quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Moscou e suas mudanças pós-socialismo...

Dez dias em Moscovo
Um Reencontro Doloroso

O Kremlin visto do Rio Moskwa
Miguel Urbano Rodrigues voltou a Moscovo 15 anos após a sua última visita.
Encontrou ali uma sociedade capitalista com diferenças de classe abissais.
Neste artigo transmite as suas impressões sobre o que viu e ouviu durante dez dias na grande cidade que foi capital da União Soviética, um país que já não existe.
Miguel Urbano Rodrigues - odiario.info
(Fotos de Ana Catarina Almeida)

O que sentirei no reencontro?

A pergunta, enquanto o avião corria pela pista do aeroporto Domodedevo, em Moscovo, incomodou-me por repetida. Desembocava no vazio.

Voltava a Moscovo 15 anos após a última visita realizada como membro de uma delegação da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa. Nessa época a Rússia, em transição para o capitalismo, vivia dias caóticos.

Agora, transcorridas 24 horas, ainda tenho dificuldade em arrumar ideias e interpretar emoções, em inserir numa reflexão coerente o que vejo e sinto.

Estou numa esplanada do Gum, na Praça Vermelha, em frente do Mausoléu de Lenine. Sobre o Grande Palácio ondeia a bandeira actual da Rússia. Nela figura, por decisão recente, a águia bicéfala dos Romanov. A guarda de honra, que antes era permanente, foi retirada.

Nada corresponde ao esperado, embora tudo na expectativa fosse vago, indefinível. As surpresas encadeiam-se numa cadeia desordenada.

Na memória o que ficou gravado não foram imagens e sentimentos de passagens pela cidade na agonia da perestroika e no início do consulado de Ieltsine. O que permanece como referência, como termo de comparação, é a lembrança da Moscovo que visitei mais de uma dúzia de vezes quando era a capital da URSS, um pais que desapareceu.

O dia está luminoso, quase não há nuvens num céu muito azul, e o sol quente da manhã incide sobre o zimbório da catedral de São Basílio.

Há pouca gente ainda a circular pela Praça e na lonjura adivinho as cúpulas douradas de algumas das brancas catedrais do Kremlin.
Catedral de S. Basílio
Pagamos, minha companheira e eu, 2.500 rublos, o equivalente a 56 euros, por duas saladas, uma cerveja – estrangeira porque não serviam russa - uma água mineral e dois cafés.

Foi o primeiro alerta, para não esquecer que Moscovo é hoje a cidade mais cara da Europa.

O Gum, que conhecera como gigantesco centro comercial onde tudo era barato, assumiu a fisionomia de um shopping onde transnacionais da União Europeia e dos EUA vendem produtos de luxo.


NA ARBAT E NA NOVA ARBAT


Voltei à Arbat num domingo frio e ventoso. Ao entrar na rua que aparecia aos forasteiros como um ex libris da velha Moscovo tive inicialmente a sensação de que o tempo havia parado ao avistar, vindo do metro da Smolenskaya, o palacete verde onde Puskin viveu tempos de felicidade com a mulher, Natalia Goncharova.

A ilusão logo se desfez.

Alguns artistas expunham, como antes, os seus quadros no meio da rua e pintavam retratos de turistas.

Mas a atmosfera da Arbat transmutara-se. A modernidade transformadora exibia-se nas terrasses de estilo francês dos cafés, dos restaurantes de cozinha italiana, asiática, até americana, na decoração dos estabelecimentos de souvenirs, mas também na secura dos vendedores, na frieza das empregadas de todas as lojas.
Rua Arbat
Choque maior foi o sentido depois, ao descer a antiga avenida Kalinin. Mudou de nome como muitas ruas e cidades. Trocaram-no para Nova Arbat. Reconheci, imutáveis, os enormes edifícios da época soviética. Mas, caminhando pelos passeios – talvez os mais largos do mundo – a sensação de que pisava terreno desconhecido foi imediata. A publicidade, antes inexistente, agride hoje o forasteiro.

Os casinos da avenida foram fechados recentemente por decisão de Medvedev no cumprimento de uma lei que era desrespeitada. O jogo passou a ser permitido somente em quatro cidades do país. Mas as fachadas berrantes dos casinos ainda não foram alteradas. Ali perdiam-se e ganhavam-se milhões na roleta e no poker e as slot machines eram um sorvedouro de dinheiro.

Entrei em dois centros comerciais super luxuosos onde as lojas de grandes costureiros de Paris e Roma e de perfumes famosos chamam a atenção. Os preços são astronómicos. Vi expostos casacos de peles cujo custo excedia 500.000 rublos (11.200 euros). Numa loja de vinhos – há hoje dezenas em Moscovo - uma garrafa de Bordeaux de nome para mim desconhecido era oferecida pela bagatela de 45.000 rublos ( 1.000 euros). Outras custam mais de 20.000 rublos (445 euros).

Alguns supermercados funcionam durante as 24 horas do dia.

Num parque de estacionamento da Nova Arbat os carros top gama eram mais numerosos do que os comuns. Vi ali Bentleys, Porsches, Mercedes, Jaguares, Ferraris, Volvos, BMW, Mercedes, Lexus e Infinitis japoneses, alguns de modelos inexistentes em Portugal. Disseram-me que em Moscovo há mais Rolls Royce do que na Inglaterra.

Para surpresa minha há hoje em circulação mais carros importados do que russos. Das marcas tradicionais, segundo me informaram, somente continuam em produção o Volga e o Lada.

Mas as contradições na capital são tamanhas que na Sadovaya, a primeira circular, muito perto da Nova Arbat, um outro supermercado vendia cerveja russa barata, excelentes vinhos chilenos a 200 rublos (4,4 euros) e legumes e frutas a preços comparáveis aos portugueses.

COMO FOI POSSÍVEL?

Não ocorreu na história contemporânea acontecimento comparável ao terramoto social que assinalou o desaparecimento da União Soviética.

A transição do capitalismo para o socialismo, difícil e imperfeita, caracterizara-se por uma exacerbada e prolongada luta de classes.

A transição do socialismo para o capitalismo, essa foi rápida, caótica, selvagem.

Li milhares de páginas sobre esse período de barbárie. Em duas visitas breves, em 1993 e 1994, testemunhei o início da transformação da sociedade.

Conhecia os factos, mas não a herança.

Com frequência, veteranos comunistas perguntam em Portugal:
«Como foi possível?»

No reencontro com amigos russos – jornalistas, ex-diplomatas, tradutores – escutei, nas respostas a uma infinidade de perguntas, versões do sismo social nem sempre coincidentes nos pormenores mas que não diferiam muito no tocante aos efeitos do vendaval contra-revolucionário e ao quadro em que se desenvolveu o capitalismo selvagem.

Na destruição das estruturas económicas do Estado Soviético foi tudo tão rápido, absurdo e violento que a imaginação tem dificuldade em acompanhar o processo.

A Moscovo dos bilionários e dos pobres, separados por uma classe média anémica que sobrevive recorrendo ao duplo e triplo emprego, nasceu na atmosfera caótica da barbárie social incentivada e tutelada por Ieltsine após o fim da URSS.

A destruição da propriedade social, empreendida sob a direcção de uma burocracia que havia renunciado há muito aos princípios e valores do socialismo, concretizou-se através de mecanismos criminosos concebidos para permitir a acumulação em tempo brevíssimo de fortunas colossais.

O sistema dos vouchers foi apresentado ao Ocidente como uma opção democrática destinada a transformar os trabalhadores em proprietários das suas empresas. Na prática funcionou como instrumento de concentração de riqueza e poder nas mãos de uma classe dominante de tipo mafioso.

A desordem imperante, o desabar da Segurança Social, o desaparecimento de direitos e garantias, o desemprego galopante, o desabastecimento, carências generalizadas contribuíram para que em tempo mínimo os trabalhadores vendessem por preço vil os vouchers recebidos, para eles papéis sem valor.

Ex-directores das empresas e ex-altos funcionários do Estado foram os principais beneficiários do processo de espoliação dos trabalhadores. A venda de fábricas inteiras ao estrangeiro – muitas vezes por menos de um décimo do seu valor – em negociatas escandalosas, apadrinhadas pelo Governo, facilitou também o aparecimento de uma geração de milionários. Os anos 90 ficarão na Historia como a década das máfias, um período de caos social, durante o qual a criminalidade atingiu o auge com os grupos mafiosos a controlar o Poder Central enquanto se digladiavam no contexto do capitalismo selvagem. Quase tudo no fluir da vida económica era ilegal. Mas a ilegalidade torrencial, por rotineira e abrangente, era tolerada, aceite como fenómeno quase natural.

Homens e mulheres – Berezovsky, Abramovitch, a filha de Ieltsine Tatianja Diatchenko, entre muitos outros - que anos antes viviam de modestos salários tiveram, de repente, os seus nomes inscritos na lista das grandes fortunas do mundo.

A nova economia russa assentava, entretanto, em bases virtuais, tão desligadas da produção que ruiu instantaneamente.

Na crise do ano 98 veio tudo abaixo. O rublo tornou-se de um dia para outro um papel sem valor e a pobreza generalizada agravou-se em todo o pais, assumindo proporções alarmantes.

A ascensão de Putin à Presidência ficou a assinalar o início da transformação do sistema. O sucessor de Ieltsine percebeu que era urgente por termo à fase do capitalismo selvagem, tutelado pelas máfias, e instaurar no país um capitalismo com regras e outro rosto, inspirado no modelo neoliberal ocidental. E o que ocorreu?

A continuidade de uma política anti-social, com a peculiaridade de ser aprovada e elogiada pelos EUA e pelos governos da União Europeia.

Assistiu-se, a partir do ano 2001, à legalização daquilo que fora roubado.

A corrupção em larga escala não desapareceu. Assumiu novas formas. O Governo Putin ganhou a respeitabilidade de que carecia o de Ieltsine.

MOSCOVO, OUTRO PAÍS

Moscovo tem oficialmente 10 milhões e meio de habitantes. É a mais populosa cidade da Europa depois da turca Istambul. Mas as estatísticas mascaram a realidade. Poucos arriscam números, mas admite-se que na capital vivam actualmente 13 milhões de pessoas. Porquê a diferença?

Ninguém pode morar na cidade sem autorização de residência e os ilegais não constam obviamente do censo.

Ouvi repetidamente que Moscovo é actualmente um país dentro de outro, diferente, que é a Rússia.

O comentário facilita o entendimento da contradição: uma prodigiosa concentração de riqueza na capital de um país empobrecido, terceirizado.
As grandes marcas estão por todo o lado
Moscovo é um polvo monstruoso que atrai e digere a riqueza produzida na vastidão do maior país do mundo. Ali se concentram nas mãos de uma classe de inimigos do povo os lucros do gás, do petróleo, dos diamantes, do ouro, de grande parte da mais valia que o jovem capitalismo russo consegue acumular à custa do suor e do sofrimento dos povos do território do planeta mais rico em recursos naturais.

Mas Moscovo é uma cidade de desigualdades chocantes. A prosperidade arrogante da urbe de novos-ricos, que se exibe como vitrina do século XXI, é privilégio de uma pequena minoria. Na megalópolis a pobreza e mesmo a miséria coexistem com o mundo fechado da classe bilionária de raízes mafiosas.

Nos estamentos mais baixos de uma classe média pauperizada são raros os que para sobreviver não têm de recorrer ao duplo emprego ou a biscates.

Quase tudo o que antes nos serviços públicos era gratuito ou tinha um preço simbólico é agora pago.

O ensino nas Universidades do Estado – as privadas são por ora inexpressivas - continua a ser teoricamente gratuito. Mas o custo das propinas atinge níveis elevadíssimos. Na Lomonossov, de Moscovo, uma escola que gozava de prestígio mundial, a anuidade em algumas Faculdades anda pelos 225.000 rublos (5.000 euros).

A situação criada pela corrupção no Ensino suscita tantas críticas que Medvedev numa reunião com os lideres dos grupos parlamentares representados na Duma sugeriu há dias a constituição de uma Comissão Especial incumbida de estudar o problema e propor medidas que permitam o acesso à universidade aos filhos dos trabalhadores que hoje nelas não podem ingressar por falta de recursos. O ensino superior voltou a ser, como na época imperial, privilégio de uma elite.

Na Saúde o panorama não é muito diferente.

O antigo sistema ruiu. Pela lei os cuidados de saúde são ainda gratuitos. Mas os hospitais não a cumprem. Fora das urgências quase tudo é pago. A corrupção envolve funcionários administrativos, médicos, enfermeiros, a totalidade dos serviços.

Os medicamentos são caríssimos.

PARA QUE SERVE A LEI?

Uma legislação abundantíssima ficou a assinalar na Rússia a transição para o capitalismo. Foram redigidas, aprovadas e promulgadas milhares de leis.

A maioria não é cumprida.

No que se refere aos salários, os trabalhadores encontram-se na prática desarmados perante o patronato. Não existe um salário mínimo nacional. Em seu lugar o Poder Local, estabelece em cada região um mínimo de sobrevivência que na maioria das cidades é inferior a 3.000 rublos mensais (67 euros). Essa quantia, não chega para uma má alimentação.

A lei estabelece o 13º salário. Mas em milhares de empresas os trabalhadores não o recebem. Os lay off são frequentes e muitos empresários não pagam sequer o salário do mês a trabalhadores que tomam férias.

