sábado, 5 de fevereiro de 2011

Educação no RS

Seduc-rs realiza 2º Encontro de Coordenadorias Regionais


A Secretaria de Estado da Educação (Seduc) realizou nesta sexta-feira (4) o segundo encontro das 30 Coordenadorias Regionais de Educação (CREs). Com a proposta de otimização de tempo e recursos, foram convocados os funcionários responsáveis pelos setores de recursos humanos, coordenadoria pedagógica e Censo Escolar, além dos coordenadores. Durante todo o dia os colaboradores receberam orientações, esclarecimentos e levantaram questões relacionadas aos procedimentos que devem ser adotados.  O encontro foi realizado no Centro Administrativo, em Porto Alegre.

Os diretores Silvio Rocha e Pedro Luiz Maboni, Departamento Pedagógico (DP) e Superintendência da Educação Profissional do Estado (Suepro), respectivamente, apresentaram suas diretrizes de trabalho e sanaram dúvidas relacionadas aos seus departamentos. Durante o encontro também foi analisado e discutido, em conjunto, os parâmetros legais e políticos a serem adotados para elaboração do Calendário Escolar. Com a orientação que o mesmo não deve ser dado como acabado, devendo ser discutido com as direções da escola.

O secretário de Estado da Educação, Prof. Dr. Jose Clovis de Azevedo, solicitou a todos que tenham um zelo especial para a preparação do início do ano letivo. Para que se trabalhe com a previsibilidade dos problemas, para que eles sejam os mínimos possíveis. Também comunicou que revogou a ordem de serviço 04/2008 de julho do mesmo ano que não permite a participação de professores da rede estadual no evento em horário de expediente.

Além disso, Azevedo informou a substituição do Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar no Rio Grande do Sul (SAERS) por um novo modelo que será construído em conjunto com as CREs. De acordo com o secretário não é possível falar em avaliação da educação integral apenas com avaliações nas disciplinas de matemática e português. “Queremos fazer uma avaliação qualitativa, em que os sujeitos envolvidos sejam avaliados. Podemos fazer uma avaliação institucional tão bem feita que poderemos interpretar os dados do IDEB”, disse.

Para encerrar o evento, Azevedo reforçou os nortes da gestão que está sendo implantada na Seduc. A centralidade do trabalho no pedagógico, a humanização das relações e o trabalho coletivo. “Não seremos todos iguais, mas precisamos falar a mesma linguagem. Vamos aprender a trabalhar com a diversidade e fazer a transversalidade proposta pelo governador Tarso Genro. Não podemos disputar com o imediato e sim ter uma visão estratégica, uma ação unitária”, enfatizou o secretário.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Congresso da CNTE: "peleguismo" dividindo a esquerda sindical....

BALANÇO DO 31º CONGRESSO DA CNTE
Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação ( Básica)
 
Neiva Lazzarotto - CPERS/ INTERSINDICAL -RS
e 2a Vice Presidente do CPERS SINDICATO
1. O 31º Congresso da CNTE, realizado de 13 a 16 de janeiro de 2010, em Brasília, aconteceu no início do governo Dilma. Um governo marcado pela continuidade das políticas dos últimos 16 anos, sendo que Dilma tem menor capacidade de manobras sobre o movimento social. Ela não tem a mesma autoridade que Lula. Como há perspectivas de que o Brasil venha a transformar-se na 5ª economia do planeta na próxima década, a própria burguesia exigirá dos governos mão de obra mais qualificada. Este cenário abre a possibilidade de reivindicarmos melhores condições de trabalho na educação pública.
2. Fazemos deste congresso, que foi um marco na organização sindical da educação, um balanço que é contraditório. Isto porque há um aspecto muito positivo e outro extremamente negativo. O congresso deveria armar a categoria dos trabalhadores em educação para as grandes lutas da Educação Pública como fazer valer o Piso Salarial Nacional para professores e funcionários, incluir no Plano Nacional de Educação 2011-2020 as bandeiras do movimento como os 10% do PIB para a Educação, lutar contra a meritocracia e a reforma da previdência. No entanto, foi marcado pelo tema da democracia sindical, pela importante ruptura do campo cutista e, sobretudo, pela exclusão da esquerda da direção da CNTE.
3. O fato positivo é que o Congresso foi marcado pela importante rebelião e deslocamento de um setor cutista capitaneado pela CDS-CPERS (DS-RS) do então bloco majoritário da direção da CNTE. De negativo, e muito grave, foi a exclusão da esquerda da direção da Confederação, somada à ausência de um plano de lutas capaz de defender os trabalhadores em educação, combatendo as políticas do governo Dilma e dos governos estaduais de ataques a nossos direitos em especial a carreira e a aposentadoria, em que pese a nova direção tenha aprovado uma marcha para pressionar pelo PNE no primeiro semestre.
4. O Congresso que reuniu quase 2 mil educadores de todos os estados, com exceção do Rio de Janeiro porque o SEPE-RJ desfiliou-se da CNTE, tinha como tema central o novo PNE- Plano Nacional de Educação 2011-2020. No entanto, esse tema, embora presente nos paineis e intervenções, ficou secundarizado pelo tema da democracia sindical, devido a um golpe aplicado pela maioria da confederação na composição da direção. De sorte que o congresso, que reuniu a vanguarda e dirigentes do país todo, não armou a categoria para a disputa com o PNE do governo que está no Congresso Nacional desde dezembro e que não contempla as bandeiras históricas do movimento, em especial o investimento de 10% do PIB em educação. Também não organizou uma forte e efetiva luta pela implementação do Piso Salarial Nacional, em defesa das carreiras de professores e funcionários, contra a meritocracia e a reforma da previdência.
5. O tema central do congresso acabou sendo a democracia sindical. Mais precisamente, um ataque à democracia. A direção majoritária formada pela Articulação, CSD ( maioria), Articulação de Esquerda (AE), O Trabalho/ CUT e pela CTB rasgaram o estatuto da própria CUT. Eles aprovaram o regimento eleitoral exigindo que para composição da direção qualquer chapa teria que alcançar 20% dos votos válidos numa segunda rodada, contra os 10% de até então, caso se apresentassem mais de duas chapas.
6. Para estes setores não bastava a hegemonia. Seu objetivo era impedir que a esquerda, Intersindical/ CSP-Conlutas/Unidos e outros, continuasse falando para para seus militantes nas instâncias de direção, que continuasse explorando suas contradições de atuar subordinados aos interesses do governo ferindo a autonomia da nossa organização. Para eles era preciso varrer da entidade qualquer pensamento divergente, transformando a direção da CNTE num bloco monolítico de sustentação ao governo Dilma/Lula. Se para o setor hegemonizado pela Articulação este era o grande objetivo, precisaríamos de uma política para derrotá-los e impedir a aplicação dessa política. Contudo, a esquerda mostrou-se mais uma vez limitada: atuou unificada fortalecendo o deslocamento do setor da CSD, que só foi possível porque ainda estamos atuando dentro da confederação. No entanto, não teve habilidade para dar o passo necessário para derrotar a Articulação e seu campo, que seria a unificação das duas chapas de oposição que se apresentaram no final do congresso. Não estivemos à altura de ter uma política para isso.
7. O governismo da Direção da CNTE produziu importante ruptura do bloco Cutista
A oposição à política de atrelamento do campo majoritário da CNTE ao governo foi ampliada para além da Intersindical, CSP Conlutas, pelo deslocamento e apresentação como fração pública da CSD-CPERS (DS- RS), capitaneada pela presidente do CPERS. Este agrupamento inscreveu resoluções próprias/independentes sobre conjuntura, onde defenderam a participação no fórum nacional de luta contra a reforma da previdência que tem reunião marcada para 27 de janeiro; e sobre balanço político da CNTE, em que foram muito duros denunciando a falta de autonomia e a subordinação da direção da CNTE ao governo Lula- Dilma. Também foi a companheira Rejane que interviu contra o golpe da mudança do regimento eleitoral, no início do congresso, tendo grande apelo já que representava um setor que se mantém reivindicando cutista e ela mesma é vice-presidente da CUT-RS.
8. Com isso criou-se uma nova e importante situação política no congresso que possibilitou a unidade dos insatisfeitos e a construção de um documento unificado denunciando o golpe da Articulação e seu bloco à democracia e pluralidade na CNTE. Juntos CSD-CPERS e Espírito Santo com a CSP-Conlutas, Intersindical, Unidos pra Lutar/ TLS, Unidade Classista, ASS, Corrente Proletária na Educação (T-POR), Sindicato é Prá Lutar, Independentes distribuímos a todos os delegados o manifesto entitulado “MAIORIA DA CNTE GOLPEIA DEMOCRACIA”( em anexo). Apesar desse importante movimento unificado, ficamos aquém da tarefa de impor uma derrota à Articulação não se apostando na política de unificar as oposições numa única chapa .
9. A atuação da CSD- CPERS foi a demonstração de que a política é dinâmica e produz movimentações, deslocamentos, mudanças. A CSD-RS chegou ao congresso com 27 delegados do CPERS, número insuficiente para compor uma chapa, como era sua decisão prévia de manter-se independentes. No segundo dia somavam 42, com a adesão de delegados do Espírito Santo (Artur e outros). Terminaram o congresso com chapa própria que obteve a adesão de 80 delegados. Este movimento foi a novidade do congresso em termos de movimentação das forças políticas. E muito importante como sinalizador de que há possibilidades de rupturas futuras.

