segunda-feira, 4 de abril de 2011

O direito ao centro da cidade





040411_cidadePassapalavra - [Marcelo Lopes de Souza] A repressão e as tentativas de cooptação e desmobilização popular a serviço da expulsão das populações pobres das áreas centrais das grandes cidades são um exemplo cabal das violações de direitos humanos e sociais fundamentais.

Não pretendo, com o título deste artigo, (ser mais um a) banalizar e abusar da fórmula lefebvriana do "direito à cidade". Na verdade, diante de interpretações cada vez mais "aguadas" dessa expressão – convertida em um simpático slogan, à disposição de interesses tão diferentes quanto os de movimentos sociais emancipatórios, intelectuais de esquerda com e sem aspas, ONGs, instituições governamentais e organismos internacionais –, cabe, isso sim, clamar por um mínimo de clareza político-estratégica, ao mesmo tempo em que cumpre relembrar: para o marxista heterodoxo Henri Lefebvre, o "direito à cidade" não se reduzia a simples conquistas materiais específicas (mais e melhor infraestrutura técnica e social, moradias populares, etc.) no interior da sociedade capitalista. O "direito à cidade" corresponde ao direito de fruição plena e igualitária dos recursos acumulados e concentrados nas cidades, o que só seria possível em outra sociedade. [1]
Complementarmente, vale a pena lembrar as contribuições do neoanarquista Murray Bookchin a propósito do tema da "urbanização sem cidades": para ele, cada vez mais temos uma urbanização que, aparentemente de maneira paradoxal, se faz acompanhar pela dissolução das cidades em um sentido profundo, sociopolítico. [2] O que se tem, cada vez mais, são entidades espaciais enormes, mas crescentemente desprovidas de verdadeira vida pública. Há, em meio a uma espécie de antítese cada vez mais nítida entre urbanização e "cidadização" ("citification": neologismo que, em Bookchin, significa a formação de cidades autênticas, com uma vida pública vibrante), uma lição fundamental a ser extraída: sem a superação do capitalismo e de sua espacialidade, o que vulgarmente se vai acomodando por trás da fórmula do "direito à cidade" não passa e não passará jamais de migalhas ou magras conquistas, por mais importantes que possam ser para quem padece, nas favelas, loteamentos irregulares e outros espaços segregados, com a falta de saneamento básico, com riscos ambientais elevados, com doenças e com a ausência de padrões mínimos de conforto.
No entanto, a essencialmente geográfica questão da localização (na sua relação com a acessibilidade [3]) está por trás de atritos que se vêm avolumando nos últimos anos. Há um "direito" específico (não em sentido imediatamente jurídico, mas sim em sentido moral), de ordem "tática", que deveria ser compreendido nos marcos de uma luta mais ampla, "estratégica": o direito de a população pobre permanecer nas áreas centrais das nossas cidades. Esse "direito moral", os esquemas e programas de "regularização fundiária" vêm tentando, para o bem e para o mal, converter em um direito legal assegurado (segurança jurídica da posse). No caso das favelas, avançou-se bastante no terreno legal, desde os anos 80; em se tratando de ocupações de sem-teto, e em especial de ocupações de prédios, porém, quase tudo ainda resta por fazer – inclusive no que se refere ao desafio de, ao "regularizar", não (re)inscrever, pura e simplesmente, um determinado espaço plenamente no mundo da mercadoria, adicionalmente favorecendo a destruição de formas alternativas de sociabilidade (que florescem em várias ocupações) e a cooptação dos moradores. [4]
As favelas têm sido, há mais de um século, precursoras de uma luta pelo direito de residir nas áreas centrais. Se tomarmos o caso emblemático do Rio de Janeiro, verificaremos que essa luta já se inicia com a virada do século XIX para o século XX, assumindo contornos particularmente dramáticos com a erradicação, na esteira da reforma urbanística do prefeito Pereira Passos (1902-1906), de muitos cortiços e casas de cômodos: precisamente essa erradicação em massa, verdadeira "limpeza étnica" que mostra bem o espírito antipopular do que foi a República Velha, alimentou a suburbanização (a rigor, periferização) e, também, a favelização dos pobres.
Contudo, as favelas, espaços de resistência tão importantes até poucas décadas atrás – os quais, a partir da mobilização da Favela de Brás de Pina (em 1965), no Rio de Janeiro, desenvolveram uma tenaz luta contra as remoções promovidas durante o Regime Militar, que foi encampada pela antiga Federação das Associações de Favelas do Estado da Guanabara (FAFEG) –, foram, aos poucos, tombando vítimas da cooptação, da despolitização e de seus múltiplos agentes: políticos clientelistas, traficantes de drogas, igrejas neopentecostais... A atuação de uma pletora de ONGs (animadas por indivíduos de classe média), a partir sobretudo dos anos 90, longe de reverter o quadro, talvez até o tenha, em parte, agravado, ao se tentar impulsionar uma "inclusão social" às custas da verdadeira mobilização popular e da conscientização crítica.
O fato é que, nas áreas centrais, as favelas foram ocupar terrenos que poderiam ser qualificados de "terras marginais", historicamente desprezadas pelos mais aquinhoados (encostas de morros, beira de rios e canais). [5] Hoje em dia, o movimento dos sem-teto, que tenta resgatar a bandeira da reforma urbana do "tecnocratismo de esquerda" que a arrebatou na década de 90, [6] ocupa, muitas vezes, terrenos periféricos (como é o caso em São Paulo, em Salvador, em Belo Horizonte e mesmo no Rio de Janeiro), mas também territorializa, outras tantas vezes, prédios "abandonados" e ociosos (a exemplo de São Paulo, Porto Alegre e, principalmente, do Rio de Janeiro).
Já quase não há terrenos vazios em áreas centrais, passíveis de ocupação. As favelas localizadas nos arredores do CBD (Central Business District), isto é, da área econômica central (nos casos em que ainda há uma: essa geometria veio se tornando cada vez mais relativa e complexa com o passar das décadas), são, via de regra, muito antigas e consolidadas. São sobreviventes das ondas de remoções e despejos do passado, em particular daquelas dos anos 60 e 70. Mas, por força de vários fatores (falências fraudulentas, dinâmicas internas ao próprio aparelho de Estado...), há uma quantidade apreciável de domicílios vagos no Brasil, muitos assim deixados especulativos ou em decorrência de processos que, mesmo não sendo sempre intencionais, geram um "passivo social e espacial". O contraste desse imenso estoque de domicílios vagos com as estimativas referentes ao déficit habitacional brasileiro é esclarecedor acerca da motivação básica para o surgimento e expansão do movimento dos sem-teto no Brasil. [7] No que se refere, especificamente, à luta para permanecer nas áreas centrais, cabe ressaltar que, para os moradores das ocupações − que são, na sua esmagadora maioria, trabalhadores informais, muitos deles ambulantes −, morar nas proximidades do CBD significa residir perto dos locais em que comercializam seus produtos, sem sofrer excessivamente com custos de transporte. Algo fundamental, portanto − isso sem falar na infraestrutura técnica e social, há muito consolidada nas áreas centrais das cidades.
Por outro lado, o capital vê na "revitalização" de áreas centrais, justamente, um riquíssimo veio a ser explorado. Já nos anos 80 David Harvey, desdobrando um insight sobre a importância crescente da produção do espaço (e não somente no espaço) para acumulação capitalista que originalmente remete a Henri Lefebvre, havia discutido a relevância do "circuito secundário" da acumulação de capital. [8] Este circuito é aquele que se vincula não à produção de bens móveis, mas sim à produção de bens imóveis, isto é, do próprio ambiente construído. O capital imobiliário (fração do capital um tanto híbrida, que surge da confluência de outras frações) tem, nas últimas décadas, assumido um significado crescente, na interface com o capital financeiro – às vezes com consequências globalmente catastróficas, como se pode ver pelo papel da bolha das "hipotecas podres" na crise mundial que eclodiu em 2008. Pelo mundo afora, a contribuição da construção civil na formação da taxa de investimento foi-se tornando cada vez mais expressiva, nas últimas décadas. E em todo o mundo – das Docklands, em Londres, a Puerto Madero, em Buenos Aires –, "revitalizar" espaços obsolescentes (presumidamente "mortos", pelo que se vê com o ostensivo uso ideológico de um termo como "revitalização") tem sido um dos expedientes principais na criação de novas "frentes pioneiras urbanas" para o capital.