Os despedimentos, colectivos ou individuais, não são dificultados por mecanismos minimamente eficazes. Os sindicatos são incapazes de defender os direitos dos trabalhadores. Foram reduzidos à condição de organizações de fachada que não cumprem a sua função social.

Tentei informar-me com amigos sobre a escala dos salários em diferentes actividades profissionais. Mas não consegui ir longe. Em primeiro lugar os salários em Moscovo são muito mais elevados do que em qualquer outra das grandes cidades, incluindo Petersburgo, a antiga Leninegrado.

Soube que a maioria das empresas, para evitar impostos, paga uma parte do vencimento por fora. Muitos patrões retêm percentagens do salário estipulado com os trabalhadores.

As disparidades, entretanto, são enormes tanto no sector público, como no privado.

Um general de quatro estrelas ou um magistrado no topo da carreira poderá atingir uns 80.000 rublos (um pouco menos de 1.800 euros). Um médico, um engenheiro ou um professor universitário ganham metade disso.

Daí o alastramento da corrupção, uma lava que escorre pelo conjunto da sociedade.

Há controlo de preços em alguns produtos. Mas é ficcional. Verifiquei que o mesmo produto é vendido ao público em cada supermercado por preços muito diferentes, em alguns casos por quase o dobro ou metade do afixado numa loja próxima.

Um amigo de Orel, cidade a uns 360 quilómetros a sudoeste de Moscovo, mostrou-me a folha dos salários pagos no complexo açucareiro local que emprega cerca de 800 trabalhadores. Ali o director tem um salário de 35.000 rublos (780 euros); os carregadores de sacos de 50 quilos, em turnos de 12 horas, trabalho devastador para a saúde recebem 30.000 (uns 670 euros); o engenheiro-chefe ganha 25.000 (550 euros); os economistas 17.000 (380 euros); os operários da refinaria 8.000 (180 euros); os capatazes e os serralheiros também 8.000, o mínimo é de 4.000 (90 euros).

A disparidade com Moscovo é considerável.

Perguntei-lhe como conseguem sobreviver com salários tão baixos, sendo tão alto o custo de vida.

«Os que podem – esclareceu - têm outro emprego. Quase todos possuem ali casa própria. O meu irmão não tem grandes problemas com a alimentação porque cria galinhas e cultiva legumes e frutas num terreno que recebeu quando destruíram o Sovkhose local. Mas é quase unânime a convicção de que se vivia muito melhor na época da União Soviética. Veja o meu caso, tive de emigrar para não cair na miséria...»

A ESPERANÇA AUSENTE
NUM PRESENTE SOMBRIO


Nos meus dez intensos dias moscovitas muitas horas foram ocupadas por longos passeios por ruas, praças e lugares da cidade que eu conhecera e tinha amado quando era a capital da União Soviética.

Que procurava ao revisitar pela imaginação o passado?

É difícil responder. Tentava talvez compreender a Rússia actual, uma sociedade atormentada, desconhecida, resultante daquilo que me aparecia como uma tragédia para a Humanidade.
Chegou o capitalismo
Caminhei muito pela Praça Vermelha, desci e subi diariamente a Teverskaya, a grande rua que foi durante dois séculos para Moscovo o que os Champs Elisées representam para Paris e a Avenida da Liberdade para Lisboa.

Eu a descobri quando se chamava Gorky em homenagem ao autor de A Mãe. Fisicamente pouco nela mudou. São raros os novos edifícios que substituíram os derrubados. Mas o rosto da Tervskaya moldada pelo capitalismo não lembra o da Gorky.

Antes o ritmo da vida era lento. Ninguém parecia ter pressa. Agora, a multidão que a percorre, de manhã ao entardecer, neste Agosto azul pouco difere, até no vestuário, daquelas que num fluxo de contornos kafkianos se movimentam nas grandes capitais do Ocidente com medo de perder cada minuto.

Entrei em muitas lojas. Impressionou-me especialmente um supermercado que há trinta anos me chamou a atenção por estar instalado no piso térreo de um antigo palácio. A decoração das paredes e tectos, belíssima, foi mantida. Mas hoje somente ali são oferecidos ao público produtos de grande qualidade, a preços proibitivos. O estabelecimento adquiriu uma marca de classe.

Consagrei uma tarde a revisitar hotéis onde me hospedara nas minhas frequentes visitas a Moscovo.

O velho Minsk, na Teverskaya, já não existe. O Ucrânia e o Leninegrado, remodelados, continuam, a ser inflorescencias na cidade, por terem surgido em torres da época staliniana. O Moskva, no Okhotnyi Ryad, foi demolido para ser edificado um igual no antigo espaço. O Metropol e o Nacional, construídos no início do século XX, que conheci como confortáveis mas muito modestos, são hoje cinco estrelas muito procurados pelas personalidades do jet set internacional. O Oktiabrskaya II, que era o maior dos hotéis do Comité Central, chama-se hoje President e é um 4 estrelas muito procurado pelos homens de negócios.

Revisitei, naturalmente, alguns museus.

No da História da Rússia, instalado no gigantesco palácio vermelho de estilo gótico revivalista que fecha a Praça Vermelha do lado oposto à Catedral de São Basílio, nada mudou na aparência. É um museu que sempre me encantou. Cada salão é nele uma obra de arte, o que envolve os visitantes numa atmosfera mágica no passeio pela Historia da Rússia, desde o neolítico ao fim da autocracia czarista.

Dediquei também horas a percorrer o Museu da História Contemporânea da Rússia. Antes chamava-se Museu da Revolução, mas um bom senso elementar, excepcionalmente, impediu que os novos governantes, ousassem reescrever a História das Revoluções de 1905 e de 1917.

A tentativa de manipulação limitou-se a alguns parágrafos de pequenos textos em inglês colocados à entrada nas salas.

No Museu Pushkin tive também a sensação de que o tempo havia parado. À museologia soviética falta a tecnologia e a sofisticação da francesa e da britânica. Mas aquele maravilhoso museu, nas salas dedicadas às antigas civilizações, faz recordar o Louvre e o British Museum, empurra os visitantes em cavalgada pelo tempo para a Grécia, Roma, o Egipto, a Assíria, a Pérsia dos Aqueménidas. A pinacoteca é deslumbrante.

Estive pela primeira vez na Catedral do Salvador, um templo enorme, o maior da Rússia. Foi ressuscitado em circunstâncias que fazem dele uma aberração. O czar Alexandre I, para comemorar a vitória sobre Napoleão, decidiu em 1814 edificar em Moscovo uma catedral gigantesca. Interrompida várias vezes a sua construção foi inaugurada em 1883. Em 1931 foi demolida por decreto. No lugar foi então instalada a céu aberto uma piscina de água quente na qual se nadava em pleno Inverno. O último absurdo consumou-se quando Ieltsine decidiu que a Catedral fosse reconstruída de acordo com o projecto original. A Rússia vivia então a fase do capitalismo selvagem com o povo a sofrer tremendas privações. A obra foi um sorvedouro de dinheiro. Mármores caríssimos foram importados de Itália e outros países; no interior, um autêntico museu com ícones antiquíssimos, o ouro dos altares e capelas é tanto que fere o olhar dos visitantes.

Na manhã que por ali passei eram escassos os fiéis.

Para quê reinventar uma Catedral como aquela, aliás sem tradições? Para quê se esbanjaram naquele capricho de Ieltsine milhões numa época de miséria?

Todas as pessoas com quem abordei a questão coincidiram na conclusão de que a iniciativa confirma a irresponsabilidade que ficou a assinalar a passagem pelo Poder do homem que destruiu não apenas a URSS, mas a Rússia, motor do Estado desaparecido.

MEDITAÇÃO NO KREMLIN

Vinte anos transcorreram desde a última visita que fizera ao Mausoléu de Lenine, quando a URSS estava prestes a desagregar-se.

Senti o desejo de voltar ali com a minha companheira. A fila era enorme. Enquanto esperávamos, apareceu uma senhora que se nos dirigiu e aos outros estrangeiros para garantir acesso imediato desde que lhe pagássemos cada um 10 euros. Alguns aceitaram.

Num cálculo sumário, avaliei num mínimo de 4.000 euros mensais o que a sua actividade ilegal lhe pode proporcionar, quantia colossal num pais de salários muito baixos.

Cito o caso porque ilumina bem o funcionamento da máquina da corrupção na Rússia contemporânea. A economia paralela garante hoje a sobrevivência a muitos milhões de pessoas. Sem ela, no actual contexto, a maioria da população vegetaria na miséria. Mas o preço social desse cancro que corrói a nação é assustador.
Moscovo - frota automóvel de luxo
Caminhei durante uma hora pelo recinto do Kremlin, entre as velhas catedrais, o Grande Palácio, o Palácio dos Congressos e outros edifícios. Senti, mais uma vez que naquele espaço, fechado pelas muralhas de tijolo vermelho da fortaleza medieval, o visitante atravessa as paredes do tempo numa viagem pela história profunda dos povos da Rússia.

No meu caso, cada sector da fortificação, cada torre, cada igreja, cada palácio me confronta com épocas e pessoas cuja passagem por ali deixou marcas na Historia da Rússia e da Humanidade. Penso em Ivan III, no rei polaco invasor, em Pedro o Grande, em Catarina II, em Napoleão, no último czar, em Kerenski, Lenine e Stalin. Contemplando o relógio da Torre do Salvador, tomo consciência de que não voltarei a Moscovo, que me despeço nesta visita da cidade e da Rússia.

Foram dias intensos, num reencontro doloroso. Insuficientes para compreender a complexidade da nova vida num país com uma cultura sem similar no mundo, muito diferente de qualquer das culturas da Europa Ocidental.

Para sintetizar num mínimo de palavras o sentimento - balanço destes dias moscovitas direi que regressei a Portugal com a convicção de que o povo da grande cidade perdeu muito da sua antiga alegria de viver. É uma impressão na aparência absurda, mas muito forte.

Falei com gente amiga e outra que conheci agora. Essas conversas e o que vi empurram-me para a conclusão de que, exceptuada, no vértice, a nova classe de multimilionários e os estamentos sociais de uma burguesia em formação que leva uma existência folgada, a esmagadora maioria dos moscovitas com mais de 45 anos sente já a nostalgia da vida antiga.

A grande cidade modernizou-se, adquiriu a fisionomia de uma megalópolis europeia cosmopolita onde ao longo do dia, a circulação de carros e pessoas é permanente, alucinatória a certas horas.

O metro, que se degradara nos anos de Ieltsine, recuperou a beleza e o asseio. Moscovo voltou a ser uma capital muito mais limpa do que Paris ou Roma.
Mas sobre ela, invisível, paira um manto de tristeza.

A falta de perspectivas é real e transparente. Mesmo aqueles – e são, repito, a maioria – que no paralelo entre o presente e o passado esboçam um quadro sombrio da vida actual não acreditam numa mudança em tempo previsível. Recordam com saudade os anos da segurança no trabalho, da ausência do desemprego, das pensões, saúde e ensino garantidos, das ferias pagas. Mas não vislumbram sequer a possibilidade de uma humanização do capitalismo implantado no país.

O deslumbramento com o estilo americano de vida, que nos anos posteriores ao fim da URSS envolveu amplas camadas da juventude, cedeu o lugar a uma visão realista da cultura exportada pelos EUA. Os seus efeitos negativos continuam a pesar muito no quotidiano moscovita, mas a própria imagem do presidente Barack Obama, recebido com entusiasmo, perdeu já o poder de atracção inicial. As guerras imperiais dos EUA inspiram hoje um repúdio cada vez mais generalizado.

Nesse sentido, a politica de recuperação da dignidade nacional, transparente no novo tipo de diálogo com Washington, contribuiu para o prestígio de Putin e Medvedev.

Não falei, em contrapartida, com uma só pessoa que não manifestasse desprezo e aversão por Ieltsine. Identificam nele não apenas o coveiro da União Soviética, mas um politico corrupto, submisso perante os EUA, um aventureiro ambicioso, um alcoólatra degradado.

Com alguma surpresa minha, pouco se fala já de Gorbatchov e Kruschev. Foram quase esquecidos, ao contrário de Brejnev recordado com saudade por muita gente.

Apagou-se totalmente a esperança no povo russo?

Não é essa a minha convicção.

Mais de uma vez a velhos amigos e a gente moça ouvi, ao comentarem os males do presente, a afirmação de que a caminhada do povo russo pela História tem sido trágica, mas que sempre, após sofrimentos inenarráveis, ele encontrou maneira de sair da escuridão para a luz.
Metro de Moscovo
Pensei na misérrima, famélica e atrasada Rússia medieval, indefesa perante as ininterruptas invasões de nómadas asiáticos, no flagelo que foram os três séculos da ocupação de parte do país pelas hordas mongóis, nas invasões de polacos e suecos, na entrada de Napoleão em Moscovo e na sua posterior derrota, nos monstruosos crimes cometidos pelos alemães nas duas guerras mundiais. Recordei os séculos da servidão. Mas quando ninguém esperava, foi também na Rússia que surgiu e venceu a primeira revolução socialista da História.

Admito que o renascimento da nação russa, inevitável, será dialecticamente facilitado pela decadência do poder imperial dos EUA. A actual crise do capitalismo é estrutural e não cíclica como as anteriores. Tende a agravar se ao contrário do que afirmam Obama e os banqueiros de Wall Street.

