segunda-feira, 27 de abril de 2009

Alguém, finalmente, resiste

Vale cada centavo a aquisição da revista Carta Capital (edição 543) desta semana, principalmente porque traz na capa Joaquim Barbosa, primeiro ministro do Supremo a manifestar publicamente seu descontentamento com a atuação despótica de Gilmar Mendes.Outra matéria interessante é o dossiê elaborado pela revista sobre os embassados negócios do "empresário", Daniel Dantas. A edição on line liberou o conteúdo que produziu sobre Daniel Dantas e seus negócios nos últimos dez anos (alguém lembra da parceria Britto & Oportuny??). São mais de noventa textos, reportagens e editoriais de CartaCapital sobre o envolvimento de Dantas em transações em diversas áreas da economia nativa, em especial no setor de telecomunicações. A edição 543 também traz importante reportagem sobre ação que tramita no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul sobre a cobrança de Royates pela multinacional Monsanto. Segundo a matéria, sindicatos rurais de três municípios, Passo Fundo, Sertão e Santiago, uniram-se para pedir na Justiça o reconhecimento do direito de reservarem e replantarem as sementes multiplicadas a partir das originais sem ter de pagar, novamente, royalties, taxas tecnológicas ou indenização. Também alegam que os valores cobrados pela empresa são abusivos. A ação reabre o debate sobre a interpretação da legislação sobre propriedade intelectual, a proteção dos agricultores e o livre uso da biodiversidade no Brasil.

domingo, 26 de abril de 2009

Reflexões de Fidel....


Preso pela história

• A comparecência de Daniel na Mesa-Redonda da Televisão Nacional foi como esperava. Falou com eloquência, foi persuasivo, sereno, irrebatível.

Não injuriou, nem quis injuriar nenhum outro país da América Latina, mas se aferrou à verdade cada minuto de sua comparecência: a Venezuela, a Bolívia e a Nicarágua, como porta-vozes da ALBA, rejeitaram de forma expressa a ideia de que a Declaração Final fosse apresentada como um acordo de consenso.

Soubemos por Daniel que o próprio Obama reconheceu que não tinha lido aquele documento, que passou de contrabando como Declaração Oficial da Cúpula. A Telesul também transmitiu simultaneamente a comparecência. Teve ampla divulgação.

Daniel exprimiu conceitos lapidares. "Foi a reunião da censura". Fim do bloqueio a Cuba!, foi um clamor unânime, com diferentes matizes, porém unânime."

Ele afirmou: "A intervenção do presidente Rafael Correa foi muito boa quando explicou: "Eleições não significam democracia, porque o multipartidarismo é apenas uma maneira de desintegrar a nação." Daniel acrescentou: "Cuba tem um modelo onde não se divide o povo cubano em verde, vermelho, amarelo e laranja. É simplesmente o povo cubano, seus cidadãos, sem essas campanhas onde estão em jogo os lucros dos grandes capitais. O povo cubano é quem elege suas autoridades sem a estridência das eleições nas democracias burguesas impostas pelo Ocidente.

"A cortesia não elimina as diferenças ideológicas e políticas, não elimina a realidade. Quero sublinhar isso porque percebi muito encantamento nalguns chefes de Estado e de Governo por apertarem a mão do presidente Obama." Referindo-se ao flautista de Hamelin expressou: "Com sua flauta pequena e todos os ratos atrás, vamos para o precipício. Contudo, Obama não conseguiu o efeito que ele queria."

"Os Estados Unidos não mudaram, Raúl o destacou em Cumaná. Foi uma administração republicana a que preparou a invasão pela Baía dos Porcos e foi uma administração democrata a que a executou.

"O presidente dos Estados Unidos expressou que o passado tem que ser esquecido, mas está preso no passado! de 50 anos de bloqueio a Cuba; que, no ano de 2004, quando era candidato a senador, disse que o bloqueio a Cuba era uma barbaridade, que se devia pôr fim a ele. Fizeram-lhe a pergunta na entrevista coletiva e agora responde que isso foi há milhares de anos. Isso significa que ele mente, é uma resposta de uma pessoa que mente.

"Expressou que não se pode pôr fim ao bloqueio a Cuba. Que Cuba devia agradecer as concessões que eles fizeram recentemente. Querem vender isto como uma mudança; nem sequer se aproximam das medidas tomadas por Carter há 30 anos, é realmente um retrocesso. Querem que nos esqueçamos da história.

"A OEA morreu. É um cadáver insepulto."

" A Unidade Africana tem seu próprio instrumento. Não está a França, não está a Inglaterra, os antigos colonialistas destes povos não estão ali, estão os povos da África.

"Da mesma maneira, os povos latino-americanos e caraibenhos temos que estar aqui , e dessas posições, desse diálogo, dessa unidade, dialogar com o Norte, dialogar com os Estados Unidos e o Canadá, dialogar com os europeus; isto é, dialogar com os países do Norte e defender nossas posições.

"O que também fica claro nesta Cúpula é que os Estados Unidos não mudaram e que a América Latina e o Caribe mudaram; mudamos e estamos mudando aferrados às raízes da nossa história".

Explicou finalmente que "o documento estava morto e a política da cenoura e do garrote continua vigente, porque o presidente Obama está preso na estrutura de um império".

Fidel Castro Ruz

Créditos: Granma eletronico

A Revolução dos Cravos faz 35 anos




Depois de sexta-feira é 25 de abril... Trinta e cinco anos após a "Revolução dos Cravos" é tempo suficiente para se fazer um balanço dos danos causados pela feroz e permanente ofensiva mantida pelo grande capital e pelas fações mais reacionárias da Igreja, contra as grandes conquistas democráticas em curto espaço de tempo alcançadas.

Em duas linhas, o essencial das conquistas políticas foi mantido; mas o inimigo de classe — a política capitalista, os esmagadores grupos financeiros e a igreja, entrelaçados — conseguiu suprimir ou debilitar conquistas sociais e travar, até certo ponto, o curso dos movimentos reivindicativos.

Um exemplo, entre muitos outros: os direitos fundamentais, inscritos na Constituição da República, foram resguardados graças à resistência dos trabalhadores.

Já o mesmo não aconteceu com as formas de organização do trabalho ou da administração pública, alvos permanentes de violações e de saques, a ponto dessas metas se tornarem irreconhecíveis como frutos da legislação democrática de Abril.

O pleno emprego, a melhoria do nível e qualidade de vida dos trabalhadores ou a livre e saudável concorrência no comércio, tornaram-se simples acidentes de percurso e servem agora apenas para alimentarem o discurso político demagógico. O fosso entre os rendimentos é cada vez maior e a desonestidade pública impera em todos os escalões. Correm grandes riscos a paz social e as liberdades.

Tantos anos passados, o regime democrático continua por construir.

Mudar e fingir que não se muda ...