segal-8No Rio de Janeiro, a disputa entre as ocupações de sem-teto e os interesses ligados à "revitalização" da Zona Portuária e do Centro – a qual gravita ao redor do projeto do "Porto Maravilha", [9] em que, com o respaldo da política repressiva batizada pela Prefeitura de "Choque de Ordem", se tenta promover uma "gentrificação" [10] em larga escala – vai ficando mais e mais evidente e tensa. Diversos pesquisadores do Núcleo de Pesquisas sobre Desenvolvimento Sócio-Espacial (NuPeD) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) têm desenvolvido estudos que mostram essas tensões. [11]
Em São Paulo tem-se um processo análogo, que gira em torno do projeto da "Nova Luz", de revitalização da "Cracolândia" e adjacências. [12] E, também analogamente, está-se diante, também em São Paulo, de um "regime urbano" [13] caracterizável como conservador e repressivo, identificado com o "empresarialismo urbano" e não com a reforma urbana (nem mesmo na sua versão "domesticada", "tecnocrática de esquerda", levada à caricatura pelo Ministério das Cidades do governo Lula).
Em meio a uma "democracia" representativa ritualmente celebrada por meio de eleições regulares, na qual os direitos políticos formais são básica e aparentemente respeitados, direitos humanos e sociais fundamentais são, entretanto, sistematicamente violados. Atualmente, a repressão e as tentativas de cooptação e desmobilização popular a serviço da expulsão das populações pobres das áreas centrais das grandes cidades são um exemplo cabal dessas violações de direitos. Considerando a disparidade de meios econômicos, propagandísticos e de violência à disposição dos contendores, trata-se de uma luta tremendamente desigual. Mas, contra a força dos argumentos, nem sempre o "argumento" da força prospera indefinidamente. Vale lembrar do lema aprovado pela Asamblea Popular de los Pueblos de Oaxaca, no México, em 2007: "Nosotros no podemos con sus armas. Ustedes no pueden con nuestras ideas."
Agradecimento
Agradeço a Daniela Batista Lima pelo levantamento dos dados atualizados sobre déficit habitacional e domicílios vagos no Brasil que constam da nota 7.
Notas
[*] Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
[1] Focalizei essas questões em "Which right to which city? In defence of political-strategic clarity". Interface: a journal for and about social movements, 2(1), pp. 315-333. Disponibilizado na Internet (http://interface-articles.googlegroups.com/web/3Souza.pdf) em 27/05/2010.
[2] Ver, de Murray Bookchin, Urbanization without Cities. The Rise and the Decline of Citizenship. Montreal e Cheektowaga: Black Rose Books, 1992.
[3] O tema da acessibilidade foi interessantemente trabalhado por Kevin Lynch em seu admirável livro Good City Form (Cambridge [MA], The MIT Press, 1994 [1981]). (Há uma tradução para o português, intitulada A boa forma da cidade, publicada em 2007 pelas Edições 70, de Lisboa.)
[4] Esse é o sentido, portanto, da ressalva que fiz antes: "para o bem e para o mal". Sem dúvida que a segurança jurídica da posse é uma demanda tradicional e legítima das populações dos espaços segregados que, por sua situação ilegal ou irregular, sofre toda sorte de discriminações, intimidações e violências. A questão é que a regularização fundiária também se presta a uma facilitação da (re)inserção de espaços no circuito formal do mundo da mercadoria. E mais: em se tratando, sobretudo, de ocupações de sem-teto, que muitas vezes têm sido interessantes ambientes de experimentação de formas de organização e socialização alternativas (em certos casos chegando até mesmo à autogestão e formas bastante "horizontais" de organização política), um esquema de regularização fundiária pode, dependendo de sua natureza, desestruturar toda uma vida de relações e prejudicar certas iniciativas e atividades dos moradores. Valores e hábitos cultivados com dificuldade, como assembleias regulares, compartilhamento de responsabilidades, cooperação sistemática, rotatividade de tarefas, etc. podem vir a ser solapados, sendo substituídos completamente ou quase completamente pelo individualismo e pelo privatismo.
[5] A expressão "terras marginais" lembra a teoria da renda da terra, sistematizada por Ricardo e aprimorada por Marx. No entanto, há objeções bastante razoáveis à transposição da reflexão marxiana (ou ricardiana) para o espaço urbano, objeções que, em larga medida, compartilho (ver, por exemplo, a tese de doutorado de Csaba Deák, Rent Theory and the Price of Urban Land. Spatial Organization in a Capitalist Economy, de 1985 [http://www.usp.br/fau/docentes/depprojeto/c_deak/CD/3publ/85r-thry/CD85rent.pdf]). Utilizo aqui aquela expressão, por conseguinte, em um sentido mais livre, sem que o leitor ou a leitora deva pressupor que estou querendo forçar uma analogia.
[6] Vide, sobre esse assunto, o meu livro A prisão e a ágora. Reflexões sobre a democratização do planejamento e da gestão das cidades (Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2006).
[7] Segundo estimativas da Fundação João Pinheiro (Déficit habitacional no Brasil - Municípios selecionados e microrregiões geográficas, Belo Horizonte, Fundação João Pinheiro, 2005, 2.ª ed.), o déficit habitacional brasileiro já montava, em 2000, a 7,2 milhões de domicílios. Contudo, segundo relatório de julho de 2010 do Ministério das Cidades, baseado em levantamentos da Fundação João Pinheiro, o déficit habitacional no Brasil estimado para 2008 teria baixado para cerca de 5,6 milhões de domicílios, dos quais 83% estariam localizados nas áreas urbanas (http://www.cidades.gov.br/noticias/deficit-habitacional-brasileiro-e-de-5-6-milhoes/). (Para 2007, a Fundação João Pinheiro, em estudo com data de junho de 2009, havia estimado o déficit habitacional em aproximadamente 6,3 milhões de domicílios, dos quais 82,6% localizados nas áreas urbanas [http://www.fjp.gov.br/index.php/servicos/81-servicos-cei/70-deficit-habitacional-no-brasil].) Os números da Fundação João Pinheiro sobre o déficit habitacional brasileiro me parecem conservadores; mas, seja lá como for, a ordem de grandeza dos números referentes ao estoque de domicílios é a mesma, embora os valores sejam um pouco mais elevados. Segundo dados divulgados pelo Ministério das Cidades, os domicílios vagos em condições de serem ocupados e em construção, em todo o Brasil, correspondiam, em 2008, a 7,2 milhões de imóveis, dos quais 5,2 localizados em áreas urbanas (vide "link" supracitado); e conforme a Fundação João Pinheiro, em todo o Brasil seriam cerca de 7,3 milhões de imóveis não ocupados, dos quais aproximadamente 5,4 milhões localizados em áreas urbanas; desse total, 6,2 milhões estariam em condições de serem ocupados - o restante estaria em construção ou em ruínas, este último caso correspondendo a uma minoria de cerca de 300 mil unidades (vide "link" supracitado).
[8] Ver, de Harvey, "The urban process under capitalism: A framework for Analysis" (incluído em The Urbanization of Capital, Baltimore, The Johns Hopkins University Press, 1985). De Lefebvre, vale a pena começar por A revolução urbana (a edição que consultei é espanhola: La revolución urbana, Madrid, Alianza Editorial, 1983 [1970], 4.ª ed.; há uma edição brasileira, publicada em Belo Horizonte pela Editora UFMG, em 1999) e prosseguir com A produção do espaço (La production de l'espace, Paris, Anthropos, 1981 [1974]).
[9] O "site" oficial do projeto é: http://www.portomaravilhario.com.br/
[10] "Gentrificação" é um horrível termo técnico, aportuguesamento canhestro do inglês "gentrification", ou nobilitação, enobrecimento. Na literatura especializada, trata-se do processo, menos ou mais violento, menos ou mais gradual, de substituição da população pobre por atividades econômicas de alto status (shopping centres, prédios de escritórios, etc.) e residências para as camadas mais privilegiadas.
[11] De maneira às vezes mais direta, às vezes mais indireta, é o caso da tese de doutorado de Tatiana Tramontani Ramos (em andamento) e das dissertações de mestrado de Eduardo Tomazine Teixeira (defendida em 2009), Matheus da Silveira Grandi (defendida em 2010), Rafael Gonçalves de Almeida (em andamento), Marianna Fernandes Moreira (em andamento) e Amanda Cavaliere Lima (em andamento).
[12] O "site" oficial do projeto é: http://www.novaluzsp.com.br/
[13] O conceito de "regime urbano" (urban regime) foi proposto por Clarence Stone ("Urban regimes and the capacity to govern: A political economy approach", Journal of Urban Affairs, 15[1], 1993, pp. 1-28) para caracterizar as combinações de formas institucionais e interesses econômicos (especialmente interesses e pressões de classe) que se expressam na qualidade de estilos de gestão específicos: uns mais abertos à pressão dos trabalhadores e permeáveis à participação popular (com ou sem aspas), outros mais repressivos e refratários a uma agenda "progressista", e por aí vai. Mesmo que a classificação de Stone não deva ser transposta irrefletidamente para uma realidade bem diferente da estadunidense, como a brasileira, a ideia do conceito é útil em si mesma.
Ilustração: Esculturas de George Segal.