10. Não pode passar em branco que a Articulação de Esquerda (AE), que sempre esteve bastante crítica em gestões anteriores, mesmo tendo defendido com a Intersindical- CSP Conlutas a mudança do estatuto para inclusão da proporcionalidade direta e qualificada, tenha avalizado o golpe, tenha “comido pela mão da Articulação”, preservando seus cargos sem ajudar na oposição à Articulação.
11. As forças no Congresso
Como atuou a esquerda :
Intersindical, CSP-Conlutas, Unidos pra Lutar e TLS, Unidade Classista, ASS, Corrente Proletária na Educação (T-POR), Sindicato é Prá Lutar, Independentes?
Devido ao golpe antidemocrático da Direção da CNTE, houve uma atuação unificada em praticamente todas as resoluções e na formação da chapa 10, que obteve 318 votos, ou seja, 16,7% ( 17% arredondando) dos votos válidos, quando as estimativas indicavam no máximo 14%.
Nossos números - Chapa 10
CSP Conlutas - 160 delegados
Intersindical – 93 delegados
Unidos pra Lutar e TLS – 35 delegados
ASS- PCB ( Intersindical) – 9 delegados T-POR – 8 delegados e .... outros
12. As intervenções desse campo de esquerda, com raras exceções, foram muito boas porque mesmo denunciando a política do setor hegemônico e caracterizando o governo Dilma-Lula como de conciliação de classes, dialogavam com a base deles. Nossos delegados saíram satisfeitos com as intervenções, com resultado das votações para direção da CNTE e com o espetacular deslocamento da CSD. O sentimento na nossa base foi de vitória, enquanto se constatava constrangimento e reflexão em parte da base do campo da Articulação.
Resultado final : Votos válidos - 1.902
Chapa 10 - 318 votos ( 16,7%)
CSP-Conlutas, Intersindical, Unidos pra Lutar/ TLS, Unidade Classista, ASS, Corrente Proletária na Educação (T-POR), Sindicato é Prá Lutar, Independentes
Chapa 20 - 80 votos (4,2%)
CSD-CPERS, Arthur Viana e Jane Lindolfo (Sindiupes/ES), Independentes.
Chapa 30 - 1.504 votos (79,07%)
Articulação, CSD ( maioria), Articulação de Esquerda (AE), O Trabalho/ CUT e CTB

13. Conclusões e Lições do Congresso da CNTE
1. 20% do movimento nacional dos educadores da Educação Básica ficaram sem representação na direção da maior organização da sua categoria.
2. Apesar da atuação qualificada da nossa chapa 10 e do resultado eleitoral positivo que obtivemos, em tamanho, se não crescemos desde o congresso de 2008, também não diminuímos, porque neste congresso não contamos com a delegação do SEPE-RJ, dirigido majoritariamente pela esquerda ( Intersindical-Conlutas), que se desfiliou da CNTE.
3. A Articulação apostou que não iríamos nos unificar e acertou. Se era estratégico para a Articulação e seus aliados excluir da Direção da CNTE qualquer posição política divergente ou de oposição, para nós deveria ser estratégico manter a representação da Intersindical, da CSP-Conlutas. Se para a Articulação é estratégica uma entidade alinhada ao governo, para nós é estratégico independência para lutar. Se para a Articulação é estratégico não unificar as lutas dos estados, para a esquerda é. Se para eles não é estratégica uma forte luta nacional para garantir o pagamento do piso salarial, porque o governo precisa seguir com a política de ajuste fiscal, para nós deveria ser.
4. Hoje é possível compreender com mais clareza que o fracionamento da esquerda favorece a Articulação e o bloco hegemônico na CNTE. Que a dispersão só favorece os governos Dilma e os estaduais que aplicam a política de ajustes e de ataques aos direitos dos trabalhadores.
5. Faltou-nos habilidade para derrotar a Articulação. Não percebemos em tempo que para impedir a vitória da Articulação e seu campo era necessário estabelecer uma negociação com a chapa da CSD-CPERS apara unificar com a Intersindical/CSP-Conlutas/Unidos-TLS e outros. Na medida em que não tivemos essa política, ficamos na prática numa política demarcatória, embora não raivosa. Assim, mais uma vez a dispersão garantiu a vitória da Articulação, excluindo a representação de importante parcela dos educadores brasileiros da maior entidade nacional (mais de 1 milhão de filiados nos sindicatos de base).
Desafios imediatos:
6. Nosso saldo foi a discussão da necessidade da construção de um espaço nacional dos setores em oposição à direção da CNTE para organizar ações concretas em defesa da Educação Pública. Concretamente, o debate sobre Piso Salarial e o PNE abrem a possibilidade de ações unificadas mesmo sem o aval da direção da CNTE. Como são temas de interesse dos educadores de todo o país, temos essa tarefa para o próximo período: articular ações concretas de mobilização nos estados de forma que tomem peso e dimensão nacional.
7. Para além de participar da Marcha aprovada pela direção da CNTE, estamos desafiados a articular essas ações unificadas, a partir de sindicatos dirigidos pelos setores de oposição interna e externa como RS, RJ, PA, ES também PR e SP(onde a oposição tem 40% da direção). Podemos iniciar pela imediata realização de um seminário nacional de planejamento de mobilizações de pressão pela aplicação do Piso e pelos 10% do PIB no PNE, convidando também os sindicatos do bloco da direção da CNTE.

O Egipto à beira do sangue

por Thierry Meyssan [*]
. De há uma semana a esta parte os meios de comunicação ocidentais fazem-se eco das manifestações e da repressão que agitam as grandes cidades egípcias. Traçam um paralelo com as que levaram ao derrube de Zine el-Abidine Ben Ali na Tunísia e evocam um vendaval de revolta no mundo árabe. Segundo eles, este movimento podia estender-se à Líbia e à Síria. Devia favorecer os democratas laicos e não os islamitas, prosseguem eles, porque a influência dos religiosos foi sobrestimada pela administração Bush e o "regime dos molllah" no Irão é um dissuasor. Assim se concretizariam os votos de Barack Obama na Universidade do Cairo:   a democracia reinará no Próximo Oriente.

Esta análise é falsa segundo todas as perspectivas.
  • Primeiro, as manifestações começaram no Egipto já há alguns meses. Os meios de comunicação ocidentais não lhes prestaram atenção porque pensavam que elas não levariam a nada. Os egípcios não foram contaminados pelos tunisinos, mas foram os tunisinos que abriram os olhos dos ocidentais sobre o que se passa naquela região.

  • Em segundo lugar, os tunisinos revoltaram-se contra um governo e uma administração corruptos que foram espoliando gradualmente toda a sociedade, privando de qualquer esperança classes sociais cada vez mais numerosas. A revolta egípcia não é dirigida contra esse modo de exploração, mas contra um governo e uma administração que estão tão ocupados em servir os interesses estrangeiros que já não têm energia para satisfazer as necessidades básicas da sua população. No decurso dos últimos anos, o Egipto assistiu a inúmeros motins, quer contra a colaboração com o sionismo, quer provocados pela fome. Estes dois assuntos estão intimamente ligados. Os manifestantes evocam indistintamente os acordos de Camp David, o bloqueio a Gaza, os direitos do Egipto às águas do Nilo, a partilha do Sudão, a crise de habitação, o desemprego, a injustiça e a pobreza.

    Além disso, a Tunísia era administrada por um regime policial, enquanto que o Egipto é-o por um regime militar. Digo aqui 'administrado' – e não 'governado' – porque em ambos os casos, trata-se de Estados sob uma tutela pós-colonialista, privados de política estrangeira e de defesa independente.

    Segue-se que na Tunísia, o exército pôde interpor-se entre o Povo e a polícia do ditador, enquanto que no Egipto, o problema será resolvido pelo fuzil automático entre militares.

  • Em terceiro lugar, se o que se passa na Tunísia e no Egipto serve de encorajamento para todos os povos oprimidos, estes últimos não são os que os meios de comunicação ocidentais imaginam. Para os jornalistas, os maus são os governos que contestam – ou fingem contestar – a política ocidental. Enquanto que para os povos, os tiranos são os que os exploram e humilham. É por isso que penso que não iremos assistir às mesmas revoltas em Damasco. O governo de Bachar el-Assad é o orgulho dos sírios: alinhou do lado da Resistência e soube preservar os seus interesses nacionais sem nunca ceder às pressões. Acima de tudo, soube proteger o país do destino que Washington lhe reservava: ou o caos à moda iraquiana, ou o despotismo religioso à moda saudita. Claro que é muito contestado em muitos aspectos da sua gestão, mas desenvolve uma burguesia e os procedimentos democráticos que a acompanham. Pelo contrário, estados como a Jordânia e o Iémen são instáveis no que se refere ao mundo árabe, e o contágio também pode atingir a África negra, por exemplo o Senegal.

  • Em quarto lugar, os meios de comunicação ocidentais descobrem tarde demais que o perigo islamista é um espantalho. No entanto é preciso reconhecer que foi activado pelos Estados Unidos de Clinton e pela França de Miterrand nos anos 90 na Argélia, e depois foi exagerado pela administração Bush na sequência dos atentados de 11 de Setembro, e alimentado pelos governos neo-conservadores europeus de Blair, Merkel e Sarkozy.

    Também é preciso reconhecer que não há nada em comum entre o wahhabismo à saudita e a Revolução islâmica de Rouhollah Khomeiny. Qualificá-los a ambos de 'islamitas' não só é absurdo como é impedir que se compreenda o que se está a passar.

    Os Seoud financiaram, de acordo com os Estados Unidos, grupos muçulmanos sectários que defendem o regresso à imagem que têm da sociedade do século VII, no tempo do profeta Maomé. Já não têm mais impacto no mundo árabe do que têm os amish nos Estados Unidos, com as suas carroças puxadas a cavalos.

    A Revolução de Khomeiny não pretende instaurar uma sociedade religiosa perfeita, mas derrubar o sistema de dominação mundial. Afirma que a acção política é um meio para o homem se sacrificar e se transcender e, por conseguinte, que é possível encontrar no Islão a energia necessária à mudança.

    Os povos do Próximo Oriente não querem substituir as ditaduras policiais ou militares que os esmagam por ditaduras religiosas. Não há perigo islamita. Simultaneamente, o ideal revolucionário islâmico que já produziu o Hezbollah na comunidade xiita libanesa, influencia agora o Hamas na comunidade sunita palestina. Pode de facto desempenhar um papel nos movimentos em curso, e já o desempenha no Egipto.

  • Em quinto lugar, por muito que desagrade a certos observadores, apesar de assistirmos a um regresso da questão social, este movimento não pode ser reduzido a uma simples luta de classes. É verdade que as classes dominantes receiam as revoluções populares, mas as coisas são mais complicadas. Assim, sem surpresas, o rei Abdallah da Arábia Saudita telefonou ao presidente Obama para lhe pedir que faça parar a desordem no Egipto e proteja os governos existentes na região, prioritariamente o seu. Mas este mesmo rei Abdallah acaba de favorecer uma mudança de regime no Líbano pela via democrática. Abandonou o multimilionário líbano-saudita Saad Hariri e apoiou a coligação de 8-Março, Hezbollah incluído, para o substituir como primeiro-ministro por um outro multimilionário líbano-saudita Najib Mikati. Hariri tinha sido eleito por parlamentares que representavam 45% do eleitorado, enquanto que Mikati acaba de ser eleito por parlamentares representando 70% do eleitorado. Hariri estava enfeudado a Paris e a Washingtom, Mikati anuncia uma política de apoio à Resistência nacional. A questão da luta contra o projecto sionista é actualmente superdeterminante em relação aos interesses de classe. Além disso, mais do que a distribuição da riqueza, os manifestantes põem em causa o sistema capitalista pseudoliberal imposto pelos sionistas.

