia que o aluno dessa nova forma de ser nação tinha de
ser um sujeito pensante. “O que pensa, procede segundo sua consciência.
O que não pensa, só imita”. Sua preocupação não era formar letrados e
sim cidadãos, pessoas capazes de compreenderem seu espaço geográfico e
político. Por isso insistia que em vez de papagaiar sobre os persas e
os egípcios era necessário entender os índios. Simón queria tomar para
si a tarefa de educar os jovens pobres que estavam pelas ruas, os
abandonados, os ilegítimos, fazendo com eles se tornassem homens
cientes de seus direitos na nova sociedade. “Deixemos a França e
vejamos a América”, bradava. Sua proposta era de educação popular para
que todos pudessem viver sem amos. “Na educação popular o filho do
sapateiro se educa como o filho de um negociante. Ambos aprendem a
faculdade do pensar. A instrução é para o espírito assim como o pão é
para o corpo”. Simón tinha plena certeza de que se todos fossem
instruídos, os ignorantes de então poderiam vira a ser conselheiros e
os ladrões, companheiros de viagem. Certo de que a ignorância era a
causa de todos os males, seu remédio era a educação. “A América é
original, original hão de ser suas instituições e seus governos, e
originais os meios de fundar um e outro. Ou inventamos ou erramos”.
Simón
Rodriguez não podia conceber que a nova nação se erguesse sob bases
antigas, sob imitações da Europa. Queria saídas originais e sabia que
isso era possível. Queria homens e mulheres capazes de gerir sua
própria história sem precisar de heróis ou mitos. Um homem que pensa é
um homem livre, afirmava. E, para isso, era preciso investir tudo na
formação de professores. Depois, com eles, criar as condições para que
o ensino fosse um fazer-se compreender e não o velho estilo de
trabalhar a memória. A proposta era formar homens úteis à República.
Também insistia que era necessário educar e ensinar as mulheres “para
que elas não se prostituíssem por necessidade, nem buscassem o
casamento para garantir sobrevivência”. Toda a base de sua pedagogia
era mesclar o ensino social, corporal e científico. “O fundamento do
sistema republicano está na opinião do povo. Ninguém faz bem o que não
sabe, então não se pode fazer uma república com gente ignorante”.
Seu
conceito original de escola, a escola social, é o que ele tenta pôr em
prática na Colômbia, mas não encontra eco. Ele queria formar pessoas
que atendessem a uma autoridade social e não pessoal. Foi o precursor
da Escola de Artes e Ofícios, da Universidade Popular. Na época,
comandava a Colômbia aquele que viria a trair toda a proposta de
Bolívar: Santander. E obviamente esse tipo de ensino não lhe era
favorável.
De novo com Bolívar
Quando
Simón finalmente encontra Bolívar, depois de mais de ano de sua
chegada, decide que não é mais possível ficar na Colômbia e segue com
seu antigo aluno rumo ao Peru. Bolívar quer que o velho mestre se
incorpore ao esforço de construir a grande pátria americana e não mede
esforços nem recursos para que ele consiga colocar em prática suas
ideias educativas. Simón segue então para a cidade de Cuzco onde cria
um colégio já dentro do seu padrão: para crianças pobres, com ensino de
ciências, arte e trabalho. Para isso usa os espaços e o dinheiro das
congregações religiosas, o que também já coloca uma boa parte do clero
contra ele. Mas, como está com Bolíviar, tudo vai se fazendo conforme
as regras ditadas por Simón. Em várias cidades peruanas surgem colégios
desse tipo. Logo em seguida eles partem para a Bolívia aonde vão se
encontrar com Sucre. Na cidade de La Paz Simón estrutura uma biblioteca
e Bolívar decide nomear o professor para comandar todo o processo de
Educação no nascente país. Assim, no ano de 1825, Simón é nomeado
Diretor de Ensino e prepara um Plano Educativo para o governo de Sucre.
Entendia ele que o primeiro dever de um governo é dar educação ao povo
e, assim, monta uma proposta semelhante a que tinha tentado trabalhar
na Colômbia: uma escola social. Para isso buscou recolher todos os
órfãos que andavam vagando pelas ruas e os colocou em ambiente adequado
para o ensino das artes, da ciência e do ofício. Também procurou
acolher as meninas, as quais acreditava mereceriam também receber
educação. Da mesma forma que no Peru, também usou propriedades da
igreja.
Bolívar segue seu caminho e deixa Simón
na Bolívia. Sem a proteção do libertador, Simón vai perdendo apoio no
seu projeto. As autoridades locais, os padres e até mesmo Sucre não
conseguem entender os métodos de caraquenho. É que ele insistia em
proporcionar aos alunos aquilo que havia de melhor. Os melhores móveis,
as melhores máquinas para o trabalho, os melhores professores. Tudo
isso custava dinheiro e, no meio da guerra, os que estavam no comando
acreditavam que havia coisas mais urgentes para investir. Seis meses
depois de estar no cargo de Diretor Geral, ele sai de Chuquisaca e vai
para Cochabamba criar mais uma escola. Aproveitando a ausência, o
prefeito da cidade fecha a sua Escola Modelo que abrigava mais de 200
crianças. “Essa é uma escola para cholas e filhos de putas”, dizia o
prefeito, e pregava a necessidade de ter uma escola apenas para “gente
decente”. Intrigado com os padres que não queriam ver os bens da igreja
sendo dispensados aos garotos pobres e aos índios, Simón vai sendo
derrotado. Até mesmo Sucre o repreende pelo alto valor dos gastos e
Simón se sente insultado. Então, renuncia ao cargo e sai da Bolívia.
“Por querer ensinar mais do que todos sabem, não me entenderam, muitos
me depreciaram, e alguns me ofenderam. Entretanto, para fazer
republicanos é preciso gente nova”.
Derrotado na
Bolívia ele volta ao Peru, vai para a cidade de Arequipa onde escreve
seu livro “Sobre o Projeto Popular” que é a sistematização das
experiências que ele havia dado início na Colômbia e na Bolívia. Ali
orienta, mais uma vez, o ensino da ciência, das letras e de ofício,
defende a educação das meninas, dos índios e dos pobres. “Todos devem
ser bem alojados, bem vestidos e alimentados”. Sua proposta era de
educação integral. Além disso, preocupava-se com a situação dos pais
das crianças. Acreditava que era preciso garantir trabalho a eles, e
socorro se fossem inválidos. “Há que formar homens úteis, dar-lhes
terras e auxiliar nos seus negócios”. Não é sem razão que o método de
Simón é visto como assustador pelos novos dirigentes criollos. Sua
proposta educativa era também uma revolução social e econômica.
