domingo, 2 de fevereiro de 2014

Resposta de Tarso Genro a Demétrio Magnoli:

Os potes de ouro de Demétrio Magnoli

O professor- geógrafo-jornalista Demétrio Magnoli manifesta seguidamente espasmos "críticos" contra quem ele não concorda, sempre à esquerda,


Tarso Genro (*) no CARTA MAIORGustavo Gargioni

Como poucas pessoas sérias fora da direita conservadora - comprometidas com a democracia e com a república - dão importância para os seus artigos, o professor- geógrafo-jornalista Demétrio Magnoli manifesta seguidamente espasmos “críticos”  contra quem ele não concorda, sempre à esquerda, para assim  manter-se saliente como  “intelectual” ícone do mercado. Procede como quem diz: “oi pessoal, eu continuo o mesmo, não esqueçam de mim outra vez.”  Fui, mais uma vez, vítima da sua “argúcia” intelectual, em suposta crítica que faz ao meu artigo “Uma perspectiva de esquerda para o quinto lugar”. Respondo, com fundamentação, no mesmo tom que ele escreveu o seu  ataque, sem fundamentação.

No seu texto, “O Graal de Tarso Genro” (F.S.Paulo, 01.02), Demétrio teve apenas uma manifestação de honestidade intelectual. E esta foi quando disse que o meu texto estava escrito “numa língua estranha, longinquamente aparentada com o português”.  Acho que ele pensa isso mesmo. A sua dificuldade em entender o português simples e direto, usado por mim no texto, fica clara nas  conclusões estapafúrdias produzidas sobre o que eu escrevi.

Quando falo em “honestidade”, faço-o não para absolvê-lo das manipulações grosseiras que fez das idéias que transmito,  mas para reconhecer que o português que ele entende não está efetivamente  presente na linguagem  direta do meu  artigo. Ele só entende um português  mediado pelos verbos e adjetivos das agências de risco e pelas “mensagens” do mercado, com seus potes de ouro destinados aos seus mensageiros: uma linguagem só longinquamente aparentada com qualquer sistema discursivo democrático e humanista.

O centro do meu texto  - escrito sem qualquer desrespeito a quem pensa diferente - é um convite para pensar o Brasil, dentro da democracia e da república, com direitos humanos e sustentabilidade. Defendi no artigo, para que não cheguemos em  2023  num quinto lugar na economia mundial sem melhorar em muito os índices de desigualdade social  -principalmente nas áreas da saúde e educação- devemos buscar um caminho alternativo ao crescimento que se dá com aumento de concentração de renda. Isso está escrito no sétimo e no oitavo  parágrafo do meu texto, publicado aqui na Carta Maior.

Quando Demétrio diz que o meu artigo explica que  falta ao Brasil “um ente de poder capaz de reinventar a sociedade e guiar o povo até o futuro” (“o Partido-Estado”), aduzindo que esta é a minha posição sobre o assunto, já tinha gasto a sua cota de honestidade por artigo e passa a mentir desbragadamente. Ele alega que eu quero transferir para o Brasil, um modo de gestão política do Estado, que, no meu texto, apenas constato que foi o caminho escolhido pela direção chinesa.

O meu comentário sobre este assunto está no  décimo sexto parágrafo do artigo criticado e é uma referência clara ao que aconteceu na China. Não é nem recomenda que seja uma receita, direta ou indireta, para o Brasil. Está expresso claramente,  no início deste parágrafo o seguinte: “se quiséssemos enquadrar  nas categorias do marxismo tradicional o que ocorreu na China...” e passo a aludir ao “Partido-Estado, ” no processo desenvolvimento chinês. Não faço, repito, qualquer recomendação, direta ou indireta,  sobre a fórmula, que não poderia  ser  aceita em qualquer projeto democrático.

O resumo da fraude intelectual do articulista irado, porém,  está no “lead” do seu texto assim redigido: “Democracia é o regime no qual governantes não podem tudo – e aí está o problema do Brasil, na opinião dele...”, ou seja, na minha opinião.  Mentira. Essa não é a minha opinião. O que eu digo no artigo é exatamente o contrário: digo que a democracia exatamente “pode”, através de métodos democráticos, achar uma saída democrática para desamarrar o país de um sistema político falido. Digo, expressamente, no parágrafo 22 do meu texto: “o levantar de âncoras  poderá ser uma nova Assembléia Nacional Constituinte, no bojo de um amplo movimento político –por dentro e por fora do Parlamento-  (...) com os partidos à frente, sem aceitar as manipulações dos cronistas do neoliberalismo, abrigados na grande mídia.”

Creio, sinceramente,  que o professor-geógrafo-jornalista, sentiu-se ofendido com a última frase da transcrição acima  (“cronistas...abrigados na grande mídia”)  e, a partir do seu desconforto, resolveu escrever sua diatribe,  transferindo para mim determinadas posições sobre a questão “Partido-estado”, lidando com os  fantasmas do seu trotskysmo abandonado. Na verdade, eu não acho nenhuma desonra trabalhar em qualquer órgão de imprensa, seja tradicional ou não, seja de direita ou não, bem como defender por convicção quaisquer posições políticas aceitáveis dentro da democracia.  O que eu acho desonroso é deformar ou mentir sobre posições de adversários para tentar dar uma  nova lustrada no já velho senso comum do neoliberalismo.

Na verdade, o articulista continua fazendo esforços para se credenciar, cada vez mais,  com o que ele imagina ser um vasto público que odeia qualquer resquício do PT e da esquerda na política brasileira, oferecendo seus préstimos ao projeto demo-tucano.   Não sei, sinceramente, se ele vai continuar tendo sucesso, pois até os neoliberais um pouco  mais sensatos acham que vale a pena olhar todas as experiências modernas de desenvolvimento e que, para isso, não é preciso abrir mão da democracia política.

Finalizo refutando a mais idiota e irresponsável das suas conclusões, ou seja, que eu seria um pretendente a Duce, sonhando com uma “marcha sobre Brasília”: sou um homem de esquerda, não aceito nem tenho talentos para ser um “putschista” fascistóide. Jamais serei um pretendente a isso, mas acho que  Demétrio já é um pequeno Mussolini, que, antes de ser Duce, já era um grande manipulador e caluniador dos seus adversários.  