Esse naufrágio, sem data no calendário, criará condições favoráveis à emergência de um mundo multipolar. E nele o povo russo terá um papel insubstituível a desempenhar.

Sou optimista. Ao sair do túnel, a Rússia, acredito, reencontrará a luz e o calor do sol.



Moscovo e Serpa, Agosto de 2009

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Marina Silva de verde...

O Partido Verde vai amadurecer



por Lelê Teles

Nisso crê Marina Silva. Nisso não cremos nós. O PV, como sabemos, faz na política o que Mané Garrincha fazia com seus adversários nos gramados: ilude a todos, faz que vai para a esquerda e vai para a direita; depois finge que vai para a direita e se envereda pela esquerda. O PPS é pai e mãe desses dribles; Roberto Freire é o mentor e já teve como seguidores Heloísa Helena, Cristovam Buarque, Gabeira… uma lista ainda por terminar. Marina Silva é a neófita da vez. Vai lendo.

As eleições que se aproximam serão um plebiscito, disso não se pode fugir. Mas se pode protelar. Nas eleições passadas já o fizeram. Um plebiscito, digo, mas não que seja a disputa entre dois nomes e dois homens – mesmo porque termos aí uma mulher –, mas entre duas forças, duas correntes. De um lado, Lula da Silva, Dilma Rousseff e uma multidão de brasileiros que passaram a comer melhor, se vestir melhor, tiveram acesso à universidade e uma diversidade de melhorias e benesses. De outro lado, o senhor Ali Kamel, que é a mente demente dos filhos do Marinho, os próprios filhos marínicos e umas quatro famílias mais – Mesquita, Frias e os demais, falou de um falou de todos. E o Zé Serra, que até pensou em desistir, mas Lula meteu lá Ciro Gomes em seu calcanhar e ele será candidato, porque teme mais a Ciro do que a Lula e Dilma juntos, porque estes são cordiais; Ciro, jamais.

No passado, as forças anti-Lula lançaram os seus factóides: Heloísa Helena e Cristovam. Candidatos da direita, mas travestidos de esquerda. Tanto é que apareciam nos jornais como nunca. Lembremos que Helô teve sua biografia deslindada numa revistona. O mesmo fazem agora com Marina. Não que jornalões e revistonas torcessem para Cristó e Helô, não estavam preocupados em quantos votos eles poderiam ganhar, que seriam bem poucos, mas quantos conseguiriam tirar de Lula.

Eram caricatos. Cristó era monotemático, portanto inviável. Helô, balcão-de-negócios-sujos, era somente uma frasista. Mas encantou-se com os holofotes, chegou mesmo a levar um sobrinho para uma CPI, coisas de celebridade. Ao fim e ao cabo não fez cócegas no score eleitoral e ainda permitiu a eleição folgada de Fernando Collor para o Senado, ou seja, serviu duas vezes à direita. Enquanto fazia com Lula o que Denilma Bulhões fazia com o seu marido governador, para usar uma metáfora alagoana, ou seja, o lategava com uma toalha molhada em praça pública, Collor sorria o seu sorriso sujo para o Senado. Cristovam prometia uma revolução na educação, o que ele queria ter feito em três meses sendo ministro e que não fez nos quatro anos em que governou o Distrito Federal. Passadas as eleições, nenhum jornal quis saber de Helô, e Cristovam voltou ao noticiário porque serve aos jornalões chicoteando Sarney, depois sumirá novamente.

É nessa seara e no mesmo cenário que surge Marina Silva. Com a vantagem, para a direita, que faz o que os dois faziam sendo uma só: é monotemática e tem a língua afiada. Será a anti-Dilma. Já foi enganada pelo PV quando lhe disseram que ela teria 15% de votos logo de saída. O Datafolha mostrou que é um quinto disso, e vai terminar com menos, mas vai fazer um estrago em Dilma, que chegará um pouco trôpega no segundo turno. Depois Marina se desencantará do PV ou ele dará um jeito de se livrar dela, e ela terá que ir para o PSOL ou para o PSTU, ou criar uma nova legenda.

Todos sabemos que quem veste camisetas com dizeres como salvem as baleias, viva a natureza, libertem as focas… são os jovens da classe média, e estes não elegeram nem Gabeira pra prefeito, como elegerão uma presidente? Mas Marina vai sair bem na foto. Já está saindo – ontem mesmo vi uma foto dela no blog do Noblat, retocada, com luz profissional, parecia uma imagem de Caravaggio. É assim que a direita ilude os vaidosos. Vai nessa, Marina. Ou, usando uma metáfora futebolística: pedala, Robinho!


http://www.amalgama.blog.br/08/2009/o-partido-verde-vai-amadurecer/#more-467

Festival de cinema de Gramado...

"Corumbiara", vencedor do Festival de Gramado: Um filme político

A cerimônia de premiação da 37ª edição do Festival de Cinema de Gramado ainda estava para acontecer, mas o diretor Vincent Carelli já era um dos mais cumprimentados pelo documentário Corumbiara. O grito de denúncia do filme comoveu a plateia do evento, dando a ele uma expectativa na conquista de Kikitos que viriam a se confirmar com os prêmios de melhor filme, júri popular, estudantes de cinema, direção e montagem, este pelo trabalho de Mari Corrêa.

Nesta entrevista ao Diario de Pernambuco, dada horas antes da cerimônia, Carelli explica como surgiu seu trabalho com as câmeras, relata suas experiências com os índios, interpreta algumas opções do filme, fala sobre a questão indígena no país e convida os envolvidos no massacre de Corumbiara a abrirem um processo contra ele.

O filme Corumbiara, produção pernambucana rodada em Rondônia, é fruto do esforço de 20 anos do indigenista Carelli, coordenador da organização não-governamental Vídeo nas Aldeias, com sede em Olinda.

Assim como seu trabalho na ONG, o documentário foi feito com o objetivo de usar a câmera para fazer justiça onde os meios convencionais das leis se mostraram ineficientes. No filme, Carelli tenta resgatar a versão dos índios sobre o massacre na Gleba Corumbiara, promovido pelos latifundiários da região para ampliar a extensão de suas terras.

Ainda que a urgência do tema dispensasse quaisquer preocupações estéticas, Carelli consegue organizar os trâmites burocráticos envolvendo a interdição de terras por meio de uma narrativa cinematográfica. Com ritmo, suspense, responsabilidade ética e sutileza para registrar os meandros culturais dos índios encontrados.

O que faz o documentário transcender a questão política para avançar em questões antropológicas, tanto em relação aos índios, como em nossa própria sociedade. O filme revela a torre de Babel em que vivemos, a ausência de diálogo entre as diferentes tribos indígenas, do homem branco com os índios, da Funai com os fazendeiros e madeireiros, com outras instâncias públicas como a Justiça, a polícia e o Ibama.

Confira abaixo a entrevista de Vincent Carelli:

Como foi o início do seu trabalho com vídeo e essa relação com os índios?

O vídeo nasce de uma militância política. Em novembro completo 40 anos de indigenista. Minha fotografia já foi inspirada nesse trabalho com os índios, porque entrei em contato com eles aos 16 anos, e isso revolucionou minha vida. Já que tive esse privilégio, senti a necessidade de compartilhar. Depois fui procurado por um cineasta, o Andrea Tonacci, que fez Serras da desordem, para um projeto de usar o vídeo como elo entre os povos. Mas não vingou porque ainda era muito cedo, a tecnologia era difícil, cara.

Quando saiu o VHS camcorder, comecei a revisitar os povos com quem já tinha trabalhado, com lideranças visionárias e projetos de resistência cultural, oferecendo minha câmera para seus projetos. Nessa trajetória, fiz uma série de vídeos que tratavam do videoprocesso das comunidades e serviram como meu braço de financiamento. Depois que comecei vi que, essa questão dos índios assumirem a produção, era um caminho já indicado em muitos lugares. Então começamos a implantar oficinas, de formação e captação de cineastas indígenas. Já estamos há 10 anos nessa linha.

Como é a relação dos índios com a própria imagem?

Tem uma série de tabus. A cultura é um processo dinâmico, o fascínio pela imagem é tão grande que esses tabus são revistos e reinterpretados. Nos oiampis, eles logo disseram que o perigoso era a imagem em preto e branco, mas colorido estava tudo bem. Eles aderem, esse jogo de espelho provoca uma revisão. Você sempre tem uma outra imagem de você, quando nos vemos, há o confronto com a autoimagem.

Há um processo de ajuste, será que era assim que gostaria de me ver? Isso rebate, provoca reações, uma consciência do processo de mudança da cultura. Também reforça o discurso deles, estimulava essas comunidades a fazer um exercício de memória, de reencenar, atualizar seu rituais.

Corumbiara levou 20 anos para ser feito. Como foi o processo de edição, que envolveu horas de filmagem e diversas tecnologias?

Começamos pelo VHS, fomos parao super-VHS, passamos pelo high eight, Betacam, mini-DV. Em 2006 nem quis filmar em HD para não criar mais um problema. O Corumbiara acompanhou todo esse processo do Vídeo nas Aldeias, correndo por fora porque meu foco era a mídia com os índios.

Minha perspectiva era justamente o contrário, queria fugir dessa visão miserabilista de que os índios estão acabando. Eu trabalhava no sentido da recuperação das coisas. O Corumbiara atravessou meu caminho, correu por fora, é outra linha, uma história arrasadora.

Corumbiara já surgiu como um filme? Quando você percebeu que esse material poderia se transformar em documentário?

Ele sempre foi pensado que, algum dia, daria um filme. Ao longo do processo, a imagem foi fundamental. A partir de 1995, quando fizemos o contato com esses índios e jogamos na televisão, no dia seguinte o juiz de Porto Velho assinou a interdição da área. A imagem serviu para resguardar os sobreviventes. Mesmo que não tivesse o filme, a filmagem cumpriu seu papel histórico.

No ano seguinte, a gente descobriu que um fazendeiro, ao ver as imagens da televisão, decidiu acabar com o terceiro grupo de índios porque, se a gente descobrisse, ele iria perder uma parte da fazenda. Isso gerou outro massacre. A gente foi chegando tão perto das evidências, que cheguei a pensar que conseguiríamos pegar os caras. Mas não aconteceu, o caso nunca foi investigado.

Eram horas de material, o filme ficou engavetado. Anos depois veio uma jornalista da Holanda escrever um livro sobre essa história e, de repente, veio me entrevistar. Fiquei emocionado ao lembrar. Então fiz a viagem de 2006 e parti para a edição.

Como tem sido a recepção ao filme?

Em geral, os gringos se interessam mais pelos índios do que os brasileiros. Mas nesse caso, o filme está sendo feito para o Brasil. Hoje percebo que pouco importa a impunidade. Contar essa história é mais importante, proporcionar esse testemunho, esse choque emocional. É um caso emblemático, raríssimas vezes se conseguiu documentar um massacre.

Ficcionou-se, mas o documentário tem uma força além da ficção, porque é real, tem um impacto enorme sobre a plateia. Esse gesto de apertar o gatilho é o mesmo gesto do bandeirante caçando índio, uma atitude que se perpetua. O filme é uma reflexão para o Brasil sobre a dívida histórica com os índios.

Houve alguma reclamação por parte dos madeireiros e fazendeiros envolvidos?

Tive esse retorno recentemente quando voltei à área do índio do buraco, logo depois do filme passar no festival É tudo verdade. Quando o filho do fazendeiro percebeu que eu tinha feito o filme, começou a me xingar, quis me bater na hora. Todas as entrevistas foram consentidas, mas as imagens do fazendeiro que mandou atirar no índio do buraco foi uma câmera escondida.

Em tese, ele poderia me processar, foi um risco que assumi. Acharia até bom, não só para o filme. Não acredito que ele tenha interesse em fazer isso, porque finalmente se abriria um processo judicial sobre o caso e teríamos que ir à questão do massacre. Eles devem estar uma arara com o filme, mas por enquanto está todo mundo quieto.

Por que a opção de assumir a narração em primeira pessoa, com comentários e reflexões?

O fim imaginado do filme era o julgamento e os caras indo para cadeia, mas não se concretizou. E também porque o filme é a história da minha vida, foram 20 anos, marcou minha vida. Só podia ser na primeira pessoa, não tinha como ser uma voz off. Em 2006, foi muito emocionante a maneira como eles nos trataram.

Para mim, eles eram parte de minha vida e percebi que eu fazia parte da deles. Tem uma coisa de vivência, que acrescenta ao filme. Não foi um comentário de fora, foi uma das histórias mais emocionantes e tristes que já vivi.

O foco do filme é a questão fundiária, da reserva indígena, mas também tem a preocupação de registrar os rituais dos índios. Por que isso?

Primeiro quis transmitir a dificuldade de comunicação, foi algo muito doloroso estar ali e não conseguir falar com eles. Surgiu uma discussão aqui em Gramado de que esse filme era muito etnográfico e não deveria estar no festival.Corumbiara não é etnográfico, é um filme político.

Claro, tem descrições, é importante você dar essa perspectiva de pessoas que vivem em outro mundo, dar profundidade a essa diferença. Acho que essa atitude de tentar enclausurar a questão indígena a antropólogos e especialistas, guardadas as devidas proporções, é a mesma atitude das autoridades que jogaram esse crime de genocídio para debaixo do tapete. A importância de trazer esse filme para Gramado é justamente de romper esse gueto e jogar ele para o público.