Educação colonizada
Naqueles
dias em que a independência se consolidava não eram poucos os
educadores europeus que vinham oferecer seus serviços a Bolívar e aos
outros dirigentes das repúblicas. Um deles foi Lancaster. Seu método
aparecia como muito mais interessante para os novos governadores porque
era bem mais barato do que o de Simón. Lancaster propunha que os alunos
mais adiantados fossem os professores dos menores, o que para Simón era
uma vilania. Afinal, o pilar de sustentação do seu método era
justamente a formação dos professores, a qualificação dos mesmos.
“Instruir não é educar, nem instrução pode ser equivalente à educação,
ainda que instruindo se eduque”, dizia, mostrando que aluno não podia
educar aluno. Acreditava que na primeira escola as crianças, mais do
que aprender a pintar as palavras, precisavam aprender a pensar e a
raciocinar. E isso era tarefa para gente capacitada a educar. Simón
trabalha com uma pedagogia prática: expõe como ensinar lógica, o
idioma, o cálculo, a história, sempre por princípios e “como os
princípios estão nas coisas, se ensinará a pensar”. Esse era seu
mantra. “Ler não será estropear palavras para ganhar tempo, mas sim dar
sentido aos conceitos. Assim, quem não entende o que está lendo, não
deve ler”. E assim esgrimia sua crítica ao método lancasteriano. “O que
pode ler aquele que não tem ideias?” Simón acreditava que ensinar mal
era um crime que se cometia contra aqueles que deveriam ser os novos
dirigentes na nova América.
Morre Bolívar
O
ano de 1830 é particularmente triste para todo o continente
sul-americano. A proposta de Bolívar de criar uma grande pátria,
compostas por províncias interdependentes, fracassa. Traído pelos
velhos companheiros, doente, Bolívar vê seu sonho desmoronar como um
castelo de cartas. Certos de que a enfermidade vencerá o libertador, os
novos dirigentes vão dando fim a qualquer rastro da Pátria Grande
idealizada por ele. Sucre, que seria o braço direito do libertador e
seu natural sucessor, é assassinado em uma emboscada. Pouco depois,
Bolívar morre, abandonado e degredado. Para Simón, tudo aquilo também
significaria a derrota de seu projeto de educação. Sem seu velho amigo
e marcado como um dos homens de Bolívar, Simón terá seu caminho
sistematicamente travado a partir daí.
Abandona
Arequipa e segue para Lima, onde recomeça a dar aulas. Mas, não
consegue avançar no seu método. As famílias “de bem” o chamam de louco
e imoral, porque ele insiste em educar as meninas e os índios. Ainda
assim, insiste na crítica à educação da época, escrevendo num jornal
local: “Para ser uma república há que se investir em educação popular.
Com homens já formados só se pode fazer o que se faz hoje: desacreditar
a causa social”.
Simón permanece em Lima até o
ano de 1834, quando completa 60 anos. Recebe o convite de um amigo para
ir ao Chile ser reitor de um Colégio Provincial. Apesar de todos os
ataques que sofre, ainda restam muitos seguidores de Bolívar, muitos
homens dispostos a dar outra cara para as repúblicas nascentes e é aí
que ele se ampara. Che ao Chile e prefere dirigir uma pequena escola,
onde seu método pode vingar. Lá, ele ensina a partir de quatro quadros,
que desenha na lousa. O primeiro era o fisionômico, no qual repassava
as noções acerca das matérias e dos ofícios. O segundo era o
fisiográfico, no qual repassava o conhecimento mais aprofundado sobre
os temas. O terceiro era o fisiológico, no qual ensinava as ciências e
o quarto era o econômico, no qual ensinava filosofia. Sua maneira de
ensinar era expositiva. Não usava textos, apenas os quadros sinópticos,
sempre apontando explicações que estivessem ao alcance dos alunos.
“Encontrem vocês as suas ideias, para fixa-las e retê-las na memória.
Procurem armazenar as ideias e se perguntem sobre o que fazer”.
Um homem sem raiz
Quando
tudo parecia caminhar bem, alguma coisa acontecia e obrigava o velho
educador a se mover. Era como se ele fosse predestinado a não encontrar
guarida. Um ano depois de estar no Chile, um grande terremoto destrói a
escola e faz com que Simón mude-se outra vez. Segue agora para Santiago
onde abre uma escola e uma fábrica de velas, para dar aos alunos a
possibilidade de aprender um ofício. Continua tentando imprimir uma
educação transformadora, ainda acredita na possibilidade de um mundo
novo. “A educação pública no século XIX pede muita filosofia. O
interesse geral está chamando por uma reforma e a América está chamada
pelas circunstâncias para empreendê-la. A América não deve imitar
servilmente e sim ser original. Ideia, ideias, primeiro que letras”.
Naqueles
dias, apesar de todos os infortúnios, Simón era muito procurado por
educadores de todo o mundo. Vinha gente da Europa para conhecê-lo e
aprender seu método. Mas, na América mesmo, sua voz era como pérolas
aos porcos. Tanto que as escolas que criava acabam se fechando por
falta de recursos. Não havia quem bancasse. E os que bancavam exigiam
mudanças, queriam baixar os custos. Simón não aceitava. Foi o que se
passou em Valparaíso, onde foi também obrigado a desistir da escola,
embora seguisse com a fábrica de velas. Com sua fina ironia, dizia: “A
liberdade me é mais querida que o bem estar. Vou continuar iluminando a
América, sigo fazendo velas”.
A experiência
chilena logo se desfaz e Simón volta para Lima onde permanece até o ano
de 1843. Lá, aproveita o tempo para escrever seus livros. Tem 72 anos
quando desde o Equador, um velho amigo o chama para ensinar na cidade
de Latagunga. Atravessa os Andes no lombo de uma mula, mas não fica por
lá muito tempo, em função da instabilidade política. O chamam da
Venezuela, mas ele se nega a voltar. Segue então para a Colômbia outra
vez. Apesar da idade, está forte e continua abrindo escolas por onde
passa. Quando completa 80 anos de vida retorna para o Equador onde
permanece por três anos ainda ensinando no Colégio São Vicente.