Demétrio Magnoli notabilizou-se fora da paulicéia, quando fui Ministro de Educação, pela empáfia com que escrevia contra o Prouni, contra as políticas de cotas para as comunidades indígenas e afrodescendentes,  contra todas políticas educacionais que iniciaram no Governo Lula e proporcionaram um amplo acesso dos pobres às Universidades e Escolas Técnicas do país. Ou seja, sempre militou contra os projetos democráticos de Governo, que abriram  novas perspectivas de vida para os “de baixo”, sempre jogando luz no lado clandestino da alma da direita: aquele que, tendo vergonha de defender as posições elitistas e reacionárias que estão na base do seu pensamento, faz da deformação do pensamento alheio a trilha  aos potes de ouro oferecidos pelo mercado.
(*) Governador do Rio Grande do Sul

O drama das pessoas intersexuais



Reprodução
Elas nascem sem genitália definida como feminina ou masculina, mas não formam, necessariamente, um terceiro gênero. Na Alemanha e em outros países, recebem tratamento especial. No Brasil, não há políticas públicas que as atendam

por Natália Mendes,

Da Retrato do Brasil

No início de novembro passado entrou em vigor na Alemanha uma lei que permite registrar recém-nascidos sob a classificação “sexo indefinido”. Ou seja, a opção “masculino” ou “feminino” poderá ficar em branco no documento. Voltada para aqueles que nascem com características físicas que não se enquadram nos padrões médicos “masculino” ou “feminino”, chamados pessoas intersexo, a lei – que, aparentemente, representa uma ampliação dos direitos dessas pessoas – tem sido questionada por militantes da causa. Isso porque traz à tona questões sobre a discriminação e os preconceitos sofridos por pessoas intersexo e, a partir daí, surgem os debates acerca de sua eficácia e dos verdadeiros benefícios que traria para o público ao qual é destinada.
Artigo publicado pelo site BBC Brasil considerou a lei uma vitória: “A Alemanha passa a ser o primeiro país europeu a oficializar o terceiro gênero. Essa mudança é uma opção para pais de bebês hermafroditas, que nascem fisicamente com ambos os sexos”. O site da emissora de rádio alemã Deutsch Welle também saudou a legislação – “Os órgãos públicos alemães passarão a reconhecer legalmente que o sexo de uma pessoa pode ser outro além do masculino ou feminino” –, mas questionou alguns pontos que não teriam sido esclarecidos: “Como será, por exemplo, o futuro passaporte? Em alguns países, a falta de uma definição clara do sexo pode levar a um problema na imigração. Também a questão de se futuramente os intersexuais poderão se casar ou somente firmar uma união civil ainda precisa ser esclarecida”.

Discriminação

Esses e outros problemas foram igualmente apontados por militantes. A Organisation Intersex International Europe (OII Europe), por exemplo, publicou nota em seu site analisando o texto legal na qual evidencia que o caminho para a não discriminação de pessoas intersexo é mais longo do que pode parecer. “Quem determina que uma criança não pode ser definida como sendo nem do sexo masculino nem do feminino? De acordo com a prática atual, apenas a medicina.” Ou seja, como a definição do sexo da criança ainda está nas mãos de médicos, a lei não representaria um avanço – e o que parece uma escolha, na verdade, seria uma determinação, pois o sexo do recém-nascido ainda teria que ser classificado de acordo com padrões binários.
Hailey Kass, tradutora e pesquisadora das áreas de linguística e gênero, reforça a visão da OII Europe. Em texto publicado pelo site revista o Viés, ela afirma que a nova lei “parece ser só aplicável para pessoas intersexo”. “Pessoas não intersexo não poderiam ser designadas fora do binário para no futuro escolherem? Por que só as pessoas intersexo?” Ela menciona outra passagem da nota da organização europeia: “Em vez de permitir que o registro de sexo fique aberto para todos(as), e não apenas para crianças intersexuais, novamente regras especiais são criadas, o que produz exclusão. As condições de vida da maioria das pessoas intersexo não irão melhorar como resultado disso”.

Depois da lei

“Os efeitos dessa lei podem, na prática, apresentar-se em forma de discriminação e estigmatização”, diz Shirley Monteiro de Lima a Retrato do Brasil. Ela é doutoranda da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e trabalha no Centro de Referência da Diversidade (CRD). “Uma diferença que está no corpo e poderia ser manejada pelo círculo familiar e por decisão do indivíduo intersexo, ao tornar-se pública no registro de nascimento, expõe a pessoa a julgamento social, discriminação e pressão por normatização. A lei abre espaço para mais violações de direitos”, conclui.
“Ainda não sabemos ao certo o impacto dessa lei na dinâmica da família e se a criança sofrerá algum tipo de restrição social por não ter o sexo determinado no registro de nascimento”, diz Ana Canguçu-Campinho, psicóloga do Instituto de Psicologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA), a RB. Ela trabalha desde 2002 com a temática intersexo, acompanhando pessoas nascidas intersexuais e suas famílias. Apesar das dúvidas, Ana enxerga possíveis pontos positivos na mudança. “Até o momento, acho uma alternativa interessante, uma vez que, ao não identificar o sexo no registro, permite-se que o tempo seja usado como um aliado pela própria pessoa intersexual. A criança passa a ser considerada cidadã, ao mesmo tempo em que é dado, ainda que provisoriamente, um tempo para definição do sexo.” Ela esclarece que a “lei de registro não prevê um terceiro gênero, pois no formulário não existe uma nova categoria além do masculino e do feminino. A opção de deixar ‘em branco’ o item implica uma flexibilização na forma de registrar o sexo”.
Poucos países têm leis voltadas exclusivamente para pessoas intersexo. Segundo levantamento publicado pelo site da Deutsch Welle, desde 2010 vigora no Paquistão legislação que reconhece intersexuais como cidadãos, embora não existam dados oficiais sobre o número de pessoas intersexo vivendo no país. Antes disso, as pessoas intersexo não podiam ser registradas – ou seja, não podiam votar ou ter conta em banco, por exemplo. “Com a lei, os intersexuais passaram a ter acesso à educação gratuita, ao sistema público de saúde e a eles é reservada uma cota de 2% dos postos de trabalho em órgãos governamentais.”