Fonte: Diario de Pernambuco. Fusão de matérias de Thiago Corrêa publicadas nos dias 14 e 18 de agosto de 2009

Créditos: sitio vermelho

Campanha contra privatização do mar chileno...

Milhares de cidadãos assinam campanha contra a privatização do mar




Adital -


Cidadãos de todo o mundo estão se somando à campanha que rechaça as modificações da Lei de Pesca, que busca entregar, de forma gratuita e perpétua, a propriedade de extensas zonas marinhas às companhias nacionais e multinacionais de salmão, para que possam hipotecar e, assim, pagar suas milhares de dívidas e obter novos créditos de bancos chilenos e estrangeiros.

"A privatização do mar terminará por destruir a cultura "bordemar" do arquipélago de Chiloé: esta cultura implica no equilíbrio entre pessoas, espíritos e meio ambiente. Os problemas de saúde e bem-estar se agravam e a cultura como fator protetor está em perigo. Além de assinar, temos que fortalecer o perfil de proteção que a própria gente das ilhas e dos lugares isolados possui hoje para enfrentar o neoliberalismo", escreve Jaime Ibacache-Burgos, na petição da campanha contra a privatização do mar.

O documento pode ser assinado via internet em http://www.thepetitionsite.com/1/di-no-a-la-privatizacion-del-mar-chileno.

Através da rede, os aderentes à campanha têm manifestado seu repúdio porque consideram injusto que - apesar de as empresas de salmão terem operado por mais de 20 anos com poucas normas ambientais, sanitárias, trabalhistas e sociais, além de se comportarem desrespeitosamente com as comunidades costeiras de Chiloé, Aysén e Magallanes -, o Estado decida premiá-los entregando-lhes bens nacionais de uso público, como são as concessões aquícolas.

Além disso, chamam aos parlamentares a votar contra a iniciativa privatizadora de banqueiros, empresários de salmão e o Ministério da Economia.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Cucho Valdes e seu piano....

Nova lei fundiária da Amazônia é inspirada na colonização africana






Kenzo Jucá - do sitio do PSOL

AmazôniaLei 11.952/09 (MP da Grilagem) oficializa partilha territorial entre corporações

As colonizações de África e Américas distam 2.600 anos entre si. Entretanto, fenícios, gregos e romanos dominaram tribos autóctones africanas de formas semelhantes às quais ingleses, espanhóis e portugueses dominaram aldeias ameríndias.

A expansão do capitalismo industrial, no século 19, impulsionou o neocolonialismo africano e desenhou seu mapa atual, cuja partilha territorial foi regulamentada na Conferência de Berlim (1884) entre países europeus. Da mesma forma, o neoliberalismo do século 21 avançou sobre o último grande território ainda não totalmente incorporado pelo mercado mundial: a Amazônia. Uma abordagem dialética indica que a Lei da Grilagem (2009) significa historicamente para a Amazônia o mesmo que a Conferência de Berlim representou à África anteriormente.

A colonização da Amazônia, iniciada no século 16, jamais conferiu consistência jurídica à posse da terra, a maioria públicas e ocupadas por populações autóctones há 10 mil anos. Privilegiou poder socioeconômico e violência, em detrimento de lei ou direitos tradicionais. Após cinco séculos de conflitos, o Estado finalmente fez a regularização fundiária na Amazônia: legalizou o trinômio força/colonização/expropriação, através da conversão da MP 458/09 na Lei 11.952/09, sancionada por Lula em junho. A partilha amazônica em Brasília hoje, lembra a partilha africana em Berlim há 125 anos. Antes eram Nações, hoje corporações.

A Amazônia é a principal megabiodiversidade do globo, sendo 59% do Brasil. O potencial econômico dessas terras possui magnitude assustadora, capaz de interferir na geopolítica global. Deriva de uma gama de recursos minerais, hídricos, energéticos, biogenéticos, florestais, farmacêuticos, antropológicos, bioquímicos, nutricionais, enfim. Cerca de 70% das pesquisas científicas sobre a região são realizadas por estrangeiros. A abrangência da lei, portanto, extrapola a problemática estrita da posse da "terra". Significa, na verdade, um contrato jurídico-social consolidador de diretrizes de longo prazo sobre uso estratégico de recursos amazônicos e o futuro do Brasil e do globo.

O cenário é maior que interesses de beneficiários imediatos da medida: a tropa de choque dessa lei colonial, composta por governistas, ruralistas e empreiteiros. O significado antropológico é maior. Em poucas décadas, extensões de biodiversidades inestimáveis podem ser unificadas em grandes territórios na Amazônia, partilhados por grupos econômicos. A lei permite a titulação e o redesenho da titularidade inicial em poucas décadas, atingindo no mínimo 170 milhões de hectares de riquezas inestimáveis. A geografia federativa brasileira pode desaparecer, diante dos territórios econômicos privados a serem implantados na Amazônia futuramente, fruto da lei da grilagem.

As resistências da sociedade a tais medidas têm sido insuficientes. A posição do Governo Federal e sua bancada no Congresso Nacional, trouxe duas conseqüências imediatas no campo da macro-política brasileira: a possibilidade de Marina Silva (PT/AC) disputar a Presidência da República pelo PV e a aproximação programática de João Capiberibe (PSB/AP) com o PSOL. Tratam-se das duas principais lideranças ambientais independentes de caráter nacional da Amazônia e romperam com esse modelo anti-ambiental africano-amazônico.

Kenzo Jucá,35 anos, é sociólogo (UFPA), especialista em Desenvolvimentos Sustentável e Direito Ambiental (UNB) e mestrando em Política e Gestão Ambiental (CDS/ UNB).

A direita boliviana....

Política, psicopatologia e terrorismo**
Marcos DomichA actividade separatista e terrorista na Bolívia, desencadeada pela oligarquia de Santa Cruz e dos distritos conhecidos como da «Meia-Lua», embora tivesse sido parcialmente desmantelada e derrotada não foi ainda destruída. Neste estudo, Marcos Domich, Professor da Universidade de La Paz e amigo e colaborador de odiario.info, disseca com profundidade toda a actividade separatista e terrorista dos distritos da «meia-lua» boliviana, as suas origens, fundamentos e as ligações da extrema-direita da Bolívia a Estados e redes terroristas internacionais.
Marcos Domich*

Uma característica central das personalidades, como a do finado Eduardo Rózsa Flores é, custe o que custar, a de aparecer em primeiro plano nas notícias. Ser o centro dos comentários, até das indignidades e das anedotas, é uma das suas maiores gratificações. Fiel a esta receita para a sua personalidade, Rósza – morto na madrugada de 16 de Abril – «vendeu-se» a si próprio muito antes da sua morte. Anunciava aos quatro ventos o que ia fazer. Sem quaisquer cuidados, lançou no espaço cibernético não apenas as suas intenções mas inclusivamente imagens em que aparecia armado até aos dentes. As fotografias tiradas em Santa Cruz, no Hotel Buganvillas e também no Stand da COTAS (cooperativa telefónica), foram presumivelmente colocadas por ele na Internet. Fê-lo na presunção que os serviços bolivianos de segurança não as encontrariam ou não lhes dariam importância. Tinha uma atitude de desprezo pelo «inimigo», que considerava «inferior» aos polícias. Um erro crasso que lhe custou a vida.

A estratégia da tensão e o poder mediático


Apesar dos múltiplos testemunhos e da infinidade de provas que foram exibidas, os meios de comunicação tiveram a capacidade de criar numa parte da opinião pública, convicções que nada têm a ver com a realidade dos factos. Quase três meses passados sobre os acontecimentos continuam, em uníssono, a falar de «presumíveis terroristas» ou, ainda pior, de «presumível grupo terrorista».

Os organismos de segurança e inteligência detectaram uns tempos antes a presença de elementos, sobretudo estrangeiros, que preparavam desencadear o terror através de uma multiplicidade de acções. A principal delas, remonta ao tempo do nascimento do fascismo: é o atentado com o uso de bombas, procedimento principal da «estratégia da tensão». Procura-se com isso que a população viva, particularmente de noite, um estado de tensão, de espera ansiosa, de pressentimento que a qualquer momento haja uma explosão. A ameaça deve ser sentido por qualquer pessoa e em qualquer parte. É típico que a ameaça se abata, indistintamente, sobre defensores ou opositores do regime. A bomba na casa do Cardeal Terrazas (na noite de 14 de Abril) tinha esse objectivo, além, naturalmente, da intenção de lançar a culpa para cima no governo, por acaso, «ateu e comunista».

Referiremos sinteticamente outros componentes que fazem parte da estratégia de tensão e que alguns autores (Eva Gorlinger entre outros) chamam de «golpe de estado em lume brando». Por áreas, estes componentes referem a perturbação da economia, da produção e distribuição de bens, sobretudo alimentos e produtos de amplo consumo; a insegurança económica e financeira; a instabilidade psicológica que origina a incerteza, o sentimento de falta de perspectivas e confiança no futuro. Mas, sobretudo, trata-se de criar um estado de espírito, um clima psicológico, tanto individual como colectivo, caracterizado pelo negativismo, pela falta de esperança, de desalento e da facilidade de reacção, da rejeição, do confronto com tudo o que provenha do governo.

O rumor

É uma componente importante deste clima psicológico. Pode assegurar-se que sem o boato não se podem criar os sentimentos de temor, a tensão psicológica propriamente dita: «estes índios podem fazer barbaridades»; a insegurança: «em qualquer momento podem fazer-nos mal, podem atacar-nos»; a incerteza: «pode acontecer qualquer coisa»; o risco: «vão-nos tirar a casa, o automóvel», etc.

Muitas vezes o rumor alimenta-se e encontra a sua confirmação nalguns actos que os meios de comunicação de direita se encarregam de engrandecer e difundir de forma pertinaz. Agressões (supostas e reais) a jornalistas, linchamento de cães (cidade de El Alto); ocupação de um imóvel de um opositor, etc. A esmagadora maioria destas acções são protagonizadas por elementos radicais e ultra-esquerdistas que não seguem qualquer disciplina sindical ou partidária. Mas também há que considerar a presença de infiltrados ou provocadores que sabem exactamente o efeito que procuram: questionar tudo o que faça ou anuncie o governo.

Paramilitarismo

Um elemento quase infalível é a presença na via pública de grupos de choque. Sem muitas variantes organizativas, é o que no fascismo italiano chamavam fasci di combattimento, as formações que praticavam o squadrismo, isto é, principalmente a violência nas ruas; o que hoje se denomina paramilitarismo. A sua base fundamental foi a desempoeirada Unión Juvenil Cruceñista (UJC). Fundada na década de cinquenta do século XX, confundia-se com os «Camisas Brancas», a formação militarizada [esquadrista] da Frente Socialista Boliviana (FSB).

A UJC foi autora dos actos de violência de Agosto-Setembro de 2008. O governo contabilizou a ocupação de 70 edifícios de serviços e empresas estatais. Os casos mais patéticos foram a ocupação do edifício da ENTEL [Empresa telefónica de rede fixa] e das instalações do canal estatal de TV em Santa Cruz.

A UJC não actuou apenas em Santa Cruz. Executou acções em Trinidad, Cobija e Tarija. Ajudou à organização de grupos idênticos, reforçava-os e treinava-os. Há agora a evidência absoluta que estiveram em Sucre em 24 de Maio de 2008, quando vexaram e ridicularizaram camponeses quechuas, num dos piores episódios racistas que há memória na Bolívia. Também se conhece quem os financiava, obviamente a cúpula empresarial de Santa Cruz. Não deixaram de lançar a mão sobre os recursos financeiros das prefeituras e também de outras instituições públicas. Está provada que as recolhas de dinheiro se centralizavam em «La Torre», uma espécie de direcção clandestina dos conspiradores. No entanto, o volume de acções, dos seus movimentos, de aquisições e gastos sugere outros financiamentos mais importantes e que não podem vir daqui, mas dos habituais canais externos. Entre as muitas denúncias há uma muito estranha. Testemunhas – convocadas pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara de Deputados – confessaram que foram utilizados dinheiros da Universidade de S. Francisco Javier de Chuquisaca e que as autoridades do departamento canalizaram ajudas da USAID (N. do T.: Agencia dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional) para apoio aos movimentos violentos.

Conhece-se a existência de um Conselho Supremo de Defesa que seria o cérebro político de todo o movimento que se encobre com o manto da luta autonomista. Mencionaram-se Costas, Marinkocic, Dabdoud, Nayar como os principais elementos. No entanto, recorreu-se a artimanhas legais para não apresentar estes factos ao Procurador principal que investiga o caso.

As investigações, as confissões dos implicados e os testemunhos envolveram vários militares na reserva e reformados. Fala-se de 9 generais e outros dois oficiais de menor patente. Alguns destes resguardaram-se na explicação de terem sido chamados para assessorar a «defesa de Santa Cruz»… perante a possibilidade de ataques de indígenas e camponeses sem terra. Não é difícil deduzir que os militares retirados têm velhos vínculos com os militares no activo. Na verdade, surgiram os primeiros indícios de que se estavam a criar ligações com militares no activo. O tráfico de armas e inclusivamente o desaparecimento destas de estabelecimentos militares, tinha a ver com essas ligações.