2011, o ano internacional do afrodescendente

Jorge Terra *no Sul21

Como já é de conhecimento de muitos, a Organização das Nações Unidas declarou que o ano de 2011 será o ano internacional do afrodescendente. Esse ano será próprio para reflexões, para se dar visibilidade, por meio de protestos, a questões que há muito afligem parte significativa da população brasileira e para se exigir medidas governamentais voltadas aos negros brasileiros?
Eleger um desses caminhos como o principal seria não aproveitar plenamente as oportunidades e seguir por caminhos já percorridos.
É preciso refletir, exigir, protestar, demonstrando incoerências, desigualdades e injustiças, mas isso configura uma parte e não a totalidade da ação indispensável.
Há cidadãos que necessitam da perfectibilização de uma questão singela: o Estado moderno não é mais inibidor ou inviabilizador de violações de direitos; a ele incumbe a efetivação de direitos dos administrados. Todavia, a escassez de recursos públicos pode tornar antieconômica a apresentação de exigência para aquele que dispõe de um orçamento insuficiente para as necessidades diárias e para os investimentos estratégicos.
É de se entender que as entidades que compõem o movimento negro não podem ter as suas diferenças de visão como intransponíveis. Outrossim, é de se perceber que é o momento de composição com os segmentos nunca antes procurados de maneira sistemática, porque os problemas relacionados ao preconceito e ao racismo, que geram efeitos econômicos, sociais e políticos, não são atinentes a um grupo em especial, mas à sociedade como um todo.
É inarredável a adoção de visão ampla da Economia e da Política. O Brasil cresce flagrantemente em termos econômicos. Cada dia mais empresas brasileiras ganharão corpo no cenário mundial, sendo-lhes indispensável a imagem de empresa respeitadora da diversidade e do meio ambiente também em seu país de origem. O mesmo vale para empresas que aportaram ou aportarão no Brasil. Essa imagem se constituirá por um setor de comunicação competente, por um programa ou por uma ação inclusiva ou ambiental, que pode perpassar pela composição diversificada do corpo diretivo ou de funcionários da empresa ou pelo apoio a entes e a projetos vinculados aos temas supracitados.
Também no campo político, a imagem não se constituirá por intermédio do discurso, havendo decisões concretas a serem tomadas. Não são bastantes as criações de setores do Estado voltados às pessoas em situação de vulnerabilidade ou historicamente discriminadas, tais como os idosos, as mulheres, os deficientes, os negros e os homossexuais. Esses setores deverão apresentar planejamento, critérios de constituição de indicadores, avaliação constante, ações corretivas e resultados positivos. Para tanto, a seleção das pessoas que neles labutarão deverá se pautar pelo conhecimento técnico, pela capacidade de argumentação, pelo devotamento a causas nobres e pela possibilidade de trabalhar de forma transversal. Eleito o caminho de criar entidades com recursos orçamentários baixíssimos, sem força interna para trabalhar transversalmente com os orçamentos de outros setores e sem habilidade para celebrar parcerias, trilhar-se-á o caminho do insucesso.
Impõe referir, ainda no campo político, que a edição de leis e a concretude das normas jurídicas que delas se extraiam são fundamentais para se demonstrar o norte a ser seguido pelos administrados.
Em suma, exsurge o momento ideal para se estabelecer parcerias das entidades que integram o movimento negro com estabelecimentos de ensino, entidades empresariais, órgãos de segurança, veículos de comunicação e outros movimentos sociais.
A responsabilidade social corporativa é campo fértil para o desenvolvimento de projetos dedicados ao atingimento de resultados positivos concretos. Para o empresariado é salutar a inserção social com maiores chances de êxito e de melhor aproveitamento de recursos. Para o movimento social é benéfico aprender forma objetiva de planejar, de realizar e de avaliar ações, bem como o alcance de estágio superior com os resultados mencionados acima e o apoio para a consecução de seus fins institucionais.
Os estabelecimentos de ensino buscam novos campos de atuação com o fito de terem sustentabilidade, bem como se preparar para o cumprimento de leis que exigem conhecimentos que ainda não possuem. Os movimentos sociais, por seu turno, necessitam capacitar seus membros para multiplicarem os conhecimentos amealhados ao longo do tempo, bem como para se preparar para momento histórico exigente, isso porque há crescente disputa por limitados recursos públicos e privados.
Os órgãos de segurança perceberam a incapacidade de fazer frente a todas as demandas e como acabam por se tornar o desaguadouro de problemas não resolvidos nas searas familiar, educacional, política e econômica. Esses órgãos precisam da colaboração, dos conhecimentos sobre as comunidades e da credibilidade dos movimentos sociais. Os movimentos, por outra mão, imprescindem dos recursos materiais e humanos que podem ser disponibilizados, da possibilidade de harmonização de relações e da ampliação de sua rede de relações para a solução de problemas recorrentes.
Os veículos de comunicação, vivenciando ambiente altamente competitivo, precisam ser ágeis, ter confiável e extensa rede de informações, ampliar quantitativa e qualitativamente o seu público-alvo e a sua carteira de clientes. Nesse quadro, eles precisam assentar que atuam despidos de pré-concepções a respeito de parte de seu público-alvo, pautando-se pela busca e pela prestação de informações calcadas em dados concretos. Os movimentos sociais ressentem-se de meios de divulgação de suas ideias e de suas iniciativas apesar do uso da internet. Ademais, a inclusão de certos temas na pauta de discussões da Sociedade se dá pelos meios de comunicação. A troca, portanto, também pode ser riquíssima nesse campo.
Muitas das vezes, os movimentos sociais desconhecem o que uns e outros estão fazendo e não identificam oportunidades de atuações conjuntas. Com isso, atuam de modo ineficaz. Poderiam dividir as vantagens do atingimento conjunto de objetivos previamente traçados com a utilização de uma gama maior de recursos.
Bom frisar que a advocacy é inarredável, isto é, devem haver articulações, protestos, pressões e ingerências para a criação e para a ampliação das políticas públicas concernentes à diversidade racial. O que se pretende é apontar alternativas tidas como mais eficientes. Em outros termos, objetiva-se a melhor utilização dos meios disponíveis para o alcance dos fins do movimento negro.
Os trilhos indicados nesse texto exigem um movimento social propositivo, pronto a assumir uma posição de protagonismo e de influência na Economia, na Política e na Sociedade. Perceba-se, pois, que se sugere caminhos que podem ser mais produtivos e que, certamente, são mais exigentes. Neles, agregada à constatação de um problema, estará sempre uma sugestão de solução. Dessa arte, ao se perceber a inexpressividade da ocupação de vagas concernentes a um segmento por negros brasileiros, ter-se-á de examinar as causas, propor e organizar cursos, indicar e captar recursos, bem como sugerir um cronograma factível de contratações.
Elege-se como a melhor opção, sobretudo para o ano de 2011, a perseguição da eficiência no movimento negro. Dessa feita, privilegiar-se-á o planejamento, o estabelecimento de metas, a busca de recursos, a constituição de indicadores de avaliação, a efetivação de ações corretivas e consecução de resultados positivos concretos.
Passa-se a ter como instrumento diuturno o projeto estruturado, o que permite a captação de recursos junto às entidades privadas financiadoras e a identificação de pontos de consenso entre essas e as que conformam o movimento negro, encontrando-se uma linguagem comum.
As entidades vinculadas ao movimento negro poderão participar dos processos licitatórios dos entes estatais pelo fato de saberem trabalhar com uma linguagem de viés empresarial. De outra banda, a preocupação com a infraestrutura, com a estruturação e com o planejamento é a premissa básica para se atingir a indispensável sustentabilidade.
Seja para se voltar para o financiador privado, seja para se dirigir para o financiador público, indispensável a capacitação para a criação, para o acompanhamento e para a avaliação de projetos.
Os movimentos sociais, em resumo, terão de constituir projetos, saber discutir sobre temas mais amplos do que a mera militância e alinhar esforços de cada um e de todos para ter rede de contatos mais diversificada. Do contrário, não haverá a inovação e a adaptação ao presente e ao futuro.