Diferente

Na Austrália, os documentos de pessoas intersexo contam com um terceiro campo, ao lado dos de “masculino” e “feminino”, em que é empregado o termo “diferente”. Países como Afeganistão e Nepal também reconhecem pessoas intersexo. Já na Índia existem as Hjiras, pessoas que não são consideradas “nem homem nem mulher” e que possuem um papel social definido: são encarregadas de batizar crianças e abençoar casamentos. Nesse país, “as crianças intersexuais são abandonadas em templos e criadas em uma comunidade específica”, explica Ana.
O tema da intersexualidade, além de complexo, tem sido submetido a interpretações equivocadas. Em 1993, o termo hermafrodita ficou conhecido no Brasil após o sucesso da novela “Renascer”, transmitida pela TV Globo, que contava com a personagem Buba, interpretada pela atriz Maria Luísa Mendonça. Mas o assunto não foi aprofundado e essa passou a ser uma das únicas referências comuns sobre intersexualidade. Hoje, a expressão “hermafroditismo” não é mais usada por pesquisadores, especialistas e militantes, por trazer um conceito equivocado.
Shirley explica, em sua dissertação de mestrado, que o termo hermafrodita é oriundo da mitologia grega, da história de Hermafroditus, um jovem muito bonito, filho de Hermes e Afrodite, que despertou a paixão da bela ninfa Salmacis. Mas Hermafroditus a rejeitou e dizia preferir a morte ao amor de Salmacis. Já a ninfa pediu aos deuses que nunca se separasse dele. Para atender aos dois pedidos, os deuses uniram Salmacis e Hermafroditus em um único ser com dois sexos.
“Pela definição médica, uma pessoa nascida sob a condição de intersexualidade não apresenta sexo cromossômico, genitália externa ou sistema reprodutivo interno dentro do padrão considerado normal para o sexo masculino ou feminino”, diz Shirley. Isto é, não se trata de um homem e de uma mulher em um único corpo, nem de uma pessoa que seja homem e mulher ao mesmo tempo.
Em maio de 2004, o site da Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersexo (ILGA, na sigla em inglês) publicou declaração assinada por Mauro Cabral, ativista argentino intersexual, que afirma que, para a medicina ocidental, os intersexuais são “pessoas com genitália ambígua, indefinida, deformada ou patológica”. Cabral explica que, “para o movimento internacional de pessoas intersexuais e seus aliados, no campo da teoria e dos direitos humanos, intersexuais são aqueles cuja genitália difere dos estereótipos masculino ou feminino, sem que tal variação na aparência genital signifique uma deformação ou uma patologia herdada”. Assim, conclui ele, “intersexualidade é um termo guarda-chuva, descrevendo uma grande variedade de situações em que os genitais de uma pessoa não correspondem aos estereótipos sociais, culturais e políticos atuais”.

Terceiro gênero?

Mas, ao contrário do que muitos acreditam, isso não significa que as pessoas intersexuais se identifiquem, necessariamente, com um “terceiro gênero”. Da mesma forma como no caso de pessoas transexuais, pessoas intersexo podem se identificar como homens ou como mulheres, independentemente de seus órgãos genitais e reprodutivos. “No Brasil, ainda é muito raro que uma pessoa nascida intersexual reivindique um espaço distinto dos já consolidados homem e mulher”, explica Ana. “O que acontece com maior frequência é uma tentativa de ajustar seus corpos aos padrões estabelecidos para o sexo. O poder exercido pela medicalização destina pouco espaço para expressão de corpos e identidade que destoem dos padrões estabelecidos socialmente.”
Ou seja, há diversas variações nos corpos e identidades de intersexuais, e generalizar afirmando que pessoas intersexo são, necessariamente, um “terceiro gênero” pode acabar tendo o efeito contrário do que se pretende, limitando as possibilidades de ser de cada indivíduo e obscurecendo as questões específicas relacionadas aos intersexuais. “O sexo, no fim das contas, pode ser mais social do que biológico”, disse Gerald Callahan, imunologista e professor da Universidade do Colorado, nos EUA, em entrevista publicada pelo site da revista semanal Época em 2007. “Por isso, acho que a opinião da pessoa é um fator determinante.” Em sua dissertação de mestrado, Shirley também aborda a questão de identidade, colocando-a como “uma consequência das relações vivenciadas pelo indivíduo com os outros, com o seu contexto social e consigo mesmo”.
Callahan também tocou em uma das questões mais polêmicas relacionas ao tema: a das intervenções cirúrgicas realizadas em recém-nascidos com genitália ambígua. Mesmo não havendo nenhum indício de que a condição de intersexualidade traga problemas de saúde ao indivíduo, esse é um dos principais problemas relatados por pessoas intersexo. As intervenções – questionadas por especialistas e militantes – podem ocorrer, inclusive, sem o conhecimento e a autorização dos pais. “Na maioria das vezes não há nada a ser feito do ponto de vista cirúrgico na infância. Não é uma condição que ameace a vida nem que necessite de tratamento imediato”, disse o imunologista.
“Considero o principal desafio o reconhecimento social do intersexo como uma diversidade de existência e não como uma anormalidade”, diz Ana. Ela entende que esse é um dos pontos mais importantes na luta das pessoas intersexuais. “A visão do intersexo como anormalidade é histórica. Na Idade Média, as pessoas intersexuais eram percebidas como monstros ou aberrações e muitas vezes eram executadas. Hoje, com a medicalização das sociedades, o intersexo é classificado como doença e anormalidade.”
A OII USA publicou um texto para explicar algumas ideias falsas sobre pessoas intersexo, traduzido por Hailey Kass e publicado no blog Transfeminismo. A organização afirma que as cirurgias que visam a uma “normalização” dos corpos intersexo é equivalente à eugenia, isto é, uma tentativa de “remover diferenças, as quais algumas pessoas decidiram como indesejáveis e que, constantemente, criam problemas que não existiam”. A organização também salienta que as práticas médicas, como as cirurgias e tratamentos hormonais, podem ser contrárias à identidade de gênero da pessoa.

Políticas Públicas

Na declaração publicada pelo site da ILGA, Cabral afirma que estudos apontam que pelo menos uma em cada 2 mil pessoas nasce com órgãos genitais fora dos padrões médicos e que essas pessoas acabam submetidas a cirurgias para a “correção” da genitália. Shirley explica que, “na prática, os neonatos, quando têm identificada a condição intersexual, são submetidos a intervenção cirúrgica e a registro de nascimento no sexo masculino ou feminino de acordo com a assignação realizada na cirurgia”. Ou seja, recém-nascidos que são identificados com genitália ambígua passam por cirurgia para poderem se enquadrar nos padrões médicos de masculino e feminino e serem registrados com o sexo que foi definido com o procedimento. Mas não há dados precisos sobre o número de procedimentos como esse e sobre o número de pessoas intersexo.
Em artigo publicado há uma década, a revista Super Interessante já apontava a dificuldade de obtenção de informações confiáveis e precisas a respeito. “Os cálculos mais conservadores admitem que um em cada 3 mil bebês nasce com essa morfologia, em suas várias formas (no Brasil, isso significaria uma população de mais de 56 mil pessoas).” Segundo a revista, pesquisadores como Anne Fausto-Sterling, professora de Biologia Molecular da Universidade de Brown, no estado americano de Rhode Island, especialista no tema, “garantem que o número é o dobro: um bebê em cada 1,5 mil”. O texto também explica que a prática de cirurgias em recém-nascidos não é novidade. “As cirurgias para determinar o sexo de bebês são aceitas desde a década de 1960, o que reduz as possibilidades de estudos de longo prazo que confirmem ou neguem virtudes para essa intervenção na natureza dos recém-nascidos e, principalmente, seus efeitos na vida adulta do indivíduo.”
De acordo com o artigo, uma das regras ditadas em manuais oficiais de medicina é operar recém-nascidos que tenham pênis de tamanho inferior a 0,9 centímetro, na tentativa de enquadrar o genital nos padrões femininos, transformando-o em um clitóris. Depois da cirurgia, é recomendado começar um tratamento hormonal. Embora a ideia de que a maioria das cirurgias em pessoas intersexo é para as designar como do sexo feminino, a OII USA desfaz esse mito. “Muitas condições intersexo em bebês designados homens são constantemente ignoradas e seus pais são simplesmente informados de que existe algum problema em urinar adequadamente ou que um testículo não foi formado, etc. Ademais, em várias partes do mundo, pessoas intersexo são designadas como homens o quanto mais possível for, porque ser homem é visto como mais socialmente desejável.”
Sem registros oficiais, com discriminação médica e social, intersexuais acabam por encontrar muita dificuldade em serem reconhecidos e aceitos socialmente e, dessa forma, também enfrentam muitos obstáculos na luta por políticas públicas que realmente atendam às suas demandas. Segundo Shirley, um dos maiores desafios dos intersexuais é “conquistar o direito de decidir em assuntos que afetam seus corpos e sua saúde, decidir se desejam realizar alguma intervenção cirúrgica e pensar criticamente sobre o espaço social que desejam ocupar”.
No Brasil, não há políticas públicas específicas para intersexuais. Assim como não há nenhuma associação atuante que seja exclusivamente voltada para a demanda de pessoas intersexo. “As demandas são expressas e resolvidas isoladamente ou articuladas às reivindicações e projetos de leis de outros grupos indentitários, como transexuais e travestis”, explica Ana. Assim, “a visibilidade pode ser considerada como um instrumento de emancipação e de promoção da dignidade em pessoas nascidas intersexuais”.