Na gramática capitalista, mudar é uma expressão ambígua. As grandes fortunas só mudam a face do mundo em proveito próprio e quando se trata de criar condições favoráveis ao desenvolvimento dos seus faraónicos interesses. O interesse geral é indiferente aos ricos. Na fase de enchimento político-econômico do grande capital, sentiam-se à vontade para repartirem entre si os lucros reservando, entretanto, suculentas migalhas do bolo para aqueles que melhor os serviam.

Nessa fase, acenavam com o milagre econômico e com a paz social, pilares fictícios da sua tese de reconciliação de classes.

Recebiam um poderoso impulso da área religiosa, nomeadamente por parte da Igreja Católica, profundamente interessada no êxito financeiro da classe capitalista dirigente na qual as religiões também se incluíam. E foi assim que o vampiro capitalista, apoiado na força desmedida da sua maioria parlamentar, alcançada no tempo das vacas gordas, tem vindo a devorar, grão a grão, os direitos e as liberdades conquistados pelo povo, em Abril.

A tirania do dinheiro avançou "pela calada", apoiada nas palavras ocas, na mentira e na demagogia que tudo promete e nada concretiza.

Inicialmente, os banqueiros prometeram o sucesso e a sociedade da abundância e conseguiram, com a sua retórica vazia de conteúdo, captar com mentiras alguns trabalhadores. Mas sobreveio a crise econômica e financeira mundial (que se sobrepõe à crise econômica e financeira nacional) e dispararam imparavelmente os números do desemprego, das falências, o agravamento do custo de vida e os impostos fiscais. É uma queda dramática que pode ser prelúdio de uma tragédia social.

É certo que "depois de amanhã é 25 de Abril", mas temos que aproveitar estas horas que vivemos para inverter o curso dos acontecimentos e reconquistar para Portugal uma sociedade democrática. Através do voto consciente e da firmeza da luta democrática e social. Pela mobilização colectiva dos trabalhadores e com a sua aberta intervenção na área política. Porque o povo quer e o povo sabe o que quer.

O mundo que nos rodeia está em constante e profunda mudança. Mas é preciso que mude o seu percurso no sentido dos interesses, das esperanças e dos direitos dos trabalhadores. Repugna olhar o que se passa no nosso país. Os ricos roubam e humilham os pobres impunemente. A Justiça não funciona. A mais descarada mentira pública é prato forte da classe política.

A Igreja é uma triste caricatura da sua própria doutrina. Fechou os olhos aos crimes do fascismo, antes do 25 de Abril. Depois, amontoou fortunas com a especulação financeira e através dos grupos econômicos e dos bancos que dirige.

Quer agora surgir aos olhos dos trabalhadores como anjo da reconciliação de classes.

Quando o dinheiro girava com abundância, a Igreja promovia a sociedade de consumo. Agora que alastram a fome e a miséria, a hierarquia católica vai procurar aparecer como grande senhora da sorte dos famintos. É outra vez a história medieval dos senhores da guerra de "pendão e caldeiro": exterminavam os povos, roubavam tudo o que podiam mas ofereciam aos sobreviventes um caldo cozinhado nos seus caldeirões.

Para que os pobres pudessem ganhar forças suficientes e continuassem a ser escravos dos seus senhores...

Texto: Por Jorge Messias, para o jornal Avante!

Discurso do presidente Iraniano na ONU

Ahmadinejad condenou muito mais do que o racismo de Israel


No último dia 20 de abril, o presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad, foi o grande protagonista do primeiro dia da conferência da ONU sobre o racismo ao proferir um longo discurso no qual, entre outras questões, o líder iraniano denunciou o "racismo" israelense e, sob este pretexto, foi imediatamente satanizado pela máquina de propaganda do sionismo que convenceu o mundo ocidental --incusive a diplomacia brsileira-- de que qualquer crítica a Israel é por si só uma declaração antissemita. Mas o que a mídia e os governos ocidentais que condenaram o discurso do líder iraniano não disseram foi que a denúncia do racismo israelense era apenas uma pequena parte de um discurso que tinha como alvo principal a atual ordem política internacional.


A leitura da íntegra do discurso de Ahmadinejad revela que de um discurso com mais de 2.600 palavras, apenas 164 (menos de 7%) foram destinadas à denúncia contra o racismo israelense. O restante do discurso foi focado na denúncia dos crimes e violações cometidos pelo imperialismo norte-americano, no apontamento do capitalismo selvagem como responsável pela atual crise econômica, na denúncia das diferentes formas de racismo no mundo e no apelo para que sejam efetivadas mudanças na ONU, sobretudo em seu Conselho de Segurança.Veja aqui, no sitio do Vermelho, a íntegra do discurso.

sábado, 25 de abril de 2009

Sempre amoroso....

Carta a uma velha





Frei Betto
- Correio da Cidadania

Para Nina Garcia Alencar.

Querida amiga Nina,

Por que a trato com familiaridade? Ora, agora você me conhece intimamente: meu nome é Velhice. É bem verdade que muitas pessoas de avançada idade se sentem constrangidas, até humilhadas, ao se aproximarem de mim. Como se a Velhice fosse um mal a ser evitado.

Não se conformam com a progressiva e irrefreável degradação do organismo: a audição reduzida, as restrições alimentares, a mobilidade contida, o uso de bengala etc. Por isso, até se recusam a pronunciar meu nome. Esquecem que, à decadência do corpo deveria corresponder à ascendência do espírito. Mas a vida ensina que não se colhe o que não se plantou.

Já não convém chamar uma pessoa de velha. Inventam-se eufemismos, como se a cobertura do bolo modificasse o sabor do recheio: terceira idade, melhor idade, dign/idade... Ora, se devemos encarar a realidade, sugiro ‘eterna idade’, já que os velhos estão mais próximos dela.

Aterrorizadas pela certeza de que um dia serão velhas, e iludidas pela busca ilusória de imortalidade, muitas pessoas, respaldadas pelos simulacros científicos que prometem juventude perene, se esforçam ao máximo para evitar o encontro comigo. Ingerem drágeas que prometem reduzir o desgaste das células, fazem cirurgias plásticas, passam horas a malhar o corpo. E ainda se dão ao ridículo de se fantasiarem de jovens, de adotar vocabulário de jovens, de freqüentar festas de jovens. Como é triste ver uma velha de 70 anos bancando a mocinha de 20! Peruca na cabeça vai bem, mas na alma...

Nina, sei o quanto a sua vida valeu a pena: a família, a fé, as flores de seu acalanto, a sabedoria de permanecer numa cidade do interior e não acompanhar os filhos no rumo das metrópoles.