Não faltaram atentados contra meios de comunicação tanto estatais institucionais e independentes, como privados. Os últimos estão contabilizados e os meios de comunicação privados agitam-nos sempre que há oportunidade, como ataques à liberdade de imprensa. Em contrapartida nada dizem dos oficiais e institucionais, que ultrapassam os segundos nos efeitos destruidores sofridos. Houve agressões a jornalistas de ambos os lados. Contudo, neste caso também é incomparável a forma como procederam contra os meios oficiais. Em Panati, o sul do país, mercenários ao serviço dos latifundiários, tentaram queimar viva uma jornalista.

Além dos detalhes ilustrados, outras áreas atrás mencionadas oferecem exemplos irrefutáveis da aplicação da estratégia de tensão. Em 2008 deram-se inopinadas subidas de preços de artigos de largo consumo como óleo alimentar, arroz, produtos de carne e o pão. A subida era acompanhada do açambarcamento dos produtos e especulação nos preços. Entre os estragos no aparelho produtivo estatal apontamos a danificação e dinamitação de gasodutos. É de sublinhar que a sabotagem económica, por sorte, não teve grandes efeitos nem causou prejuízos consideráveis. A condenação popular e as medidas do governo conjuraram-nas em pouco tempo.

Precisões sobre o terrorismo

Quando se trata este tema, depois de definir o terrorismo, o mais importante é recordar a posição dos marxistas sobre ele. O terrorismo é, inapelavelmente, uma expressão da luta de classes. Qualquer que seja o seu sinal, sempre expressará os interesses de um grupo social ou de uma classe inteira, mesmo que esse procedimento não conduza precisamente a consecução dos objectivos a que se destina. Isto é sobretudo visível numa forma de terrorismo que pratica a ultra esquerda. Esta prática nunca conduziu, em parte alguma do mundo, a qualquer coisa de plausível. Pelo contrário, voltou-se sempre contra os seus executores, desprestigiou a causa que diziam defender e aumentou a violência da resposta das classes dominantes. Esta é uma norma desde os tempos do terrorismo individual, desde as bombas dos anarquistas, os assassínios de nacionalistas extremistas, até aos tempos contemporâneos, se pensarmos, por exemplo, no «Sendero Luminoso» no Peru. Não poucas vezes a reacção assumiu a forma de terrorismo de Estado. Outros traços deste tipo de terrorismo é que se tornam funcionais ao domínio opressor, desorganizam as fileiras da revolução e, em vez de educar os revolucionários na realização do trabalho de massas, desilude-os e até os transforma em renegados anticomunistas.

Resumindo: Desde os tempos de Marx e Engels e da I Internacional, sempre os comunistas rejeitaram o terrorismo como método de luta política, de luta de classes. É legítimo perguntar se se recusa também o «terrorismo vermelho», sobretudo se tivermos em conta os tempos da CHEKA e de Derzhinski [1]. Não se pode dar uma resposta simplista. Há que ter em conta as condições históricas em que surge a Revolução de Outubro, o cerco imperialista, o rebentar da contra-revolução, o assédio dos exércitos brancos de Wrangel, de Kolchak y Denikin; os levantamentos dos kulaks, a intervenção de 14 Estados contra o nascente poder soviético. Não houve outro caminho se não o de apelar à violência revolucionária para se defender da brutal agressão. Se houve «terror vermelho» foi como resposta ao «terror branco». Sobretudo depois da Revolução de Outubro, o terrorismo converte-se em instrumento das classes dominantes que vêem ameaçado o seu poder ou, o que é o mesmo, na prática contra-revolucionária, enfrentando governos progressistas ou revolucionários que afectem os seus interesses. Em ambos os casos reagem da forma mais contundente e violenta contra os que ameaçam liquidá-los historicamente, transformando a base social e superando sobretudo as relações sociais de produção e o sistema de propriedade dos meios de produção.

Desde a Revolução de Outubro a violência reaccionária assumiu a forma de acção política que se conhece com o nome de fascismo. Nenhum movimento contra-revolucionário deixou de recorrer a formas organizativas, linguagem, simbologia e procedimentos fascistas. Inclusive fê-lo desde o poder, sob a forma de terrorismo de Estado.

Por último, é necessário examinar a visível semelhança externa entre a prática terrorista da extrema-direita e a da ultra esquerda. Para isso socorremo-nos da análise política, do sociológico até que se torne imprescindível a análise sóciopsicológica. Só examinaremos dois momentos deste último. A personalidade, tanto do terrorista de extrema-direita como do ultra esquerdista, caracteriza-se pela sua hostilidade a toda a interdição ética, a todo o valor moral: rejeita-as por vulgares e está afastado das actividades produtivas [2].

Os mesmos autores ampliam esta caracterização no campo sócio-psicológico: o neofascista e o terrorista de ultra esquerda são afins pela sua sensualidade caótica, por pensarem que tudo é admitido; pela tendência para negarem histérica e agressivamente a realidade, incapazes de apreenderem o conteúdo e o destino de uma rebelião sem limites. E acrescentam: São pessoas impulsivas, praticam o culto do chefe e, em alguns casos, assumem eles mesmos esse papel. São portadores típicos da consciência pequeno-burguesa, intrinsecamente desgarrada, que salta de um ao outro extremo.

Estas considerações um poucas longas permitem-nos abordar com maior base teórica o processo terrorista que estava a começar a desenvolver-se no país com o comando dirigido por Eduardo Rózsa Flores.

Como era Rózsa?


No começo, e enquanto se mantinha a reserva sobre os resultados das investigações, lançou-se um mar de especulações sobre os seus antecedentes e a sua personalidade. Já veremos qual é o peso real desta faceta. O que a direita quis explorar foi o facto de o seu pai, imigrante judeu húngaro, ter sido militante comunista e Eduardo ter vivido muitos anos na Hungria socialista. Junto da sua família, que emigrou para lá depois do golpe de Estado de Banzer, depois de passar pelo exílio no Chile de Allende. Inclusive, foi militante da Juventude Comunista Húngara.

Abordando as coisas de um modo responsável, há dados e testemunhos de pessoas que conheceram Eduardo e muitos antecedentes para esboçar o seu perfil psicológico (e até psicopatológico), com uma boa margem de exactidão. E a melhor fonte é o próprio. Graças ao seu blogue há muito material para a análise. Uma fonte muito confiável e séria, é a sua irmã Sílvia, com as suas declarações ao jornalista Justiniano do El Deber de Santa Cruz [4].

Rózsa Flores era uma personalidade pouco comum. Entre os seus antecedentes encontra-se uma mistura de bizarros traços psicológicos e uma tumultuosa actividade. O que surge em primeiro lugar é uma transbordante megalomania. No seu blogue apresenta-se assim: «O comandante Eduardo Rózsa é um dos latino-americanos mais surpreendentes do século XXI» (supostamente publicado por Imagem Comunicação Revolucionária (ICR, Caracas) e na revista húngara «Kapu».

Esta auto-avaliação é confirmada pela sua irmã que lhe atribuiu o traço principal da sua auto-avaliação: «considerava-se superior (…) tinha necessidade de protagonismo… queria ser líder».

Tudo isto tem profundas raízes no seu desenvolvimento psicológico e um peso importante no que, na literatura sobre o tema, se denomina a «socialização política» [5]. Desde pequeno que era demasiado inquieto. Jogava com o risco, gostava de bordejar o perigo; era ousado, temerário e protagónico. Esta conduta configura um síndrome próximo da hyperkinesis (hiperactividade). A ua vida familiar não foi simples. É provável que as manifestações do seu carácter tivessem provocado uma distanciação e mesmo alguma frieza, que exacerbava o seu perfil de pessoa necessitada de reconhecimento e talvez afecto. No entanto, isso era compensado pela sua própria sobrevalorização pessoal. Segundo se conseguiu apurar, durante vários anos, cerca de dez, esteve de relações cortadas com os seus pais.

Não se conhecem etapas datadas de uma sua possível presença em centros de inteligência. Diz-se que esteve alguns meses numa academia em Moscovo denominada Dezhinsky. Também se sabe (e está comprovado) que esteve numa academia militar húngara da qual foi expulso por indisciplina. Em todo o caso, isto apenas confirma as facetas, digamos, difíceis da sua personalidade.

Uma que chama a atenção é a sua estranha versatilidade política e ideológica. De marxista e membro da Associação da Juventude Comunista Húngara passou ao catolicismo mais conservador, tendo aderido à Opus Dei. Não está claro quando nem onde, mas parece evidente que chegou ao islamismo. Ao que parece, levado por uma constante ânsia de aventura, as suas mutações ideológicas têm a ver com a sua passagem por países onde se professava maioritariamente as ideologias que foi adoptando. Assim, depois de viver na Hungria, na época socialista passou pela Albânia, predominantemente muçulmana. Esteve depois nas muito católicas Espanha e Croácia e culminou as suas mutações regressando ao islamismo na Hungria. Na sua entrevista, agora chamada de «testamento», com o jornalista Andras Kepes, é o próprio Rózsa que explica estas oscilações. Quando o entrevistador lhe pergunta como é que militou na Juventude Comunista Húngara e ao mesmo tempo já sustentava ideias anti-socialistas, Rózsa afirmou que a sua personalidade «estava desviada» , dando a entender que uma coisa era a sua apresentação oficial e outra era o seu pensamento real.

Na revista húngara Hetek há um extenso artigo que, com o título «A Bizarra Vida e Morte de Eduardo Rózsa Flores», sintetiza alguns aspectos do seu trajecto pessoal e político. Com o desaparecimento do campo socialista (1988-9) os seus pais e irmã regressaram Bolívia, enquanto Eduardo ficou na Europa onde se ligou a organizações da extrema-direita húngara como a Szekely Régio e o partido neonazi Jobbik, que tem uma milícia ilegal, a «Legião Húngara». Ligou-se também à Lelkusmeret 88 (Consciência 88) que representa a minoria húngara que quer romper com a Roménia. Foi ligado a estas organizações que foi, depois de passar pela Albânia, até Espanha. Daqui parte para a Croácia como repórter da «Vanguarda», onde acaba por se enrolar na nascente milícia separatista croata. Aqui, diz ter comandado uma «Brigada Internacional» com 380 homens. Provavelmente, e este é um dado importante, ligou-se ali à organização «Ante Gotovina», criada e assim chamada em homenagem a um general croata, preso em 2005 nas Canárias e transferido para Haia para ser julgado no Tribunal Internacional, por crimes de guerra na ex-Jugoslávia.

Voltando ao começo da análise da personalidade de Eduardo Rózsa, as suas ligações e função política na sociedade, reafirmamos a sua caracterização como um sujeito possuído de uma ambição ilimitada de protagonismo e de poder que caracterizamos como síndrome timocrátio [6]. Este não um transtorno psiquiátrico e não deve ser confundido, por exemplo, com um delírio de grandeza. Porém, ele é próprio da personalidade limítrofe do psicopata. Esta condição, no caso de Rózsa, recaía numa pessoa de um alto coeficiente de inteligência, o que lhe possibilita, e também o leva e explica as suas incursões em várias actividades intelectuais: escritor, poeta, cineasta, actor e jornalista, entre as que se conhecem. No jornal Nepszabadzag qualificaram-no de «aventureiro talentoso».

No entanto, é necessária uma advertência. O fascismo, o terrorismo de direita encontram os mais aptos para o seu desenvolvimento, precisamente em personalidades do tipo da de Rózsa. Pode haver nestes uma componente endógena, porém eles são, antes de tudo o mais, um produto social.

Presença e missão de Rózsa na Bolívia

Um dos primeiros a caracterizar a vinda de Rózsa a Santa Cruz, foi o jornalista húngaro Zoltan Brady, director da revista Kapu. Sobre Rózsa escreveu, textualmente: «foi para a Bolívia para lutar contra o governo comunista e pela independência de Santa Cruz». Outro jornalista, Philip Sherwell, que o conheceu pessoalmente, disse que na guerra separatista da Croácia foi como «Kurtz», o sombrio personagem da novela «Coração de Obscuridade» do novelista Conrad.

Mas é a divulgação do vídeo, gravado com Kepes em Setembro de 2008, o que desmoronou as débeis linhas de defesa dos separatistas e da direita, não apenas de Santa Cruz mas nacional. Nessa entrevista-testamento [8], Eduardo Rózsa disse que ia para Santa Cruz «para armar a resistência», defendendo a autonomia e que, no seu caso, «procuraria a independência fundando um novo país». O conhecimento de tão explícitas expressões provocaram um terramoto na opinião pública nacional e internacional, tendo ficado evidenciado ao que vinham Rózsa e os membros do seu comando: a lançar a confusão no país, derrubar o actual governo, liquidar o Presidente e, finalmente, como é óbvio, a dividir a Bolívia.

Da entrevista de Kepes é fácil passar a outros ícones do seu blogue e determo-nos no ícone que conduz a uma espécie de logótipo da «meia-lua», onde se podem ler os propósitos (secessionistas) dos que falam de autonomia.