* Procurador do estado do Rio Grande do Sul
Originalmente publicado no jornal Oi

A criptonita cultural da direita americana.

Um olhar no clima cultural dos anos 1980 pode nos ajudar a explicar o comportamento americano hoje.

Por Cliff Schecter na Revista Fórum

Antes dos mísseis Tomahawk começarem a chover sob as defesas aéreas de Muammar Gaddafi na semana passada, a única conversa que o presidente Obama precisou ter foi com seus conselheiros. Eles, e eles somente, decidiriam se um país fundado como uma república democrática iria se envolver naquilo que George Washington provavelmente teria descrito como uma “confusão estrangeira” – usando decretos do século XXI contra um sociopata com um histórico de violência e um fetiche por chapéus pior do que o de Sammy Davis Jr.

Obviamente, em 200 anos, os Estados Unidos se transformaram de um rebelde-com-causa em uma potência mundial, e um envolvimento adicional nas questões mundiais tornou-se uma parte do custo de fazer negócios. Há também um bom argumento a ser apontado, que é o fato de que, depois do erro terrível da invasão do Iraque, os EUA podem fazer algo de bom ao colocar um fim ao homicida Gaddafi na Líbia, como parte de uma coalizão internacional feita de países árabes e africanos, abençoada pelas Nações Unidas.

Mas isso não muda o fato de que o apoio congressional para esta operação foi tão importante quanto um apêndice ou os votos de casamento do Newt Gingrich. Obama e os seus simplesmente sabiam que podiam ignorar os representantes do povo e seguramente contar com uma cultura militarizada e condicionada a apoiar ataques às nações árabes. Particularmente uma que os EUA já haviam derrubado somente uma geração atrás.

É esse fato que faz com que o novo livro do autor, colunista e apresentador de rádio David Sirota, Back To Our Future (De Volta Ao Nosso Futuro), seja não somente uma leitura fascinante sobre a cultura dos anos 1980, mas um importante trabalho que ajuda a explicar porque os Estados Unidos faz as coisas que faz hoje. Do envolvimento numa guerra civil na Líbia a permitir que um louco sem referências prévias passeasse em seu bazar local de armas e comprasse armas de fogo de alto poder para a tentativa de assassinato de uma congressista. Sendo o segundo mais fácil que, digamos, encontrar plutônio para seu DeLorean em 1955.

"Fora-da-Lei com moral", como o explica Sirota, os anos 1980 foram a era do marketing-cruzado, quando conceitos que tinham um lugar na história americana de repente se tornaram lugares-comuns. A linguagem anti-governamental do presidente Ronald Reagan adornou filmes como Caça-Fantasmas e E.T.. Estas “mensagens políticas em lugares não-políticos doutrinaram os jovens, quando seus filtros para a propaganda política estavam desligados.” Como resultado, estas narrativas emolduradas se tornaram parte da sabedoria convencional, continuando como tal até hoje.

Num grande sentido, E.T. elevou as suspeitas sobre o governo, e terroristas líbios em De Volta Para O Futuro e um malvado lutador profissional chamado O Sheik de Ferro ajudaram a preparam o povo americano para o papel que desempenhamos no mundo árabe durante a última década. Enquanto isso, o ‘fora-da-lei com moral’, ou trapaceiro que tinha que trabalhar contra o sistema para fazer as coisas acontecerem, era uma mensagem central que atingia as massas.

A história de “o governo é o problema, não a solução” não estava somente contida na filosofia de Reagan, na ética de Wall Street, em muitos filmes, músicas e séries de televisão, mas talvez o que mais tenha promovido isso foi o uso de atletas em uma das mais poderosas máquinas de marketing já vistas – a Nike. Como nos diz Sirota sobre o efeito da Nike, “eles elevaram esta história ao nível da saturação social”. Isso pode ao menos parcialmente explicar o individualismo trapaceiro que pode ser visto no caso de amor que certos americanos têm com armas, e, mais especialmente, a velha lenda de que só eles mesmos podem se proteger, frequentemente do próprio governo ao qual eles recorreram para este serviço.

Claro, esta radical mudança cultural não aconteceu por si só. Um conjunto de reflexões reacionárias e organizações midiáticas, nascidas nos anos 1970 para liderar esta espécie de revolução cultural, sinergicamente agarraram este zeitgeist social e deitaram e rolaram com ele, declarando que os anos 1960 e os 1970 foram um ilegítimo, ingênuo e até mesmo perigoso experimento social. Como Sirota nos lembra, nos anos 1980 um ministro discursando na Heritage Foundation, uma destas novas (1973) e prodigamente fundadas operações de mídia e políticas de direita, intrincadamente ligada à administração de Reagan, acreditava que ele e sua estirpe estavam “ali para girar o relógio de volta para 1954 neste país”. ‘Pré-púberes’ no comando Danny Goldberg, ex-diretor da Air America, também reconheceu esta evolução cultural, e o papel desempenhado por bem-fundados órgãos conservadores em ajudar a espalhar o não-amor.