O que a faz longeva? O que lhe permite celebrar saudáveis 95 anos sem ter recorrido a nenhum desses artifícios? A paz de espírito. Você escolheu cultivar bens infinitos, aqueles que se guardam no coração, e não bens finitos, que envaidecem sem jamais saciar a sede de Absoluto. Você escolheu a amorosa maravilha da cotidianeidade, essas miudezas que, como miçangas, colorem a linha da felicidade: a oração, a freqüência à igreja, o encontro com as amigas, o socorro aos pobres, o cuidado da casa e, no crepúsculo da vida, dar-se ao direito de espiar o mundo pelas janelas dos livros, dos jornais, da TV.

Sonho com o dia em que as mulheres descubram que o auge da beleza reside em encontrar a mim, a Velhice. Essa beleza emoldurada pelas rugas da intensidade de vida e pelos cabelos alvos, fundada na sabedoria de espírito, na capacidade de relativizar tantas coisas que os mais jovens encaram como absolutas. Beleza de quem já não recorre a artifícios exteriores para enfeitar a vaidade; basta o sorriso luminoso, a delicadeza dos gestos, o dom de recolher-se em silêncio ainda que, em volta, todos disputem a palavra aos gritos.

Você bem sabe, Nina, que estar comigo é experimentar algo que, cada vez mais, poucos conhecem: a serenidade. Uma pessoa se torna serena quando se dá conta de que vive num palácio de inúmeros aposentos – a vida –, mas já não sente o menor ímpeto de percorrê-los, perdeu toda curiosidade em relação a eles. Basta-lhe um aconchegante quartinho onde suas plantas recebam um pouco de sol. 

Nina, acolhe o meu afetuoso abraço de feliz idade! Curta a minha companhia sem nenhuma ansiedade frente aos desígnios de Deus. Ele a colherá desta vida, como um jardineiro à sua flor, no momento oportuno. Então, sim, você descobrirá que, do outro lado, a vida é terna.

O carinho de sua companheira,

Velhice.

Frei Betto é escritor, autor de "A arte de semear estrelas" (Rocco), entre outros livros.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

Do Le Monde diplomatique Brasil...

Frantz Fanon, uma voz dos oprimidos

A divisão dos homens entre opressores e oprimidos, a desumanização indígena e o condicionamento do negro pelo branco. Contribuições fundamentais na primeira metade do século passado, as questões debatidas pelo psiquiatra e intelectual negro continuam atuais.

Anne Mathieu

Foi como um estrondo no céu do pós-guerra. Em 1952, aparecia Pele negra, máscaras brancas [1], uma “interpretação psicanalítica do problema negro”. A introdução proclamava: “É preciso libertar o homem de cor de si mesmo. Lentamente, porque há dois campos: o branco e o negro”.

Seu autor, Frantz Fanon (1925-1961), foi ao mesmo tempo psiquiatra, ensaísta e militante político ao lado da Frente de Libertação Nacional da Argélia (FLN), com a qual compartilhava a causa independentista [2]. Martinicano, faz parte do grupo de intelectuais negros cuja importância a França tem dificuldade em reconhecer, embora tratem de uma história comum a todos. anticolonialista radical, de escrita altamente literária e retórica, contribuiu para aclarar não só a história, mas também reflexões e debates contemporâneos. Preferem, no entanto, esquecê-lo sob o rótulo de “profeta fracassado [3]”.

A temática dos “dois campos” evocada por Fanon não é exclusivamente uma oposição entre essas duas cores de pele; inscrevem-se na antinomia “opressores” e “oprimidos”. Em sua visão, “uma sociedade é racista ou não é” e “o racismo colonial não difere de outros racismos”. Quando busca explicar uma ideia-força e mostrar o escândalo que representa, sua prosa poética e retórica se revela. além disso, para ele, a libertação dos indígenas passa pela recusa do mundo da interdição, pela afirmação do “eu” negado pelo colonizador, que os vê como uma massa disforme e serviçal: “o indígena é um ser aprisionado, o apartheid é apenas uma modalidade da compartimentação do mundo colonial. a primeira coisa que o indígena aprende é a manter-se em seu lugar, a não ultrapassar os limites. É por isso que seus sonhos são musculares, de ação, agressivos – Sonho que salto, nado, corro, escalo. Sonho que estou gargalhando, que atravesso o rio com um pulo, que sou perseguido por carros que nunca me alcançam. Durante a coloni- zação, o colonizado não pára de se libertar entre as nove horas da noite e as seis da manhã”. Em outros tempos, Paul Nizan escrevia: “Enquanto os homens não forem completos e livres, não caminharem por suas próprias pernas nas terras que lhes pertencem, sonharão à noite [4]”. opressão burguesa em 1933, opressão colonial em 1952.

Um libelo apaixonado

Pele negra, máscaras brancas nos conduz ao universo atribuído ao negro que foi sistematicamente condicionado pelo branco. São páginas apaixonantes nas quais a herança – apesar das divergências – dos oradores da negritude e do texto “Orfeu Negro” [5], de Jean-Paul Sartre, se faz sentir por meio de encadeamentos lexicais metafóricos e analíticos do corpo, do olhar. Fanon examina o corpo, talvez por isso escreveu: “a primeira versão deste livro foi ditada, andando de um lado para outro como um orador que improvisa; o ritmo do corpo em movimento, o sopro da voz recitando o estilo [6]”. Porém, a realidade supera a metáfora: “No primeiro olhar branco, ele sentiu o peso de sua melanina”. Séculos de escravidão e colonização determinaram um olhar sobre o outro do qual é difícil para não dizer impossível, se despojar: “Quando me amam, dizem que é apesar da cor da minha pele. Quando me detestam, se justificam dizendo que não é pela cor da pele. Em uma ou outra situação, sou prisioneiro de um círculo infernal”.

O racismo se traduz também na designação do negro, submetido à conotação ancestral de sua cor, que se tornou evidência, quase essência: “O negro, o obscuro, as sombras, as trevas, a noite, as profundezas abissais, denegrir a reputação de alguém; e do outro lado: a mirada clara da inocência, a pomba branca da paz, a luz ofuscante, paradisíaca”. A linguagem não pode expurgar essas conotações, que aparecem também na religião: “O pecado é negro como a virtude é branca”. A análise não era nova naquele momento, mas, de uma obra à outra, Fanon foi mais longe. Seu último livro, Os condenados da terra (1961) [7], demonstra que a “compartimentação” da sociedade colonial e racista gera, obrigatoriamente, uma linguagem racista: “Por vezes, o maniqueísmo alcança o limite de sua lógica e desumaniza o colonizado”. Dito de outra forma, como denunciou Jean-Paul Sartre durante a guerra da Argélia [8], o sistema colonial cria um “sub-homem”.