Antiguidade das tendências separatistas

As referências anteriores obrigam-nos a retroceder no tempo e ver como são profundas as tendências secessionistas. Sem essas referências, estas ideias estão abundantemente expostas, articuladas e argumentadas por Enrique de Gandía. No livro, que já conta mais de 70 anos [9], coloca com franqueza os fundamentos da sucessão: «Os exemplos da Europa (…) demonstram-nos – em todos os tempos – que as fronteiras se rompem quando não coincidem com os limites etnográficos dos povos e não se ajustam à tradição da história» (meu sublinhado). (…) Santa Cruz de la Sierra com o Beni está chamada a ser uma República independente entre o Paraguai, o Brasil, e a Bolívia, com um futuro cheio de agradáveis promessas» (págs. 7 e 8). Faz cálculos da extensão dessa grandeza: «a nova República (…) formada pelos ex-departamentos de Santa Cruz e de Beni, (teria) aproximadamente 612.751,06 quilómetros quadrados». A Bolívia ficaria reduzida a 415.213 km2 (op. Cit., p. 263).

Não nos propomos discutir os argumentos «históricos e legais» do autor separatista. Apenas queremos sublinhar a confissão de parte que nos revela a prova. Ao falar de limites etnográficos a pretensão está clara: quer separar-se do desfiladeiro «turbulento e anárquico», como o postulou anos mais tarde o chefe falangista Mário Gutiérrez Gutiérrez que, de passagem, aludiu às origens «andaluzes» dos crioulos de Santa Cruz, assinalando-lhes atributos de trabalho e nobreza de espírito que não tinha os bascos ou os galegos.

Na obra de Gandía não podiam faltar referências aos símbolos e ao hino de Santa Cruz. Mas o livro deste autor é difícil de encontrar. Aconselhamos a visitar o registo de Rózsa na Internet e aí se encontrarão as mesmas referências que, não sendo casuais, traduzem a mesma concepção. O remate final de toda esta concepção é completado no sitio da «Nación Camba», onde se explica que procuram «A tomada da totalidade do Poder», criando «uma revolução social camba» para garantir os seus objectivos: libertarem-se do micro imperialismo andino», etc., etc.

A conexão ústacha

Um aspecto pouco estudado é o das conexões políticas internacionais entre organizações e militantes do fascismo balcânico com a América Latina. Na Bolívia é bastante conhecida a presença de nazis e pró nazis ainda antes da II Guerra Mundial. Há uma rede de nexos orgânicos inocultáveis, tal como as marcas da influência que exerceram, sobretudo os nazis, os fascistas italianos e os falangistas espanhóis em certos círculos da política boliviana. Menos conhecidas são as ligações e a influência que tiveram os eslavos croatas filiados em organizações de extrema-direita.

Em 1941 deu-se a invasão da Alemanha nazi ao então reino da Jugoslávia. Não faltaram organizações jugoslavas que se puseram ao lado dos invasores e que se converteram em colaboracionistas. A organização mais importante, deste jaez, é a que se conhece pelo apelativo de ústachas. Sob a ocupação nazi criaram na Croácia um Estado denominado “Nezavisna Drzava Hrvatska” (Estado Croata Independente), em Abril de 1941 [9]. Sob a protecção nazi, este Estado foi governado por Ante Pavelic.

Não cabe aqui descrever nem analisar detalhadamente o que sucedeu nesse território até 1944. Basta dizer que o regime quissling encabeçado por Pavelic foi um dos mais cruéis do seu género. Pavelic bebeu a ideologia fascista, sobretudo na vizinha Itália, durante os anos 30.

Em 1945, depois da derrota nazi às mãos dos aliados e fundamentalmente do Exército Vermelho, Pavelic fugiu e refugiou-se na Argentina. Neste país encontrou não só refúgio como uma extraordinária tolerância e até cobertura. Eram os temos do muito popular peronismo e, simultaneamente, suspeito no plano internacional. Pavelic, que se presume ter escapado depois de esvaziar os cofres do Estado Croata, converteu-se no líder dos nazi-fascistas que chegaram à Argentina. Com elementos alemães, italianos, franceses e outros, mas principalmente romenos da «Guarda de Ferro» e do Partido Nacionalista Húngaro, pretenderam criar uma estrutura tipo «internacional negra». Os propósitos desta internacional foram há já algum tempo revelados por Hugo Roberts Barragán [10]. Este afirma que o próprio Paz Estenssoro recebeu promessas de ajuda para tomar o poder, a troco de fazer da Bolívia um centro de irradiação do nacionalismo. Soube-o por um enviado de Paz Estensoro a Buenos Aires e que Roberts identifica como Mario Busch. Pode tratar-se da mesma pessoa que colaborou com a FSB e que, por isso mesmo, foi preso em Curahuara de Carangas (Oruro) e que Walter Vasquez Michel identifica como Manolo Reina, um argentino-croata.

As simpatias de Pavelic por Paz Estenssoro terminaram abruptamente em 1952 quando este, sob pressão das massas, nacionalizou as minas e decretou a reforma agrária. Os círculos ústachas, tal como a direita, sobretudo falangistas, começaram a dar apelidar o novo governo de «movicomunista». A Falange Socialista Boliviana (FSB), assumiu o papel de vanguarda da contra-revolução e organizou a resistência frontal ao regime de Paz Estenssoro e do MNR. Unzaga denunciou como comunista o governo do MNR num «congresso mundial anticomunista» realizado no Brasil em 1956.

É óbvio que o pertinaz Pavelic viu, tal como Klaus Barbie, os membros da Falange como os eleitos para levar à prática os seus planos de manter vivas não só as ideias fascistas, mas sobretudo os seus métodos políticos. É por isso que o chefe falangista se entrevista com Pavelic em Buenos Aires por volta dos anos 1954-56. É igualmente provável que tenha recebido promessas de ajuda para derrubar o governo «movicomunista».

Neste caso temos um actor e testemunha excepcional: Walter Vasquez Michel [12], falangista de primeira água, perseguido e brutalmente torturado pela polícia política, recluso no campo de concentração de Curahuara. Por decisão de Únzaga entrevistou-se com o chefe ústacha, que o levou a participar numa cerimónia onde prevaleciam estandartes e cores nazis e ressoava o conhecido «heil» e a saudação romana das concentrações castanhas. Também se viam cruzes potenzadas (N. do T.: cruz em forma de T), um dos símbolos dos ústachas.

Golpismo separatista

Vasquez Michel afirma que teve assessoria ústacha para alguns golpes de Estado planeados pelo falangismo, particularmente os que se apoiaram nas forças da direita oriental que, então, tinha criado os comités cívicos como escudo para as suas actividades contra-revolucionárias.

No entanto, a frente contra-revolucionária não tinha uma compreensão homogénea sobre o objectivo final da conspiração. Apareceram diferenças entre o ramo oriental e a ocidental FSB. A primeira era muito mais próxima dos ânimos separatistas do Comité Cívico. Foi assim que para a junta [cabildo] de Dezembro de 1957 se preparou o que havia de ser uma virtual declaração de independência. Então, os contactos de Gutiérrez Gutiérrez com círculos oficiais brasileiros tinham conhecido um enorme avanço e prometida uma ajuda que inclusivamente podia ser militar. Únzaga foi informado desta medida extrema por Fausto Medrano, dirigente dos Camisas Brancas de Santa Cruz e do movimento universitário. Então, o chefe falangista ordenou a retirada de toda a cooperação com o Comité Cívico, facto em que participa Walter Vasquez Michel. No entanto, o complôt continuaria e rebentaria em Março de 1958.

Virtualmente os «cívicos», a União Juvenil de Santa Cruz (UJC) e as brigadas falangistas tomaram por algum tempo o controlo da cidade, dando largas à sua acção separatista. Tentou-se (sob assessoria ústacha?) transformar o putsch em movimento guerrilheiro. Mas a aventura terminou tragicamente para os revoltosos, caíram dois jovens num combate travado fundamentalmente com milícias camponesas.

Esta informação é um importante dado histórico até agora pouco conhecido. Primeiro, confirma a realidade de as tendências separatistas serem muito antigas, permanentes e contarem com apoios externos, entre eles de elementos reaccionários croatas e, internamente, das oligarquias locais. Segundo, há uma regularidade na exacerbação daqueles desejos secessionistas: a presença de governos progressistas ou de esquerda. Não se pode negar que nos primeiros anos depois de Abril de 1952 foram anos de inegáveis mudanças de conteúdo progressista, antilatifundista e antimonopolista. Depois chegaram os governos militares progressistas de Ovando e Torres e o governo da UDP de Siles Suazo. Este, só pela presença de comunistas no governo, converteu-se numa espécie de capa vermelha contra a qual investia a reacção em geral e com força a oligarquia de Santa Cruz.

Balanço preliminar


Um balanço preliminar da situação jurídica e política do tratamento do caso do terrorismo na Bolívia mostra que a conspiração, com o desmantelamento do comando Rózsa, a investigação dos seus contactos e a rede da conspiração significaram um grave desaire para os implicados e, temporariamente, malogrou os seus planos. Tardarão algum tempo a recompor-se completamente, embora haja sinais frescos das suas tentativas de reactivação.

Na realidade a direita e a extrema-direita sofreram uma derrota importante e renovaram as manobras e a chicana jurídicas para converter os processos judiciais num labirinto kafkiano; eludir o castigo da lei pelos seus actos terroristas e pelas suas tentativas de provocar uma confrontação que derivasse para uma guerra civil.

Por fim, deve responder-se sistematicamente à infinidade de dúvidas que semeia a oposição mais recalcitrante apoiada, mais em razões válidas no domínio mediático. Entre outras, podia a polícia, conhecendo as fotos e vídeos, tentar prendê-los sem uma irrupção de surpresa nos quartos que ocupava o comando Rózsa no Hotel Las Américas? É óbvio que não. Não se viu muitas vezes os operacionais da polícia espanhola quando prendem etarras? Fazem-no no pleno cumprimento das prescrições do ofício (encapuçados, com ordem de disparar, etc.). Porém, contrariando o bom senso, há os que afirmam que os mortos na acção policial «foram assassinados». É uma pobre maneira de tentar esconder o êxito que foi o desmantelamento do comando terrorista dirigido por Rózsa.

À laia de epílogo


Até à linha anterior escrevemos sem conhecer as declarações de Júlio César Alonso. Torna-se impossível não as comentar, apesar de isso atrasar a publicação de «Marxismo Militante» (N. do T.: Revista teórica marxista dirigida por Marcos Domich onde este texto também será publicado). Os seus contundentes relatórios e entrevistas sobre a presença de mercenários e execução de actos terroristas constituíram uma incalculável contribuição para o esclarecimento dos factos analisados, agora nas mãos da Procuradoria e da Comissão da Câmara de Deputados.

Alonso é um investigador com larga experiência e tem conhecimento directo dos sucessos do terrorismo e dos seus executores em 10 frentes de guerra: entre outras, Bósnia-Herzegovina, Croácia, Kosovo, Angola, Congo, Sudão, Chechénia e Geórgia. Ele confirma de modo irrefutável que Rózsa foi contratado, pelo menos com mais uma dezena de homens, para organizar uma milícia que, em nome da defesa de Santa Cruz, na realidade, provocasse uma guerra civil que acabasse com a integridade territorial da Bolívia.

Confirma também as características pessoais de Rózsa, as suas «extravagâncias», a sua egolatria e sobretudo o que, com mais propriedade, podemos agora definir: sofria de uma completa anomia, isto é, ausência absoluta, nos seus actos e no seu pensamento de valores éticos. Esta caracterização não é muito difundida na psiquiatria forense e na psicologia jurídica. Esta última definia antes uma conduta desse tipo como «loucura moral». Mais actual é falar de psicopatia ou de uma personalidade limítrofe. É lamentável que estes traços de anormalidade recaiam numa personagem de notável inteligência, o que também não é uma raridade clínica.

Outro facto a ressaltar é que cada frase de Alonso sublinha que os «contratadores» de Rózsa sabiam perfeitamente que traziam para o país um perito em provocar guerras civis e com o objectivo de o dividir. Os seus métodos brutais têm no Massacre de Porvenir (departamento de Pando) uma amostra do modo como se pode acender a chama de um confronto sangrento e onde a instigação ao ódio racial é inocultável.

Foi muito esclarecedor as características da guerra dos Balcãs e a implosão da Jugoslávia com e pela intromissão de potências estrangeiras, da NATO e dos serviços de inteligência correspondentes; e a reorganização e rearmamento das organizações fascistas. A propósito, deve esclarecer-se se houve algum governo boliviano anterior que tivesse estado comprometido no tráfico de armas para a Croácia. O governo argentino de Menem já se sabe que esteve.

Por último, há que ressaltar que a ultra direita e os meios de comunicação por ela controlados sofreram uma derrota mais. Derrubou-se sem atenuantes a sua táctica perversa e a sua estratégia antinacional. A única coisa que há a esperar é que a Justiça boliviana seja implacável na aplicação do castigo correspondente aos operacionais que estão soltos, aos financiadores e à extrema-direita que, na defesa dos seus mesquinhos interesses, não hesitaram em tentar lançar a Bolívia num banho de sangue. É a hora de aprovar legislação especificamente antiterrorista, anti-racista e antifascista que, como na maioria dos países do mundo, penaliza a sua simbologia, a sua propaganda e as suas organizações.