No
final do ano de 1853 decide voltar para o Peru com o filho José e um
amigo. Leva com ele tudo o que tem. Uma muda de roupa e duas caixas de
livros. Sem recursos, eles decidem ir por mar, numa balsa. O mar
encapelado, tempestades e eles se perdem. Quase naufragam. Acabam
batendo numa pequena comunidade de pescadores. Simón está muito fraco e
tem problemas de intestino. Os pescadores temem que seja doença
contagiosa e expulsam os viajantes. O amigo vai até a aldeia, buscar
ajuda junto ao padre. Explica quem é Simón, sua situação e o padre
decide ajudar. Mas, depois, informado de quem era Simón, chamado de
louco e imoral, não deixa que o velho venha para a aldeia. O confina
numa propriedade fora do povoado. Simón vai definhando. Apenas uma
caridosa mulher leva comida, apesar de ter sido proibida. Dois dias
antes de morrer, manda chamar o padre. Ele vai, achando que o velho vai
se confessar. Não o faz. Segundo o amigo, Camilo Gomez, ele apenas
disserta uma arenga materialista e diz que a única religião que teve na
vida foi o juramento que fez, junto com Bolívar, no Monte Sacro, de
libertar a América. No dia seguinte, morreu. Foram 83 anos de caminhada
pelo mundo, incompreendido, amaldiçoado. Mas nunca traiu seus
princípios.
O legado
Simón
foi, em tudo, um homem original. Casou-se cedo, teve um filho, mas não
viveu para ser um pai de família tradicional. Seu destino era o de ser
um plantador de escolas por todo o lugar onde passou. E não foram
poucos. Saiu da Venezuela, por conspirador, e nunca mais voltou. Mas
nunca deixou de mandar dinheiro para a esposa, apesar de nunca mais
vê-la. Forjou seu pensamento acerca de educação na crítica sistemática
e seu maior legado foi ter pensado a América desde a América. Não foi
capaz de se oportunizar das novas possibilidades do mundo novo que se
abria. Insistiu no seu método de ensinar a pensar os meninos, as
meninas, os negros e os índios, a quem chamada de “os donos do país”.
Queria formar gente capaz de ser sujeito de sua própria vida. “Dos
brancos não espere nada. Mais vale entender os índios que a Ovídio”.
Acreditava que a escola devia ser um lugar de acolhimento, com espaço
para a educação e a brincadeira, tirando as crianças da rua. Queria
seres pensantes: “Que aprendam as crianças a serem perguntadoras, para
que pedindo o porquê se acostumem a obedecer a razão, não à autoridade
como os limitados, nem aos costumes como os estúpidos”.
Simón
também ensinava a partir da realidade local, da observação da realidade
da criança. “Se ensinamos ciências exatas e de observação, os jovens
aprenderão a apreciar o que pisam”. Ministrava uma educação social, não
individual. Propunha-se a tirar o pobre da ignorância. “O homem não é
ignorante porque é pobre, senão o contrário. Ensinem e terão quem
saiba, eduquem, e terão quem faça. A América não deve imitar
servilmente, deve ser original”.
Aquele que
forjou Bolívar par a libertação tinha tanto amor pela educação que,
apesar de toda a sisudez, foi capaz de produzir poesia. “Ler é
ressuscitar ideias sepultadas no papel. Cada palavra é um epitáfio.
Chamá-las à vida é uma espécie de milagre e, para fazê-lo, é necessário
conhecer o espírito das palavras”. Tratado como louco ele ficou
esquecido por longo tempo. Agora, tal qual as palavras que amava, ele
também ressuscita, para assumir seu lugar no panteão dos grandes sábios
dessa Abya Yala.
Simón Rodriguez, Samuel Robinson, presente!
Referências
Obras completas de Simón Rodríguez – Tomos I e II. Presidencia de la República. Venezuela, 1999
Elaine Tavares é jornalista.
sábado, 12 de outubro de 2013
o escritor H.G. Wells entrevista Lenin
Entrevistas históricas: o escritor H.G. Wells entrevista Lenin
Por Cynara MenezesEm BLOG
O britânico H.G.Wells (1866-1946) já tinha publicado seus famosos romancesA Guerra dos Mundos, A Ilha do Dr. Moreau e O Homem Invisível quando foi à Rússia, em outubro de 1920, e se encontrou com Vladimir Ilitch Lenin (1870-1924), o líder da revolução ocorrida no país três anos antes. Wells nunca foi marxista nem acreditava na chegada do socialismo ao poder pela via revolucionária. Sim, era socialista, mas um socialista utópico.
No entanto, ganha visível simpatia e admiração intelectual por Lenin nesse encontro que um amigo em comum, o também escritor Máximo Gorki (1868-1936), tornou possível. Wells chega ressabiado, cheio de críticas ao que viu no país até ali e cético com o futuro da União Soviética, mas nada foi capaz de causar tensão entre os dois: o papo flui de maneira agradável até o fim. Era a segunda vez que Wells visitava a Rússia. Ainda iria lá mais uma vez em 1934, quando entrevistou Stalin, a quem também admirou, mas achou “rígido demais”.
A entrevista foi publicada no The Sunday Express (edição de domingo do Daily Express), entre vários artigos que Wells escreveu sobre a viagem. No ano seguinte, saiu em livro, com o título Russia In the Shadows (Rússia nas Sombras). A conversa com Lenin, que traduzi e transcrevo aqui quase na totalidade, ocupa o penúltimo capítulo do livro. A edição original pode ser encontrada online, em inglês. É uma narrativa fascinante, rica em descrições e muito saborosa, que nada deixa a desejar ao “new journalism” que surgiria apenas 40 anos depois. Espero que desfrutem.
***
O Sonhador no Kremlin
Por H.G.Wells
Meu principal propósito ao ir de Petersburgo a Moscou era encontrar e conversar com Lenin. Eu estava muito curioso para vê-lo e estava disposto a ser hostil com ele. Encontrei uma personalidade totalmente diferente de tudo que eu esperava encontrar.