  • Em sexto lugar, para voltar ao caso egípcio, os meios de comunicação ocidentais lançaram-se em volta de Mohamed ElBaradei que designaram por líder da oposição. É ridículo. M. ElBaradei é uma personalidade com uma reputação simpática na Europa, porque resistiu algum tempo à administração Bush, sem se lhe opor totalmente. Personifica pois a boa consciência europeia face ao Iraque, que se opunha à guerra e acabou por apoiar a ocupação. No entanto, objectivamente, M. ElBaradei é a água morna que recebeu o Prémio Nobel da Paz para que Hans Blix não o recebesse. É sobretudo uma personalidade sem qualquer eco no seu próprio país. Não existe politicamente a não ser porque a Irmandade Muçulmana o escolheu para seu porta-voz nos meios de comunicação ocidental.

    Os Estados Unidos fabricaram adversários mais representativos, como Ayman Nour, que não tarda muito vai ser tirado do chapéu, apesar de as suas posições a favor do pseudo-liberalismo económico o desqualificarem perante a crise social que o país atravessa.

    Como quer que seja, na realidade, só existem duas organizações de massas, implantadas na população, que há muito se opõem à política actual: a Irmandade Muçulmana, por um lado, e a Igreja cristã copta, por outro lado, (apesar de S.B. Chenoudda III distinguir a política sionista de Mubarak que ele combate, do rais [1] com que se entende). Este ponto escapou aos meios de comunicação ocidentais porque fizeram crer há pouco tempo ao público que os coptas estavam a ser perseguidos pelos muçulmanos quando estavam a ser perseguidos pela ditadura de Mubarak.

    Mubarak e Suleiman. Aqui torna-se útil um parêntesis: Hosni Mubarak acaba de nomear Omar Suleiman para vice-presidente. É um gesto claro que pretende tornar mais difícil a sua eventual eliminação física pelos Estados Unidos. Mubarak chegou a presidente porque tinha sido designado vice-presidente e os Estados Unidos mandaram assassinar o presidente Anuar el-Sadate pelo grupo de Ayman al-Zawahri. Portanto, sempre se recusou até agora a arranjar um vice-presidente com medo de ser assassinado por sua vez. Ao designar o general Suleiman, escolheu um dos seus cúmplices com quem manchou as mãos no sangue de Sadate. A partir de agora, para conquistar o poder, não bastará matar apenas o presidente, será preciso executar também o seu vice-presidente. Ora, Omar Suuleiman é o principal artífice da colaboração com Israel. Washington e Londres vão pois protegê-lo como às meninas dos seus olhos.

    Além do mais, Suleiman pode apoiar-se em Tsahal [2] contra a Casa Branca. Já começou por chamar atiradores de elite e material israelwnses que estão prontos para matar os cabecilhas da multidão.

    O general-presidente Hosni Mubarak e o seu general-vice-presidente Omar Suleiman apareceram na televisão com os seus generais conselheiros para dar a entender que o exército tem o poder e vai mantê-lo.

  • Em sétimo lugar, a situação actual revela as contradições da administração americana. Barack Obama estendeu a mão aos muçulmanos e apelou à democracia aquando do seu discurso na universidade do Cairo. No entanto, agora, vai utilizar todo o seu empenho para impedir eleições democráticas no Egipto. Se pode aceitar um governo legítimo na Tunísia, não pode fazê-lo no Egipto. As eleições beneficiariam a Irmandade Muçulmana e os coptas. Escolheriam um governo que abriria a fronteira de Gaza e libertaria o milhão de pessoas que lá estão encerradas. Os palestinos, apoiados pelos seus vizinhos, o Líbano, a Síria e o Egipto, derrubariam o jugo sionista.

    É preciso assinalar aqui que, no decurso dos dois últimos anos, estrategas israelenses conceberam um golpe retorcido. Considerando que o Egipto é uma bomba social, que a revolução é inevitável e está iminente, conceberam favorecer um golpe de estado militar em benefício de um oficial ambicioso e incompetente. Este lançaria uma guerra contra Israel e seria vencido. Tel-Aviv poderia assim reencontrar o seu prestígio militar e recuperar o monte Sinai e as suas riquezas naturais. Sabe-se que Washington se opôs decididamente a este cenário demasiado difícil de controlar.

    O que é certo é que o Império anglo-saxão se mantém agarrado aos princípios que fixou em 1945: é favorável às democracias que fazem uma 'boa escolha' (a do servilismo), e opõe-se aos povos que fazem a 'má escolha' (a da independência).

    Por conseguinte, se acharem necessário, Washington e Londres apoiarão sem reservas um banho de sangue no Egipto, desde que o militar que levar a melhor se comprometa a perpetuar o statu quo internacional.

NT
[1] Rais: título usado pelos dirigentes de estados muçulmanos na Índia, no Médio Oriente e na Ásia do Sul.
[2] Tsahal: nome dado às forças armadas de Israel.

  • Imagens do Egipto em http://totallycoolpix.com/2011/01/the-egypt-protests/


  • [*] Analista político francês, presidente-fundador do Réseau Voltaire da conferência Axis for Peace . Publica toda semana crónicas de política estrangeira na imprensa árabe e russa. Última obra publicada: L'Effroyable imposture 2 , éd. JP Bertand (2007).

    O original encontra-se em http://www.voltairenet.org/article168311.html . . Tradução de Margarida Ferreira.


    Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
    03/Fev/11

    A múmia do Egito e Cuba

    Marcus Petrônio

    Quando pensamos no Egito, nossos olhos voltam à antiguidade e a formação das primeiras civilizações. Às margens do Nilo, uma sociedade que dominou técnicas agrículas, uma matemática sofisticada e uma medicina um pouco menos mística, despontava como uma sociedade a frente de sua época.

    O Egito é, para minha surpresa, mais um dos quintais do Império Americano. Tio Sam sustenta uma ditadura que tem 30 anos de implacável combate a qualquer insurgente ou descontente como regime. Interessante é que o atual governo, que tenta, cambaleante, sobreviver feito uma múmia-zumbi,diante de uma poplação que só quer uma coisa: democracia. Esse governo sobrevive às custas dos gvernos americanos. Os Senhores da Guerra enviam em torno de um bilhão de doláres para manter o governo antidemocrático no Egito.

    Enquanto isso, na esquina dos USA, Cuba vive um bloqueio econômico imposto pela democracia americana, que, ao longo de décadas, têm levado a Ilha de Fidel à categoria de país dependente de nãções que deixaram de acreditar na frase: " o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil, Venezuela, Argentina blá-blá-blá.

    Em Cuba houve uma revolução popupar, que tinha o intuito de derrubar Fulgêncio Baptista, amigo e serviçal do governo americano. O povo queria uma nova forma de governança, e mesmo com toda sabotagem americana, Cuba continua em processo revolcionário, sem receber dimdim dos vizinhos que só aceitam ouvir yes.
    Cuba e o Egito são países bem distintos. Para os americanos é bom que Cuba seja um balneáro ou um prostíbulo como acontecia ante de Fidel, Che e companhia derrubassem um governo tirano capitaneado pelos Estados Unidos; já o Egito tem uma posição estratégica: de um lado Israel, do outro os povos islâmicos e chegamos a matemática do mal: zero grana para "ditadura" cubana. 1 Bi de grana pra ditadura egípicia. Americano é tão bonzinho.

    Viva a revolução no Egito!

    A farra com o dinheiro do povo ou a podridão das instituições brasileiras

      Waldemar Rossi no Correio da Cidadania   
     
    Os acontecimentos políticos do início deste ano de 2011 não poderiam ser mais reveladores do que vem ocorrendo no Brasil durante todos esses anos de vida republicana: um país marcado pela corrupção e podridão das suas instituições e descompromisso dos governantes com a vida do povo.
     
    A começar pelo aumento acintoso, descabido e criminoso dos salários de deputados, senadores, ministros, presidente, governadores, vereadores. Um assalto aos cofres públicos! Assalto amparado pelo Poder Judiciário porque seus ministros se locupletam com tal medida, ajudando a afanar o povo. Ante tal disparate, impossível ser mais contundente do que a atitude de um bispo (cujo teor publicamos a seguir), embora tal notícia já tenha percorrido o país.
     
    É bom lembrar:
     
    "Bispo recusa comenda e impõe constrangimento ao Senado Federal"
     
    "Num plenário esvaziado, o bispo cearense de Limoeiro do Norte, Dom Manuel Edmilson Cruz, impôs ontem um espetacular constrangimento ao Senado Federal.
     
    Dom Manuel chegou a receber a placa de referência da Comenda dos Direitos Humanos Dom Hélder Câmara das mãos do senador Inácio Arruda (PCdoB/CE). Mas, ao discursar, ele recusou a homenagem em protesto ao reajuste de 61,8% concedido pelos próprios deputados e senadores aos seus salários.                                   
     
    "A comenda hoje outorgada não representa a pessoa do cearense maior que foi Dom Hélder Câmara. Desfigura-a, porém. De seguro, sem ressentimentos e agindo por amor e com respeito a todos os senhores e senhoras, pelos quais oro todos os dias, só me resta uma atitude: recusá-la’." (*)
     
    É preciso dizer mais?
     
    Agora nos chega outra notícia reveladora do compromisso prioritário do governo com os interesses do capital predador da natureza: o projeto para construção de dezenas de usinas nucelares no país. Outra vez me utilizo de um artigo - do Roberto Malvezzi - como ilustrador:
     
    As Nucleares no São Francisco
    Roberto Malvezzi (Gogó)
     
    O governo Lula, agora Dilma, realmente decidiu arrancar dos porões da ditadura militar suas principais obras. Além da transposição do São Francisco, barragens e outras grandes obras de infra-estrutura, agora ressuscita o desenvolvimento da energia nuclear no Brasil.
     