Da forma como ele vê, apelar para a psique e para a visão do povo americano, ou mesmo para os seus corações, se quiser colocar assim, está em escassez na esquerda, pois “Democratas não usam imaginação e cultura para abrir as mentes para seus programas”. Como Goldberg escreve em um artigo do Nation, “você pode contar quantas pessoas clicam numa página da web, durante quanto tempo ela foi vista e a quantas pessoas ela foi encaminhada, mas determinar quanto impacto ela tem na mente dos leitores requer suposições fundamentadas e a falível análise intuitiva humana”.

É melhor a esquerda começar a incorporar esta função de cultura, imaginação e emoção em nossas políticas em breve. Porque, se de fato estamos operando sob os parâmetros estabelecidos não só pela política, mas pelas artes e literatura dos anos 1980, reforçados por milhões de dólares investidos em projetos conservadores de longo prazo para convencer o povo americano que esta é a forma como sempre foi, nós temos uma - ou três - década difícil pela frente. Pois, como diz Sirota, “nosso mundo é crescentemente regido pelos ‘pré-púberes’, estudantes universitários e jovens alpinistas originalmente doutrinados nos anos 1980.”

Portanto, se estamos procurando uma alternativa para as por demais presentes tensões do aventureirismo estrangeiro, de Wall Street e das milícias domésticas – entre outros desafios – precisaremos do nosso próprio renascimento cultural para retornar aos valores que um dia animaram esta nação. Porque, venha ele de Krypton, Kansas City ou Cazaquistão, não estou preparado para me ajoelhar perante Zod tão brevemente.

Cliff Schecter é o Presidente do Libertas, LLC, uma progressista firma de relações públicas, o autor do bestseller The Real McCain, e um colaborador regular do The Huffington Post.

1968: Martin Luther King é assassinado

Correio do Brasil


Em dois atentados anteriores, o reverendo Martin Luther King conseguira escapar por pouco da morte. O negro que tanto se engajou pela igualdade de direitos nos Estados Unidos nas décadas de 1950 e 1960 alcançou apenas os 39 anos de idade.
No dia 4 de abril de 1968, foi assassinado com um tiro na sacada de um hotel em Memphis. O autor do disparo teria motivos supostamente racistas. Em dezembro de 1999, no entanto, um processo civil no Estado do Tennessee chegou à conclusão de que sua morte foi planejada por membros da máfia e do governo norte-americano.
Que homem era este que conseguiu dividir uma nação e ser amado e odiado ao mesmo tempo? Para melhor entendê-lo, precisamos nos situar no contexto dos Estados Unidos em plena década de 50: uma superpotência em plena Guerra Fria, uma nação rica, um país racista.
O país que se considerava modelo de democracia e liberdade, mas seus habitantes eram classificados de acordo com a raça. Os negros eram discriminados em todos os setores: na política, na economia e no aspecto social.

Boicote de ônibus

Os negros norte-americanos não podiam votar, eram chamados pejorativamente de “nigger” e “boy”, seu trabalho não era devidamente remunerado, e as agressões dos brancos eram rotina. Até que, em dezembro de 1955, em Montgomery, a costureira negra de 52 anos Rosa Parks resolveu não ceder seu lugar num ônibus para um passageiro branco.
Parks foi presa e, em decorrência, Martin Luther King, pastor da cidade, conclamou um boicote dos negros aos ônibus. Em um ano, tornou-se tão conhecido no país que assumiu a liderança do movimento negro norte-americano.
O boicote aos ônibus foi apenas o começo. Seguiram-se as marchas de protesto de King e milhares de defensores dos direitos civis em todo o país, acompanhadas de violações conscientes da legislação racista. Usavam, por exemplo, as salas de espera e os restaurantes reservados aos brancos. Nem a violenta repressão policial enfraqueceu o movimento.
“Temos que levar nossa luta adiante, com dignidade e disciplina. Não podemos permitir que nosso protesto degenere em violência física”, advertia o pastor batista, não se deixando provocar pela ordem pública.

EUA divididos para brancos e negros

Ele manteve esta filosofia, mesmo quando os 1.100 participantes do movimento negro radical exigiram a divisão dos Estados Unidos em dois, para brancos e negros, na Black Power Conference, em 1967.
Vinte e quatro horas antes de sua morte, Martin Luther pronunciou o célebre discurso em que anunciava ter avistado a terra prometida. “Talvez eu não consiga chegar com vocês até lá, mas quero que saibam que nosso povo vai atingi-la”, declarou ele, como se previsse a proximidade da morte.
Seu assassinato provocou consternação internacional. As inquietações raciais se agravaram em Chicago e Washington. Depois de anunciar o fim dos bombardeios no Vietnã e sua desistência de se recandidatar à Casa Branca, o presidente Lyndon Johnson chegou a adiar uma viagem ao exterior.
Em memória a King, no ano de 1983, os Estados Unidos tornaram feriado nacional a terceira segunda-feira de janeiro (ele havia nascido em 15 de janeiro de 1929).

domingo, 3 de abril de 2011

"O PIG vai tentar derrubar Dilma"

Altamiro Borges em seu blog

Reproduzo entrevista concedida pelo jornalista Paulo Henrique Amorim à revista Nordeste VinteUm:

O jornalista Paulo Henrique Amorim é, indiscutivelmente, uma figura polêmica. Bastou ser anunciado como o palestrante do I Ciclo de Debates Nordeste VinteUm/2011, realizado em fevereiro, na capital cearense, para despertar o interesse de estudantes de comunicação, profissionais de mídia, políticos e curiosos, que disputaram espaço no auditório da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC) para ouvi-lo falar sobre "Mídia: regulação e democracia". 


O evento faz parte da estratégia do PH de disseminar, em suas andanças pelo país, ideais de liberdade de expressão e democratização da informação. Pode-se dizer que é uma autêntica cruzada nacional contra o Partido da Imprensa Golpista (PIG), expressão que ele confessa ter sido uma apropriação indébita de uma ideia do deputado Fernando Ferro (PT de Pernambuco), num desabafo contra os grandes veículos de mídia nacionais.



Formado em Sociologia e Política, este carioca, filho de nordestino, é hoje uma das principais estrelas da Rede Record de Televisão e tem no currículo passagens pelo Jornal do Brasil, Rede Manchete, Editora Abril, Rede Globo, TV Bandeirantes, TV Cultura e os sites Zaz, Terra, UOL e iG. Mas é no blog Conversa Afiada que PH Amorim combate o que órgãos da imprensa, blogs políticos e ele próprio tacham de PIG. 



Segundo Paulo Henrique Amorim, fazem parte do PIG os conglomerados Globo, Folha e Estadão. “A Veja não está nesta categoria, pois é uma categoria à parte. Ela não é um órgão de comunicação, mas um detrito de maré baixa”, disse ele durante o Ciclo de Debates. Foi assim, afiado, que o jornalista concedeu entrevista exclusiva à Nordeste VinteUm, na qual comenta aspectos do governo Lula, expectativas para o governo Dilma, os 27 processos que responde por parte do banqueiro Daniel Dantas “e assemelhados”, além da urgência da chamada “Ley de Medios”, o marco regulatório, que pretende criar mecanismos para combater a concentração midiática do País. 



Paulo Henrique Amorim, qual a principal influência que o PIG exerce no Brasil? 



Formar a agenda (os assuntos discutidos no País), mas ele não tem mais o poder de determinar o curso dos acontecimentos. Seu poder se reduziu bastante. No entanto, ainda diz o que deve ser discutido. O que se comentava na Globo é que o Roberto Marinho costumava dizer que “o importante não é o que eu dou, o importante é o que eu não dou”. Ou seja, ao definir o que “dar”, o que noticiar e o que não noticiar, ele tomava uma atitude política. E é assim que a Globo formula a agenda do País. Não discute certos assuntos para discutir outros. Esse é um poder muito forte. Agora repito: é bom esclarecer que o PIG já foi mais forte. A capacidade de influenciar já foi bem maior. Hoje é uma capacidade decrescente. 



