sábado, 16 de abril de 2011

Protestantismo e catolicismo na América Latina: desafios da democracia e do pluralismo religioso

 Entrevista especial com Paul Freston
 
Pesquisas recentes indicam o crescimento do pentecostalismo no Brasil. Há, portanto, e isso é inegável, uma mudança no status religioso nacional. Segundo o sociólogo Paul Freston, o motivo deste declínio da Igreja Católica se dá porque o pluralismo e a democracia se apresentam como os grandes desafios para a religião. “É difícil manter a hegemonia na sociedade civil porque ela é cada vez mais independente, autônoma e plural. Assim, as ditaduras, mesmo aquelas que perseguiram a Igreja, eram situações mais favoráveis para a manutenção da posição social da Igreja”, explicou durante a entrevista que concedeu à IHU(Institutos Humanitas Unisinos) On-Line, por telefone.

Paul Charles Freston nasceu na Inglaterra e é brasileiro naturalizado. Graduou-se em História e Antropologia Social pela University of Cambridge (Inglaterra) e fez mestrado em Latin American Studies pela University of Liverpool. Também é mestre em Christian Studies pela Regent College. Já no Brasil, fez doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas. Recebeu o título de pós-doutor pela University of Oxford. Atualmente, é pesquisador sênior da Baylor University (EUA) e professor na Universidade Federal de São Carlos (SP).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O senhor destaca os desafios da democracia e do pluralismo religioso para a1 Igreja Católica. Como se dão esses desafios?

Paul Freston – A questão do pluralismo e da democracia é um grande desafio para a Igreja Católica. Nesse ponto, tenho usado muitos apontamentos de uma cientista política estadunidense Frances Hagopian [1] que trata bastante da democracia e do pluralismo religioso reforçando-se mutuamente para desafios relativos à Igreja Católica. Para ela, a democracia sem pluralismo religioso seria mais fácil para a Igreja manejar, ou o pluralismo sem democracia, mas as duas coisas ao mesmo tempo são um desafio maior.

IHU On-Line – A Igreja se encaminha para uma possível superação desses obstáculos?

Paul Freston – A questão é exatamente essa: que superação seria possível nesse momento? Não é fácil, porque, na realidade, os projetos da Igreja são muito ambiciosos e é difícil realizá-los. Nesse sentido, cada episcopado nacional acaba fazendo sua própria escala de prioridades. É difícil manter a hegemonia na sociedade civil porque ela é cada vez mais independente, autônoma e plural. Assim, as ditaduras, mesmo aquelas que perseguiram a Igreja, eram situações mais favoráveis para a manutenção da posição social da Igreja. Nesse período era mais fácil identificar o “inimigo” e era mais fácil a Igreja agir como “guarda-chuvas” de grupos oposicionistas. Nesse sentido, essa situação era mais favorável à manutenção da situação da Igreja em relação à realidade atual, que é mais democrática e pluralista.

IHU On-Line – O que caracteriza e o que define, especialmente no Brasil, o pluralismo religioso?

Paul Freston – No Brasil, o pluralismo pode ser destacado em vários sentidos. Temos o declínio de declaração católica, de adesão nominal. Nós ainda não temos os dados religiosos do mais recente censo. Seria interessante ver isso. Mas os censos anteriores e pesquisas mais recentes indicam que na adesão nominal a Igreja vem perdendo cerca de 1% da população por ano. Aí temos o crescimento, principalmente, do pentecostalismo, do protestantismo histórico – menos, mas também impresso – e o crescimento dos chamados "sem religião”. Estes últimos formam um grupo muito heterogêneo. As outras religiões crescem menos, pelo menos em termos de declaração no censo. Sabemos que há muita dupla filiação que não aparece no censo.

Além disso, tem o aspecto da questão do pluralismo interno católico, ou seja, pluralismo nas maneiras de ser católico, nas maneiras de crenças entre aqueles que se declaram católicos e isso é uma coisa que também vem crescendo cada vez mais. Então, temos vários tipos de pluralismo religioso.

IHU On-Line – O senhor afirma que, diante do "pluralismo multidimensional", a Igreja Católica perderá seu status de "igreja no sentido weberiano". Como isso acontece?

Paul Freston – Em parte por uma questão numérica. Quando você representa uma porção cada vez menor da população, torna-se mais difícil justificar que certos privilégios sejam formalizados, justificados. A ideia de igreja é de algo que se confunde com a nacionalidade e reivindica um certo status preferencial dentro da sociedade. É isso que está cada vez mais ameaçado.