sábado, 1 de fevereiro de 2014

Não nos esqueçamos da Taxa Tobin!






Um tema recorrente no debate sobre mudanças estratégicas em nosso País refere-se à necessidade de uma reforma tributária. Assim como a reforma política ou a reforma previdenciária, trata-se apenas de um mote para promoção de alterações em algum sistema jurídico-institucional existente. Podem ser encontradas diferentes alternativas e modelos para atender a todos os gostos. O “xis” da questão reside no verdadeiro sentido da transformação que se pretende operar, uma vez que não existe neutralidade na adoção de determinado tipo de política pública. Haverá sempre algum tipo de interesse por trás das diferentes propostas colocadas sobre a mesa, sempre que assuntos desse tipo venham à baila.

No caso da reforma tributária, o quadro de conflitos existentes é bastante explícito.
 
Os representantes do capital normalmente se escondem por trás dessa reivindicação genérica para pleitear a redução de impostos. E ponto final. Sob o discurso da carga tributária excessiva ou da cantilena do elevado custo Brasil, os representantes do empresariado pretendem diminuir o volume de tributos incidentes sobre suas atividades. Pouco importa se tal “reforma” vai implicar uma carência de receitas do Estado para dar conta das despesas envolvidas com a manutenção das políticas públicas tão sabidamente emergenciais e necessárias.
 
Afinal, o que importa mesmo é a busca tresloucada pela rentabilidade do empreendimento privado.

Sistema tributário regressivo e a necessidade de mudança

Outro enfoque bem distinto para dar conta da questão tributária implica em reavaliar a natureza do nosso sistema de impostos. E qualquer análise minimamente isenta vai confirmar que se trata de um modelo bastante regressivo.
 
Isso significa que ele foi concebido de forma a penalizar os setores de renda mais baixa da população. São várias as razões para a sobrevivência de tal quadro. Ainda não foi implementada a regulamentação do Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF), tal como previsto no art. 153, inciso VII, da Constituição Federal. A sistemática de alíquotas do Imposto de Renda suaviza os segmentos de renda muito elevada. Os impostos sobre consumo de bens e serviços não são capazes de diferenciar o comprador de acordo com sua remuneração. Assim, o milionário paga o mesmo tributo incidente sobre o litro de leite ou sobre o kwh da conta de eletricidade do que um assalariado que ganha um salário mínimo.

Portanto, quando se fala em reforma tributária, a estratégia dos trabalhadores e demais setores populares deve ser a de implementação de um modelo progressivo, de maneira a que passem a contribuir com mais impostos as camadas sociais que sejam mais bem aquinhoadas na repartição do bolo do patrimônio e da renda. Paga mais tributo quem possui mais riqueza ou quem recebe mais dinheiro.
 
Simples assim, uma mera questão de equidade e de restabelecimento de padrões mínimos de justiça social. E as possibilidades de utilização de instrumentos de tributação com esse fim são bastante amplas, podendo ser também de incidência internacional.

Taxa Tobin: inovação tributária global

Um exemplo bem característico dessa modalidade é a chamada Taxa Tobin. Trata-se de uma proposta que foi apresentada pelo economista norte-americano James Tobin (prêmio Nobel de economia em 1981), ainda na década de 1970. Há quase meio século atrás, ele propôs a criação de um imposto a ser aplicado sobre as operações envolvendo transações financeiras internacionais. Apesar de sua formação conservadora, Tobin compreendia a necessidade de impor algum grau de regulação na desordem perversa dos negócios internacionais. Ocorre que a idéia sofreu ataques pesados por mais de trinta anos, em particular pelas forças ligadas ao sistema financeiro, em especial a partir do momento em ela se transformou em bandeira dos movimentos progressistas pelo mundo afora. A criação de uma taxa sobre as transações financeiras internacionais cumpriria com duas funções. Por um lado, o papel de regular esse tipo de operação, até hoje fora de qualquer tipo de supervisão ou controle. De outro lado, a possibilidade de constituir um fundo internacional, a partir do recolhimento da taxa, com objetivo de redução das desigualdades sociais e econômicas existentes entre as nações.

Ainda que o autor da proposta tenha tentado voltar atrás em sua proposição inicial, ela adquiriu vida própria e se converteu em uma das bases da constituição de movimentos e organizações que pleiteiam uma nova ordem econômica mundial. É o caso da ATTAC, sigla da “Associação para a Taxação das Transações Financeiras para Ajuda aos Cidadãos”, criada na França em 1998. Em pouco tempo a iniciativa ganhou escala internacional, aproveitando a toada do movimento altermundista e das articulações do Fórum Social Mundial. Durante a época de hegemonia absoluta do pensamento neoliberal, havia muito pouco ou quase nenhum espaço para esse tipo de proposição nos foros institucionais oficiais. Afinal, a criação de um tributo sobre qualquer tipo de transação econômica era vista como uma ingerência indevida no reino intocável das livres forças de mercado. Heresia pura!

Tanto mais se a intervenção que se imaginava viesse para o espaço do financismo e das relações econômicas internacionais. Vale lembrar que um dos pressupostos essenciais do Consenso de Washington era a livre circulação de capitais entre os países, sem nenhuma interferência nas entradas e saídas dos fluxos financeiros. A instituição de uma taxa impositiva nessa seara era vista como algo inconcebível.
 