Dê um exemplo.



Outra dia, enquanto eu navegava no Blog da Dilma, vi que o Daniel (jornalista Daniel Bezerra, criador do blog) teve uma solução muito inteligente: noticiar a festa dos 90 anos da Folha (jornal Folha de São Paulo) como o pré-velório da Folha. A Folha de São Paulo já foi muito mais importante e incisiva do que é hoje. No entanto, quando ela determina o que pode e o que não pode chegar ao conhecimento da opinião pública, ela tem o poder de abafar, ou seja, o PIG abafa, não deixa que o Brasil discuta o Brasil. 



Tem um navegante no meu blog Conversa Afiada que diz sempre: “O Brasil não sai na Globo”. O Brasil não vê o que está acontecendo no Nordeste, não vê o que está acontecendo em matéria de obras de infraestrutura, o que está acontecendo com a ascensão social. O Brasil não vê que em 8 anos, durante o governo Lula, foi feito em matéria de redução da pobreza o que teoricamente teria que ser feito em 25. O Brasil fez um esforço espetacular para reduzir a pobreza e conseguirá atingir o objetivo da presidenta Dilma Rousseff, que é acabar com a miséria. 



Esse debate não é um debate que se trava no PIG. Por isso que ele ainda tem esse poder discriminatório. O PIG pauta as rádios do interior, jornais do interior e outros portais. Mas com o aumento do consumo de computadores – no ano passado houve um aumento de 23% na venda de computadores no Brasil, o que é espantoso –, o poder do PIG diminui progressivamente. Contudo, não há como negar que esse poder ainda é considerável.



E como você assiste ao insistente preconceito de outras regiões contra o Nordeste?



Sou filho de um baiano e casado com uma baiana. Nasci no Rio de Janeiro, moro em São Paulo. Aqui sou testemunha do preconceito muitas vezes explícito contra o nordestino. A elite paulista é uma elite separatista, que gostaria que São Paulo se desligasse do resto do Brasil. Isso é produto do preconceito e nasce em boa parte do preconceito das próprias elites nordestinas contra os próprios nordestinos. Faz parte de uma estratégia econômica, que é tornar o nordestino a mão de obra escrava.



Isso assusta muito. Assusta inclusive essa classe média ascendente, quando ela descobre que o mecânico da oficina em que ela vai consertar o carro pode ter um carro melhor do que o dela. Aí ela fica desesperada e, se aparece um cara dizendo que isso é por causa da Dilma, e que a Dilma é a favor do aborto, essa classe vai lá e vota na Marina Silva. Agora, quanto mais instituições, como a revista Nordeste VinteUm e o Ciclo de Debates do qual tive a honra de participar, sacudirem a poeira e mostrarem a contribuição do Nordeste para o Brasil, melhor. 



Eu estava conversando com minha mulher (jornalista Geórgia Pinheiro – diretora do blog Conversa Afiada) e disse: “Olha, existem três grandes brasileiros de curso internacional: Josué de Castro, Celso Furtado e Paulo Freire. Três nordestinos. O pensamento neoliberal, a direita brasileira do Sudeste e a direita paulista não produziram sequer um quadro brasileiro de trânsito internacional. Fernando Henrique Cardoso é um blefe. José Serra não escreveu um único livro. E o engraçado é que tem a fama de ser um economista competente. Nem diploma de economista ele tem. Eu costumo dizer que esses tucanos de São Paulo, se não fosse o PIG, não passariam de Resende, aquela cidade que divide o estado do Rio de Janeiro e o de São Paulo. Eles ficariam presos lá.



Durante o Ciclo de Debates Nordeste VinteUm, você afirmou que, apesar dos avanços em vários aspectos, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva não enfrentou o PIG. Acredita que com a presidenta Dilma Rousseff será diferente? 



Eu tenho mais fé do que esperança. Os americanos têm um ditado: “O que é, é o que você vê”. Perceba: a presidenta Dilma manteve o ministro da Defesa Nelson Jobim, que no Conversa Afiada chamo de ministro Nelson “John Bim”, pois ele é um informante da embaixada americana, como mostrou o site Wikileaks. Ela tem no Ministério da Justiça um advogado do Daniel Dantas, que é o ministro José Eduardo Cardozo, conhecido pela turma do Dantas como “Zé”. 



O ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, trata a questão da “Ley de Medios” quase como se fosse uma coisa pornográfica. Ele trata com muito pudor, muito recato, muita dificuldade. E finalmente a presidenta foi à tal festa dos 90 anos da Folha. O “pré-velório”. Se quiser, ela tem várias explicações plausíveis para isso. Por exemplo: que ela é chefe de Estado. Mas como chefe de Estado ela não pode esquecer que a Folha inventou uma ficha policial falsa dela. A Folha fraudou uma ficha policial da presidenta e isso é uma questão de Estado. Então eu acho que a ida dela à festa da Folha é um mau indício, que se soma aos outros que acabei de mencionar. Pode ser o perfil do Lula. Eu espero estar redondamente enganado e que ela a certa altura diga: “Olha, eu fui à festa da Folha, vou à festa da Globo, pois defendo a liberdade de expressão, a liberdade de expressão é intocável. E agora vou fazer a regulação da mídia”. Espero que eu esteja redondamente enganado e ela redondamente certa.



E caso não ocorra o marco regulatório, o que esperar? 



Se não houver marco regulatório, o PIG vai tentar derrubar a Dilma com muita eficiência. O PIG e o Jornal Nacional vão operar a sucessão da presidenta Dilma Rousseff com uma fúria indescritível. Nós ainda não vimos nada. Essa campanha sórdida e calhorda, como disse o grande cearense Ciro Gomes, ao se referir à “campanha contra o aborto” desfechada pelo José Serra durante as eleições, será ultrapassada em “calhordice”. 



A Dilma vai sofrer se não houver o marco regulatório. O que também poderá ser uma consequência lamentável é que se não houver um sistema mais aberto, transparente, livre e democrático de comunicação será muito fácil manipular a classe C na sua rápida ascendência, levando-a a uma plataforma moralista e paranoica. A nossa sorte é que “quem nasceu para José Serra nunca será Carlos Lacerda (renomado jornalista e político brasileiro)”, frase boa e que não é minha, é do Brizola Neto (blogueiro). 



O Serra nunca será o Lacerda. Mas sempre será possível tentar explorar o lado paranoico moralista de toda a classe média. E o Lula oportunizou a criação de uma gigantesca classe média. Se o PIG continuar tendo a importância que tem através, inclusive, da manipulação que a Globo protagoniza, é possível que essa classe média do Lula se torne “Berlusconiana” (referência a Sílvio Berlusconi – empresário e primeiro-ministro da Itália), ou seja, ela caia no conto do vigário da “calhordice”.



Paulo Henrique, você se arrepende de ter trabalhado na Rede Globo e na revista Veja?



Não. Na Veja eu trabalhei com a equipe pioneira dirigida pelo Mino Carta, que é o maior jornalista brasileiro. Foi com quem aprendi o “bê-á-bá” dessa profissão. E me orgulho muito de ter feito parte daquela equipe. Aprendi ali e procuro até hoje me guiar por algumas instruções elementares que o Mino transmitia para aquela equipe de jovens que tinham a faca entre os dentes, tentando fazer o melhor jornalismo possível do Brasil. 