Fanon prossegue: “Falando claramente, [o maniqueísmo] animaliza. Faz-se alusão aos movimentos arrastados durante o trabalho, ao cheiro que emana das vilas indígenas, às hordas, ao fedor, à reprodução desenfreada, às gesticulações. Demografia galopante, massas histéricas, rostos nos quais não há qualquer traço de humanidade, corpos obesos que não se parecem com nada, preguiça sob o sol, ritmo vegetal, todas essas expressões fazem parte do vocabulário colonial”. E vale mencionar que elas ainda não desapareceram totalmente de nossas latitudes, como lembra a canção Lebruit et e l’odeur [o barulho e o cheiro] (1995) [9], do grupo Zebda.

A “desumanização” do indígena justifica o tratamento ao qual é submetido: “Disciplinar, vestir, dominar e pacificar são as expressões mais utilizadas pelos colonialistas em territórios ocupados”. A guerra da Argélia nada mais é que a continuação paradoxal de um sistema que se baseia na “força” e no desprezo. Dessa forma, a introdução de L’an V de la révolution algérienne [O ano V da revolução argelina] (1959) [10] ressalta que desde o início da guerra, “[o colonialismo] francês não renunciou a nenhum radicalismo: nem o do terror, nem o da tortura”.

Calcularam mal: “as repressões, longe de sufocarem as revoltas, estimulam o progresso da consciência nacional”, analisa Fanon. “Se, de fato, minha vida tem o mesmo valor que a do colono, seu olhar não me fulmina mais, sua voz não mais me petrifica. Sua presença não me perturba mais. Na prática, sou eu quem o incomoda. Não só sua presença não me importuna mais, como já estou lhe preparando tantas emboscadas que logo ele não terá outra opção senão fugir”. Assim, a libertação psíquica induz à perda do medo, ao mergulho no combate pela independência.

A violência da palavra

Em que condições esse combate vai se desenrolar? Em Os condenados da terra postula que “a descolonização é sempre um fenômeno violento”. Isso por que violência chama violência e quando o opressor invade a menor parcela que seja de um território, é difícil manter-se aí pacificamente: “Cada estátua, a de Faidherbe ou Lyautey, de Bugeaud ou do Sargento Blandan, todos esses conquistadores que pousaram sobre o solo colonial não param de significar uma única coisa: ‘Estamos aqui pela força das baionetas...’”. É evidente a resposta dos oprimidos, considerada estrondosa quando se trata de outros países sob outros comandos. Fanon justifica a violência? Não em todos os movimentos: “Condenamos, com o coração aflito, esses irmãos que são jogados à ação com a brutalidade quase psicológica que faz nascer e mantém uma opressão secular”. Não obstante, Fanon nos convida à uma compreensão da gênese da violência e da única alternativa deixada aos oprimidos para sua libertação. Sua descrição da “compartimentação” da sociedade colonial, com sua “linha de partilha” e sua “fronteira indicada pelos quartéis e postos de polícia”, nos remete, aliás, ao nosso universo militarizado que, bem longe de “pacificar”, produz ele mesmo o “radicalismo” que pretende combater.

A perspicácia de Fanon vale também para sua análise sobre o futuro de um país descolonizado quando uma “burguesia nacional (in)autêntica” sobe ao poder e não fornece ao povo “capital intelectual e técnico”. Baseando-se no exemplo da América Latina, ele previne sobre o risco de transformação de um país em “território de prazeres a serviço da burguesia ocidental”. Disseca a propensão dessa burguesia “cinicamente burguesa” de romper a unidade nacional jogando com o “regionalismo”. E conclui: “Essa luta implacável à qual se entregam as etnias e tribos, essa preocupação agressiva de ocupar os postos livres pela partida do estrangeiro vão, igualmente, gerar competições religiosas. Assistiremos a confrontação entre as duas grandes religiões reveladas: o islamismo e o catolicismo”. Fanon alerta até para o perigo de um partido único, que utiliza o passado para “adormecer” o povo, “mandá-lo lembrar da época colonial e medir o imenso caminho percorrido”. Quantos países africanos nos vêm à cabeça?

Em reação à colonização, segundo ele, não se deve clamar por uma cultura negra como único horizonte. Se houve “obrigação histórica” para “os homens de cultura africana ‘racializar’ suas reivindicações, de falar antes em cultura africana que em cultura nacional”, por outro lado isso “vai conduzi-los a um beco sem saída”. Suas crenças foram lançadas desde sua primeira obra numa fórmula magnífica sobre a qual os adeptos do comunitarismo poderiam refletir: “Não quero cantar meu passado às custas do meu presente e futuro”. Tal afirmação, no entanto, não se fecha a uma reflexão sobre a história do colonialismo, a qual, como ele lembrava em 1952, se apoiou sobre a história da Europa. O colonialismo baseou-se em “valores” que precisam ser repensados: “Se é em nome da inteligência e da filosofia que proclamamos a igualdade dos homens, é também em seu nome que decidimos exterminá-los”.

Em 1961, a condenação de Fanon se amplificaria com uma veemência radical: “Abandonemos essa Europa que não para de falar no homem, ao mesmo tempo que o massacra onde quer que o encontre, em todos os cantos de suas ruas limpas, em todos os cantos do mundo”. Afrontemos de uma maneira salutar essa França que, ao mesmo tempo em que se liberava do nazismo e se reconstruía, massacrava Sétif (maio de 1945) ou Madagascar (março de 1947). Essa França que, no fim da batalha, virava as costas aos seus irmãos de combate senegaleses ou marroquinos que estavam na linha de frente. Escutemos essa voz que há mais de quarenta anos martela sua verdade incisiva, que poderia muito bem ainda ser a nossa: “Podemos fazer qualquer coisa hoje em dia sob a condição de não imitar a Europa, sob a condição de não sermos obcecados pelo desejo de alcançá-la. A Europa adquiriu tal velocidade, louca e desordenada, que escapa a todos os outros condutores, a toda razão, que segue numa vertigem assustadora em direção a abismos dos quais é melhor se distanciar rapidamente”.

Fanon sabe a qual Europa se refere, ele que soube homenagear os judeus da Argélia, os franceses daqui ou de lá que abraçaram a causa independentista. O gesto é universal: “Eu, o homem de cor, quero apenas uma coisa: que jamais o instrumento domine o homem. Que cesse para sempre a servidão de homem para homem. Quer dizer, de mim para outro.”

*Anne Mathieu é diretora da revista Aden-Paul Nizan , de Paris.



[1] Peau noire masques blancs, Edições Seuil (Paris), com prefácio de Francis Jeanson, que redigiria também um posfácio para a reedição de 1965. A obra está disponível até hoje na coleção “Points Essais”.

[2] Ele foi seu porta-voz a partir de junho de 1957. Desde 1953, foi médico-chefe do hospital psiquiátrico de Blida-Joinville (Argélia)

[3] Ver o texto do ensaísta Lothar Baier (Agone, n°33, Marselha, abril de 2005).

[4] Paul Nizan, Antoine Bloyé (1933), Grasset, Les Cahiers rouges [Cadernos vermelhos], Paris, 2005.