Lenin não é um escritor; seus trabalhos publicados não o retratam. Os pequenos panfletos e ensaios que circulam em Moscou com o seu nome, cheios de falsas ideias sobre a psicologia do trabalho no Ocidente e defensores obstinados da proposição impossível que é a profetizada revolução marxista que aconteceu na Rússia, mostram muito pouco da real mentalidade do Lenin que eu encontrei. De vez em quando há alguns momentos de inspirado brilhantismo, mas em geral estas publicações não mais que abordam as ideias e as frases do marxismo doutrinário. Pode ser que isso seja necessário. Talvez seja essa a única linguagem que o comunismo entenda; uma ruptura em um novo dialeto seria inquietante e desmoralizante. O comunismo de esquerda é a espinha dorsal da Rússia hoje; infelizmente é uma espinha dorsal sem partes flexíveis, uma espinha dorsal que não pode ser dobrada a não ser com extrema dificuldade e que deve ser dobrada mediante adulação e deferência.
Sob o brilhante sol de outubro, entre as folhas amarelas esvoaçantes, Moscou nos impressionou como sendo ao mesmo tempo mais relaxada e mais animada que Petersburgo. Há muito mais movimento de gente, mais comércio e um comparável número de droshkys (carruagens). Os mercados estão abertos. Não há a mesma ruína geral de ruas e casas. Há, isso é certo, muitos rastros dos desesperados enfrentamentos de rua dos princípios de 1918. Um dos domos da absurda catedral de São Basílio, exatamente do lado de fora do portão do Kremlin, estava amassado por um morteiro e ainda necessita conserto. Os bondes que encontramos não carregavam passageiros; estavam sendo usados para transportar comida e combustível. Neste aspecto Petersburgo parece melhor preparada do que Moscou.
As dez mil cruzes de Moscou ainda brilham à luz da tarde. Sobre um pináculo visível do Kremlin as águias imperiais estendem suas asas; o governo bolchevique tem estado muito ocupado ou muito indiferente para tirá-las dali. As igrejas estão abertas, as imagens de santos são uma indústria florescente, e os mendigos todavia cortejam a caridade nas portas. O famoso santuário milagroso da Madona Ibérica, do lado de fora da Porta do Salvador, estava particularmente cheio. Havia muitas mulheres do campo, incapazes de entrar na pequena capela, beijando as pedras do lado de fora.
Do lado oposto, em um painel de gesso colocado em frente a uma casa, está aquela agora célebre inscrição colocada por um dos primeiros governos revolucionários em Moscou: “A religião é o ópio do povo”. O efeito que a inscrição produz é enormemente reduzido pelo fato de que o povo na Rússia não pode ler.
(…)
Os arranjos prévios a meu encontro com Lenin foram tediosos e irritantes, mas no fim lá estava eu a caminho do Kremlin na companhia do Sr. Rothstein, uma velha figura dos círculos comunistas londrinos, e um camarada americano com uma câmera enorme que era também, suspeitei, um oficial do ministério das relações exteriores russo.
O Kremlin como eu lembrava em 1914 era um lugar muito aberto, tanto quanto o Castelo de Windsor, com peregrinos e turistas em grupos e casais passeando através dele. Mas agora é fechado e difícil de entrar. Houve uma grande confusão com passes e autorizações antes de que pudéssemos passar ainda pelos portões externos. E nós fomos checados e inspecionados em quatro ou cinco salas de guardas e sentinelas antes de sermos recebidos. Isto pode ser necessário para a segurança pessoal de Lenin, mas o coloca fora de alcance da Rússia e, mais grave talvez, se há de fato uma ditadura, isso põe a Rússia fora de seu alcance. Se as coisas são filtradas até ele, devem ser filtradas abaixo, e então podem vir muitas mudanças no processo.
Encontramos finalmente Lenin, uma pequena figura em uma grande mesa, numa sala bem iluminada com magnífica vista. Achei sua escrivaninha um tanto bagunçada. Sentei-me a um canto da mesa, e o homenzinho –seu pé mal tocava o chão quando ele se sentou na ponta da cadeira– virou-se para conversar comigo, colocando os braços ao redor e sobre uma pilha de papéis. Ele falava um inglês excelente, mas, pensei, era característico da atual condição das relações russas que o sr. Rothstein se metesse ocasionalmente na conversa, fazendo observações e oferecendo ajuda. Enquanto isso o americano começou a trabalhar com sua câmera, e, discreta mais persistentemente, tirava fotos. A conversa, entretanto, estava muito interessante para que isso pudesse ser um incômodo. Esquecemos os cliques bastante rápido.
Eu tinha vindo com a expectativa de discutir com um marxista doutrinário. Não encontrei nada parecido. Tinha ouvido falar que Lenin gostava de dar lições às pessoas; ele certamente não o fez nesta ocasião. Muito se falou de sua risada nas descrições, uma risada que poderia ser prazerosa a princípio e cínica ao final. Esta risada não apareceu. Sua testa me lembrou a de alguém –não pude lembrar quem, até que em uma outra tarde eu vi Sr. Arthur Balfour (ex-primeiro-ministro britânico) sentado e falando sob uma luz fraca. É exatamente a mesma abóbada, o crânio ligeiramente unilateral. Lenin tem uma agradável, mutável, face amorenada, com um vívido sorriso e o hábito (talvez por alguma dificuldade em enxergar) de apertar um olho quando pausa a conversação; ele não se parece muito com as fotografias que você conhece dele porque é uma dessas pessoas cuja mudança de expressão é mais importante que os rasgos; ele gesticulava um pouco com suas mãos sobre os papéis amontoados enquanto falava, e falava rapidamente, muito perspicaz sobre a sua matéria, sem nenhuma pose ou pretensão ou reserva, como um bom homem de ciências falaria.
Nossa conversa esteve alinhavada e unida por dois –como diria? –temas. Um, de mim para ele: “O que você acha que está fazendo da Rússia? Que tipo de Estado está tentando criar?” O outro, dele para mim: “Por que a revolução socialista não começa na Inglaterra? Por que vocês não trabalham pela revolução? Por que vocês não estão destruindo o capitalismo e estabelecendo o Estado Comunista?” Estes temas se entrelaçavam, afetavam um ao outro, iluminavam-se. O segundo trouxe de volta o primeiro: “Mas o que vocês estão fazendo da revolução socialista? Está sendo um sucesso?” E este de volta para o segundo: “Para ser um sucesso o mundo ocidental deve participar. Por que não o faz?”