Além do declínio numérico, depende também de outros fatores como o peso histórico da instituição dentro de cada país e dentro da América Latina há diferenças nesse sentido. Há países onde a Igreja tem um peso histórico maior do que em outros. Também depende da questão de prática. Ou seja, não é apenas uma questão de adesão nominal. Nesse sentido, é claro que o catolicismo vem se transformando na medida em que, perdendo devotos, as pessoas que permanecem tendem a ser mais atuantes, praticantes e identificadas. O catolicismo, então, vai se tornando, cada vez mais, uma religião de escolha no Brasil e não mais uma religião simplesmente herdada culturalmente. O sentido de ser católico, portanto, vai mudando.

IHU On-Line – O senhor fala de um projeto católico comum, a Nova Evangelização, adotado oficialmente em 1992. Poderia explicá-lo?

Paul Freston – É um pouco vago, na realidade, porque é um projeto de reconquistar a influência junto à sociedade civil, de ter uma influência não tanto diretamente do Estado. Isso é complicado. É justamente aí que o pluralismo e a democracia se complicam, porque limitam o alcance e a possibilidade de a igreja ter essa influência que ela deseja. A sociedade civil vai se portando cada vez mais de forma autônoma. Então, esse projeto de uma reconquista da cultura vai se tornando menos viável, o que complica também, obviamente, a porcentagem da população católica e a debilidade institucional, ou seja, a falta de clero. Essa é uma questão crônica na América Latina.

IHU On-Line – Grande parte dos estudos sobre o fenômeno religioso tem como ponto de partida o cenário europeu ou anglo-saxônico, como os desafios do esvaziamento das igrejas, do islamismo crescente, do desaparecimento do sentido religioso. Na América Latina, ao contrário, que pontos o senhor destacaria como centrais para compreender o cenário religioso?

Paul Freston – Na Europa há um crescente pluralismo, mas ele advém do processo de secularização e também do processo de imigração de pessoas mais religiosas. Obviamente, imigrantes muçulmanos vêm logo à mente. Mas há imigrantes hindus e cristãos nessa “leva” para a Europa, sejam africanos, latino-americanos... Então, isso é o que marca a questão do pluralismo na Europa.

Já a América Latina não tem esse aspecto da imigração e a secularização, ou seja, não existe no mesmo patamar que acontece na Europa. O que ocorre aqui é um processo interno de fragmentação religiosa a partir de um passado de hegemonia católica muito marcado pelo monopólio oficial. A América Latina se distanciou bastante porque produziu esse setor protestante, principalmente pentecostal, que a Europa latina não produziu. Por outro lado, a América Latina não produziu o secularismo antirreligioso que é encontrado em várias partes do sul da Europa. A situação aqui é bem diferente. Então, cada vez mais a América Latina vai se distanciando de tais partes da Europa.

IHU On-Line – Que fatores culturais e sociais diferem do cenário europeu-americano do cenário latino-americano?

Paul Freston – A América Latina é uma terceira coisa: não é nem o processo que teve no norte da Europa (que foi o processo de reformas nacionais e depois uma fragmentação dentro do campo protestante) nem o processo do sul da Europa (que foi de continuação da hegemonia católica). Porém, criou um setor antirreligioso muito forte. Depois, basicamente as outras formas religiosas permaneceram fracas. Também não foi o processo americano de um processo de pluralismo já de saída na própria formação da nação. Por causa disso, houve a decisão de separar a Igreja e o Estado, a aproximação com a ideia de nacionalismo e a criação do fenômeno da denominação. A Igreja Católica nos Estados Unidos teve que se enquadrar nisso e acabou adquirindo várias características das denominações protestantes.

IHU On-Line – Por trás da "descatolização" e da "protestantização" da AL, não estaria também a questão da relevância do discurso (das linguagens, das gramáticas) de cada uma dessas correntes religiosas no contexto atual?

Paul Freston – Não é isso que está acontecendo. O que ocorre é uma mudança no status público da Igreja Católica, mas também de uma transição protestante que é o fato de que muito dificilmente o protestantismo vai chegar a ser maioria em algum país latino-americano. Certamente, no Brasil a perspectiva não é essa. Prevejo que nas próximas décadas o crescimento protestante vai estabilizar, vai chegar num patamar e se estabilizar. Ficaremos entre 20 e 35%. Quando estabilizar aí tudo muda. Essa é a questão.