[5] Jean-Paul Sartre, “orfeu Negro”, prefácio em: Léopold Sedar Senghor, Antologie de la poésie nègre et malgache [Antologia da poesia negra e malgaxe], Presses universitaires de France [imprensas universitárias da França], Paris, 1948.

[6] Alice Cherki, Frantz Fanon, portrait [Frantz Fanon, um re trato], Seuil, 2000, p.46.

[7] Publicado por François Maspero com um prefácio de Sartre; foi proibido desde o lançamento. Fanon, já sabendo que estava condenado pela leucemia, ditou cada página. Recebeu um exemplar do livro assim que foi impresso, três dias antes de morrer num hospital dos Estados Unidos. De acordo com sua vontade, foi enterrado num vilarejo argelino libertado próximo à fronteira com a Tunísia.

[8] Jean-Paul Sartre et la guerre d’Algérie [Jean-Paul Sartre e a guerra da Argélia], Le Monde Diplomatique, novembro de 2004.

[9] Inspirada em uma declaração de Jacques Chirac sobre o “barulho e cheiro” provocados pelos imigrantes.

[10] Publicado por Maspero. Longos trechos do último capítulo foram publicados em Les Temps Modernes [os Tempos Modernos]. A obra foi acusada de atentar contra a segurança do Estado. Hoje, está disponível pela editora Découverte, na coleção “(re)Découverte” [(re)Descorberta]. A introdução, redigida em julho de 1959, não figurava na primeira edição.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Quantos Mendes existem na justiça brasileira ?

Enquanto todo o Brasil da Vivas ao ministro Joaquim Barbosa (STF) por levar às falas o presidente da Corte, Gilmar Mendes, os ministros do Supremo Tribunal Federal correram para subscrever uma nota, reafirmando a confiança e o respeito ao Senhor Ministro Gilmar Mendes na sua atuação institucional como Presidente do Supremo. Fico imaginando quantos Gilmar Mendes estão alojados naquela corte, garantindo que a "justiça" aos poderosos seja feita. Já passou da hora de se questionar o Poder Judiciário que só acumula riqueza, edifica prédios babilônicos enquanto nossa crianças estudam em escolas de lata e membros da justiça perseguem movimentos sociais e fecham escolas itinerantes. Gilmar não é só o reflexo da sociedade, é a cara do nosso judiciário brasileiro. Enquanto o Legislativo e o Executivo diariamente sofrem a pressão popular, nosso ilustre Poder Judiciário nunca foi questionado. Pergunto: Como temos dinheiro para construir a babilonia do MP-RS gaúcho e não temos para reformar presídios e nem para escolas ??? Como temos dinheiros para construir anexos de 14 andares e não temos para garantir saúde para nossa população ? Justiça é um trabalhador ganhar R$ 500 reais e um juiz R$ 22 mil (superior aos seus colegas dos EUA).

Ninguem merece esse salafrário...

Ministro acusa Mendes de destruir a credibilidade da Justiça


O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, e o ministro Joaquim Barbosa bateram boca em sessão plenária durante um julgamento nesta quarta-feira (22). O ministro Joaquim Barbosa acusou o presidente do STF de estar ''destruindo a credibilidade da Justiça brasileira''.



Durante uma discussão na sessão de hoje (22) do Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Joaquim Barbosa criticou o presidente do STF, Gilmar Mendes, responsabilizando-o por supostamente contribuir para uma imagem negativa do Poder Judiciário perante a população.

O bate-boca ficou mais ríspido quando Mendes reagiu à discordância de Barbosa com o encaminhamento dado a uma matéria. Os ministros analisavam recursos contra duas leis julgadas inconstitucionais pelo STF. Uma, tratava da criação de um sistema de seguridade do estado do Paraná, e outra, da permanência de processos de autoridades no tribunal, ainda que os réus perdessem cargos políticos.

“Vossa excelência não tem condições de dar lição a ninguém”, afirmou Mendes.

Barbosa respondeu: “Vossa excelência me respeite, vossa excelência não tem condição alguma. Vossa excelência está destruindo a Justiça desse país e vem agora dar lição de moral em mim? Saia à rua, ministro Gilmar. Saia à rua, faça o que eu faço”.

A discussão entre os ministros foi gravada pela TV Justiça e está disponível na internet.

O ministro Ayres Britto tentou colocar panos quentes na discussão, ao lembrar que já havia pedido vista da matéria. Mas não conseguiu.

Quando Mendes respondeu a Barbosa, dizendo que já estava na rua, ouviu do colega o seguinte: “Vossa excelência [Gilmar Mendes] não está na rua não, vossa excelência está na mídia, destruindo a credibilidade do Judiciário brasileiro. É isso. Vossa excelência quando se dirige a mim não está falando com os seus capangas do Mato Grosso, ministro Gilmar. Respeite”.

Após novas trocas de acusações, o Ministro Marco Aurélio sugeriu que a sessão fosse encerrada e foi atendido por Mendes. Em seguida, o presidente do STF e alguns ministros iniciaram uma reunião fechada em seu gabinete.

Reputação ruim

Não é a primeira vez que Gilmar Mendes é confrontado por colegas do juidiciário.

No início deste mês, o procurador-geral da República, Antonio Fernando de Souza, disse que o Ministério Público, órgão do qual é chefe, exerce muito bem a atividade de controlar eventuais excessos cometidos por policiais. A afirmação foi em resposta a uma provocação feita um dia antes pelo presidente do STF, que chamou de ''lítero-poético-recreativo'' o controle externo exercido pelo Ministério Público.

''Quem avalia o Ministério Público é a sociedade e ela avalia bem, de modo que ironia, retórica em nada desqualifica o trabalho do Ministério Público'', disse o procurador-geral.

Antonio Fernando aproveitou para provocar Gilmar, dizendo que o Judiciário deve cumprir apenas as tarefas que lhe são atribuídas: ''Ao Judiciário deve ficar reservada a questão de julgar com imparcialidade. Se o Judiciário desempenhar bem a sua função, já presta à sociedade um relevante serviço'', disse.



Em 2002, quando foi indicado para o STF pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, Mendes já era apontado como prejudicial à imagem da justiça brasileira.

Naquele ano, o renomado jurista Dalmo Dallari, advogado e professor de Direito na Universidade de São Paulo (USP), publicou um artigo na Folha de São Paulo criticando duramente a indicação de Gilmar Mendes.



''Degradação do Judiciário''



Sob o título de ''Degradação do Judiciário'', Dallari registrou em seu artigo: ''(...) O presidente da República, com afoiteza e imprudência muito estranhas, encaminhou ao Senado uma indicação para membro do Supremo Tribunal Federal, que pode ser considerada verdadeira declaração de guerra do Poder Executivo federal ao Poder Judiciário, ao Ministério Público, à Ordem dos Advogados do Brasil e a toda a comunidade jurídica. Se essa indicação vier a ser aprovada pelo Senado, não há exagero em afirmar que estarão correndo sério risco a proteção dos direitos no Brasil, o combate à corrupção e a própria normalidade constitucional''.



