A polêmica sobre a atualização dos índices de produtividade da agropecuária
Se
a agropecuária brasileira é, como tem sido alardeado amplamente pelos
porta-vozes do agronegócio, um exemplo de modernização tecnológica,
transformando solos antes considerados inférteis em áreas de altíssima
produtividade, porque tantos protestos contra a atualização dos índices?
Em
agosto de 2009, chegou à mídia mais uma rodada de discussões sobre a
necessidade atualizar os índices de produtividade da agricultura
brasileira. O Ministro do Desenvolvimento Agrário, Guilherme Cassel,
com o apoio do chefe da Secretaria Geral da Presidência da República,
Luis Dulci, anunciou que a medida seria tomada em breve. Na ocasião, o
ministro declarou que os novos índices eram “confortáveis para quem
produzia na média regional” e deu alguns exemplos de áreas,
reconhecidas como de domínio do agronegócio, que estariam abaixo dos
valores efetivamente atingidos em safras anteriores. O ano findou, mas
os índices não foram atualizados.
O tema não é novo. Os índices
atualmente vigentes, calculados a partir do grau de utilização e de
exploração econômica da terra, baseiam-se em números fornecidos pelo
Censo Agropecuário de 1975, quando a modernização da agricultura e da
pecuária brasileira dava seus primeiros passos. De lá para cá, essas
atividades incorporaram muita tecnologia, tanto mecânica quanto
química, além de avançarem no terreno das biotecnologias. No entanto,
os índices nunca foram recalculados.
Em 2003, o MDA iniciou
estudos para que fosse possível essa atualização. Para que os novos
valores passem a vigorar, é necessária a oficialização, feita por meio
de uma portaria interministerial, que deve ser assinada tanto pelo
Ministro do Desenvolvimento Agrário quanto pelo da Agricultura,
Pecuária e Abastecimento. Quando o estudo feito pelo MDA foi enviado
para análise do Ministério da Agricultura, então dirigido por Roberto
Rodrigues, este argumentou sobre a necessidade de novos estudos
técnicos. Às vésperas das eleições presidenciais, em 2006, o governo
decidiu não tocar mais no assunto, uma vez que logo se evidenciou que a
medida proposta tinha um enorme potencial de gerar tensões. Decorridos
dois anos do segundo mandato do presidente Lula, cresceu a pressão dos
movimentos sociais (principalmente MST, mas também Contag), novos
estudos foram feitos, e o governo, mais uma vez, anunciou, em meados de
2009, que iria atualizar os índices.
Como era de se esperar, a
necessidade e a pertinência da atualização foi imediatamente contestada
pela Frente Parlamentar da Agropecuária, conhecida como Bancada
Ruralista, por meio de seu coordenador, deputado Moacir Micheletto
(PMDB-PR). Segundo ele, a atualização era um ato arbitrário, que
contrariava os interesses do agronegócio brasileiro, notadamente
daqueles que realmente produzem. O deputado afirmou ainda que, às
vésperas do plantio de uma nova safra, o campo precisava de paz e
tranquilidade. Faz parte dos argumentos sempre utilizados pela Frente a
afirmação de que os produtores rurais vivem em dificuldades: pressão da
legislação ambiental, dívidas, dificuldades de fechamento de contas em
decorrência da política econômica e cambial, que penaliza o setor. Além
disso, segundo o deputado Micheletto, o setor foi responsável, no
primeiro semestre de 2009, por 26,46% do PIB nacional, 42% do total das
exportações e 40,23% dos empregos gerados no país.
As
declarações do deputado, na ocasião, foram marcadas por um tom de
ameaça velada, típico dos discursos antirreformistas dos anos 1960, de
meados dos anos 1980, por ocasião do debate sobre a Proposta do Plano
Nacional de Reforma Agrária da Nova República e também das discussões
sobre reforma agrária no início do governo Lula: “Caso essa inoportuna
e perturbadora medida seja adotada, os agricultores não terão mais
condições de continuar produzindo com tranquilidade neste país,
surgindo daí um estado de calamidade. Tudo isso é lamentável, mas a
FPA, esta bancada numerosa e articulada, formada por deputados e
senadores de todas as correntes de opinião, não ficará jamais numa
atitude apenas contemplativa diante dessa provocação e afronta aos
produtores rurais” (www.noticiasagricolas.com.br/noticias.php?id=53358, 20/08/2009, grifos meus).