    Combatida no mundo inteiro, recuou nos países da Europa, sobretudo depois do acidente de Chernobyl, onde a nuvem radioativa, além de causar uma tragédia na região, ameaçou pairar sobre a Europa.
     
    No Brasil tivemos a dimensão do que pode ser com o simples fato de uma família de recicladores se encantar com um objeto luminoso em Goiânia, contaminando a si mesma e a região ao seu redor.
     
    Temos ainda a experiência desastrosa das duas usinas atômicas de Angra dos Reis. Com muito custo, pouca utilização e ameaças constantes pela instabilidade da própria obra de engenharia, as usinas já serão desmontadas por esgotarem o prazo de validade de aproximadamente 40 anos.
     
    Os rejeitos, fruto do "descomissionamento" – desligamento, desmontagem e armazenamento -, continuarão radiativos por aproximadamente mil anos.
     
    As águas subterrâneas de Caetité, Bahia, onde estão nossas jazidas de urânio, estão contaminadas por radioatividade.
     
    Agora o governo fala em construir pelo menos 50 usinas atômicas no Brasil, claro, começando pelo rio São Francisco. Certamente, nosso Velho Chico é mesmo a lixeira do Brasil.
     
    O lugar ideal seria Belém do São Francisco, divisa do Sub-médio São Francisco com o Baixo, próximo às antigas cachoeiras de Paulo Afonso. O argumento é que ali vivem poucas pessoas (sic!), que já existe uma rede de distribuição de energia instalada e, claro, tem as águas do São Francisco. Além do mais, está próximo do Raso da Catarina, uma região pouco habitada, onde só Lampião sabia viver, considerada ideal como depósito de rejeitos.
     
    Particularmente sou favorável a construção de nucleares, desde que a primeira seja feita na Praça da Sé, São Paulo. A segunda na praia de Ipanema, Rio de Janeiro. E a terceira, evidentemente, na Praça dos Três Poderes, Brasília. Se ali for seguro, então é seguro para o resto do Brasil.
     
    Um final de artigo um tanto quanto irônico, mas contundente.
     
    É doloroso ver essa cambada vir a público fazendo de conta que defende os interesses dos trabalhadores, como no caso do bate-boca em torno de alguns pingados reais a serem acrescidos ao mísero salário mínimo. Salário mínimo que deveria garantir a sobrevivência de milhões de brasileiros. Brasileiros que trabalharam 35, 40 e até 50 anos construindo as riquezas deste país.
     
    Aos que produzem riquezas e constroem o país, migalhas. Aos sanguessugas da nação, milhões de reais que são retirados do orçamento para engordar seus salários astronômicos ou para garantir muita grana para empreiteiras ávidas de lucro fácil e, por cima, colocando em risco a vida do povo.
     
    Se considerarmos as iniciativas do Legislativo, o apoio do Judiciário e os planos do Executivo podemos afirmar que realmente as instituições estão apodrecidas.
     
    Diante dessa situação de degradação ficam algumas reflexões: será que o movimento social vai majoritariamente permanecer na expectativa dos rumos do governo Dilma com seus braços cruzados, como se nada disso tivesse a ver com a vida do povo? Será que iremos conviver mais oito anos na passividade, na cumplicidade das centrais sindicais e de outros movimentos, como aconteceu durante todo o governo Lula?
     
    A saída está nas mãos do povo. Mas para isto é necessário que cada cidadão e cidadã consciente bote a boca no trombone, denuncie, explique, convoque à participação ao lado dos setores do movimento social que permanecem fiéis às lutas pelos direitos do povo.
     
    (*) Grifo meu
     
    Waldemar Rossi é metalúrgico aposentado e coordenador da Pastoral Operária da Arquidiocese de São Paulo.

    A insurreição no Egito e suas implicações para a Palestina




    Se o regime de Mubarak cair, Israel e os Estados Unidos perderão um grande aliado na questão da palestina, e a Autoridade Palestina de Abbas perderá um de seus principais aliados contra o Hamas. Já desacreditada pela amplitude de sua colaboração e capitulação exibidas nos Palestine Papers, a Autoridade Palestina sairá ainda mais enfraquecida. Sem qualquer “processo de paz” com credibilidade para justificar sua “coordenação de segurança” ininterrupta com Israel, ou mesmo a sua própria existência, a implosão da AP pode começar. Derrubada de regimes na Tunísia e no Egito podem estimular palestinos a organizar protestos populares massivos. O artigo é de Ali Abunimah encontra-se no CARTA MAIOR.

    O mundo árabe está em pleno tremor de terra político e o solo ainda não parou de tremer. Fazer previsões quando os acontecimentos são tão voláteis é arriscado, mas não há dúvida alguma de que o levante no Egito –mesmo se terminar – terá um espetacular impacto na região e na Palestina. Se o regime Mubarak cai, e se é substituído por um governo com ligações menos estreitas com Israel e com os Estados Unidos, Israel será o grande perdedor. Como comentou Aluf Benn no jornal israelense Há’aretz, “o declínio do poder do governo do presidente egípcio Hosni Mubarak deixa Israel num estado de isolamento estratégico. Sem Mubarak, Israel não tem praticamente mais amigos no Oriente Médio; no ano passado, Israel viu sua relação com a Turquia afundar”[1]. Com efeito, observa Benn, “Restam a Israel dois aliados estratégicos, na região: a Jordânia e a Autoridade Palestina”. Mas o que Benn não diz é que esses dois “aliados” tampouco serão preservados.

    Eu estava em Doha nessas últimas semanas para examinar os Palestine Papers divulgados pela Al Jazeera. Eles sublinham até que ponto a divisão entre a Autoridade Palestina de Ramallah, sustentada pelos Estados Unidos, e sua facção Fatah, de um lado e o Hamas na Faixa de Gaza, por outro, foram uma decisão política das potências regionais: os Estados Unidos, o Egito e Israel [2]. Uma política que implicasse a imposição de um estado de sítio estrito à Faixa de Gaza pelo Egito.

    Se o regime de Mubarak cai, os Estados Unidos perdem um grande aliado na questão da palestina, e a Autoridade Palestina de Abbas perderá um de seus principais aliados contra o Hamas.

    Já desacreditada pela amplitude de sua colaboração e capitulação exibidas nos Palestine Papers, a AP será ainda mais enfraquecida. Sem qualquer “processo de paz” com credibilidade para justificar sua “coordenação de segurança” ininterrupta com Israel, ou mesmo a sua própria existência, a implosão da AP bem que poderia começar. Inclusive a sustentação dos Estados Unidos e da União Europeia para a polícia de estado em gestação da AP poderia não ser mais sustentável politicamente.

    O Hamas poderá ser o beneficiário imediato, mas não necessariamente no longo prazo. Pela primeira vez em muitos anos vemos importantes movimentos de massa que, se incluem muçulmanos, não são necessariamente dominados ou controlados por eles.

    Há também com efeito um espelho para os palestinos: a permanência dos regimes tunisiano e egípcio estava fundada na percepção de que eram fortes, assim como o seria a sua capacidade de aterrorizar uma parte de seu povo e de cooptar outra. A facilidade relativa com a qual os tunisianos expulsaram seu ditador e a rapidez com que o Egito e talvez o Iêmen parecem seguir o mesmo caminho, poderão bem enviar aos Palestinos a mensagem de que as forças de segurança de Israel ou da AP não são assim tão invencíveis como parecem.

    Com efeito, a “dissuasão” de Israel já sofreu um golpe importante na sequência de seu fracasso em vencer o Hezbollah no Líbano, em 2006 e o Hamas em Gaza, durante os ataques do inverno 2008-2009.

    Quanto à AP de Abbas, jamais o dinheiro dos doadores internacionais foi gasto pelas forças de segurança com resultados tão ruins. O segredo de polichinelo é que, sem a ocupação da Cisjordânia e de Gaza sitiada pelo exército israelense (com a ajuda do regime de Mubarak), Abbas e sua guarda pretoriana teriam caído há muito tempo. Erguido por um processo de paz abusivo, os EUA, a União Europeia e Israel, com a sustentação de regimes árabes em decrepitude, agora ameaçados pelo seu próprio povo, construíram um castelo de cartas palestinas que não deve resistir por muito tempo.

    Desta vez a mensagem é talvez que a resposta não é mais uma resistência militar, mas antes a concessão do poder ao povo e uma ênfase maior nos protestos populares.

    Hoje, os palestinos formam ao menos metade da população na Palestina histórica – Israel, Cisjordânia e Faixa de Gaza. Se eles se sublevarem coletivamente para exigir direitos iguais, o que Israel poderá fazer para detê-los? A violência brutal e a força de Israel não interditaram as manifestações regulares na cidades de Bil’in e Beit Ommar, da Cisjordânia.

    Israel deve acreditar que se responder brutalmente a todo levante de amplitude seus apoios internacionais já precários poderiam começar a evaporar tão rápido como os de Mubarak, cujo regime, parece, sofreu uma rápida “deslegitimação”. Os dirigentes israelenses tem indicado claramente que uma implosão dessa sustentação internacional lhes ameaça mais que uma ameaça militar externa. Com um poder retomado pelos povos, os governos árabes poderiam não permanecer mais silenciosos e cúmplices como estiveram durante os anos de opressão israelense sobre os palestinos.

    Quanto à Jordânia, a mudança já está em curso. Eu fui testemunha de uma manifestação de milhares de pessoas no centro da cidade de Amã, ontem (29/01/2011). Esses protestos bem organizados e pacíficos, chamados por uma coalizão de partidos de oposição islâmicos e de esquerda ganharam agora, depois de semanas, todas as cidades do país. Os manifestantes exigem a demissão do primeiro ministro Salir al-Rifai, a dissolução do parlamento eleito (numa eleição considerada largamente como viciada, em novembro), novas eleições, baseadas em leis democráticas, justiça econômica, o fim da corrupção e a anulação do tratado de paz com Israel. E houve manifestações fortes em solidariedade à população egípcia.

    Nenhum dos partidos organizadores da manifestação disse que as revoluções do tipo das que ocorreram na Tunísia e está em curso no Egito não ocorrem na Jordânia, e não há razão para crer que esses desenvolvimento sejam iminentes. Mas os slogans escutados durante os protestos são sem precedentes na sua audácia e no seu desafio direito à autoridade. Todo governo reativo às vozes de seu povo deverá rever suas relações com Israel e com os Estados Unidos.