Antes de 1918 todo o mundo marxista pensava na revolução socialista como um fim. Os trabalhadores do mundo tinham que se unir, derrotar o capitalismo e serem felizes no final. Mas em 1918 os comunistas, para sua própria surpresa, se encontravam no comando da Rússia e desafiados a produzir seu milênio. Eles tinham, na continuidade das condições de guerra, no bloqueio, etcétera, uma pretensa desculpa para o atraso na produção de uma nova e melhor ordem social, mas é claro que começam a se dar conta do tremendo despreparo que implicam os métodos marxistas de pensamento. Em uma centena de pontos –já apontei o dedo em um ou dois deles –eles não sabem o que fazer. Mas o comunista comum simplesmente perde o controle se você se arrisca a duvidar que tudo está sendo feito, sob o novo regime, precisamente da melhor e mais inteligente maneira. Ele é como uma dona de casa irritadiça que quer que você reconheça que tudo está em perfeita ordem no meio de uma ação de despejo. É como uma dessas agora esquecidas “suffragettes” (mulheres que lutaram pelo voto feminino) que costumavam nos prometer o paraíso na Terra tão logo escapássemos da tirania das “leis feitas por homens”. Lenin, por outro lado, cuja franqueza muitas vezes deixa seus discípulos sem fôlego, recentemente desnudou a última pretensão de que a revolução russa seja algo mais do que a inauguração de uma época de experimentação sem limites. “Aqueles que estão engajados na formidável tarefa de vencer o capitalismo”, ele escreveu, “devem estar preparados para tentar método após método até achar aquele cujas respostas atendam melhor a seu objetivo”.
Iniciamos nossa conversa com uma discussão sobre o futuro das grandes cidades sob o comunismo. Eu queria ver até onde Lenin estava acompanhando a morte das cidades na Rússia. A desolação de Petersburgo me trouxe a compreensão de algo que eu nunca tinha me dado conta antes: que toda a forma e a existência de uma cidade são determinadas pelo comércio e pelo mercado, e que a abolição deles torna nove entre dez edifícios, em uma cidade comum, direta ou indiretamente sem significado ou sem uso. “As cidades ficarão muito menores”, ele admitiu. “Elas serão diferentes. Sim, bastante diferentes”. O que, eu sugeri, implicaria em um enorme desafio. Isto significaria riscar todas as cidades existentes e substituí-las. As igrejas e os grandes edifícios de Petersburgo se tornariam então como os de Novgorod o Grande (cidade russa) ou como os templos de Paestum (Grécia). A maioria das cidades se dissolveria. Ele concordou, bastante alegremente. Acho que o confortou achar alguém que entendesse a necessária consequência do coletivismo, o que até mesmo muitos de sua própria gente não conseguiam. A Rússia tem que ser reconstruída inteiramente, tem que se tornar uma nova coisa…
E a indústria também tem que ser reconstruída inteiramente?
Eu me dei conta do que já está acontecendo na Rússia? Da eletrificação da Rússia?
Lenin, que, como um bom marxista ortodoxo, rejeita todos os “utópicos”, sucumbiu afinal a uma utopia, à utopia dos eletricistas. Ele aposta suas fichas em um esquema de desenvolvimento de grandes estações de energia na Rússia para atender todas as províncias com luz, transporte e energia industrial. Dois distritos experimentais já foram eletrificados, ele disse. Alguém pode imaginar um projeto mais corajoso em uma terra enorme e plana, de florestas e camponeses ignorantes, sem energia hidráulica, e com o comércio e a indústria em seu último suspiro? Projetos de eletrificação parecidos estão em desenvolvimento na Holanda e estão sendo discutidos na Inglaterra e, nestes centros densamente povoados e industrialmente desenvolvidos, pode-se concebê-los como exitosos, econômicos e totalmente benéficos. Mas sua aplicação na Rússia representa um ganho ainda maior sobre a imaginação construtiva. Eu não consigo imaginar nada disso acontecendo nesta bola de cristal turva da Rússia, mas este pequeno homem no Kremlin pode; ele vê as decadentes ferrovias substituídas por um novo transporte elétrico, vê novas estradas se estendendo sobre o país, vê um novo e feliz comunismo industrial recomeçando. Enquanto conversávamos ele quase me persuadiu a compartilhar de sua visão.
“E você fará tudo isso com os camponeses fixados em sua terra?”
Mas não somente as cidades serão reconstruídas; toda a agricultura também será.
“Mesmo agora,” disse Lenin, “toda a produção agrícola da Rússia não vem dos camponeses. Nós temos agricultura em larga escala em alguns lugares. O governo já controla grandes propriedades com trabalhadores no lugar de camponeses, onde as condições são favoráveis. Isso pode ser ampliado, primeiro para outra província, e então para outra. Os camponeses em outras províncias, egoístas e ignorantes, não saberão o que está acontecendo até chegar sua vez…”
Pode ser difícil derrotar o campesinato russo em massa; mas por partes não há dificuldade. À menção dos camponeses a cabeça de Lenin chegou perto da minha; seu jeito de falar se tornou confidencial. Como se todos os camponeses pudessem ouvi-lo.
Não é apenas a organização material da sociedade que você tem de construir, argumentei, mas a mentalidade de todo o povo. Os russos são, por hábito e tradição, negociantes e individualistas; suas almas devem ser remodeladas para este novo mundo ser conquistado. Lenin me perguntou o que eu tinha visto do trabalho educativo que está sendo feito. Elogiei algumas das coisas que vi. Ele assentiu e sorriu com prazer. Tem uma confiança ilimitada em seu trabalho.
“Mas são apenas esboços e começos”, eu disse.
“Em dez anos volte e veja o que nós fizemos na Rússia”, ele respondeu.
Em Lenin eu me dei conta de que o comunismo podia ser, a despeito de Marx, enormemente criativo. Após estes fanáticos chatos da guerra de classes que encontrei entre os comunistas, homens previsíveis tão estéreis quanto o sílex, após numerosas experiências com o orgulho treinado e vazio do devoto homem marxista, este impressionante homenzinho, com sua franca admissão da imensidade e complicação do projeto do comunismo e sua singela concentração sobre a concretização dele, foi muito revigorante. Ele pelo menos tem a visão de um mundo transformado a planejar e construir de novo.