No entanto, nada como um dia após o outro - e uma crise financeira internacional no meio - para colocar alguns dogmas do liberalismo em questionamento. Após a catástrofe provocada pela quebradeira generalizada dos bancos norte-americanos em 2008, o próprio “establishment” da economia mundial começou a flexibilizar seus graus de ortodoxia. Nada que cheirasse a alguma transformação mais profunda, de natureza político-ideológica. Apenas uma acomodação racional e oportunista, com o intuito de chamar o Estado de volta à cena e ajudar o capital a reduzir as suas perdas. “Business as usual”. A velha estória de promover a apropriação privada de lucros e a socialização de prejuízos.

A crise internacional e oportunidade de mudança

Assim, dentre as diversas propostas de inspiração keynesiana que passaram a frequentar a agenda dos organismos multilaterais desde então, voltou a ser mencionada a taxação das transações financeiras internacionais. O Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial (BM) e a própria União Européia (UE) resolveram incorporar o debate a respeito do assunto. Afinal, algumas projeções levavam a resultados bem interessantes, do ponto de vista das finanças internacionais. Um exercício com a alíquota irrisória de 0,01%, por exemplo, a incidir sobre alguns tipos de operações financeiras no mercado globalizado levariam a uma arrecadação superior a US$ 400 bilhões anuais. Uma quantia razoável para se iniciar um programa global contra a fome e a miséria, por exemplo. Ou seja, uma taxa praticamente invisível propiciaria a arrecadação de somas e fundos expressivos. Nesse caso, fica evidente que o discurso de que a ação do Estado sempre distorce a dinâmica do mercado não se sustenta. Uma alíquota como essa passa praticamente desapercebida pelos preços transacionados, mas resulta em volume de recursos nada desprezível, em razão da escala das operações.

Os momentos mais adequados para a introdução desse tipo de inovação são, em geral, aqueles marcados por algum tipo de crise. No entanto, é fundamental assegurar que os recursos sejam destinados a mecanismos de redução das desigualdades entre os países no mundo e não simplesmente a socorrer os caixas das instituições financeiras em dificuldades. Aliás, caso o governo brasileiro esteja mesmo interessado em manter seu protagonismo na esfera da diplomacia internacional, nada mais interessante do que patrocinar esse tipo de sugestão. Os países do Terceiro Mundo só terão a agradecer a iniciativas como essa, bem como a maioria da população do planeta.

Se o espaço de aceitação da Taxa Tobin continuar se ampliando, como indicam as pressões recentes de países europeus e da própria China, faz-se necessário avançar também na definição do arcabouço institucional. No plano das uniões econômicas ou da soberania de cada país, é mais fácil criar e gerir um tributo dessa característica. Porém, inexiste até o momento, um espaço internacional com legitimidade diplomática e capacidade tributária global. O caminho passa pela construção de um amplo consenso transcontinental em torno da medida e a constituição de um fundo mundial comunitário a partir da coleta dos recursos oriundos das transações tributadas.

Esta seria uma importante demonstração - concreta e objetiva - de que um outro mundo é mesmo possível.

- Jaciara Itaim é economista e militante por um mundo mais justo em termos sociais e econômicos.
 
23/01/2014


http://www.alainet.org/active/70741

Grande Latuff, O Guerreiro do Cartum


"Cada charge é um soco", diz cartunista brasileiro em lista de antissemitas

Por Clarice Sá - iG São Paulo 

Latuff já foi considerado 3º maior antissemita do mundo por conta do ativismo pró-palestina. Esta semana, uma de suas charges virou símbolo de protesto em Santa Maria

Com ele “o papo é reto”. Sem rodeios. Nos traços do polêmico cartunista brasileiro Carlos Latuff, Barack Obama ganha os contornos do “Grande Ditador” eternizado por Charles Chaplin, Dilma Rousseff queima o próprio passado, um representante do Ministério Público cala um manifestante de Santa Maria, e um policial mata com um tiro um Cristo negro crucificado. O impacto das imagens já lhe rendeu três idas a delegacias do Rio de Janeiro para prestar esclarecimentos e, ao longo de 2013, o título de terceiro maior antissemita do mundo na classificação do Centro Simon Wiesenthal, instituição judaica de direitos humanos.
“Cada charge costuma ser um soco no estômago e se for assim para as pessoas perceberem as coisas, que seja”, dispara o ilustrador. “Minha charge cumpre um papel editorial, mas cumpre um papel principalmente de servir de instrumento para o movimento social.” Como resultado, desenhos de Latuff são empunhados em manifestações por todo o mundo. Egito, Bahrein, Grécia, Indonésia, França, Itália e Índia são alguns dos países por onde seus traços ganharam as ruas. 
Latuff criou com três familiares de vpitimas desenho usado nos protestos que marcaram um ano da tragédia da boate Kiss, em Santa Maria (RS). Foto: Arquivo pessoal/Latuff
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No Brasil, os desenhos ocuparam cartazes nos protestos de junho com forte crítica ao prefeito Eduardo Paes, ao governador Sérgio Cabral e à atuação da polícia. A repressão às manifestações de professores em greve, aos rolezinhos e a crise no sistema penitenciário do Maranhão também despertaram a crítica de Latuff. À governadora do Maranhão, Roseana Sarney, sua charge confere o título de Nossa Senhora das Cabeças Cortadas, em alusão à decapitação que virou prática entre criminosos do complexo penitenciário de Pedrinhas.
Em Santa Maria, seu traço estampou faixas e camisetas de familiares e amigos dos 242 jovens mortos há um ano no incêndio na boate Kiss. Com a ajuda de três participantes do movimento Do Luto à Luta, ele criou a imagem que questiona o Ministério Público, o Corpo de Bombeiros e a Câmara de Vereadores. No desenho, as autoridades impedem o grito de protesto de um manifestante. “Tem que dizer quem está por trás dessa tragédia. Não aconteceu do nada. Foi um resultado de má fiscalização, corrupção, etc”, diz Latuff, que se envolveu de forma solidária no movimento, com trabalho sem custos.
Reprodução/Twitter
Protesto em Nova Délhi a favor de palestinos. À esquerda, manifestante com charge de Latuff
Ele também não cobra por nenhuma das charges produzidas em defesa da causa palestina, na qual se engajou após a primeira visita à região, em 1998. Um sinal de paz sobre as cores palestinas criado em 2002, inclusive, foi a charge que começou a trazer destaque internacional. 
A posição pró-Palestina fez com que, ao longo de 2013, figurasse como terceiro na lista dos maiores antissemitas do planeta. Ele está fora da nova versão do ranking, divulgada no fim do ano passado, que conta agora com o músico Roger Waters. “(A lista) é uma tentativa de confundir na cabeça das pessoas a luta contra o apartheid israelense com o ódio aos judeus. Essa tentativa de misturar as duas coisas tem sido uma estratégia de longa data, empregada por organizações do lobby pró-Israel, de tentar associar críticas ao Estado de Israel com o ódio aos judeus. Como se Israel pudesse representar o povo judeu. E eu sempre digo, não existe estado que represente o povo.”
O envolvimento de Latuff com o ativismo politico começou em 1997, quando passou a se comunicar com representantes do movimento zapatista pela internet. “Ali eu percebi que a arte poderia ser um instrumento de luta e não somente um meio para ilustrar artigos e materiais. Percebi que fazer charge é mais do que decorar paredes. É fazer a diferença através do traço.”
Arquivo pessoal/Latuff
Atuação da polícia é alvo constante dos desenhos de Latuff
Entre suas referências está o cartunista palestino Naji Al Ali, assassinado em Londres em 1987. Joe Sacco, autor de “Notas Sobre Gaza” e John Hartfield, criador de fotomontagens contra os nazistas, completam a lista. Latuff diz que sente falta de outras vozes progressistas que adotem um tom crítico de forma contundente. “Hoje em dia, ninguém quer botar a cara para bater, ninguém quer se expor.", afirma.
"Quem é que hoje tem coragem de se expor? Ou melhor, tem espaço para fazer isso? É essa direita, é Lobão, é esse cara que trabalhava no CQC, o Danilo Gentili. É esse pessoal a favor do senso comum, do preconceito, do conservadorismo, do reacionarismo”, diz Latuff. “Falta essa mesma disposição de artistas, de comunicadores que tenham uma posição mais à esquerda, mais progressista, que queiram fazer graça não do fraco e sim do forte. Porque fazer graça da parte mais fraca é covardia.”
Novas investidas de Latuff devem ocupar espaço nos nos próximos meses, por conta da proximidade da Copa do Mundo e dos protestos que prometem ganhar corpo em todo o País. “Acho que vão haver violações sérias dos direitos humanos. Já estão acontecendo”, diz o cartunista, em relação à manifestação que terminou com um jovem baleado por policiais militares em São Paulo. “Em junho, a bala era de borracha, agora a bala é de chumbo. Se bem que eu sempre digo, na favela sempre foi de chumbo.”
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    sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