Notas:
[1] Por sus iniciales en ruso la Comisión Extraordinaria (Cheresbichaynaya Komisia) fue el primer órgano de seguridad soviético y lo presidió F. E. Derzhinski
[2] Ver: Sherkovin, Pankov y col. El terrorismo político, inculpación al imperialismo. Ed. Progreso, Moscú, 1983.
[3] Casi al cerrar la presente edición hizo su aparición en el escenario informativo el periodista-investigador español Julio César Alonso. Durante 14 años ha seguido, entre otros mercenarios y terroristas, a Rózsa. En el epílogo de este artículo agregaremos algunos de sus importantes aportes al tema en tratamiento.
[4] Casi al cerrar la presente edición hizo su aparición en el escenario informativo el periodista-investigador español Julio César Alonso. Durante 14 años ha seguido, entre otros mercenarios y terroristas, a Rózsa. En el epílogo de este artículo agregaremos algunos de sus importantes aportes al tema en tratamiento.
[5] Shestopal, E. B. Personalidad y Política (en ruso) Ed. “Misl”, Moscú, 1988.
[6] También denominado síndrome timárquico (gobierno de la ambición). Ver: Domich, M. La degradación timárquica del líder y del Estado. Rev. “Temas Sociales” Nº 14. Ed. UMSA, 1990.
[7]. C. Alonso afirma que el verdadero testamento está en manos de dos periodistas croatas y debe publicarse a los seis meses de su muerte.
[8] J. C. Alonso afirma que el verdadero testamento está en manos de dos periodistas croatas y debe publicarse a los seis meses de su muerte.
[9] Mladen Stefanovich. Zbor Dimitrija Loticha (“El Comando Dimitri Lotich”), Ed. Narodna Kniga, Beograd, 1984, en serbio p. 97 a 108.
[10] Por sus iniciales en ruso la Comisión Extraordinaria (Cheresbichaynaya Komisia) fue el primer órgano de seguridad soviético y lo presidió F. E. Derzhinski.
[11]Ver: Sherkovin, Pankov y col. El terrorismo político, inculpación al imperialismo. Ed. Progreso, Moscú, 1983.
[12] El Ing. Vásquez Michel, en 1967, canceló su militancia en FSB a la que había servido con valentía y lealtad. Su honestidad e inocultada identificación con la causa popular y socialista, hizo que se convirtiera en seguidor de Marcelo Quiroga Santa Cruz y le ayudara a fundar el Partido Socialista. Vásquez entregará en breve sus memorias y nos ha hecho participes de algunos de sus contenidos. Hacemos público nuestro reconocimiento a este adelanto generoso.


* Marcos Domich é Profesor da Universidade de La Paz e amigo e colaborador de odiario.info.

** Sobre este assunto ver «Sobre a ligação Ústacha da rede fascista», Marcos Domich, odiario.info de 28 de Maio de 2009.



Tradução de José Paulo Gascão

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Midia Democrática...

Em defesa da liberdade na rede

Por Antonio Martins, Glauco Faria e Renato Rovai na Revista Forum

Quando se fala da luta pela inclusão digital e a defesa do software livre no Brasil, impossível não lembrar o nome do sociólogo e professor da faculdade Cásper Líbero Sérgio Amadeu. E não é à toa. Foi coordenador do Governo Eletrônico da prefeitura de São Paulo na gestão Marta Suplicy, sendo responsável pela criação da rede pública de telecentros, considerado o maior programa de inclusão digital do país. Já no governo Lula, ocupou a presidência do Instituto Nacional de Tecnologia da Informação (ITI) da Casa Civil, participando da criação da criação do Comitê de Implementação de Software Livre (CISL).
Saiu do governo em 2005, mas nem por isso sua atuação tem sido menos pública. Mantém um blog (samadeu.blogspot.com) e recentemente foi um dos criadores do blog coletivo 300 (trezentos.blog.br), com variados autores e temáticas atestando que “a vida não se limita as relações de mercado capitalistas”, segundo descrição da própria página eletrônica.
É em defesa da liberdade de criação e de conteúdo presente em iniciativas como essa que Amadeu, junto com outros inúmeros ativistas, se mobiliza contra o projeto de lei do senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG) que criminaliza várias ações corriqueiras hoje na rede como downloads de textos, músicas e vídeos convertidos para formato digital e a gravação deste em meios eletrônicos como CDs, DVDs ou mesmo um MP3. “E não faz isso de maneira clara porque traz como agenda oculta os interesses da indústria de copyright, os interesses da indústria bancária. Ele tenta atender a interesses que são da associação anti-pirataria, da associação fonográfica norte-americana”, critica.
Na entrevista a seguir, Amadeu fala da importância da internet hoje como instrumento para estimular a diversidade cultural e democratizar a comunicação e também de como a estrutura das redes pode modificar o cerne do sistema capitalista. “Compartilhar na rede é mais eficiente do que guardar ou competir. Isso coloca em questão a idéia de eficiência na rede e a dificuldade do capitalismo industrial. A lógica da repetição já foi alterada para a lógica da invenção, vale mais ser capaz de inventar do que de reproduzir”, argumenta. Confira abaixo.

Fórum – Do ponto de vista desse novo processo da democratização das comunicações, se é que ele existe, como você situa o meio internet? Em que momento ele se encontra?
Sergio Amadeu – A internet é um arranjo comunicacional, não uma mídia qualquer, é um conjunto de protocolos sobre diversos aparatos que utiliza uma infraestrutura antiga de telecomunicações. A forma como ela é feita, a independência das camadas físicas da internet, gerou um ambiente muito propício à democratização das comunicações. Na internet você pode criar não só conteúdos, mas sim novos formatos e novas tecnologias. Ela é uma obra inacabada, a qualquer momento pode-se criar um novo arranjo comunicacional e isso é o fantástico, porque ela pode ser recriada pelos seus usuários.
Quero lembrar que ela foi concebida a partir de um projeto do exército norte-americano, que logo o abandonou por conta da sua radicalidade tão distribuída. Um dos grandes arquitetos da internet, o Paul Baran, dizia que só existem dois tipos de rede, centralizada e distribuída. A internet é uma rede de comutação de pacotes de informação distribuída e isso faz uma diferença brutal.
O modo gráfico da rede, aquele que todo mundo confunde com a internet, que é a web, foi criado no final dos anos 80 e passou a ser popularizado com um interpretador do protocolo, que é o browser, a partir de 1992 principalmente e isso foi fundamental porque gerou os usos que a maior parte das pessoas tem.
E outras criações aconteceram: a voz e a imagem sobre IP e isso foi revolucionando o próprio uso da internet, portanto, eu digo, pra eu criar algo na internet não peço autorização pra ninguém. Para se criar alguma coisa no mundo anterior, da mídia de massa, você tinha que estar dentro de uma empresa, de uma corporação. Hoje não, você junta três meninos geniais e cria o Twitter, que vira uma nova aplicação que não é qualquer aplicação, é uma nova rede.
Você tem essa capacidade de criação contínua nesse espaço. É isso que está sob ataque, essa capacidade de criação. Porque isso incomoda aqueles que chegaram na rede, não acreditaram nela e agora tentam dominá-la. Quem são eles? É a velha indústria cultural, a indústria do copyright, aqueles que viviam de vários tipos de intermediação. Chegam em uma rede distribuída onde a intermediação é a própria rede.
Antes a nossa briga por comunicação era pelos canais de fala, na internet eu tenho uma queda das barreiras para me tornar um falante. O meu problema agora é outro, é a atenção, como obtenho essa atenção. Isso é completamente diferente de não poder falar. Alguns dizem que a coisa continua a mesma, o grande capital tem mais condições de ser mais ouvido. Não é verdade. A história recente da internet mostra que os maiores depositórios surgiram fora das grandes companhias de entretenimento, a própria CNN, o Google virou grande porque apostou que a internet ia crescer tanto que você teria no buscador o elemento estratégico da rede. O Google concentra muita atenção e acessos, o que não é bom, porque gera um elemento de poder muito forte.

Fórum – Justamente por isso, pelo Google ser um grande concentrador de serviços, mesmo quem não usa buscador, utiliza algum serviço relacionado. Isso pode ser uma ameaça?
Amadeu – Pode. O Google se torna uma grande corporação, coisa que não era, tem que contratar executivos, traz uma linguagem que não é da rede... Continua uma indústria que é da rede, como o Yahoo, que nasceu ali também, mas ao ter que lidar no mercado capitalista começa a existir o jogo de poder e aí é algo perigoso. O Google ainda resiste quando o governo Bush pede uma relação de todas as buscas feitas em alguns estados dos EUA e denuncia isso na opinião pública. Em compensação, segue a Microsoft na China, que fez tudo o que o governo chinês quis pra ganhar o mercado local. Daí faz-se um cálculo de empresa, para ser acessado na China tem que aceitar as regras da ditadura chinesa.
O Google vai concentrando informação e, ao mesmo tempo em que é uma empresa, vai aliando a vivacidade das redes com a lógica empresarial e se torna uma grande corporação. O usuário abre o seu Gmail e faz uma busca e a empresa sabe quem está fazendo a busca. Se ele abrir o Orkut, faz isso sem precisar de senha, ele já está ali dentro. Repare, há um grande risco de essa empresa ter o controle do seu perfil e analisar o seu comportamento. Ah, mas vão fazer que tipo de uso? Não sei, mas que podem fazer uso daquilo que colocamos como um risco para a liberdade e a navegação sem vigilância, então não é um exagero quando alguns teóricos, como o [Gilles] Deleuze, falavam que estávamos entrando em uma situação de sociedade do controle. A diferença da sociedade de controle para uma sociedade disciplinar é que esta introjeta em você o medo; o medo da prisão, o medo de ser vigiado. Hoje não, a rede que te liberta é a rede que te vigia. Dois em um.
Uns amigos me ligaram: “pô, você já cadastrou o seu celular no Google Latitude?”. Respondi “claro que não”. Por que não? Porque não quero que ninguém controle onde estou, as operadoras já sabem onde estou agora porque o meu sinal evidencia. Mas imagine juntar todas essas informações em um só lugar. Eles insistiram dizendo”mas você pode escolher os amigos que podem te ver”. Mas o problema não são os amigos, é a empresa que vai ter acesso a isso.
Por outro lado, o Google incentiva práticas muito boas na rede, a gratuidade, a colaboração, no entanto há esses grandes riscos que tememos e não é algo de paranoicos. A própria comunidade de softwares livres tem várias restrições à forma como o Google trabalha com os códigos, alguns eles liberam, outros não. Os estratégicos ficam guardados, são segredos de negócios.

Fórum – Em relação a essa lógica de que os grandes sempre dominam, se houver muita gente partilhando das informações, colaborando, as corporações também de certa forma não terão que ser mais abertas para poderem prosperar?
Amadeu – Acredito nisso, mas creio em outra coisa. não concordo com a teoria da cauda longa, acho que ela não expressa bem o que é a internet. A internet é mais um maremoto, oscila o tempo todo porque a qualquer momento um grupo que não estava no jogo cria uma ferramenta nova e dá certo. A todo momento se tem essas alterações. Pode-se ver isso no fenômeno dos blogs, a idéia de micro-audiência é forte, mesmo os grandes conseguem visibilidade porque articulam essas micro-audiências, vão fazendo clusters. A internet viabiliza uma profunda diversificação sócio-cultural e é isso que está em disputa. O futuro da internet não está claro, mesmo se os grandes vão ganhar ou perder. Estamos no início desse processo de distribuição e muitos grupos que até o início dos anos 2000 não acreditava na internet chegaram tentando impor seus controles.
Alguns pontos problemáticos para o futuro da internet dizem respeito a quem controla a infraestrutura de alta velocidade, as operadoras de telecomunicação. São poucas no mundo e a tendência é reduzir cada vez mais. Há duas empresas chinesas, a Vodafone, a Telefônica, algumas americanas... são poucas que controlam a estrutura física pela qual os fluxos existem. Então repare o poder que eles têm. Isso não é teórico. Há inúmeros casos em que interferem na comunicação.
A grande briga hoje nos EUA é pela neutralidade na rede: as camadas lógicas da internet até hoje não recebiam interferência de quem controlava a camada física, e isso garantia que desde que uma camada se comunique com a outra você pode criar qualquer coisa, inclusive o peer to peer (P2P), algo que as operadores de telefonia odeiam porque tem que dar mais banda e estão perdendo dinheiro. O próprio voz sobre IP afetou a rentabilidade dessas empresas, nenhuma empresa séria hoje que tem conhecimentos tecnológicos vai ligar suas filiais por telefonia fixa, vai usar voz sobre IP, é muito mais barato. Isso tirou dinheiro das operadoras, que começaram a ponderar as possibilidades de se fazer do ciberespaço um espaço para o mercado. No mercado, você tem precificações diferentes, dá-se velocidade pra quem pagar mais. Assim, alguns pacotes de informação passam, outros não passam. Isso viola o princípio histórico de neutralidade de uma camada sobre a outra, porque impõe a discriminação de pacotes de informação a partir da aplicação, do IP de origem e do IP de destino. Eles querem implantar uma relação de mercado no cibereespaço.