    Uma só coisa é certa, hoje: o que quer que ocorra na região, a voz do povo não poderá mais ser ignorada.

    (*) Ali Abunimah é co-fundador da Intifada Eletrônica, autor de “Um País: uma proposta audaciosa para terminar o impasse israelo-palestino” e contribuiu com o “Informe Goldstone: o legado do marco na investigação do conflito de Gaza” (Nation Books)

    [1] "Without Egypt, Israel will be left with no friends in Mideast," Ha'aretz, 29 janvier 2011 (en anglais) [Sem o Egito, Israel seria deixada sem amigos no Oriente Médio]

    [2] "The Palestine Papers and the "Gaza coup"," par Ali Abunimah, The Electronic Intifada, 27 janvier 2011 (en anglais) [Os Documentos Palestinos e o golpe em Gaza]

    Tradução: Katarina Peixoto

    Outro Oriente Médio é possível?



    O Fórum Social Mundial 2011 começa dia 6 de fevereiro em Dakar, Senegal. O encontro ganhou uma nova agenda com a onda de protestos populares que já atingiu a Tunísia, o Egito, o Iêmen e a Jordânia. O mais significativo de todos, sem dúvida, é o Egito, em função do que o país representa em termos geopolíticos no Oriente Médio. Egito e Arábia Saudita são dois pilares centrais da aliança EUA-Israel na região. Uma mudança de regime político em um desses dois países pode significar um terremoto político. Washington, Tel Aviv e alguns outros governos árabes sabem disso, obviamente, e estão com as barbas de molho. Na noite desta terça, o presidente dos EUA, Barack Obama, cobrava de seu até aqui aliado egípcio, Hosni Mubarack, o “início imediato da transição” política no país. Vão-se os anéis para assegurar a permanência dos dedos. A velha história. E os EUA temem o pior. Olham para o Egito, a Árabia Saudita, a Jordânia e a Palestina com indisfarçável pânico.
    Quem ouve a voz dos milhões de egípcios que perderam o medo da repressão e foram para as ruas sabe que o pior é a manutenção do atual regime, financiado e armado pelos Estados Unidos há décadas. Enérgico na denúncia e na cobrança por democracia quando se trata de países como o Irã – ou na “implantação da democracia” a ferro e fogo, no caso do Iraque -, os EUA silenciam quando se trata das suas ditaduras amigas no Oriente Médio, especialmente no caso do Egito e da Arábia Saudita. Ou silenciavam, ao menos, já que agora foram obrigados a se manifestar.
    Desta vez, os malabarismos linguísticos e semânticos não conseguem esconder a natureza do problema. E a natureza do problema no Egito não reside no fundamentalismo islâmico ou nas aspirações sociais e políticas da Irmandade Muçulmana. O problema reside em um regime autoritário e corrupto, apoiado e sustentado pelos EUA, que governa para um pequeno grupo, deixando milhões de pessoas vivendo na pobreza (cerca de 20% da população vive abaixo da linha da pobreza).
    A aplicação da consigna do FSM aos problemas dessa região coloca a seguinte questão: “Outro Oriente Médio é possível?”. O que está acontecendo no Egito mostra que o castelo das autocracias apoiadas e sustentadas pelos EUA é menos sólido do que parecia. Milhões de jovens, homens e mulheres, estão nas ruas dizendo que é possível, sim. E necessário. Basta que os líderes ocidentais supostamente defensores da democracia deixem de financiar aqueles que não querem que os povos destes países escolham o seu destino. Deixem a democracia entrar no Oriente Médio. Não é essa a promessa universal do Ocidente? E seja o que Deus quiser. Ou o que Alá quiser!
    O povo egípcio não está rua por questões religiosas. Está na rua porque, entre outras coisas, decidiu cobrar as promessas civilizatórias do Ocidente: democracia, liberdade, prosperidade, justiça social. As consequências desses protestos são incertas. Neste exato momento, a turma dos anéis está em campo para tentar salvar os dedos do modelo atual. Mas uma coisa parece definitiva: o povo egípcio perdeu o medo e decidiu mudar os rumos do país. Essa é uma força muito difícil de ser detida e costuma ter um impacto profundo na vida das nações.

    segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

    O que está em jogo no FSM de 2011


     
    O Fórum Social Mundial de Dakar está organizado em três grandes temas: a conjuntura global e a crise, a situação dos movimentos sociais e cívicos e o processo do Fórum Social Mundial. A ideia é debater o caráter incompleto da descolonização e devir de uma nova fase de descolonização; o alcance político das mobilizações sociais; e a expressão política dos movimentos sociais e de sua relação com os governos.
    Gustave Massiah e Nathalie Péré-Marzano *