Ele queria mais das minhas impressões sobre a Rússia. Eu lhe disse que achei que em muitos lugares, e mais particularmente na Comuna de Petersburgo, o comunismo estava se impondo muito forte e rapidamente, e destruindo antes de estar pronto para reconstruir. Eles destruíram o comércio antes que estivessem prontos para o racionamento; a organização cooperativa foi destroçada em vez de ser utilizada, e coisas assim. Isso nos trouxe à nossa diferença essencial, à diferença entre o coletivista evolucionário e o marxista, à pergunta se a revolução é, afinal, necessária, se é necessário destruir um sistema econômico completamente antes que um novo possa começar. Eu acredito que através de uma intensa campanha educativa o sistema capitalista existente pode ser civilizadoem um sistema coletivista mundial; Lenin, por outro lado, se prendeu anos atrás aos dogmas marxistas da inevitável guerra de classes, à derrota da ordem capitalista como prelúdio para a reconstrução, à ditadura do proletariado e coisas do gênero. Ele tinha que argumentar, portanto, que o capitalismo moderno é incuravelmente predatório, perdulário e impossível de reeducar, e que até que ele seja destruído irá continuar a explorar a humanidade estupidamente e sem rumo, que lutará e se prevenirá contra qualquer administração de recursos naturais que seja para o bem geral, e que, porque é essencialmente uma disputa, inevitavelmente fará guerras.
Eu era, admito, um osso duro de roer. De repente, ele sacou o novo livro de Chiozza Money, The Triumph of Nationalisation, que tinha evidentemente lido com muito cuidado. “Veja, se você começa a ter um bom trabalho de organização coletiva com interesse público, os capitalistas destroem de novo. Eles aniquilaram seus estaleiros nacionais; eles não irão deixar vocês trabalharem seu carvão economicamente”. Ele deu um tapinha sobre o livro. “Está tudo aqui”.
E contra o meu argumento de que as guerras vieram do imperialismo nacionalista e não da organizacão capitalista da sociedade ele saiu-se com esta: “Mas o que você pensa do novo imperialismo republicano que vem até nós da América?”
Aqui o Sr. Rothstein interveio em russo com uma objeção a que Lenin não deu importância.
E a despeito da súplica do Sr. Rothstein por reserva diplomática, Lenin continuou a explicar os projetos com os quais pelo menos um americano procurava deslumbrar a imaginação de Moscou. A assistência econômica para a Rússia e o reconhecimento do governo bolchevique. Uma aliança defensiva contra a intervenção japonesa na Sibéria. Uma estação naval na costa da Ásia, e arrendamentos a longo prazo, por 50 ou 60 anos, dos recursos naturais do Kamchatka e possivelmente de outras largas regiões na Rússia asiática. Bem, eu acho que isso seria para a paz? Não seria nada mais que o começo de um novo conflito mundial? O que achariam os imperialistas britânicos deste tipo de coisa?
Sempre, ele insistiu, o capitalismo compete e disputa. É a antítese da ação coletiva. Não pode evoluir para a unidade social ou mundial.
Mas alguma potência industrial poderia vir e ajudar a Rússia, eu disse. Ela não pode se reconstruir agora sem essa ajuda…
Nossos múltiplos argumentos findaram inconclusivamente. Nos despedimos de forma amistosa, e eu e meu colega fomos colocados para fora do Kremlin barreira após barreira, da mesma maneira como entramos.
Por Cynara Menezes
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Noam Chomsky e o labirinto americano
Ele sustenta: na Síria, Washington adotou lógica da Máfia, e perdeu; no Congresso, Obama é vitima da ultradireita, que age como os nazistas
A América do Sul praticamente se libertou, na última década. Isso é um evento de relevância histórica. A região simplesmente não segue mais as ordens dos EUA. Imagem: HikingArtist
[Este é o blog do site Outras Palavras em CartaCapital. Aquivocê vê o site completo]
Noam Chomsky é, aos 84 anos, um dos maiores intelectuais no mundo. Seu trabalho e suas realizações são bem conhecidos – ele é linguista norte-americano, professor emérito no Massachussets Institute of Technology (MIT) há mais de 60 anos, analista e ativista político constante, crítico original do capitalismo e da ordem mundial que tem como centro os Estados Unidos
Nesse entrevista, Chomsky debate a paralisação do governo norte-americano, por disputas incessantes no sistema político e, em especial, chantagem das forças de direita mais primitivas. Também aborda os sinais de perda de influência de Washington na Síria e da emegência, na América do Sul, de um conjunto de governos que afasta-se dos EUA, pela primeira vez em dois séculos.
Gostaria de começar com a paralisação recente do governo dos EUA. Por que ela é diferente dessa vez, se já aconteceu no passado?
Noam Chomsky: Paul Krugman fez há dias, no New York Times, um ótimo comentárioa respeito. Lembra que o partido republicano é minoritário entre a opinião pública. Controla a Câmara [House of Representatives, que junto do Senado representa o Legislativo nos EUA]. Está levando o governo à paralisação e talvez ao calote de suas dívidas. Conseguiu a maioria por conta de inúmeras artimanhas. Obteve uma minoria de votos, mas a maioria das cadeiras. Está se utilizando disso para impor uma agenda extremamente nociva para a sociedade. Foca particularmente a questão do sistema de saúde público.
Os EUA são o único, entre os países ricos e desenvolvidos, que não possue um sistema nacional de saúde pública. O sistema norte-americano é escandaloso. Gasta o dobro de recursos de países comparáveis, para obter um dos piores resultados. E a razão para isso é ser altamente privatizado e não-regulado, tornando-se extremamente ineficiente e caro. Aquilo que alguns chamam de “Obamacare” é uma tentativa de mudar esse sistema de forma suave – não tão radicalmente como seria desejável – para torná-lo um pouco melhor e mais acessível.
O Partido Republicano escolheu o sistema de saúde como alavanca para conquistar alguma força política. Quer destruir o Obamacare. Essa posição não é unânime entre os republicanos, é de uma ala do partido – chamada de “conservadora”, de fato, profundamente reacionária. Norman Orstein, um dos principais comentaristas conservadores, descreve o movimento, corretamente, como uma “insurgência radical”.