Fórum – Mas porque eles não têm conseguido isso?
Amadeu – Têm conseguido em alguns lugares como nos EUA; aqui no Brasil isso é ilegal porque não teria sentido olhar o pacote de informação porque você estaria violando a velocidade. Com a comunicação em dados, o que se transfere na rede? Pacotes de informação usando protocolos de internet, o TCP-IP principalmente. Aí, o que acontece? Alguns desses pacotes levam aplicações P2P, é muito fácil identificar uma aplicação desse tipo. E aí, o que a Telefônica faz? Usa um farejador de pacotes que bloqueia o p2p e voz sobre IP, privilegiando o que for da empresa. O Skype, que não tem acordo com ela, atrasa-se o pacote da voz, por isso ocorre o delay. Isso é feito propositalmente pelas operadoras de telefonia. Eles dizem que não, você tem que ter a prova pra levar pra Anatel, mas quando você está baixando uma mídia, música ou um arquivo qualquer em uma rede torrent, que é uma rede P2P, começa a ver sua velocidade porque eles têm softwares que regulam, sabem que você está usando uma rede p2p e começam a reduzir sua banda. Isso tudo, no Brasil não é legal, mas muitas vezes as pessoas não sabem que isso está acontecendo com elas.
Esse é um grande imbróglio, quem controla a infraestrutura pode controlar os aplicativos que uso e até o conteúdo. Tem um caso que considero emblemático, aconteceu em um show da banda Pearl Jam em 2007, um ano antes da eleição do Obama. Eles faziam um show no Papalooza, que estava sendo transmitido via internet e o vocalista pega uma música do Pink Floyd, Another Brick on the Wall e modificam um verso para Hey Bush leave the world alone. De repente some o som a AT & T achou por bem censurar a transmissão porque estavam falando mal do presidente dos EUA. Não é brincadeira. Esse grupo de jovens entrou pela campanha pela neutralidade na rede porque sentiu na pele o poder de quem controla a infraestrutura.
Outro problema é a indústria do copyright, que acredita piamente que se conseguir impedir a existência do P2P irá se revigorar e as pessoas vão deixar de compartilhar arquivos digitais. Vai de encontro ao que o professor Henry Simon nos ensina, que a internet trabalha com computadores e computador é uma máquina de copiar em alta velocidade. Na hora em que você aumenta o processamento dela, aumenta a capacidade de copiar, ela trabalha com copy de dígitos. Na hora que você põe uma máquina de copiar em alta velocidade, daí diz “não copiem”? É um contrasenso.
A própria internet é um meio técnico para compartilhamento, você pode fazer virar outra coisa, mas ela é afeita ao compartilhamento. Em sendo assim, ela viola o antigo intermediário. Por exemplo, pega-se um grupo no Brasil, que é o Teatro Mágico, hoje coloca milhares de jovens em seus shows sem aparecer no rádio ou na televisão. Por que? Com as músicas liberadas na internet eles conseguem ter sucesso, vender CDs em seus shows – o que é algo inusitado - e tem milhares de fãs, conseguem viver praticamente só de apresentações. A rede eliminou a distância entre o fã e a banda porque também caiu o custo do aparato de produção. Mas gravar uma música e por na rede com qualidade é muito caro... Era, não é mais. O que era muito caro, que é distribuir, se resolve na rede, que é o maior distribuidor. Se você tem uma banda de garagem hoje não vai atrás de uma gravadora com a caneca na mão, vai fazer uma rede social, um site, um blog, subir suas músicas e botar na rede. Se você for bom, vai criar um vínculo com várias pessoas. E é essa jogada que a indústria do copyright não entendeu. No caso da música, o antigo modelo perdeu totalmente o sentido.
Outros intermediários estão sendo afetados. Um deles é o jornalismo, repare na eleição do Irã agora. Qual o melhor lugar para acompanhar? No Twitter, no Orkut e nos blogs. Não é entrando na CNN.

Fórum – Fazendo de novo o papel de advogado do diabo, isso também não pode ser pernicioso, um Twitter – que adiou um período de manutenção por causa da situação no Irã -, ou empresas como o Google ou uma Microsoft interferindo no processo político de um país?
Amadeu – Se há grandes corporações onde o fluxo de comunicações só passa por elas, há riscos, como disse, mas não foi isso que aconteceu. Os blogs, com plataforma em Wordpress, estão em vários servidores. O Twitter, se de repente quiser silenciar sob pressão, pode. No caso da comunicação, temos um problema, tudo que concentra os fluxos e tem poder sobre eles é um risco. Isso não é uma paranóia, é um alerta para que possamos exercer um controle sobre isso.
Nós precisamos ter também uma distribuição das infraestruturas de comunicação, não podem estar concentrada em poucos grupos. O ideal é que tenhamos infraestruturas coletivas, públicas, estatais, baseadas no commons, no comum. Porque quando ela está nas mãos de coletivos, tem condições de ser efetivamente democrática porque já que estes coletivos sofrem a pressão da sociedade, são porosos frente aos interesses dela.

Fórum – O que significaria concretamente isso?
Amadeu – Ninguém nos impede de criar um mecanismo de busca eficiente. Não criamos porque não sentimos, nós, a sociedade, necessidade disso. A hora em que as pessoas começarem a perceber que isso é um problema, não tenha dúvida que as alternativas, tecnicamente, serão articuladas. Veja bem, quem é que no princípio assegurou essa grande criatividade? É essa lógica que mais tarde se chamou de open source, a lógica do compartilhamento. Quem é o dono da internet? Ela foi construída como uma obra coletiva, vários protocolos elaborados, grupos de engenheiros trabalhando com a participação de hackers, amadores, não existe uma empresa que diz que criou. E a internet funciona, é uma obra coletiva. Boa parte da comunidade que construiu isso está na comunidade de software livre.

Fórum – As comunidades de software livre não tem um certo hermetismo, ou seja, só quem conhece mesmo pode lidar com isso?
Amadeu – Sim, mas existe uma coisa do software livre que eu tenho que defender. O preço da liberdade é o conhecimento, você deve dominar aquilo que você usa. Isso é uma lógica hacker extremamente importante que está no coração do compartilhamento e do software livre. E é essa lógica que incentiva que jovens cada vez mais participem dessas comunidades, dediquem parte de suas vidas para compartilhar, tenham motivação. Veja que coisa fantástica: a China tenta bloquear informações de lá de dentro para o mundo, a comunidade de software livre consegue colocar dentro de um pendrive um software, o Tor, que permite acessar uma rede anônima que faz com que uma pessoa permaneça invisível dentro dos filtros da muralha digital que a ditadura chinesa colocou. Você tem um trabalho de jovens que são técnicos, capazes, mas tem um espírito de liberdade muito importante, o que contribui para a diversidade cultural.

Fórum – Você acha que de alguma forma as redes estão modificando o capitalismo ou podem criar novas possibilidades de modelos econômicos?
Amadeu – Em um capitalismo em que os bens imateriais adquirem cada vez mais importância, o sistema entra em crise afetando, portanto, todos os processos de medição de valor. Como você valora o trabalho de um programador, como você sabe que uma proposta criativa vale mais que outra? É muito complicado isso e há uma série de dificuldades para o capital trabalhar com a lógica do trabalho imaterial, mas a mais difícil de todas talvez é que o ele não sofre com as restrições de outros bens, não tem escassez e nem desgaste no uso. A questão é eu multiplicar um software, uma música, o custo de eu multiplicar isso para mil ou milhões é similar. O custo marginal da cópia é zero, se resume ao custo do suporte ou do tempo de cópia. É uma outra realidade, isso muda completamente o cenário.
Portanto, como ressalta o economista americano Steven Weber, o bem imaterial é chamado de não-rival, ou seja, se eu passo uma cópia desse software pra milhares de pessoas, todas podem usar ao mesmo tempo. Mas o bem imaterial não é só não-rival, é anti-rival, pois é melhor compartilhar porque quanto mais compartilho, mais ele cresce. É o contrário do pneu de carro que quanto mais uso, mais desgaste tenho. Se eu codifico informações e repasso pra centenas de pessoas, a possibilidade de ele melhorar é muito maior do que se ele ficar só comigo. Compartilhar na rede é mais eficiente do que guardar ou competir.
Isso coloca em questão a idéia de eficiência na rede e a dificuldade do capitalismo industrial. A lógica da repetição já foi alterada para a lógica da invenção, vale mais ser capaz de inventar do que de reproduzir. Isso, em um ambiente de rede, com compartilhamento de bens imateriais, é mais eficiente do que o bloqueio. A pergunta é: isso vai alterar a lógica de reprodução do capital? Não sei a resposta, porque o capitalismo tanto pode incorporar isso quanto essa lógica pode arrebentar seu núcleo fundamental. É por isso que indústrias como as do copyright atuam de forma tão contundente mundo afora, porque acreditam que, com a força do Estado, vão conseguir inverter essa situação. Estamos vivendo um grande embate entre as forças que apostam no compartilhamento dos bens imateriais e aqueles que querem manter o processo de apropriação privada.

Fórum – Nesse contexto, cabe perguntar como se posiciona aí o projeto de lei do senador Eduardo Azeredo e como surgiu a idéia de apelidá-lo de AI-5 digital.
Amadeu – O senador Azeredo conseguiu aprovar em julho do ano passado um projeto substitutivo que reunia várias propostas sobre crimes na internet. Esse projeto tem uma redação extremamente ambígua e genérica e quer criminaliza práticas corriqueiras na rede. E não faz isso de maneira clara porque traz como agenda oculta os interesses da indústria de copyright, os interesses da indústria bancária. Ele não quis fazer uma lei para combater a pedofilia, até porque existe lei que criminaliza a pedofilia e a pornografia infantil na internet. Ele tenta atender a interesses que são da associação anti-pirataria, da associação fonográfica norte-americana... Podem até pensar que isso é ilação, mas há indícios disso.
Mas violar o copyright já não era crime caso você copie? Isso é discutível, se você baixa um filme na rede e não comercializa isso é muito difícil que você seja considerado um criminoso. Na França, existe legislação sobre copyright, mas por que o Sarkozy tentou fazer uma lei para proibir o P2P, declarada inconstitucional mais tarde? Ele atribuía ao provedor a responsabilidade de vigiar os usuários da internet e dizia que se o cara baixasse uma música protegida por copyright poderia ficar sem conexão de três meses a um ano. O que eles querem com isso? Inibir o P2P, já que não conseguem com aquelas propagandas horríveis, pois a reforma moral não emplaca e as pessoas sabem que copiar não é roubar. Apesar de o Ali Khamel [diretor-executivo de jornalismo da Rede Globo] ter feito um artigo afirmando que “o que chamam de liberdade é um roubo”, porque ele sabe que vai ter que somar forças com essa indústria de copyright. Hoje, as leis de copyright não são suficientes, então querem fazer dos provedores polícias privadas. Como eles vão saber que o artigo P2P que estou baixando é protegido? Só olhando, violando descaradamente a privacidade.
O que houve na França veio para o Brasil por meio do senador Azeredo, cujo projeto estamos combatendo desde julho do ano passado. Vários ativistas tentaram evitar a aprovação e trocando mensagens, achamos que podíamos fazer um abaixo-assinado de professores pedindo que os parlamentares não aprovassem o projeto. Um ativista do Rio de Janeiro chamado João Caribé propôs que puséssemos o abaixo-assinado no Petition online e um mês depois tinham mais de cem mil assinaturas. A partir daí muitos blogs, blogueiros, redes sociais, começaram a aderir ao movimento.
O projeto do Azeredo quer que os provedores cumpram efetivamente o papel de polícia privada, conforme um regulamento que não sabemos qual é. Estamos batendo no projeto, mas queremos que sejam tirados alguns artigos como o 285 a 285 b e o artigo 22. Ele é muito mal redigido e sem estes ele será inócuo.

Fórum – Estão tentando criminalizar o uso da internet sem que se estabeleçam os direitos do internauta. Como fazer com que essa questão seja trazida à tona de forma institucional?
Amadeu – Acho que o melhor momento é na Conferência de Comunicação. É uma pauta nova, mas devemos ter direito à comunicação sem vigilância, direito à acessibilidade, às redes abertas, isso tem que estar lá em um projeto. Se esse projeto sai de uma conferência é mais forte ainda porque a indústria de copyright vai combater os direitos do internauta, os vigilantistas também. Precisamos ter o apoio da sociedade organizada para colocar essa pauta. A partir do momento em que você tem uma lei de cidadania digital, põe o pé na porta de projetos absurdo que aparecem no Congresso Nacional que tratam a internet como uma velha mídia.

Fórum – E o nome AI-5 digital...

Amadeu – Sim, por que o projeto do senador Azeredo é corretamente é chamado de AI-5 digital? Dois jovens vieram me entrevistar para o IG e o que estava filmando falou “poxa, mas isso é um AI-5 digital”. Era a época do aniversário do AI-5 e eu comentava que, quando se transforma exceção em regra e todo mundo passa a ser considerado culpado até que se prove a inocência, tem-se um Estado de exceção. Quando você fala que tem que colher e guardar dados de todo mundo, afirma que todo mundo é suspeito. E serão criadas dificuldades para tele-centros, programas de inclusão digital... Você vai em um café, em uma cidade que tem rede aberta, e o gestor da rede vai ser responsabilizado. Ninguém vai querer abrir a rede.
Tem outro princípio que queremos garantir: a rede é inimputável. A rede é como o motorista de táxi: pode eventualmente levar o criminoso ao local do crime, mas não pode ser culpabilizada como cúmplice. Do contrário, o taxista vai ter que pedir RG, CPF, documentos para cada passageiro que transporta. Isso não existe. E é isso que esses vigilantistas querem que seja feito.

Antonio Martins, Glauco Faria e Renato Rovai