    A situação global está marcada pelo aprofundamento da crise estrutural da globalização capitalista. As quatro dimensões da crise (social, geopolítica, ambiental e ideológica) serão abordadas em Dakar. A crise social será enfrentada em particular sob os pontos de vista da desigualdade, da pobreza e da discriminação, enquanto a crise geopolítica será discutida em particular da perspectiva da guerra e do conflito, do acesso às matérias primas e da emergência de novas potências. A crise ambiental será debatida, em particular, sob a perspectiva da mudança climática, enquanto a crise ideológica será discutida da perspectiva de ideologias seguras, da questão das liberdades e da democracia e da cultura, presentes desde o Fórum Social de Belém, que serão analisadas em profundidade.
    A evolução da crise lança luz sobre uma situação contraditória. Análises do movimento altermundista estão sendo aceitas, reconhecidas e contribuem para a crise do neoliberalismo. As propostas produzidas pelos movimentos são aceitas como base, por exemplo, para o monitoramento dos setores financeiro e bancário, para a eliminação dos paraísos fiscais, de tributos internacionais, para o conceito de segurança alimentar, até então considerados heresias, estão nas agendas do G8 e do G20. E mesmo assim ainda não foram traduzidos em políticas viáveis. Essas propostas tem sido acolhidas, mas não se efetivam por causa da arrogância das classes dominantes confiantes no seu poder.
    A validação das agendas resulta na transformação das palavras de ordem dos movimentos em lugares comuns. É preciso refinar as perspectivas e conceder mais relevância ao debate estratégico, à articulação entre a resistência de curto prazo e a de médio prazo e à mudança em curso sob a superfície dos acontecimentos. A situação lança uma luz sobre a natureza dual da crise, tensionada entre a crise do neoliberalismo, que é a fase da globalização capitalista e a crise da própria globalização capitalista; uma crise do sistema que pode ser analisada como uma crise de civilização, a crise da civilização ocidental, estabelecida desde princípios do século XV.
    Nesse contexto, alianças estratégicas devem obedecer a duas exigências. A primeira está vinculada à luta contra a pobreza, a miséria e a desigualdade, o uso do trabalho precário e a violação das liberdades no mundo, para melhorar as condições de vida e a expressão da classe trabalhadora diretamente afetada pela economia dominante e pelas políticas públicas. A segunda exigência prioriza o fato de que outro mundo é possível; um mundo necessário envolve um rompimento definitivo com os modos de produção e consumo da economia e da sociedade, bem como a redistribuição ambiental, com o equilíbrio geopolítico do poder estabelecido nas décadas recentes nos modelos democráticos proeminentes do ocidente.
    Três propostas emergem como respostas à crise: o neoconservadorismo, que propõe a continuação do atual padrão dominante e dos privilégios que os acompanham às custas das liberdades, da continuidade das desigualdades e da extensão dos conflitos e das guerras; uma reestruturação profunda do capitalismo defendido pelos militantes do “New Deal Verde”, que propõe regulação global, redistribuição relativa e uma promoção voluntarista das “economias verdes”; e uma alternativa ambiental e social radical, que corresponde a uma superação do atual sistema dominante. O Fórum Social Mundial reúne todos os que rejeitam a opção neoconservadora e a continuação do neoliberalismo, constituindo um fórum pela mudança vigorosa da discussão entre os movimentos que fazem parte de uma perspectiva de avanço de um “New Deal Verde” e os que defendem a necessidade de alternativas radicais.
    A REFERÊNCIA AO CONTEXTO AFRICANO
    O Fórum Social Mundial de Dakar vai enfatizar questões essenciais que aparecem com mais nitidez com as referências ao contexto africano. A ênfase estará no lugar da África no mundo e na crise. A África é objeto privilegiado de análise, ao tempo em que exemplifica a situação global. Não é pobre; é empobrecida. A África não é marginalizada; é explorada. Com suas matérias primas e recursos humanos cobiçados pelos países do Norte e pelas potências emergentes, e com a cumplicidade ativa dos líderes de alguns estados africanos, a África é indispensável para a economia global e para o equilíbrio ambiental do planeta.
    A ênfase também estará na descolonização como um processo histórico incompleto. A crise do neoliberalismo e a crise de hegemonia dos Estados Unidos são indicativos da possibilidade de uma nova fase de descolonização, e do enfraquecimento das potências coloniais europeias. A representação Norte-Sul está mudando, uma situação que não elimina a realidade geopolítica e as contradições entre o Norte e o Sul.
    O Fórum priorizará as diásporas e as migrações como uma das questões centrais da globalização. A questão será enfrentada com base na situação atual dos imigrantes e seus direitos, numa análise de longo termo, com o comércio de escravos posto sob a perspectiva do crescimento do papel das diásporas culturais e econômicas.
    O Fórum debaterá as mudanças no sistema internacional, nas instituições multilaterais e nas negociações internacionais. Em particular, vai focar nas questões que tornam clara a necessidade de regulação global: equilíbrio ambiental, migração e diásporas, conflitos e guerras.
    A SITUAÇÃO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS E COMUNITÁRIOS
    A convergência dos movimentos de que o Fórum Social Mundial se constitui está comprometida com a resistência ambiental e democrática. Com as lutas sociais presentes nos combates cívicos pelas liberdades e contra a discriminação. A resistência é inseparável das práticas emancipatórias específicas levadas a cabo pelos movimentos.
    A direção estratégica dos movimentos está voltada para a acessibilidade universal ao direito, pela igualdade de direitos e pelo imperativo democrático. Os movimentos trazem consigo um movimento histórico de emancipação que são extensão e renovação de movimentos anteriores. Será em torno da definição, da implementação e da garantia de direitos que um novo período de emancipação possível será definido. Essa definição exige que essas concepções de diferentes gerações de direitos sejam revisitadas: direitos políticos e civis formalizados pelas revoluções do século XVIII, reafirmados pela Declaração Universal de Direitos Humanos, complementadas pelos desafios do totalitarismo dos anos 60; os direitos dos povos que o movimento de descolonização promoveu, com base no direito da autodeterminação, o controle dos recursos naturais, o direito ao desenvolvimento e à democracia; direitos sociais, econômicos e culturais especificados pela Declaração Universal e estipulados pelo Protocolo Adicional adotado pelas Nações Unidas na Assembleia Geral em 2000.
    Uma nova geração de direitos está em gestação. Direitos que correspondem à expressão da dimensão global e dos direitos definidos com vistas a um mundo diferente da globalização dominante. A partir desse ponto de vista, duas questões serão as mais proeminentes em Dakar: direitos ambientais para a preservação do planeta e os direitos dos migrantes e da migração que questione o papel das fronteiras, bem como a organização do mundo. O Fórum Social Mundial de Belém enfatizou os benefícios para os movimentos de abarcarem a agenda ambiental em todas as suas dimensões, do clima à destruição dos recursos naturais e da biodiversidade, e da preservação da água, da terra e das suas matérias primas. O FSM de Dakar priorizará um novo tratamento da questão da migração, com a ligação entre migrações e diásporas e a Carta Mundial dos Migrantes.
    O FSM Dakar também será o momento para o debate sobre o caráter incompleto da descolonização e devir de uma nova fase descolonização. É nesse contexto que a relação entre o Norte e o Sul está mudando. Considerando que a representação Norte/Sul está mudando na perspectiva da estrutura social, há um Norte no Sul e um Sul no Norte. A emergência do poder de grandes estados está mudando a economia global e o equilíbrio de forças geopolíticas, e é reforçado pelo crescimento de mais de trinta estados que podem ser chamados de economias emergentes. Para tudo isso, contudo, as formas de dominação continuam a ser cruciais na ordem global. O conceito de Sul continua a ser altamente relevante. O Fórum Social Mundial enfatiza uma nova questão: o papel histórico e estratégico dos movimentos sociais nos países emergentes como um todo em relação ao seu Estado e o papel futuro desses estados no mundo. Essa questão, que já marcou os fóruns com o debate sobre o papel jogado pelos movimentos no Brasil e na Índia assume uma importância particular estratégica com a mudança geopolítica associada à crise.
    O Fórum Social Mundial é o ponto de encontro para movimentos de vários tipos e de diferentes partes do mundo. Esses movimentos já começaram a se encontrar em redes que reúnem diferentes movimentos nacionais. O processo dos fóruns revela duas mudanças. A primeira delas é as conexões entre movimentos de acordo com suas regiões, características e contextos específicos unificam os movimentos da América Latina, América do Norte e Sul da Ásia (e em particular, a Índia), o sudoeste da Ásia, Japão, Europa e Rússia. O Fórum Social Mundial de Dakar terá dois impactos maiores. O ano de 2010 e os preparativos para Dakar foram marcados pela nova importância conquistada pelos movimentos da região do Magreb-Machrek.
    O vigor dos movimentos sociais africanos será visível em Dakar, na forma de movimentos de campesinos, sindicatos, grupos feministas, de juventude, habitantes locais, grupos de imigrantes reprimidos, grupos indígenas e culturais, comitês contra a pobreza e contra a dívida, a economia informal e a economia solidária, etc. Esses movimentos são visíveis, com sua convergência diversidade em sub-regiões da África: no Norte da África e em particular no Magreb, no Oeste e na África Central, na África do Leste e na do Sul.
    No Fórum Social Mundial de Dakar uma questão fundamental será a do seu alcance político nas mobilizações sociais e da cidadania. Isso conduz ao problema da expressão política dos movimentos e das extensões dos movimentos em relação às instituições, ao cenário político e aos governos dos estados. Com respeito aos movimentos como um todo, a análise avança sobre a importância da especificidade, via invenção de uma nova cultura política, da relação entre poder e política. O processo do FSM pôs em cena as bases para essa nova cultura política (horizontalidade, diversidade, convergência das redes de cidadãos e dos movimentos sociais, atividades autogestionadas, etc.) mas ainda deve inovar mais em muitas dificuldades relativas à política e ao poder, para conseguir superar a cultura política caduca, que para a imensa maioria persevera dominante. Além disso, a tradução política dos avanços e das mobilizações dependem das instituições e das representações: num nível local, com a possibilidade de influenciar as decisões das autoridades locais; em nível nacional e internacional, com os governos dos estados, os regimes políticos e as instituições multilaterais; em nível regional e global, com alianças geoeconômicas e geoculturais e com a construção de uma opinião pública global e uma consciência universal.
    O PROCESSO DOS FÓRUNS SOCIAIS MUNDIAIS
    Depois de o Fórum Social Mundial de Belém ter tomado o ano de 2010 como o ano da ação global, mais de quarenta eventos demonstraram o vigor do seu processo. Isso incluiu as atividades dos 10 anos do FSM em Porto Alegre, o Fórum Social Mundial dos Estados Unidos, o Fórum Social Mundial do México e o Fórum das Américas, vários fóruns na Ásia, o Fórum Mundial de Educação na Palestina, mais de oito fóruns do Magreb e Machrek, etc. Cada evento associado foi iniciativa do comitê local. Esse comitê se refere na Carta de Princípios do Fórum Social Mundial, que adota uma metodologia privilegiando as atividades autogestionadas e declara sua iniciativa no Conselho Internacional do FSM. Essa multiplicação de eventos abre espaço para projeções relativos à extensão do processo dos fóruns. Ele assumiu uma nova forma, “um fórum estendido”, que consiste no uso da Internet para ligar iniciativas locais em diferentes países, com um Fórum em cada. Assim, enquanto ocorria o Fórum Mundial da Educação na Palestina, mais de 40 iniciativas estavam em curso em Ramallah. As iniciativas associadas com “Dakar estendida” inovarão o processo dos fóruns.
    A preparação para o FSM Dakar baseou-se nos eventos do ano da ação global, 2010, bem como numa série de iniciativas que asseguraram a convergência de ações e permitiram novos caminhos a serem explorados em termos de organização e metodologia dos fóruns. Assim, já se pode usar as caravanas convergindo para Dakar, dos fóruns de mulheres em Kaolack, das migrações e diásporas, dos encontros para convergência de ações, dos fóruns associados (Assembleia Mundial dos Povos, fóruns pela ciência e pela democracia, sindicatos, autoridades locais e da periferia, parlamentares, teologia e libertação, etc.).
    Depois de Dakar, um novo ciclo no processo dos fóruns irá começar. O fortalecimento do processo dos fóruns sociais mundiais poderia ocorrer com a reunião com grandes eventos, como o Rio+20, G8, G20, cúpulas e outras poderiam acordar com sua perspectiva. Seriam reconhecidos como eventos associados ao processo do fórum, estabelecendo assim uma proximidade com os acontecimentos de Seattle, em 1999, que contribuíram para a criação do FSM.

    * Gustave Massiah e Nathalie Péré-Marzano SÃO representantes da Research and Information Centre for Development (CRID – France) no Conselho Internacional do Fórum Social Mundial. A tradução é de Katarina Peixoto. Artigo publicado pela Agência Carta Maior (www.cartamaior.com.br).

    Pepe Escobar: Fúria, fúria, contra a contrarrevolução



     Pepe Escobar, Asia Times Online

    Fúria, fúria, contra a morte da luz (Dylan Thomas)