Então, há uma insurgência radical, que implica grande parte da base republicana, disposta a tudo – destruir o país, ou qualquer coisa, com o intuito de acabar com a Lei de Assistência Acessível (o Obamacare). É a única coisa a que foram capazes de se agarrar. Se falharem nisso, terão de dizer a sua base que mentiram para ela, ao longo dos últimos cinco anos. Por isso, estão dispostos a ir até onde for necessário. É um fato incomum – penso que único – na história dos sistemas parlamentaristas modernos. É muito perigoso para o país e para o mundo.
Como a paralisação poderia terminar?
Bem, a paralisação por si só é ruim – mas não devastadora. O perigo real surgirá nas próximas semanas. Há, nos Estados Unidos, uma legislação rotineira – aprovada todo ano – que permite ao governo tomar dinheiro emprestado. Do contrário, ele não funciona. Se o Congresso não autorizar a continuação da tomada de empréstimos, talvez o governo peça moratória. Isso nunca aconteceu e um calote do governo norte-americano não seria muito prejudicial apenas aos EUA. Ele provavelmente afundaria o país, de novo, numa profunda recessão – mas talvez também quebre o sistema financeiro internacional. É possível que encontrem maneiras para contornar a situação, mas o sistema financeiro mundial depende muito da credibilidade do Departamento do Tesouro dos EUA. A credibilidade dos títulos de dívida emitidos pelos EUA é vista como “tão boa quanto ouro”: esses papéis são a base das finanças internacionais. Se o governo não conseguir honrá-los, eles não possuirão mais valor, e o efeito no sistema financeiro internacional poderá ser muito severo. Mas para destruir uma lei de saúde limitada, a extrema direita republicana, os reacionários, estão dispostos a fazer isso.
No momento, os EUA estão divididos sobre como o tema será resolvido. O ponto principal a observar é a divisão no Partido Republicano. O establishment republicano, junto com Wall Street, os banqueiros, os executivos de corporações não querem isso – de maneira nenhuma. É parte da base que deseja, e tem sido muito difícil controlá-la. Há uma razão para terem um grande grupo de delirantes em sua base. Nos últimos 30 ou 40 anos, ambos os partidos que comandam a política institucional dos EUA inclinaram-se para a direita. Os democratas de hoje são, basicamente, aquilo que se costumava chamar, há tempos, de republicanos moderados. E os republicanos foram tanto para a direita que simplesmente não conseguem votos, na forma tradicional.
Tornaram-se um partido dedicado aos muito ricos e ao setor corporativo – e você simplesmente não consegue votos dessa maneira. Por isso, têm sido compelidos a mobilizar eleitores que sempre estiveram presentes no sistema político, mas eram marginais. Por exemplo, os extremistas religiosos. Os EUA são um dos expoentes no que se refere ao extremismo religioso no mundo. Mais ou menos metade da população acredita que o mundo foi criado há alguns milhares de anos; dois terços da população está aguardando a segunda vinda de Cristo. A direita também teve de recorrer aos nativistas. A cultura das armas, que está fora de controle, é incentivada pelos republicanos. Tenta-se convencer as pessoas de que devem se armar, para nos proteger. Nos proteger de quem? Das Nações Unidas? Do governo? Dos alienígenas?
Uma enorme parcela da sociedade é extremamente irracional e agora foi mobilizada politicamente pelo establishment republicano. Os líderes presumem que podem controlar este setor, mas a tarefa está se mostrando difícil. Foi possível perceber isso nas primárias republicanas para a presidência, em 2012. O candidato do establishment era Romney, um advogado e investidor em Wall Street – mas a base não o queria. Toda vez que a base surgia com um possível candidato, o establishment fazia de tudo para destruí-lo, recorrendo, por exemplo, a ataques maciços de propaganda. Foram muitos, um mais louco que o outro. O establishment republicano não os quer, tem medo deles, conseguiu nomear seu candidato. Mas agora está perdendo controle sobre a base.
Sinto dizer que isso tem algumas analogias históricas. É mais ou menos parecido com o que aconteceu na Alemanha, nos últimos anos da República de Weimar. Os industriais alemães queriam usar os nazistas, que eram um grupo relativamente pequeno, como um animal de combate contra o movimento trabalhista e a esquerda. Acharam que podiam controlá-los, mas descobriram que estavam errados. Não estou dizendo que o fenômeno vai se repetir aqui, é um cenário bem diferente, mas algo similar está ocorrendo. O establishment republicano, o bastião corporativo e financeiro dos ricos, está chegando em um ponto em que não consegue mais controlar a base que mobilizou.
Na política externa, as notícias sobre a Síria sumiram da mídia convencional, desde a aprovação do acordo para confiscar as armas químicas do arsenal de Assad. Você pode comentar esse silêncio?
Nos EUA, há pouco interesse sobre o que acontece fora das fronteiras. A sociedade é bem insular. A maioria das pessoas sabe bem pouco sobre o que acontece no mundo e não liga tanto para isso. Está preocupada com seus próprios problemas, não têm o conhecimento ou o compreensão sobre o mundo ou sobre História. Quando algo, no exterior, não é constantemente martelado pela mídia, esta maioria simplesmente não sabe nada a respeito.
A Síria vive uma situação muito ruim, atrocidades realmente terríveis, mas há lugares muito piores no mundo. As maiores atrocidades das últimas décadas têm ocorrido no Congo – na região oriental –, onde mais ou menos 5 milhões de pessoas foram mortas. Nós – os EUA – estamos envolvidos, indiretamente. O principal mineral em seu celular é o coltan, que vem daquela região. Corporações internacionais estão lá, explorando os ricos recursos naturais Muitas delas bancam milícias, que estão lutando umas contra as outras pelo controle dos recursos, ou de parte deles. O governo de Ruanda, que é um cliente dos EUA, está intervindo maciçamente, assim como Uganda. É praticamente uma guerra mundial na África. Bem, quantas pessoas sabem disso? Mal chega à mídia e as pessoas simplesmente não sabem nada a respeito.
Na Síria, o presidente Obama fez um discurso sobre o que chamou de sua “linha vermelha”: não se pode usar armas químicas; pode-se fazer de tudo, exceto utilizar armas químicas. Surgiram relatórios credíveis, afirmando que a Síria utilizou essas armas. Se é verdade, ainda está em aberto, mas muito provavelmente é. Nesse ponto, o que estava em jogo é o que se chama de credibilidade. A liderança política e os comentaristas de política externa indicavam, corretamente, que a credibilidade norte-americana estava em jogo. Algo precisava ser feito para mostrar que nossas ordens não podem ser violadas. Planejou-se um bombardeio, que provavelmente tornaria a situação ainda pior, mas manteria a credibilidade dos EUA.