    Uma retrógrada ditadura rentista e terrorismo global


    Uma retrógrada ditadura rentista e terrorismo global

    Jaime Petras no PATRIA LATINA

    A Arábia Saudita tem todos os vícios e nenhuma das virtudes de um estado rico em petróleo como a Venezuela. O país é governado por uma ditadura familiar que não tolera qualquer oposição e pune severamente os defensores dos direitos humanos e os dissidentes políticos. Centenas de milhares de milhões de receitas do petróleo são controlados pelo despotismo real e alimentam investimentos especulativos no mundo inteiro.
    A elite dirigente confia na compra de armas ocidentais e nas bases militares dos EUA para sua proteção. A riqueza de nações produtivas é sugada para enriquecer o consumo notório da família saudita governante. A elite dirigente financia a versão mais fanática, retrógrada e misógina do Islão, o "waaabismo", uma seita do Islão sunita.

    Confrontada com a dissidência interna de súbditos reprimidos e de minorias religiosas, a ditadura saudita vê ameaças e perigos por todos os lados: no exterior, governos xiitas seculares nacionalistas; internamente, sunitas moderados, nacionalistas democratas e feministas; no seio das cliques realistas, tradicionalistas e modernizadores. Como resposta, virou-se para o financiamento, treino e armamento de uma rede internacional de terroristas islâmicos que têm como objetivo atacar, invadir e destruir regimes que se opõem ao regime clerical-ditatorial saudita.

    Bandar bin Sultan. O cérebro da rede terrorista saudita é Bandar bin Sultan, que há muito tem ligações profundas a altos funcionários políticos, militares e de informações dos EUA. Bandar foi treinado e catequizado na Base da Força Aérea Maxwell e na Universidade Johns Hopkins e foi embaixador saudita nos EUA durante duas décadas (1983-2005). Entre 2005 e 2011 foi secretário do Conselho de Segurança Nacional e em 2012 foi nomeado diretor-geral da agência de informações saudita. Desde muito cedo Bandar mergulhou profundamente nas operações terroristas clandestinas que funcionavam em ligação com a CIA. Entre as inúmeras "operações sujas" com a CIA durante os anos 80, Bandar canalizou 32 milhões de dólares para os Contra da Nicarágua envolvidos numa campanha terrorista para derrubar o governo revolucionário sandinista na Nicarágua. Durante o seu mandato enquanto embaixador envolveu-se ativamente na proteção da realeza saudita com ligações ao ataque terrorista às três Torres e ao Pentágono em 11/Set/2001. A suspeita de que Bandar e os seus aliados na família real tinham conhecimento prévio do ataque por terroristas sauditas (11 em 19) é sugerida pela súbita fuga da realeza saudita na sequência do ato terrorista. Documentos das informações americanas relativas à relação saudita-Bandar estão a ser analisados pelo Congresso.

    Com a abundância de experiência e treino em dirigir operações terroristas clandestinas, proveniente das duas décadas de colaboração com os serviços secretos americanos, Bandar estava em posição de organizar a sua rede terrorista global em defesa da despótica monarquia saudita, isolada, retrógrada e vulnerável.

    A rede terrorista de Bandar

    Bandar bin Sultan transformou a Arábia Saudita de um regime virado para dentro, com base tribal, totalmente dependente do poder militar dos EUA para a sua sobrevivência, num importante centro regional duma vasta rede terrorista, apoiante financeiro ativo de ditaduras militares de direita (Egito), de regimes clientelistas (Iémen) e de regimes que intervêm militarmente na região do Golfo (Bahrain). Bandar financiou e armou uma vasta série de operações terroristas clandestinas, utilizando afiliados islâmicos da Al Qaeda, a seita waabita controlada pelos sauditas, assim como muitos outros grupos armados sunitas. Bandar é um operador terrorista "pragmático": reprime os adversários da Al Qaeda na Arábia Saudita e financia os terroristas da Al Qaeda no Iraque, na Síria, no Afeganistão e noutros locais. Embora Bandar tenha sido um trunfo a longo prazo dos serviços secretos dos EUA, mais recentemente assumiu um 'percurso independente' em que os interesses regionais do estado déspota divergem dos interesses dos EUA. Na mesma linha, embora a Arábia Saudita tenha uma inimizade antiga com Israel, Bandar desenvolveu um "entendimento secreto" e uma relação de trabalho com o regime de Netanyahu, em torno da sua inimizade comum para com o Irão e, mais especificamente, em oposição ao acordo provisório entre os regimes Obama-Rohani.