À
mesma época, a senadora Kátia Abreu, presidente da influente
Confederação Nacional da Agricultura, também saiu em defesa de suas
bases, com algumas alegações interessantes para se pensar o significado
político dos índices de produtividade. Além de considerar a medida um
ataque à livre iniciativa, ela costurou argumentos que iam desde a
pressão da política ambiental sobre os agricultores até a velha tese de
que o governo tem muita terra pública que poderia ser direcionada para
a reforma agrária. Trouxe ainda de volta argumentos em torno da
importância do uso do Banco da Terra e da legislação que permite a
compra de terras para fazer reforma agrária (www.agrosoft.org.br, 22/08/2009).
Desde
então foram realizadas algumas audiências públicas no Senado, nas quais
os que defendem a revisão afirmam que, em várias regiões do país, a
produção atual está bem acima dos índices a serem fixados. Por outro
lado, os que são contra alegam que a atualização geraria uma enorme
insegurança e uma inédita crise de produção.
O debate se
intensificou ao longo do segundo semestre de 2009 e o Ministro
Stephanes disse publicamente que não assinaria a portaria. De fato, o
ano findou e ela não foi assinada, mostrando a força e grande poder de
veto do Ministério da Agricultura. Como o ano de 2010 é eleitoral,
dificilmente uma medida tão polêmica entraria em pauta (como já não
entrara em 2006).
Cabe perguntar: afinal o que está em jogo numa
portaria interministerial, ou seja, um documento que sequer tem o
estatuto de lei, não passa pelo Congresso Nacional e tem sustentação
legal (a lei nº 8.629 de 1993, conhecida como Lei Agrária, prevê a
atualização)? Por que essa portaria atrai tanta oposição e ira?
Um
primeiro passo para entender essa polêmica é revisitar a discussão que
vem marcando o cenário político brasileiro (e latino-americano) desde
há muito: a ligação entre uso da terra/desenvolvimento/reforma agrária.
Nos anos 1950, generalizou-se o uso da categoria latifúndio, termo que
ganhou várias conotações, principalmente a de improdutividade da terra
e de atraso tecnológico, mas também de exploração do trabalho e
violência. Todo a polêmica sobre a necessidade de modernização da
agricultura ou sobre a necessidade de redistribuição de terras
fundava-se na crítica ao latifúndio. O próprio Estatuto da Terra, de
1964, tem seu suporte básico nessa visão, propondo a empresa rural
(inclusive a de caráter familiar) como o alvo a ser atingido no
processo de modernização das atividades agropecuárias.
Como
todos sabemos, a modernização tecnológica se fez no Brasil sem
alteração da estrutura fundiária, uma das mais concentradas do mundo, e
com uma extraordinária capacidade de permanência e reprodução em áreas
de ocupação mais recente, como nos mostram os recém divulgados
resultados do último Censo Agropecuário, realizado em 2006.
A
vitalidade e a visibilidade que as lutas por terra assumiram no início
dos anos 1980 recolocaram o tema da reforma agrária na pauta política,
mas num contexto em que o latifúndio, no seu sentido de atraso
tecnológico, estava cada vez mais perdendo relevância em favor de uma
crescente empresarialização das atividades agropecuárias. Uma
transformação veloz, mas que não foi capaz de modernizar essas
atividades para além do uso das tecnologias de ponta e da integração
sistêmica com as indústrias à montante (máquinas, insumos, sementes) e
à jusante (processamento e venda), já que se manteve, por um lado, a
relação predatória com o meio ambiente, a qual caracterizou por séculos
nossa agricultura, e, por outro lado, a utilização também predatória da
força de trabalho, como o demonstram as sucessivas denúncias que chegam
à mídia sobre trabalhadores encontrados em situações extremamente
precárias, análogas à da escravidão. Nesse contexto, ganha novas cores
o debate sobre a relação entre reforma agrária e desenvolvimento: não
se trata somente de tecnologias, mas de acesso a direitos, tanto
humanos como ambientais, fundamentais.
Os debates em torno do
novo ordenamento legal do país, que se realizaram após o fim do regime
militar e que resultaram na Constituição de 1988, trouxeram para a
nossa Carta Magna um preceito já incorporado por diversas constituições
do mundo: o de que a propriedade da terra deve cumprir uma função
social, uma vez que não se trata de uma mercadoria como qualquer outra.