    Islamófobos de todo o mundo calem o bico e ouçam o som do poder do povo. A dicotomia artificial que inventaram para o Oriente Médio – ou a ditadura de vocês ou o jihadismo – jamais passou de truque barato. Repressão política, desemprego em massa e comida cara são mais letais que um exército de homens-bomba. Assim se escreve a história real; um país de 80 milhões – dois milhões dos quais nascidos depois de o ditador de hoje ter chegado ao poder em 1981, e nada menos que o coração do mundo árabe – põe afinal abaixo o Muro do Medo e passa para o lado do autorrespeito.
    O neofaraó egípcio Hosni Mubarak ordenou toque de recolher; ninguém arredou pé das ruas. A polícia atacou; os cidadãos organizaram a própria segurança. Chegaram os tanques; a multidão continuou a cantar “de mãos dadas, o exército e o povo são aliados”. Nada de revolução colorida parida em think-tanks, nada de islâmicos em ordem unida; são egípcios médios, carregando a bandeira nacional, “juntos, como indivíduos num grande esforço cooperativo para exigir de volta o país que nos pertence” – nas palavras do romancista egípcio e Prêmio Nobel Ahdaf Soueif.
    E então, inevitável como a morte, a contrarrevolução levantou a cabeçorra armada. Jatos bombardeiros made in USA e helicópteros militares atacaram “bravamente” em voos rasantes as multidões na Praça Tahrir [Praça Liberdade] (retrato do governo de Mubarak como exército de ocupação no Egito; e imaginem o ultraje do ocidente, se o ataque acontecesse em Teerã). Comandantes militares falando sem parar pela televisão estatal. Ameaça de que tanques de fabricação norte-americana tomariam as ruas – conduzidos por soldados de batalhões de elite – para o ataque final (embora os próprios soldados dissessem a jornalistas da rede al-Jazeera que em nenhum caso disparariam contra a multidão). Para coroar, a “subversiva” rede al-Jazeera foi repentinamente cortada do ar.
    Diga alô ao meu suave torturador…
    A Intifada egípcia – dentre outros múltiplos significados – já reduziu a cacos a propaganda inventada no ocidente, de que “árabes são terroristas”. Agora, as mentes afinal descolonizadas, os árabes inspiram o mundo inteiro, ensinam ao ocidente como se faz mudança democrática. E adivinhem só! Ninguém precisou de “choque e horror”, rendições, tortura e trilhões de dólares do Pentágono para que a coisa funcionasse! Não surpreende que Washington, Telavive, Riad, Londres e Paris, todas, nem suspeitaram do que estava a caminho.
    Hoje somos todos egípcios. O vírus latino-americano – bye-bye ditaduras e neoliberalismo arrogante, caolho, míope – contaminou o Oriente Médio. Primeiro a Tunísia. Agora o Egito. Depois o Iêmen e possivelmente a Jordânia. Logo a Casa de Saud (não surpreende que culpem os egípcios pelos “tumultos”). Mas o terremoto político do norte da África, na Tunísia, em 2011 também colheu a faísca dos movimentos de massa na Europa em 2010 – Grécia, Itália, França, Reino Unido. Fúria, fúria contra a repressão política, contras as ditaduras, contra a brutalidade da Polícia, contra os preços da comida, contra a inflação, contra empregos miseráveis, contra o desemprego em massa.
    Faraó 2011 parece remix de Xá do Irã 1979. Claro, não há aiatolá Ruhollah Khomeini para liderar as massas egípcias, e o ex-chefe da Agência Internacional de Energia Atômica, o egípcio Mohamed ElBaradei, está sendo acusado por alguns, nas ruas, de “assaltar nossa revolução”. Mas é difícil não lembrar que o Xá do Irã está enterrado no Cairo, porque os iranianos não permitiram que fosse enterrado na terra-mãe.
    O Faraó reagiu à Intifada nomeando para a vice-presidência seu czar “suave” da inteligência, Omar Suleiman (o primeiro vice-presidente, desde que o Faraó assumiu o poder em 1981), e virtual sucessor. Suleiman é sinistro suave especialista em rendição, no qual a CIA confia e que supervisionou número incontável de sessões de tortura de ditos “terroristas” em território egípcio; senhor, que fala inglês, de sua Guantánamo árabe. Em Washington, o establishment gostou muito.
    Mas os imperialistas que anotem bem: a última vez que as ruas egípcias levantaram-se como levantaram-se hoje, foi em 1919, durante a revolução contra os britânicos. Agora, para muçulmanos e cristãos, operários, classe média, massas desempregadas, advogados, juízes, professores e doutores da Universidade al-Azhar, alunos, camponeses, teólogos, jornalistas e blogueiros independentes, ativistas da Irmandade Muçulmana, Associação Nacional para a Mudança, Movimento 16 de abril, para todos esses, os dias de Mubarak de Revolução dos Bichos estão contados.
    Cinco movimentos de oposição – inclusive a Fraternidade Muçulmana – autorizaram ElBaradei a negociar a formação de um “governo de salvação nacional” de transição. Aposta-se que o Faraó nada ou quase nada negociará. Para aumentar a complexidade o núcleo da geração de jovens ativistas crê muito mais em “comitês populares” que em ElBaradei.
    É verdade que, no que tenha a ver com as próximas eleições em setembro, Mubarak, 82, está morto. O filho, Gamal, 47, idem. Relatos não confirmados dizem que, à moda típica dos filhos de ditadores, o filho já fugiu para Londres, usando seu passaporte britânico, com montanhas de bagagem, e estaria agora escondido na casa londrina da família, em Knightsbridge.
    O futuro crucial imediato depende do lado para o qual penderá o exército egípcio. No pé em que estão as coisas, ainda não está totalmente afastado uma alternativa Tiananmen – repressão linha duríssima. Seja como for, o poder de ação do governo é claro; pode acontecer até de o Faraó meter-se naquele avião – como cantam as ruas –, mas o regime, a ditadura militar, tem de ser mantida.
    O general Hussein Tantawi, comandante em chefe do exército e ministro da Defesa, amigo que bebe o vinho e come a comida do Pentágono, do qual recebe 1,3 bilhão de dólares anuais a título de “ajuda” – voou de volta ao Cairo. Numa trilha paralela, o Faraó, jogando desesperadamente com os medos do ocidente sobre “estabilidade”, tentou desqualificar a Intifada como grupo de desordeiros e arruaceiros donos de terrenos nas favelas, que querem ver cada vez mais caos e destruição. Um grupo de blogueiros egípcios não tem dúvidas – a estratégia do Faraó é assustar as pessoas e empurrá-las de volta para dentro das casas, implorando por “segurança”.
    Issander El Amrani, do blog The Arabist (http://www.arabist.net/), destaca que “é difícil acreditar que Mubarak ainda esteja no poder, mas o núcleo duro do regime está usando meios extremos para salvar sua posição”. Nas ruas, todos suspeitam de um golpe orquestrado por Washington na cúpula do regime – EUA/Israel apostando tudo na fórmula “Mubarak talvez caia/mas sem mudança de regime”, com sauditas, israelenses e a mídia egípcia oficial mexendo todos os pauzinhos para desacreditar a revolução. Para analisar com algum distanciamento: nos EUA houve dois governos de Ronald Reagan, um de George H W Bush, dois de Bill Clinton, dois de George W Bush e um de Barack Obama. No Egito, sempre só houve Mubarak.
    A classe média egípcia, empobrecida mas letrada e orgulhosa, e a os trabalhadores, nada querem além de um país regido por leis e com eleições transparentes. Como, então, acreditariam em Suleiman, torturador ligado à CIA, para conduzir a transição? Para nem falar de um Parlamento completamente controlado pelo inacreditavelmente corrupto Partido Nacional Democrático de Mubarak, cuja sede foi incendiada pelos manifestantes.
    O passo do dissidente egípcio
    No início de 2003, passei dois meses no Cairo e em Alexandria, à espera da invasão de Bush ao Iraque – convivendo quase exclusivamente com o oceano de rejeitados pelo sistema de Mubarak, de universitários formados a imigrantes sudaneses, inclusive representantes rejeitados dos 40% da população que vive com menos de 2 dólares por dia. Desnecessário dizer que todos viam Mubarak como poodle repulsivo de Washington – e todos estavam em choque ante a tragédia do Iraque, que o Egito reverencia historicamente como flanco leste da nação árabe. O regime, para eles, era do tipo que “afoga mendigos no Nilo”.
    Foi elucidativo – e terrivelmente doloroso – conhecer em campo as consequências do regime de Mubarak, aplicado  regime pupilo do neoliberalismo aplicado pelos EUA. Consequências inevitáveis, a inflação alta e o enorme desemprego. A classe média urbana praticamente já desaparecera. A classe trabalhadora, sufocada na mão de ferro dos sindicatos. E a classe média rural – que foi base do regime – também em crise, com os jovem obrigados a imigrar para as cidades à procura de empregos (que não encontram). Sobrevivente, só uma pequena classe de comerciantes, corruptos, associados ao Estado (a maioria dos quais hoje já fugiu para Dubai em jatos privados).
    Não surpreende pois que não se trate de uma revolução islâmica, como no Irã em 1979. É a economia, estúpido. O Islã hoje no Egito está dividido em duas correntes: salafitas não politizados e a Fraternidade Muçulmana – dizimada por décadas de repressão e tortura e, hoje, sem qualquer programa político explícito, além de oferecer serviços de assistência à população negligenciada pelo Estado.
    O fato de a Fraternidade Muçulmana ter-se mantido nas coxias do movimento das ruas explica-se por dois fatores. Se se expusesse demais, Mubarak teria o pretexto perfeito para associar a revolução aos “terroristas”. Além disso, a Fraternidade avalia que, hoje, é apenas um ator entre vários.
    Trata-se de movimento popular espontâneo que segue as pegadas do Kefaya (“Basta!”) – movimento popular “amarelo” (escolheu essa cor), de intelectuais e ativistas políticos, cujo slogan, já em 2004 era La lil-tamdid, La lil-tawrith (“Não a outro mandato, não queremos uma república hereditária”) [mais, sobre o movimento, em http://en.wikipedia.org/wiki/Kefaya].
    O movimento Kefaya, apesar de ser movimento de elite, sem liderança, não-ideológico, foi a faísca que despertou mais de mil movimentos, dentre os quais “Jornalistas pela Mudança”, “Operários pela Mudança”, “Médicos para a Mudança” ou “Jovens para a Mudança” levaram à atual onda de incontáveis fóruns online em que se reúnem cidadãos urbanos, de classe média e baixa, todos usuários experientes da internet.
    Outro desenvolvimento crucial foi a greve, em 2008, dos trabalhadores das indústrias têxteis da cidade de Mahalla al-Kubra no delta do Nilo, onde três operários foram mortos pelos guardas de segurança de Mubarak dia 16 de abril –, e que inspirou a criação do movimento online de mesmo nome (Facebook. Sobre o movimento, ver http://www.wired.com/techbiz/startups/magazine/16-11/ff_facebookegypt ).
    O Santo Graal demorou para mobilizar as massas. Semana passada, afinal, conseguiram. Os jovens influenciados pelo movimento Kefaya  preferem comitês populares para guiar os passos futuros de sua revolução, em vez de políticos. O pulso das ruas parece indicar que a maioria dos egípcios não querem que nenhuma ideologia política ou religiosa monopolize o que é movimento líquido, pluralista, múltiplo para reformar radicalmente o país e criar ali um novo modelo para o mundo árabe. Talvez um pouco sedutoramente romântico demais. Mas que tenha vivido 30 anos numa espécie de Revolução dos Bichos precisa dolorosamente de alguma catarse.
    Rebelo-me, logo, existo
    Para Fawaz Gerges, professor de economia da London School of Economics, tudo isso “ultrapassa em muito o problema Mubarak. A barreira do medo foi removida. É realmente o começo do fim do status quo na Região.” Que é maior que Mubarak, é; é exemplo vigoroso do que seja ativismo político orgânico, de base.
    Ora, no discurso de elite do Dr. Zbigniew Brzezinski, guru de política exterior dos EUA, trata-se de seu temido “despertar político global” em ação – a Geração Y em todo o mundo em desenvolvimento, furiosa, irada, ultrajada, emocionalmente em frangalhos, quase toda desempregada, com a dignidade em farrapos, deixando aflorar seu potencial revolucionário e virando o status quo de cabeça para baixo (mesmo depois de o Faraó ter conseguido implantar o maior blecaute da história da Internet).
    Assim como o movimento Kefaya foi a fagulha, essa foi também uma revolução do Facebook – que hoje, nas ruas do Cairo, Alexandria e Suez já foi rebatizado e chama-se agora Sawrabook (“o livro da revolução”). Uma rede RASD (“de monitoramento”, em árabe) foi lançada no primeiro dia dos protestos, 4ª-feira passada, configurada como uma espécie de “observatório da revolução”.
    É crucialmente importante observar que naquele momento – há menos de uma semana – a rede al-Jazeera ainda não chegara ao Egito e a televisão estatal egípcia exibia, como sempre, velhos filmes em branco e preto. Em apenas três dias, a RASD reuniu em rede cerca de 400 mil usuários, no Egito e no mundo. Quando o regime do Faraó acordou, já era tarde demais – e de nada lhe serviu derrubar a internet.
    É esse espírito de solidariedade em ação que invadiu as ruas sob a forma de jovens ativistas operando telefones sem fio, fotografando e filmando ataques e feridos ou montando tendas para atendimento de campanha. Ou moradores da cidade do Cairo, oferecendo as próprias casa para abrigar manifestantes e organizando piquetes de vizinhos para proteger-se da ação de saqueadores e ladrões – muitos dos quais mostrados por blogueiros, quando carregavam equipamentos de identificação dos postos armas retiradas dos postos de polícia de Mubarak.
    Por mais alarmadas que estejam as rarefeitas elites globais – basta seguir o labirinto de ambiguidades que liga Washington e as capitais europeias –, Brzezinski, pelo menos, parece suficientemente ligado para entender a deriva geral, quando “as principais potências mundiais, novas e velhas (…) enfrentam uma nova realidade: embora a letalidade do poder bélico seja hoje maior do que nunca, a capacidade de impor controle a massas que já despertaram para a vida política alcança hoje o ponto mais baixo de toda a história.”
    A velha ordem está morrendo, mas a nova ainda não nasceu. A Idade da Fúria no arco que vai da África do Norte ao Oriente Médio parece ter começado – mais ainda não se sabe qual será a nova configuração geopolítica. O povo se fará ouvir – ou acabará encurralado e controlado pelas potências que aí estão?
    O Egito não se converterá em democracia que funciona porque falta a infraestrutura política. Mas pode recomeçar do começo, com todas as oposições tão desprestigiadas quando o regime. A geração mais jovem – potencializada pela emoção de estar lutando do lado certo da história – terá papel crucial.
    Não aceitarão a ilusão de ótica de alguma falsa mudança de regime, só para preservar alguma “estabilidade”. Não aceitarão ser sequestrados por EUA e Europa, apresentados como neofantoches. Querem o choque do novo; governo verdadeiramente soberano, nada de neoliberalismo e uma nova ordem política para o Oriente Médio.
    A contrarrevolução será feroz. E atacará muito mais do que alguns bunkers no Cairo.