    Bandar interveio, diretamente ou através de amigos, para reformular alinhamentos políticos, desestabilizando adversários e reforçando e expandindo o alcance político da ditadura saudita desde o norte de África até ao sul da Ásia, desde o Cáucaso russo até ao Corno de África, por vezes em concertação com o imperialismo ocidental, outras vezes projectando as aspirações hegemónicas sauditas.

    Norte de África: Tunísia, Marrocos, Líbia e Egito

    Bandar injetou milhares de milhões de dólares para reforçar os regimes pró-islâmicos de direita na Tunísia e em Marrocos, assegurando que os movimentos de massas pró-democracia seriam reprimidos, marginalizados e desmobilizados. Os extremistas islâmicos que receberam apoio financeiro saudita são encorajados a apoiar os islamitas "moderados" no governo, assassinando líderes seculares e líderes sindicalistas socialistas da oposição. As políticas de Bandar coincidem amplamente com as dos EUA e da França na Tunísia e em Marrocos, mas não na Líbia e no Egito.

    O apoio financeiro saudita a terroristas islamitas e a afiliados da Al Qaeda contra o presidente líbio Kadhafi, estiveram em linha com a guerra aérea da OTAN. Mas surgiram divergências no pós-guerra: a OTAN apoiava um regime cliente feito de neoliberais e de expatriados contra os sauditas que apoiavam a Al Qaeda e grupos terroristas islamitas e pistoleiros e salteadores sortidos. Os extremistas islâmicos na Líbia financiados por Bandar foram financiados para alargar as suas operações militares à Síria, onde o regime saudita estava a organizar uma ampla operação militar para derrubar o regime de Assad. O conflito ruinoso entre a OTAN e os grupos sauditas armados na Líbia transbordou e levou ao assassínio islamita do embaixador dos EUA e de operacionais da CIA em Bengasi. Depois de derrubar Khadafi, Bandar abandonou praticamente o interesse no subsequente banho de sangue e caos provocado pelos seus homens armados. Estes, por sua vez, auto-financiaram-se – roubando bancos, surripiando petróleo e esvaziando tesourarias locais – relativamente "independentes" do controlo de Bandar.

    No Egito, Bandar desenvolveu, em coordenação com Israel (mas por diferentes razões), uma estratégia para sabotar o regime da Irmandade Muçulmana, relativamente independente, democraticamente eleito, de Mohammed Morsi. Bandar e a ditadura saudita apoiaram financeiramente o golpe militar e a ditadura do general Sisi. A estratégia dos EUA de um acordo de partilha do poder entre a Irmandade Muçulmana e o regime militar, aliando a legitimidade eleitoral popular e as forças militares pró-Israel e pró-OTAN, foi sabotada. Com um pacote de assistência de 15 mil milhões de dólares e promessas de mais no futuro, Bandar proporcionou às forças militares egípcias sobrevivência e imunidade económica a quaisquer represálias financeiras internacionais. Não houve quaisquer consequências. Os militares esmagaram a Irmandade, prenderam e ameaçaram executar os seus líderes eleitos. Ilegalizaram sectores da oposição da esquerda liberal que tinham sido usados como carne para canhão para justificar a sua tomada do poder. Apoiando o golpe militar, Bandar eliminou um regime islâmico rival, democraticamente eleito, que contrastava com o despotismo saudita. Assegurou um regime ditatorial semelhante ao seu num país árabe fulcral, apesar de os dirigentes militares serem mais seculares, pró-ocidentais, pró-Israel e menos anti Assad que o regime da Irmandade. O êxito de Bandar em olear as rodas para o golpe egípcio assegurou um aliado político mas enfrenta um futuro incerto.

    O renascimento de um novo movimento de massas anti ditatorial também atingirá a ligação saudita. Além disso, Bandar rompeu e enfraqueceu a unidade dos estados do Golfo: o Qatar financiou o regime Morsi e ficou sem 5 mil milhões de dólares que tinha disponibilizado ao regime anterior.

    A rede terrorista de Bandar é sobretudo evidente no financiamento, armamento, treino e transporte de dezenas de milhares de "voluntários" terroristas islâmicos dos EUA, da Europa, do Médio Oriente, do Cáucaso, do Norte de África e doutros locais, uma operação numa escala de longo prazo. Os terroristas da Al Qaeda na Arábia Saudita tornaram-se "mártires do Islã" na Síria. Dezenas de grupos islâmicos armados na Síria competiram por causa de armas e fundos sauditas. Bases de treino com instrutores americanos e europeus e financiamento saudita instalaram-se na Jordânia, no Paquistão e na Turquia. Bandar financiou o importante grupo armado terrorista islâmico 'rebelde', o Estado Islâmico do Iraque e do Levante, para operações fronteiriças.

    Com o Hezbollah a apoiar Assad, Bandar canalizou dinheiro e armas para as Brigadas Abdullah Azzam no Líbano para bombardear o sul de Beirute, a embaixada iraniana e Trípoli. Bandar canalizou 3 mil milhões de dólares para os militares libaneses na intenção de fomentar uma nova guerra civil entre eles e o Hezbollah. Em coordenação com a França e os EUA, mas com muito maior financiamento e maior latitude para recrutar terroristas islâmicos, Bandar assumiu o papel de liderança e tornou-se o director de princípios duma ofensiva militar e diplomática em três frentes contra a Síria, o Hezbollah e o Irã. Para Bandar, a conquista islâmica na Síria levaria a uma invasão síria islâmica em apoio da Al Qaeda no Líbano para derrotar o Hezbollah na esperança de isolar o Irã. Teerã tornar-se-ia assim o alvo duma ofensiva saudita-Israel-EUA. A estratégia de Bandar é mais fantasia do que realidade.

    Bandar diverge de Washington: a ofensiva no Iraque e no Irão

    A Arábia Saudita tem sido extremamente útil mas, por vezes, escapa ao controlo de cliente de Washington. É o que acontece especialmente desde que Bandar se assumiu como chefe dos serviços secretos: um ativo de longa data da CIA, por vezes também assumiu a liberdade de exigir "favores" em troca dos seus serviços, especialmente quando esses "favores" reforçavam a sua subida no seio da estrutura do poder saudita. Assim, por exemplo, a sua capacidade de garantir os AWAC [1] , apesar da oposição da AIPAC [2] , fizeram-lhe ganhar alguns pontos de mérito. Tal como aconteceu com a capacidade de Bandar para assegurar a saída de várias centenas de 'realezas' sauditas com ligação aos ataques de 11/Set, apesar do bloqueio nacional de segurança a alto nível na sequência desses ataques.

    Embora tenha havido transgressões episódicas no passado, Bandar avançou para divergências mais graves em relação à política dos EUA. Seguiu em frente, construindo a sua rede terrorista, no intuito de maximizar a hegemonia saudita – mesmo quando entrava em conflito com os amigos, clientes e operacionais clandestinos americanos.