''O nome indicado está longe de preencher os requisitos necessários para que alguém seja membro da mais alta corte do país'', disse Dallari na ocasião.



Em novembro de 2008, a revista Carta Capital -- incomodada com o evidente protecionismo que Mendes estendeu a Daniel Dantas ao conceder dois habeas corpus para livrar o banqueiro da cadeia -- publicou um perfil nada lisongeiro do presidente do STF. A reportagem resgata as relações da família de Mendes com as várias esferas de poder. A revista de Mino Carta revela como o ministro atua politicamente para reforçar o naco de poder do irmão, prefeito de Diamantino (MT), cidade da família Mendes. A reportagem mostra um homem muito diferente da face pública.



Escreve Leandro Fortes: “Em Diamantino, a 208 quilômetros de Cuiabá, em Mato Grosso, o ministro é a parte mais visível de uma oligarquia nascida à sombra da ditadura militar (1964-1985), mas derrotada, nas eleições passadas, depois de mais de duas décadas de dominação política”.



A reportagem aponta que o irmão de Gilmar, o atual prefeito Francisco Mendes Júnior, vinha conseguindo se manter no cargo graças à influência política do presidente do STF. “Nas campanhas de 2000 e 2004, Gilmar Mendes, primeiro como advogado-geral da União do governo Fernando Henrique Cardoso e, depois, como ministro do STF, atuou ostensivamente para eleger o irmão. Para tal, levou a Diamantino ministros para inaugurar obras e lançar programas, além de circular pelos bairros da cidade, cercado de seguranças, a pedir votos para o irmão-candidato e, eventualmente, bater boca com a oposição''.


Conhecendo este perfil, não surpreende que o ministro Joaquim Barbosa tenha alertado Gilmar Mendes de que ele não estava falando com seus ''capangas do Mato Grosso''.

A discussão entre os ministros foi gravada pela TV Justiça e está disponível no Youtube ( clique aqui par ver)

Da redação do Vermelho,
com informações da Agência Brasil

quarta-feira, 22 de abril de 2009

À procura de académicos para o Império:
A "Iniciativa de Investigação Minerva" do Pentágono

por James Petras

Cartoon de Latuff. Os estrategistas militares do Pentágono reconheceram que sofreram derrotas políticas, com consequências estratégicas nas suas recentes invasões militares do Iraque e do Afeganistão. O apoio militar dos EUA à invasões israelenses do Líbano e de Gaza, a ocupação etíope da Somália, apoiada pelos EUA, as tentativas de golpes na Venezuela (2002) e na Bolívia (2008) também não conseguiram derrotar os regimes populares no poder. Pior ainda, as redes nacionais civis, familiares, comunitárias e nacionais reforçaram os movimentos anti-colonialistas fornecendo apoio logístico essencial, informações, recrutamento e legitimidade.

Os estrategistas do Pentágono, reconhecendo as bases sociopolíticas dos seus fracassos, viraram-se para cúmplices voluntários no mundo académico para fornecerem informações, sob a forma de relatórios etnográficos, de povos seleccionados, e tácticas e estratégias a fim de dividir e destruir fidelidades locais e nacionais. O Pentágono está a contratar cientistas sociais para traçarem 'mapas sociais' a fim de identificar líderes e grupos susceptíveis de serem recrutados para o serviço do império. Por exemplo, a 'pesquisa de terreno' académica contratada pelo Pentágono pretende demonstrar os modos como as práticas e os rituais religiosos tradicionais podem ser manipulados para facilitar a conquista imperial através da guerra cultural que desencoraje os povos subjugados de apoiarem os movimentos de libertação nacional. Em vez de confrontar o ocupante imperial com o objectivo de restabelecer a soberania nacional, as estratégias de 'guerra cultural' orientam a população para se concentrarem em “problemas locais'. Estes são alguns dos 'projectos de investigação' financiados pelo Pentágono a que se dedicam os 'académicos de uniforme'.

O Pentágono está profundamente empenhado nesta estratégia militar-académica de construção do império, atribuindo-lhe verbas de quase 100 milhões de dólares para a contratação de colaboradores académicos e para o financiamento de múltiplos projectos de 'investigação' em todo o mundo contra estados, movimentos e comunidades seleccionados.

A 'Iniciativa de Investigação Minerva' (MRI)

O maior, embora não seja o único, dos programas de investigação para a construção do império, financiados pelo Pentágono, nas ciências sociais, tem o nome de código de Iniciativa de Investigação Minerva (MRI). A MRI contrata grande número de académicos nos seus habituais bordéis académicos prestigiados, incluindo os chulos académicos veteranos e neófitos ambiciosos entre os assistentes pós-graduação e graduados. Estes 'estudiosos para o império' estão actualmente empenhados em pelo menos catorze projectos O dinheiro da MRI foi buscar às universidades um amplo sortido de psicólogos, cientistas políticos, antropólogos, economistas, professores de estudos religiosos, especialistas de relações públicas, economistas do trabalho, e até mesmo físicos nucleares do MIT, Princeton, Universidade da Califórnia em San Diego e da Universidade Estadual do Arizona, entre outras. Esta generosidade do Pentágono constitui o que a Science (30/Jan/2009, p. 576) (revista oficial da Associação Americana para o Progresso da Ciência) chama 'um banquete para uma área habituada a viver de migalhas”.

Todas as regiões e grupos especificamente seleccionados para a investigação 'académica do Pentágono' estão presentemente em conflito com o império dos EUA ou com o seu aliado israelense e incluem o sudoeste asiático, a África ocidental, Gaza, a Indonésia, o Médio Oriente. O parâmetro ideológico do Pentágono, que define a MRI, é a "guerra contra o terrorismo" ou as suas 'Operações de Contingência Ultramarina', o novo fac-simile com o Presidente Obama.

A MRI tem um interesse especial em académicos que podem visar a área das organizações e actividades muçulmano-árabes, a fim de estudar e desenvolver métodos para "difundir e influenciar o discurso muçulmano contra-radical". Por outras palavras, a MRI está a contratar investigação académica, que irá permitir que o Pentágono penetre nas comunidades muçulmanas, co-opte os líderes e os transforme em colaboradores imperialistas.