Eu fui trabalhar na Globo porque saí do jornalismo escrito, percebi que o jornalismo escrito era decadente, com salários cada vez menores. Eu saí da direção de redação do Jornal do Brasil, fui mandado embora, e fui trabalhar na TV Manchete, que também estava em crise. Ela comprou, através do chefe do escritório em Brasília, o Alexandre “Maluf” Garcia (jornalista Alexandre Garcia, hoje comentarista da Rede Globo), a candidatura do Paulo Maluf. Mas o Maluf perdeu e a Manchete ficou órfã, foi quando eu fui convidado para trabalhar na Globo. Fui para fazer uma coluna de economia, fiquei pouco tempo nessa função e fui então dirigir o escritório da Globo em Nova York, um dos períodos mais estimulantes da minha vida de repórter. 



Qual sua avaliação sobre o efeito prático das Ações Diretas de Inconstitucionalidade por Omissão? (As ADOs são tentativas do professor Fábio Konder Comparato para que o Supremo Tribunal Federal julgue “por omissão” o Congresso Nacional por não legislar sobre três capítulos da Constituição de 1988 que tratam da Comunicação). 



O efeito prático disso é nulo. Digamos que o Supremo acate a argumentação do emérito professor Comparato e diga que de fato o Congresso se omitiu. Isso talvez não provoque nem mesmo um piscar de olhos no presidente do Senado, José Sarney, por exemplo, que dividiu a presidência da República com o Roberto Marinho. 



Bom, você é conhecido por dizer o que pensa. Como enfrenta os 27 processos que possui?



Pagando. Na verdade, sou processado por Daniel Dantas e seus assemelhados. Pessoas que são ligadas afetivamente, financeiramente e ideologicamente a ele. E tenho vários motivos para acreditar, assim como meus dois advogados, que Daniel Dantas articulou uma ofensiva de processos contra mim para me calar pelo bolso. Isso não vai acontecer porque não tem como me calar pelo bolso, inclusive porque, graças a Deus, que me beijou na testa, eu tenho fonte de renda que me assegura a possibilidade de, com dificuldade, comendo o pão que o diabo amassou, pagar os advogados. 



O que poderia dizer sobre a suposta conexão do Daniel Dantas com o PIG? 



O Daniel Dantas e o PIG têm uma relação carnal. O “Sistema Dantas de Comunicação” literalmente remunera órgãos de comunicação, colunistas e instituições jornalísticas que, na verdade, são lobistas e organizações de grupos de pressão. E tudo isso fica atrás do biombo da imprensa. Existe um sistema invisível subterrâneo que me permite supor que a relação do Dantas com órgãos de imprensa e jornalistas seja uma relação muito profunda. 



O Dantas inovou no Brasil, como disse o delegado Protógenes Queiroz ao longo das investigações da Satiagraha (operação da Polícia Federal Brasileira contra o desvio de verbas públicas, corrupção e lavagem de dinheiro, resultando na prisão de banqueiros, diretores de banco e investidores, em 2008). Ele inovou porque não comprou só o dono do órgão de imprensa; ele comprou também os jornalistas. Botou dinheiro em cima e embaixo, é o que diz a Satiagraha. Ele tem uma cobertura benévola, é tratado com tapete vermelho. Dão a ele o tratamento que Fernando Henrique Cardoso lhe dá. FHC chama ele de brilhante. É assim que o PIG trata o Dantas.



O delegado Protógenes Queiroz agora é deputado federal. Arrisca uma opinião? 



Uma coisa é você fazer jornalismo escrito e fazer televisão. Nesse raciocínio, uma coisa é você ser delegado de polícia e ser deputado federal. Nem todo mundo que faz jornal escrito consegue fazer televisão. Nem todo delegado consegue ser deputado federal. Então, vamos ver se ele consegue se tornar um eficiente deputado federal. Eu faço votos. 



As primeiras manifestações dele são alvissareiras. Ele tem alguns projetos interessantes: reforma do código de processo penal, por exemplo. Alguns, ele já transformou em projeto de lei, como aumentar a punição para os criminosos de colarinho branco. Agora, daí a isso prosperar e progredir na tramitação da Câmara, há uma grande distância. Espero que ele reproduza o brilho e o empenho da qualidade do trabalho dele como delegado.



E qual a relação do Daniel Dantas com o PT (Partido dos Trabalhadores)?



O ministro José Eduardo Cardozo, que é do PT de São Paulo, trabalhou para Dantas. Ele advogou para o Dantas e chegou a ir à Itália a fim de defender os interesses do seu cliente junto à “turma”. Imagino que seja um pessoal de “padrões morais elevadíssimos” a turma do Sílvio Berlusconi, que o Dantas tinha lá uma divergência. No meu blog Conversa Afiada, eu falo sobre isso. (No blog, PH Amorim afirma que passou a receber informações de alguém que se identifica como “Stanley Burburinho II”, um “especialista” em “camas de gato”. Alguns documentos destacam que José Eduardo Cardozo tinha um canal direto com Humberto Braz (ex-presidente da Brasil Telecom), condenado à prisão por corrupção com Daniel Dantas na Operação Satiagraha. Mais recentemente, PH Amorim publicou texto no Conversa Afiada sobre o que considera a “tucanização” do PT. “Como diz o Mino Carta, o mensalão ainda está por provar-se. Tem cara de ‘caixa dois’ de campanha e não de mensalidade. Porém, está claro que o PT tucanizou-se, DEMOnizou-se e entrou no jogo do financiamento ilegal de campanhas. Como fez Eduardo Azeredo, em Minas, ex-presidente nacional dos tucanos. E se repetiu nos escândalos do Arruda, do DEMO, de Brasília, aquele que, segundo Alexandre Maluf Garcia, formaria com “Cerra” a chapa vitoriosa ‘vote num careca e leve dois’. O que se impõe ao PT é fazer a mea culpa. Errei, sim! E só readmitir o Delúbio depois de julgado. Delúbio e José Dirceu são o valerioduto pelo qual o dinheiro de Daniel Dantas engordou o PT. As empresas de Dantas em Minas faziam contratos milionários de publicidade no valerioduto e o dinheiro chegava ao PT. Como, no passado, chegava ao PSDB. O passador de bola apanhado no ato de passar bola contaminou todo o sistema político brasileiro. E o PT não terá autoridade moral para falar em honestidade, transparência ou reforma eleitoral enquanto não abrir as contas do Delúbio com aquele a quem chamava, na CPI dos Correios, de ‘dr. Carlinhos’. Carlinhos, como se sabe, foi cunhado de Daniel Dantas e até hoje é seu abre-alas. O Carlinhos é amigo íntimo do ex-senador Heráclito Fortes, que o povo do Piauí preferiu desempregar (...). Se o PT readmitir Delúbio na reunião do diretório nacional, em abril, aplicará a Lei da Anistia a Daniel Dantas e a seu fiel escudeiro, o dr. Carlinhos. E viva o Brasil!



Você se define um blogueiro ansioso. Como avalia o papel das novas mídias?



Eu sou um beneficiário delas. Criei uma nova natureza, um outro Paulo Henrique Amorim, fazendo o meu blog Conversa Afiada. Eu, que era um jornalista limitado no ambiente do jornalismo escrito e depois no jornalismo de televisão, com o tempo, graças a Deus, me tornei também um jornalista de internet. É uma nova natureza e um novo espaço no qual espero permanecer até me aposentar daqui a muitos e muitos anos.



Paulo Henrique, apesar de ressaltar a importância do papel das novas mídias, você destaca que sozinhas elas não fazem revolução. Poderia explicar melhor? 



Temos que colocar a internet, as novas mídias e as redes sociais na devida perspectiva. Elas são muito importantes para transmitir informação, esclarecer, divulgar verdades, destampar panelas, dar espaço à indignação da crítica, para a irreverência, para o bom humor. Elas têm um papel muito grande de aglutinação. Para combinar encontros, reuniões, passeatas e assim por diante. Agora isso não faz revolução. O que faz a revolução é a articulação política. 