    Por quanto tempo Mubarak aguentará?

    A senhora, idosa, de véu vermelho, estava parada a polegadas de um tanque M1 fabricado nos EUA, do 3º Exército Egípcio, bem à margem da Praça Tahrir. Os soldados eram paramilitares, alguns com barretes vermelhos, outros com capacetes, barreiras de fuzis apontadas para a praça, metralhadoras pesadas armadas nos tabiques. “Se atirarem contra o povo egípcio, Mubarak está acabado” – disse ela. “E se não atirarem contra o povo egípcio, Mubarak está acabado”. O povo no Egito está tomado dessa sabedoria.

    A senhora, idosa, de véu vermelho, estava parada a polegadas de um tanque M1 fabricado nos EUA, do 3º Exército Egípcio, bem à margem da Praça Tahrir. Os soldados eram paramilitares, alguns com barretes vermelhos, outros com capacetes, barreiras de fuzis apontadas para a praça, metralhadoras pesadas armadas nos tabiques. “Se atirarem contra o povo egípcio, Mubarak está acabado” – disse ela. “E se não atirarem contra o povo egípcio, Mubarak está acabado”. O povo no Egito está tomado dessa sabedoria.

    Pouco antes de amanhecer, quatro F-16 Falcons – outra vez, é claro, fabricados no país do presidente Obama – apareceram ganindo sobre a praça, os ecos reverberando nas paredes cinzentas do gigantesco prédio nasserista, seguidos por dezenas de milhares de olhos que se erguiam da praça para o céu. “Estão conosco”, muitos gritaram. Acho que não, pensei. Nem os tanques, novos na praça, ao todo 14 que apareceram sem slogans grafitados, os soldados, assustados, não saíram das cabines – e que os manifestantes também acreditavam que ali estivessem para protegê-los.

    Mas então, quando me aproximei de um oficial num dos tanques, vi que abria um sorriso. “Jamais atiraremos contra nosso povo, ainda que venham ordens para atirar” – ele gritou, para fazer-se ouvir acima do barulho do motor. Tampouco me convenceu completamente. O presidente Hosni Mubarak – ou talvez se deva escrever ‘presidente’, entre aspas, estava no quartel-general, depois de nomear a nova junta de ex-militares e agentes de inteligência. Os boatos zuniam pela praça: o velho lobo lutaria até o fim. Para outros, não faria diferença. “Poderá matar 80 milhões de egípcios?”

    Começaram a crescer sentimentos de antiamericanismo, depois de o presidente Obama ter mantido o apoio de sempre, embora morno, ao governo de Mubarak. “Não Obama, Não Mubarak” – lia-se em vários cartazes. Mubarak, com uma estrela de Davi pintada sobre o rosto. Muita gente apanhava do chá caixas vazias de balas de festim usadas semana passada, todas com o selo “Made in the USA”. Vi que o tanque que vinha à frente tinha letras semiapagadas na lateral, que começavam com “MFR” – mas foi quando um soldado com rifle e baioneta receber ordem para me prender; corri para dentro da multidão e ele desistiu –, mas será que “MFR” é a sigla correspondente a US Mobile Force Reserve [Força Móvel de Reserva dos EUA], que mantém tanques em território egípcio? Essa coluna de tanques teria sido emprestada pelos EUA? Fácil ver o uso que os egípcios deram aos tanques.

    Assisti a cenas extraordinárias antes, durante o dia, misturado à multidão entre os manifestantes e os soldados que conduziam outra unidade de tanques (naquele caso, máquinas velhas, Pattons M-60, do tempo do Vietnã), que parecia estar ali para dar cobertura aos canhões de água mandados para dispersar a multidão. Centenas de jovens cercaram um dos tanques e quando um tenente de óculos escuros atirou para o ar, foi empurrado contra o próprio tanque e obrigado a escalá-lo para fugir dos rapazes. Mas a multidão logo mudou de humor; os rapazes posaram para fotografias sobre o tanque e ofereceram frutas e água aos soldados.

    Quando uma longa coluna de soldados formou-se na largura da rua, um homem muito velho e corcunda, pediu e obteve licença para aproximar-se. Segui-o e vi abraçar e beijar o tenente nos dois lados do rosto. Ele disse: “Vocês são nossos filhos. Vocês são nosso povo”. Em seguida andou ao longo da coluna, beijando e abraçando cada soldado, como se fosse seu filho. É preciso ter coração de pedra para não se emocionar com essas cenas de que ontem o dia foi cheio.

    Às tantas, um grupo de manifestantes trouxe um homem que disseram ter apanhado roubando – no momento, o Cairo parece estar cheio de ladrões – e empurraram na direção dos soldados. “Vocês estão aí para nos proteger” – cantavam. Um dos soldados bateu no homem, no rosto, e o oficial esbofeteou o soldado. O soldado sentou na calçada, balançando a cabeça, desentendido. Durante todo o dia, um helicóptero egípcio Mi-25 – esse, relíquia da era soviética – sobrevoou a multidão, armado com seis foguetes, mas nada fez. Depois foi um Gazelle, de fabricação francesa, da Força Aérea do Egito, que voou sobre a multidão, e as pessoas acenaram na direção de onde se via o piloto, que também acenava em resposta.

    Os egípcios, sem cessar, procuravam fazer contato com quem lhes parecesse estrangeiro – e um inglês de cabelos grisalhos como eu pareci-lhes suficientemente estrangeiro –, insistindo em que, depois que um povo perde o medo, não há como voltar a acovardar-se.

    “Nunca mais teremos medo”, gritava uma jovem na minha direção, no momento em que os jatos gritavam também. E um ex-policial, que se apresentava como atual homem de ligação entre os manifestantes e o exército disse que “o exército estará conosco, porque eles sabem que Mubarak tem de sair”. Outra vez, não estou muito convencido.

    E os saques e incêndios continuam. O ex-policial – que disso parecia entender – disse-me que muitos dos saqueadores são de um grupo que fez parte do Partido Democrático Nacional de Mubarak, cuja função fora a de convencer os egípcios a comparecer às urnas e votar em seu amado líder. Nesse caso, por que, todos nos perguntamos, esses homens estariam dedicados a assaltos e saques, exatamente os mesmos crimes de que os acusam todos os que exigem que Mubarak deixe o país? Essa exigência, aliás, inclui também Omar Suleiman, cuja expulsão a multidão deseja, o ex-espião chefe, que acaba de ser nomeado para a vice-presidência.

    Por todo o Egito, em praticamente todas as ruas do Cairo, há hoje vigilantes – cidadãos comuns, não homens de Mubarak, cansados das gangues semioficiais que hoje assaltam o próprio povo na calada da noite. Para voltar ao hotel ontem à noite, tive de passar por oito postos de controle controlados por civis, jovens e velhos – um deles manteve-se perfilado, com uma bengala numa mão e um velho rifle britânico Lee Enfield .303 na outra – que agora prendem os ladrões e saqueadores e os entregam ao exército. Não é o “Exército de Papai”[1].

    Nas primeiras horas da manhã de ontem, um grupo de homens armados invadiu o Children's Cancer Hospital, próximo do velho aqueduto romano. Queriam levar equipamento médico, mas foram expulsos por manifestantes que os ameaçaram com facas e os expulsaram. O Dr. Khaled el-Noury, cirurgião chefe do hospital contou-me que os assaltantes armados pareciam desorganizados e pareciam assustados.

    Não à toa. O encarregado da recepção no hospital mostrou-me o facão de cozinha que guarda na gaveta para proteger-se. E vi outros sinais do lado de fora do portão, onde havia homens armados com bastões e porretes. Um menino – oito anos, talvez – apareceu portando um facão de açougueiro, de 50cm, quase metade da altura do menino. Outro homem apareceu cumprimentar o jornalista estrangeiro, com um facão do mesmo tamanho.

    Não há terceira força. E eles creem no exército. Os soldados atacarão a praça? E que diferença, fará, afinal, que ataquem ou não, para a partida de Mubarak?

    [1] Orig. Dad's Army. É título de um seriado da televisão britânica sobre a Guarda Nacional, durante a II Guerra Mundial, levado ao ar com grande sucesso entre 1968 e 1977. A Guarda Nacional foi formada de voluntários incapazes para o serviço militar ativo (mais, em http://en.wikipedia.org/wiki/Dad's_Army).

    Original - The Independent

    Tradução: Vila Vudu