O conceito de função social adotado não continha grandes novidades: foi
apropriado do Estatuto da Terra e remetia tanto à dimensão econômica da
exploração, como aos aspectos trabalhista e ambiental. O seu não
cumprimento implicaria numa punição: a desapropriação por interesse
social. Naquele momento, no entanto, a Bancada Ruralista conseguiu
incluir no texto constitucional uma cláusula que instaurou uma
contradição com o conceito de função social: terras produtivas não
podem ser desapropriadas. Ora, uma propriedade pode ser altamente
produtiva, mas não cumprir sua função social, quando se consideram as
condições de seus trabalhadores e os custos ambientais envolvidos na
atividade desenvolvida. São raros até agora os casos de desapropriação
de um imóvel a partir da função social. O critério da produtividade tem
se sobreposto, inclusive nos processos judiciais.
No que se
refere aos aspectos fundiários, a regulamentação da Constituição de
1988 foi feita por meio da Lei Agrária de 1993, que considera
propriedade produtiva aquela que, explorada econômica e racionalmente,
atinge, simultaneamente, graus de utilização da terra e de eficiência
na exploração, segundo índices fixados pelo órgão federal competente.
Segundo essa lei, os índices precisam ser atualizados periodicamente.
Se
a agropecuária brasileira é, como tem sido alardeado amplamente pelos
porta-vozes do agronegócio, um exemplo de modernização tecnológica,
transformando solos antes considerados inférteis em áreas de altíssima
produtividade, porque tantos protestos contra a atualização dos
índices? À primeira vista parece uma contradição. Certamente, trata-se
de um tema para uma pesquisa criteriosa, em diferentes regiões do país.
Todavia, há alguns argumentos dos setores empresariais rurais e
seus representantes que podem fornecer pistas interessantes para
entender tal oposição ao cumprimento do que estabelece a Lei Agrária.
Um deles é a tese de que as próprias leis de mercado têm se encarregado
de expropriar os produtores ineficientes e, portanto, a presença
reguladora do Estado seria supérflua. Esse argumento aparece, por
exemplo, numa carta de 22 de setembro de 2009, assinada por Paulo Skaf,
presidente da Fiesp, e por Roberto Rodrigues, ex-ministro da
Agricultura e Presidente do Conselho Superior do Agronegócio dessa
importante entidade empresarial paulista.
Segundo eles, “o
assunto tornou-se anacrônico, porque foi conceitualmente superado pela
história e pela importância dos fatos, que aí estão para condenar a
pretendida revisão dos índices de produtividade da agropecuária
brasileira” (www.sindiracoes.org.br/index.php).
A medida é
condenada também por ser considerada autoritária e atentatória contra o
direito de propriedade e liberdade empresarial. Para os que assim
argumentam, a definição constitucional de que a terra tem função social
é um equívoco. Não faltam os que dizem que ninguém desapropria uma
fábrica porque ela não é produtiva.
Compreender as alegações
do setor, indo um pouco além dos argumentos que aparecem na imprensa,
implica em incorporar à análise a própria lógica da expansão dessa
agricultura moderna e empresarial.
A dinâmica da expansão da
agropecuária brasileira, cerne do agronegócio, se faz num movimento
complexo que tem, de um lado, as terras em produção com, ao que tudo
indica, altos índices de produtividade. De outro, terras que estão
sendo adquiridas, quer de produtores em crise que vendem sua
propriedade para comprar terras mais baratas adiante, quer terras de
pecuária, já deflorestadas, “limpas” e prontas para a reconversão
produtiva. Trata-se um movimento constante, que envolve tanto a
recorrente fracasso de alguns, quanto a prosperidade de outros. Esse
movimento tem como um elemento de sua dinâmica a busca de novas áreas
para serem incorporadas, mas que não necessariamente são colocadas de
imediato em produção. Daí deriva a pressão sobre áreas de florestas, a
luta por um afrouxamento nas regras de desmatamento, a crítica à
delimitação de reservas indígenas e a oposição à atualização dos
índices.
Atentando para essa dinâmica e não para esta ou aquela
propriedade, observando os movimentos do mercado de terras em todo o
país (que vêm atraindo investimentos de capitais nacionais e
estrangeiros), talvez se possa entender melhor por que uma atualização
de índices de produtividade, que parece tão simples, é capaz de
despertar tanta celeuma. Terras improdutivas ou produzindo pouco fazem
parte das necessidades criadas pela expansão das atividades
empresariais. Transformá-las em áreas passíveis de desapropriação, com
a possibilidade de se transformarem em assentamentos, significa
subtraí-las do mercado e excluí-las do cerne desse circuito de
reprodução.
Leonilde Ribeiro é Professora do CPDA/UFRRJ, pesquisadora do CNPq, da Faperj e do Observatório de Políticas Públicas para a Agricultura (OPPA).