    Enquanto os EUA estão empenhados em apoiar o regime de direita de Malicki no Iraque, Bandar está a fornecer apoio político, militar e financeiro ao "Estado Islâmico do Iraque e da Síria" terrorista sunita. Enquanto os EUA negociavam o "acordo provisório" com o Irã, Bandar exprimiu a sua oposição e "comprou" apoio. Os sauditas assinaram um acordo de armas de mil milhões de dólares durante a visita do presidente francês Hollande, em troca de maiores sanções contra o Irão. Bandar também expressou o seu apoio à utilização por Israel da configuração do poder sionista para influenciar o Congresso, a fim de sabotar as negociações dos EUA com o Irão.

    Bandar afastou-se da sua submissão inicial aos treinadores dos serviços secretos americanos. As suas estreitas ligações com presidentes e políticos influentes dos EUA e da UE, passados e presentes, encorajaram-no a meter-se em "aventuras do Grande Poder". Encontrou-se com o presidente russo Putin para o convencer a abandonar o seu apoio à Síria, propondo-lhe uma cenoura ou um chicote: uma venda de armas de muitos milhares de milhões de dólares se acedesse, ou a ameaça de enviar terroristas chechenos para sabotar os Jogos Olímpicos em Sochi. Virou Erdogan de aliado incondicional da OTAN que apoiava os opositores armados 'moderados' a Bashar Assad, para abraçar o 'Estado Islâmico do Iraque e da Síria' apoiado pelos sauditas, um estado filiado na Al Qaeda terrorista. Bandar "ignorou" os esforços "oportunistas" de Erdogan para assinar acordos de petróleo com o Irã e o Iraque, os seus continuados acordos militares com a OTAN e o seu anterior apoio ao defunto regime de Morsi no Egito, a fim de assegurar o apoio de Erdogan para a passagem fácil de grande número de terroristas treinados na Arábia Saudita para a Síria e provavelmente para o Líbano.

    Bandar reforçou laços com os talibãs armados no Afeganistão e no Paquistão, armando e financiando a sua resistência armada contra os EUA, assim como propondo aos EUA um local para uma 'retirada negociada'.

    Bandar provavelmente está a apoiar e a armar terroristas muçulmanos uigures na China ocidental e terroristas islâmicos chechenos e caucasianos na Rússia, enquanto os sauditas alargam os seus acordos petrolíferos com a China e cooperam com a Gazprom da Rússia.

    A única região em que os sauditas têm exercido uma intervenção militar directa é no mini-estado do Golfo, Bahrain, onde as tropas sauditas esmagaram o movimento pró-democracia que contestava o déspota local.

    Bandar: Terrorismo global em duvidosos fundamentos internos

    Bandar envolveu-se numa transformação extraordinária da política externa saudita e reforçou a sua influência global. Só que para pior. Tal como Israel, quando um governante reacionário chega ao poder e derruba a ordem democrática, entram em cena os sauditas com sacas de dólares para estimular o regime. Sempre que aparece uma rede terrorista islâmica para subverter um regime nacionalista, secular ou xiita, pode contar com fundos e armas sauditas. Aquilo que alguns escribas ocidentais descrevem eufemisticamente como um "ténue esforço para liberalizar e modernizar" o retrógrado regime saudita, é na verdade uma renovação militar da sua atividade terrorista no exterior. Bandar usa técnicas modernas de terrorismo para impor o modelo de governo reacionário saudita aos regimes vizinhos e distantes com populações muçulmanas.

    O problema é que as operações externas "aventureiras" de grande escala de Bandar entram em conflito com o estilo de governo "introspectivo" de algumas pessoas da família real reinante. Querem que os deixem em paz para acrescentar centenas de milhares de milhões às rendas do petróleo cobradas, para investir em propriedades de alta qualidade em todo o mundo, e para apadrinhar discretamente raparigas acompanhantes de gama alta em Washington, Londres e Beirute – enquanto se apresentam como piedosos guardiões de Medina, de Meca e dos lugares santos. Até aqui Bandar não tem sido contestado, porque tem tido o cuidado de prestar homenagem ao monarca dirigente e ao seu círculo interno. Comprou e levou primeiros-ministros, presidentes e outras figuras notáveis ocidentais e orientais para Riad para assinar acordos e apresentar cumprimentos para deleite do déspota reinante. Mas o seu comportamento solícito para com as operações da Al Qaeda no estrangeiro, o seu encorajamento aos extremistas sauditas para irem para o estrangeiro e se envolverem em guerras terroristas, perturba os círculos monárquicos. Têm receio que terroristas sauditas treinados, armados e bem informados – conhecidos por "guerreiros sagrados" – possam regressar da Síria, da Rússia e do Iraque para bombardear os palácios do rei. Além disso, os regimes estrangeiros visados pela rede terrorista de Bandar podem exercer retaliação: a Rússia ou o Irã, os sírios, os egípcios, os paquistaneses, os iraquianos podem patrocinar os seus instrumentos de retaliação. Apesar das centenas de milhares de milhões gastos na compra de armas, o regime saudita é muito vulnerável a todos os níveis. Para além das legiões tribais, a elite multimilionária tem pouco apoio popular e ainda menos legitimidade. Depende do trabalho migrante externo, de "especialistas" estrangeiros e das forças militares dos EUA. A elite saudita também é desprezada pelos mais religiosos do clero waabi por permitir "infiéis" em terreno sagrado. Enquanto Bandar alarga o poder saudita no exterior, as bases internas do governo estão a estreitar. Enquanto ele desafia os políticos americanos na Síria, no Irã e no Afeganistão, o regime depende da Força Aérea e da Sétima Armada americanas para o proteger duma série crescente de regimes adversários.

    Bandar, com o seu ego inchado, pode julgar que é um "Saladino" a construir um novo império islâmico mas, na realidade, só com o levantar de um dedo, o monarca seu patrono pode provocar a sua rápida demissão. Uns bombardeamentos civis demasiado provocadores dos seus beneficiários terroristas islâmicos podem levar a uma crise internacional que tornem a Arábia Saudita num alvo do opróbrio mundial.

    Na realidade, Bandar bin Sultan é o protegido e o sucessor de Bin Laden: aprofundou e sistematizou o terrorismo global. A rede terrorista de Bandar tem assassinado muito mais vítimas inocentes do que Bin Laden. Claro que isso era de esperar; afinal, ele tem milhares de milhões de dólares do tesouro saudita, o treino da CIA e o aperto de mão de Netanyahu!

    [1] AWAC: Airborne Warning and Control
    [2] AIPAC: American Israeli Political Activity Committee

    Ver também:
    Behind the Saudi crack-up
    Saudis, Israelis developing new ‘super Stuxnet’ against Iran nuclear program

    O original encontra-se em petras.lahaine.org/?p=1969 . Tradução de Margarida Ferreira.

    Este artigo encontra-se em http://resistir.info