O que é “credibilidade”? É uma noção bem familiar – basicamente, a noção principal para organizações como a Máfia. Suponha que o Poderoso Chefão decida que você terá que pagá-lo, para ter proteção. Ele tem de “bancar” essa afirmação. Não importa se precisa ou não do dinheiro. Se algum pequeno lojista, em algum lugar, decidir que não irá pagá-lo, o Poderoso Chefão não deixa a ousadia impune. Manda seus capangas espancá-lo sem piedade, ainda que o dinheiro não signifique nada para ele. É preciso estabelecer credibilidade: do contrário, o cumprimento de suas ordens tenderá a erodir. As relações exteriores funcionam quase da mesma maneira. Os EUA representam o Poderoso Chefão, quando dão essas ordens. Os outros que cumpram, ou sofram as consequências. Era isso que o bombardeio na Síria demonstraria.
Obama estava chegando a um ponto do qual, possivelmente, não seria capaz de escapar. Não havia quase apoio internacional nenhum – sequer da Inglaterra, algo incrível. A Casa Branca estava perdendo apoio internamente e foi compelida a colocar o tema em votação no Congresso. Parecia que seria derrotada, num terrível golpe para a presidência de Obama e sua autoridade. Para a sorte do presidente, os russos apareceram e o resgataram com a proposta de confiscar as armas químicas, que ele prontamente aceitou. Foi uma saída para a humilhação de encarar uma provável derrota.
Faço comentário adicional. Você perceberá que este é um ótimo momento para impor a Convenção sobre Proibição de Armas Químicas no Oriente Médio. A verdadeira convenção, não a versão que Obama apresentou em seu discurso, e que os comentaristas repetiram. Ele disse o básico, mas poderia ter feito melhor, assim como os comentaristas. A Convenção sobre Proibição de Armas Químicas exige que sejam banidas a produção, estocagem e uso delas – não apenas o uso. Por que omitir produção e estocagem? Razão: Israel produz e estoca armas químicas. Consequentemente, os EUA irão evitar que tal convenção seja imposta no Oriente Médio. É um assunto importante: na realidade, as armas químicas da Síria foram desenvolvidas para se contrapor às armas nucleares de Israel, o que também não foi mencionado.
Você afirmou recentemente que o poder norte-americano no mundo está em declínio. Para citar sua frase em Velhas e Novas Ordens Mundiais, de 1994, isso limitará a capacidade dos EUA para “suprimir o desenvolvimento independente” de nações estrangeiras? A Doutrina Monroe está completamente extinta?
Bem, isso não é uma previsão, isso já aconteceu. E aconteceu nas Américas, muito dramaticamente. O que a Doutrina Monroe dizia, de fato, é que os EUA deviam dominar o continente. No último século isso de fato foi verdade, mas está declinando – o que é muito significativo. A América do Sul praticamente se libertou, na última década. Isso é um evento de relevância histórica. A América do Sul simplesmente não segue mais as ordens dos EUA. Não restou uma única base militar norte-americana no continente. A América do Sul caminha por si só, nas relações exteriores. Ocorreu uma conferência regional, cerca de dois anos atrás, na Colômbia. Não se chegou a um consenso, nenhuma declaração oficial foi feita. Mas nos assuntos cruciais, Canadá e EUA isolaram-se totalmente. Os demais países americanos votaram num sentido e os dois foram contra – por isso, não houve consenso. Os dois temas eram admitir Cuba no sistema americano e caminhar na direção da descriminalização das drogas. Todos os países eram a favor; EUA e Canadá, não.
O mesmo se dá em outros tópicos. Lembre-se de que, algumas semanas atrás, vários países na Europa, incluindo França e Itália, negaram permissão para sobrevoo do avião presidencial do boliviano Evo Morales. Os países sul-americanos condenaram veementemente isso. A Organização dos Estados Americanos, que costumava ser controlada pelos EUA, redigiu uma condenação ácida, mas com um rodapé: os EUA e o Canadá recusaram-se a subscrever. Estão agora cada vez mais isolados e, mais cedo ou mais tarde, penso que os dois serão, simplesmente, excluídos do continente. É uma brusca mudança em relação ao que ocorria há pouco tempo.
A América Latina é o atual centro da reforma capitalista. Esse movimento poderá ganhar força no Ocidente?
Você está certo. A América Latina foi quem seguiu com maior obediência as políticas neoliberais instituídas pelos EUA, seus aliados e as instituições financeiras internacionais. Quase todos os países que se orientaram por aquelas regras, incluindo nações ocidentais, sofreram – mas a América Latina padeceu particularmente. Seus países viveram décadas perdidas, marcadas por inúmeras dificuldades.
Parte do levante da América Latina, particularmente nos últimos dez a quinze anos, é uma reação a isso. Reverteram muitas daquelas medidas e se moveram para outra direção. Em outra época, os EUA teriam deposto os governos ou, de uma maneira ou de outra, interrompido seu movimento. Agora, não podem fazer isso.
Recentemente, os EUA testemunharam o surgimento de seus primeiros refugiados climáticos – os esquimós Yup’ ik – na costa sul na ponta do Alaska. Isso coloca em mórbida perspectiva o impacto humano no meio ambiente. Qual é sua posição acerca dos impostos sobre emissões carbono e quão popular pode ser tal medida nos EUA ou em outro país?
Acho que é basicamente uma boa ideia. Medidas muito urgentes têm de ser tomadas, para frear a contínua destruição do meio ambiente. Um imposto sobre carbono é uma maneira de fazer isso. Se isso se tornasse uma proposta séria nos EUA, haveria uma imensa propaganda contrária, desencadeada pelas corporações – as empresas de energia e muitas outras –, para tentar aterrorizar a população. Diriam que, em caso de criação do tributo, todo tipo de coisa terrível aconteceria. Por exemplo, “você não será mais capaz de aquecer sua casa”… Se isso terá sucesso ou não, dependerá da capacidade de organização dos movimentos populares.
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