Não podemos transformar as mídias sociais nos novos protagonistas. Isso seria muito bom para a indústria de telecomunicação. Seria muito bom para o pessoal da telefonia móvel, para os donos do Google e Facebook, todo mundo acreditar que eles agora são mágicos, que são capazes de reinventar a história. Isso é uma balela. Só faz eles ficarem mais ricos. Também não é verdade que eles sejam o novo Lawrence da Arábia, que eles chegam lá no Oriente Médio e o redesenham como fez o coronel inglês no início do século passado. Não é verdade. O que faz revolução, o que faz a mudança, é a sociedade, é a articulação, é o germe do partido político.



E o futuro da banda larga?



Brilhante, que pode ser usado para a educação, para a distribuição da informação. Agora, de novo, não é a fórmula mágica.

Filme Russo

Arca Russa
(Russkiy kovcheg)
Arca Russa
 
Créditos: Makingoff
Poster
Sinopse
Um museu como um ser vivo, uma entidade que respira e tem personalidade própria. Sokúrov empresta alma ao colossal palacete do Hermitage, em São Petersburgo, um dos maiores museus do mundo. Arca Russa foi filmado em um único plano-seqüência, sem cortes, que dura 97 minutos e atravessa 35 salas do museu, transformando a tela de cinema em um quadro vivo por onde desfilam personagens importantes da história da Rússia: Pedro, o Grande; Catarina, a Grande; Catarina II, Nicolau e Alexandra.

Simbiose perfeita de cinema, história e artes plásticas, Arca Russa é uma experiência visual única e inesquecível.
Screenshots (clique na imagem para ver em tamanho real)

Elenco
Informações sobre o filme
Informações sobre o release
Sergei Dontsov, Mariya Kuznetsova, Leonid Mozgovoy, Mikhail Piotrovsky, David Giorgobiani, Aleksandr Chaban, Lev Yeliseyev, Oleg Khmelnitsky, Alla Osipenko, Artyom Strelnikov, Tamara Kurenkova, Gênero: Drama / Fantasia
Diretor: Aleksandr Sokurov
Duração: 99 minutos
Ano de Lançamento: 2002
País de Origem: Russia
Idioma do Áudio: Russo
IMDB: http://www.imdb.com/title/tt0318034/
Qualidade de Vídeo: DVD Rip
Vídeo Codec: DivX 5
Vídeo Bitrate: 1591 Kbps
Áudio Codec: AC3
Áudio Bitrate: 448 kbps CBR 48 KHz
Resolução: 640 x 352
Aspect Ratio: 1.818
Formato de Tela: Widescreen (16x9)
Frame Rate: 25.000 FPS
Tamanho: 1.362 GiB
Legendas: Em anexo
Premiações
- Indicado à Palma de Ouro em Cannes. outros prêmios aqui.
Crítica
`A Rússia é como um teatro`, diz alguém em certo momento de Arca Russa, uma surpreendente produção dirigida por Aleksandr Sokurov – e esta afirmação certamente encontra reflexo no próprio filme. Rodado inteiramente em um único plano-seqüência (ou seja: sem corte algum ao longo de seus 96 minutos), Arca Russa leva o espectador a um fascinante passeio através de 35 salas do Museu Hermitage, em São Petersburgo, recriando, através de elaboradas encenações, diversos momentos da história russa entre os séculos XVII e XX.

Tomadas longas não são novidade alguma na história do Cinema, é verdade: bem antes de Sokurov, o neo-realismo italiano se notabilizou pela utilização deste recurso, que também aparece em filmes como A Marca da Maldade, no qual Orson Welles deslumbra o público com a tensa abertura sem cortes; Festim Diabólico, que Alfred Hitchcock dividiu em oito takes de dez minutos cada; além de Os Bons Companheiros, de Martin Scorsese; Boogie Nights e Magnólia, de Paul Thomas Anderson; e, é claro, O Jogador, de Robert Altman; entre diversos outros. E, vale lembrar, o recente Time Code (de Mike Figgis) tinha como chamariz o fato de utilizar 4 câmeras digitais para contar, também sem cortes, várias histórias que se entrecruzavam.

Ainda assim, o feito de Sokurov pode ser considerado inovador: ao contrário de Figgis, que trabalhou com elenco pequeno e diálogos improvisados, Arca Russa envolveu a coordenação de cerca de 2.000 atores e figurantes, tendo que driblar a complexa geografia do Hermitage, onde foi rodado: ao longo da projeção, a câmera percorre estreitos corredores, sobe escadas em caracol, atravessa um pátio coberto de neve e mergulha no meio de uma multidão de dançarinos – e tudo isso sem jamais perder a marcação previamente estabelecida, já que sempre consegue encontrar o ator certo no momento de sua fala. E, ao contrário do que poderíamos esperar, Arca Russa não é um filme de enquadramentos e movimentos rígidos: em certo momento, por exemplo, a câmera percorre um palco e `salta` sobre a orquestra, flutuando como um fantasma (algo apropriado, como explicarei adiante). Além disso, o diretor de fotografia – e operador da steadicam – Tilman Büttner consegue evitar ser surpreendido por qualquer reflexo, o que é notável, se considerarmos a abundância deste tipo de superfície no museu. É, portanto, fácil imaginar que a produção do filme tenha representado um verdadeiro inferno logístico para todos os envolvidos.

Porém, Arca Russa não impressiona apenas por sua proeza técnica - sua narrativa também se beneficia da estrutura planejada por Sokurov: à medida em que passeamos pelo Hermitage, os séculos passam diante de nossos olhos, promovendo encontros com figuras como Pedro, o Grande, Catarina II (em dois momentos bem distintos de sua vida) e com a trágica família de Nicholas e Alexandra Romanov. Mas o cineasta vai além, permitindo que o tempo assuma uma fluidez ainda maior a partir do momento em que as eras começam a se `cruzar`, como no instante em que o Fantasma que serve como guia para o espectador passa por uma freira que, mais tarde, será vista `perseguindo` a princesa Anastácia (há, ainda, um outro personagem misterioso e melancólico que `atravessa` os séculos e cujo significado não consegui decifrar – ainda).

Apesar disso, conhecer a história russa não é pré-requisito para aproveitar o filme, já que várias passagens possuem significado claro: a terrível sala na qual o Fantasma encontra um carpinteiro construindo caixões é, por exemplo, uma referência inequívoca ao massacre ocorrido durante a Revolução Bolchevique; e a melancolia deste mesmo Espectro ao final do Grande Baile que encerra Arca Russa é um indicativo claro do que está por vir (aliás, sua recusa em sair do salão e acompanhar os demais convidados é comovente).

Produzido com o apoio do próprio Hermitage (um dos diretores da instituição faz uma ponta interpretando a si mesmo), Arca Russa é uma produção riquíssima, impressionando graças ao seus belíssimos figurinos, `objetos de cena` e, é claro, ao seu cenário – todo o Museu. E como esquecer os momentos finais da projeção, que leva o espectador a descer uma longa escadaria em meio a centenas de figurantes até chegar a uma paisagem sombria e pouco promissora?

Não sei se o filme retrata uma curiosa viagem no tempo ou se é protagonizado por fantasmas: estamos testemunhando episódios da vida de todas aquelas célebres figuras ou apenas nos encontramos com espíritos que habitam o Hermitage? A resposta para esta dúvida pode ser difícil de ser encontrada (embora seja relevante, no mínimo, como curiosidade), mas ao menos uma coisa é certa: Arca Russa já entrou para a História do Cinema como uma obra inesquecível.

Pablo Villaça
Fonte: Cinema em Cena
Coopere, deixe semeando ao menos duas vezes o tamanho do arquivo que baixar.

A legenda e o torrent do filme podem ser obtidas via email: turcoluis@gmail.com