A MRI não é um mero mecanismo de "poder ligeiro" – uma batalha de ideias – envolve académicos americanos nalguns dos aspectos mais brutais de guerra colonial. Por exemplo, as Equipas de Terreno Humano, financiadas pelo Pentágono, que operam no Afeganistão, estão profundamente mergulhadas na identificação e interrogatório/tortura de suspeitos combatentes da resistência, simpatizantes civis e membros de grandes famílias e clãs. Um professor de psicologia contratado pela MRI com antigas ligações às operações contra-insurreição do Pentágono, está profundamente envolvido no "estudo de emoções em alimentar ou reprimir movimentos motivados ideologicamente". Operações de ocupação dos serviços secretos têm estado profundamente envolvidas em "fomentar" a hostilidade entre as comunidades xiitas e sunitas no Iraque, no Líbano, no Irão e no Afeganistão. As torturas e as técnicas de interrogatórios duros, utilizadas no Médio Oriente e no Afeganistão, baseiam-se em estudos académicos e vulnerabilidades culturais e emocionais dos muçulmanos e são utilizadas pelos interrogadores militares americanos e israelenses para "quebrar" ou provocar profundos esgotamentos mentais nos activistas anti-ocupação ("repressão de movimentos ideológicos).

Esta versão contemporânea do Dr. Strangelove com a sua versão de fórmulas contra-insurreição imediatas cozinhadas por uma rede mundial de académicos de uniforme pode envenenar o ambiente académico – de modo muito semelhante ao que o Professor 'Bermans' no estado do Michigan, MIT, Harvard, e noutros locais desenvolveu técnicas para investigar e destruir missões contra movimentos de base durante a Guerra do Vietname. O perigo e a atracção para os académicos do financiamento do Pentágono é especialmente agudo actualmente, dada a depressão económica e a imagem pseudo-progressista do regime Obama. As operações de salvamento da Wall Street e a queda do mercado de acções dos EUA têm reduzido as dotações às universidades o que provoca fortes reduções nos orçamentos académicos, salários e fundos para investigação, especialmente na investigação não relacionada com os militares ou com os negócios. O discurso duplo do regime de Obama que fala de paz e aumenta os orçamentos militares, reforçando as tropas no sudoeste da Ásia e alargando as sanções ao Irão, pode levar os académicos a justificar estas últimas citando as primeiras. Para arranjar recrutas académicos para o estábulo da MRI, o Pentágono organizou um seminário em Agosto de 2008, sob a fachada ideológica de "total abertura e estrita adesão à liberdade e integridade académica". Subsequentemente o Pentágono afirmou ter recebido 211 pedidos de académicos procurando um lugar na gamela imperialista.

Apesar da afirmação do Pentágono sobre o êxito da contratação de académicos, há sinais contrários que aparecem no mundo académico, principalmente à luz dos altamente publicitados raptos, tortura e interrogatórios de milhares de muçulmanos e activistas em todo o mundo inclusive nos Estados Unidos, feitos por Forças Especiais.

Fora da extrema-direita tem havido uma ampla relutância entre académicos em se associarem a um governo identificado com os abusos nas prisões de Abu Grahib e de Guantanamo, a destruição das protecções constitucionais dos EUA e as guerras coloniais de ocupação.

Mesmo no caso em que poderosos académicos pró-Israel e grupos de pressão tiveram êxito em conseguir a demissão de professores muito conhecidos por serem críticos do estado hebreu, estas purgas vingativas foram contestadas abertamente por muitos professores em todo o país, incluindo várias dezenas de académicos judeus. Mais recentemente, centenas de intelectuais e investigadores nos EUA, no Reino Unido e no Canadá, horrorizados com os crimes israelenses em Gaza, apelaram às universidades para boicotar as instituições académicas e os indivíduos israelenses que colaborem com as Forças de Defesa de Israel e com o Mossad para a destruição das instituições palestinas, e em especial o bombardeamento de universidades em Gaza.

Intimidação

O grupo de académicos com princípios, críticos da política de Israel e dos EUA, académicos distintos que desafiaram substancialmente o império através da sua investigação e publicações, não está livre da retaliação destinada a desencorajar outros intelectuais. Um caso recente é a suspensão do epidemiologista médico, o académico Dr. Gilbert Burnham da Escola de Saúde Pública Bloomberg da Universidade John Hopkins. O Dr. Burnham foi repreendido publicamente e suspenso da direcção de qualquer investigação envolvendo 'pessoas humanas' por cinco anos por causa de 'quebras éticas de confidencialidade' ( Science, 06/Março/2009, vol. 323, p. 1278). Estas 'violações éticas' referiam-se à sua co-autoria do primeiro estudo epidemiológico rigoroso de larga escala sobre a mortalidade no Iraque durante a invasão e ocupação americana. Estudos locais exaustivos em todo o Iraque chegaram à conclusão de que morreram mais de 600 mil civis iraquianos de morte violenta entre a altura da invasão americana em Março de 2003 e o verão de 2006. Os resultados deste estudo sobre a morte e destruição induzidas pela guerra, publicados na prestigiada revista médica Lancet em Outubro de 2006, foram desmentidos por um Pentágono furioso mas confirmados por estudos subsequentes. As chamadas 'violações éticas' referiam-se a uma questão técnica menor: a codificação incompleta de alguns dos nomes das famílias iraquianas entrevistadas nas folhas de inquérito de língua árabe. Para instituições imperialistas, como a Universidade John Hopkins, a utilização do falso pretexto de 'protecção da privacidade' de centenas de milhares de mortos sem nome numa guerra americana de agressão para punir um distinto epidemiologista, é o mesmo que enviar uma mensagem de intimidação a intelectuais para que se abstenham de documentar as consequência genocidas de guerras imperialistas sobre um povo colonizado. Ao punir publicamente o Dr. Burnham com base nestas acusações idiotas, o Pentágono-Universidade John Hopkins estão a enviar uma clara mensagem aos académicos para não investigarem e revelarem os reais custos humanos da construção do império militar. Uma coisa é certa, as identidades dos que foram torturados ou expropriados com base nas políticas desenvolvidas pelos 'académicos' Minerva patrocinados pelo Pentágono, vão manter-se certamente 'confidenciais' – e muito provavelmente escondidas nas sepulturas em massa.

O facto de a Escola de Saúde Pública Bloomberg ter imposto um castigo tão extraordinariamente pesado sobre um dos epidemiologistas da sua própria faculdade, por causa de um erro técnico metodológico (o procedimento habitual é uma repreensão em privado), e o facto de as sanções terem merecido a maior divulgação pública, indica a natureza fortemente política de todo o processo. O que não é claro é se os apoiantes financeiros da Escola Bloomberg (juntamente com a sua Agenda do Médio Oriente) tiveram uma palavra a dizer nesta decisão punitiva.

Podemos esperar que o regime Obama, com a sua retórica 'mísseis para a paz' e imagens populistas, proporcione uma cobertura para o recrutamento do Pentágono de académicos liberais para 'trabalhar para uma mudança a partir de dentro'. Desmascarar o papel da Iniciativa de Investigação Minerva do Pentágono como parte integrante da escalada militar de Obama é uma missão para todos os académicos que se opõem à construção do império e que apoiam a reconstrução duma república americana que apoia os direitos internacionais da auto-determinação.

O original encontra-se em http://www.globalresearch.ca/index.php?context=va&aid=12990
Tradução de Margarida Ferreira.


Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

América Latina, um continente sem teoria

Os liberais nunca tiveram uma teoria original a respeito da América Latina, nem precisam dela. A repetição recorrente de algumas platitudes cosmopolitas foi mais do que suficiente para sustentar sua visão da economia mundial, e legitimar sua ação política e econômica idêntica em todos os países. Mas no caso dos intelectuais progressistas do continente, é uma má notícia saber que não existe mais uma teoria capaz de ler e interpretar a história do continente, e fundamentar uma estratégia coerente de construção do futuro. A análise é de José Luís Fiori.

No século XIX, o pensamento social europeu dedicou pouquíssima atenção ao continente americano. Mesmo os socialistas e marxistas que discutiram a “questão colonial”, no final do século, só estavam preocupados com a Ásia e a África. Nunca tiveram interesse teórico e político nos novos estados americanos, que alcançaram sua independência, mas se mantiveram sob a tutela diplomática e financeira da Grã Bretanha. Foi só no início do século XX, que a teoria marxista do imperialismo se dedicou ao estudo específico da internacionalização do capital e seu papel no desenvolvimento capitalista a escala global. Assim mesmo, seu objeto seguiu sendo a competição e a guerra entre os europeus e a maior parte dos autores marxistas ainda compartilhava a visão evolucionista de Marx, com relação ao futuro econômico dos países atrasados, seguros de que “os países mais desenvolvidos industrialmente mostram aos menos desenvolvidos, a imagem do que será o seu próprio futuro”.

Foi só depois da década de 20, que a III Internacional Comunista transformou o imperialismo num adversário estratégico e num obstáculo ao desenvolvimento das forças produtivas nos países “coloniais e semi-coloniais”. De qualquer forma, o objeto central de todas as análises e propostas revolucionárias foi sempre, a Índia, a China, o Egito e Indonésia, muito mais do que a América Latina. Na primeira metade do século XX, os Estados Unidos já haviam se transformado numa grande potência imperialista, e o resto da América Latina foi incluída pela III Internacional, depois de 1940, na mesma estratégia geral das “revoluções nacionais”, ou das “revolução democrático burguesa”, contra a aliança das forças imperialistas com as oligarquias agrárias feudais, e a favor da industrialização nacional dos países periféricos.

Um pouco mais à frente, na década de 1950, a tese da “revolução democrático-burguesa”, e sua defesa do desenvolvimento industrial, foi reforçada pela “economia política da CEPAL” (Comissão Econômica para a América Latina) que analisava a economia latino-americana no contexto de uma divisão internacional do trabalho entre países “centrais” e países “periféricos”. A CEPAL criticava a tese das “vantagens comparativas” da teoria do comercio internacional de David Ricardo, e considerava que as relações comerciais entre as duas “fatias” do sistema econômico mundial prejudicavam o desenvolvimento industrial dos países periféricos. Tratava-se de uma crítica econômica heterodoxa, de filiação keynesiama, mas do ponto de vista prático acabou convergindo com as propostas “nacional-esenvolvimentista”, que foram hegemônicas no continente, depois da II Guerra Mundial.

Na década de 60, entretanto, a Revolução Cubana, a crise econômica e a multiplicação dos golpes militares em toda América Latina provocaram um desencanto generalizado com a estratégia “democrático-burguesa”, e com a proposta “cepalina” da industrialização por “substituição de importações”. Sua crítica intelectual deu origem às três grandes vertentes da “teoria da dependência”, que talvez tenha sido a última tentativa de teorização latino-americana, do século XX.

A primeira vertente - de filiação marxista - considerava o desenvolvimento dos países centrais e o imperialismo um obstáculo intransponível para o desenvolvimento capitalista periférico. Por isto, falavam do “desenvolvimento do subdesenvolvimento” e defendiam a necessidade de uma revolução socialista imediata, inclusive como estratégia de desenvolvimento econômico. A segunda vertente - de filiação “cepalina”- também identificava obstáculos à industrialização do continente, mas considerava possível superá-los através de uma série de “reformas estruturais” que se transformaram em tema central da agenda política latino-americana, durante toda a década de 60. Na verdade, a própria teoria da CEPAL, sobre a relação “centro-periferia”, já não dava conta da relação dos EUA com o seu “território econômico supranacional”, que era diferente do que havia acontecido com a Grã Bretanha.

Por fim, a terceira vertente da teoria de dependência - de filiação a um só tempo marxista e cepalina - foi a que teve vida mais longa e efeitos mais surpreendentes, por três razões fundamentais: primeiro, porque defendia a viabilidade do capitalismo latino-americano; segundo, porque defendia uma estratégia de desenvolvimento “dependente e associado” com os países centrais; e terceiro, porque saíram deste correntes alguns dos principais líderes políticos e intelectuais da “restauração neoliberal” dos anos 90. Como se tivesse ocorrido um apagão mental, velhos marxistas, nacionalistas e desenvolvimentistas abandonaram suas teorias latino-americanistas e aderiram à visão do sistema mundial e do capitalismo, própria do liberalismo europeu do século XVIII.

Nesta linha de pensamento, ainda em 2009, um importante intelectual desta corrente de idéias defendia - por cima de tudo o que passou no mundo, desde o início do século XXI- que: “não existe mais geopolítica nem imperialismo no novo mundo pós-colonial, da globalização, do sistema político e da democracia global.... [e que ] a estratégia clássica da geopolítica de garantir acesso exclusivo a recursos naturais na periferia do capitalismo já não faz sentido não só por seus custos, mas também porque, com a globalização, todos os mercados estão abertos, e é inimaginável que um país recuse vender a outro, por exemplo, petróleo a preço de mercado...[donde], as guerras entre as grandes potências já não fazem sentido porque todas as fronteiras já estão definidas....”[1].

Ingenuidade à parte, os liberais nunca tiveram uma teoria original a respeito da América Latina, nem precisam dela. A repetição recorrente de algumas platitudes cosmopolitas, foi mais do que suficiente para sustentar sua visão da economia mundial, e legitimar sua ação política e econômica idêntica em todos os países. Mas no caso dos intelectuais progressistas do continente, é uma má notícia saber que não existe mais uma teoria capaz de ler e interpretar a história do continente, e fundamentar uma estratégia coerente de construção do futuro, respeitada a imensa heterogeneidade do continente latino-americano.

[1] Bresser Pereira, L.C. “O mundo menos sombrio. Política e economia nas relações internacionais entre os grandes países”, in Jornal de Resenhas. Março de 2009, N° 1. Discurso Editorial, São Paulo, pp: 6 e 7

José Luís Fiori, cientista político, é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.