Teremos um quadro religioso totalmente transformado nesse país; teremos um protestantismo que já não cresce como hoje. Não vai haver o mesmo triunfalismo e o mesmo jeito aguerrido. Vão ser produzidos outros tipos de líderes, outras relações entre as diferentes religiões e com a política. Vai ser muito diferente do que é hoje.

Ao mesmo tempo, a Igreja Católica vai estabilizar. Porém, de uma forma diferente do que sempre foi. Pode até ser minoria; é possível que o censo do ano passado já dê uma minoria católica no estado do Rio de Janeiro, não no país todo. E quando estabilizar os “fiéis” da Igreja serão descritos como mais praticantes, identificados, compromissados.

As relações entre católicos e protestantes serão bem diferentes e, além disso, teremos um setor razoavelmente grande de pessoas adeptas a outras religiões ou “sem religião”. Essa situação pluralista vai ser mais difusa e não vai haver uma protestantização.

IHU On-Line – Nessa sociedade pós-moderna, e especialmente no contexto brasileiro, as igrejas estão sabendo encontrar o seu lugar?

Paul Freston – Tudo indica que sim. Algumas mais do que outras. Além disso, outras vão surgir totalmente novas. A princípio, a pós-modernidade não é mais nem menos favorável: é diferente. A tendência é produzir outros tipos de igreja ou a transformação de igrejas existentes que vão se adequar à nova situação.

IHU On-Line – Quais são as questões socioculturais mais importantes às quais as igrejas deveriam prestar mais atenção nesse cenário?

Paul Freston – Aí já é uma coisa mais normativa para as igrejas que eu não ousaria fazer. É claro que alguma coisa irá acontecer e que já sabemos que está em curso: a questão do envelhecimento da população. O Brasil vai passar a ter um outro perfil demográfico, com uma população mais estável, se não houver imigração. É possível que haja, porque o Brasil pode virar um país de imigração novamente. Se isso não ocorrer, a população vai estabilizar, vai ficar mais envelhecida, e isso trará desafios diferentes para todas as religiões. Essa situação irá exigir outras abordagens e outras formas mais apropriadas para esse perfil demográfico.

Além do mais, creio que, se as coisas continuarem como estão, com uma democracia consolidada e uma situação econômica melhor, a tendência vai ser que a política e a vida pública terão espaços para outras questões. Nas ultimas eleições vimos um início disso: a presença da questão do aborto adquirindo uma proeminência nos debates que não tinha antes nas eleições brasileiras. Isso pode ser um reflexo de uma situação de maior estabilização econômica e consolidação democrática.

Não creio que essa questão do aborto tenha mudado o curso das eleições, como algumas pessoas dizem. Um dia depois do primeiro turno fui perguntado por muitos meios de comunicação sobre isso e falei que seria improvável que essa questão teria sido a razão de haver um segundo turno. Depois, a pesquisa do Datafolha mostrou isso de fato. Mostrou que o debate acerca do aborto não foi o suficiente para mudar a situação. De toda forma, foi um tema que teve mais visibilidade em eleições brasileiras do que em momentos anteriores. Isso pode ser um prenúncio do que vem por aí, se a situação geral do país continuar melhorando.

Notas:
[1] Frances Hagopian é doutora em Ciência Política e professora e diretora de Estudos Brasileiros da Harvard University

Massacre apoiado por EUA mancha primavera árabe no Bahrein


No discurso de condenação ao governo de Kadafi, Obama justificou os recentes ataques militares a Líbia com estas palavras: “Assassinaram pessoas inocentes. Atacaram hospitais e ambulâncias. Prenderam, agrediram e assassinaram jornalistas”. Agora ocorre o mesmo no Bahrein e Obama não tem nada a dizer. “Centenas de pessoas estão presas e são torturadas por exercer sua liberdade de expressão. E tudo por vingança, porque um dia, há um mês, quase a metade da população do Bahrein foi para as ruas exigir democracia e respeito pelos direitos humanos”, diz Nabeel Rajab, presidente do Centro pelos Direitos Humanso do Bahrein. O artigo é de Amy Goodman.


Três dias depois da renúncia de Hosni Mubarak e do fim de sua longa ditadura no Egito, o povo do Bahrein, pequeno estado do Golfo, se lançou massivamente às ruas de Manama, capital do país, e se reuniu na Praça da Perla, sua versão da praça egípcia de Tahrir. O Bahrein vem sendo governador pela mesma família, a dinastia de Khalifa, desde a década de 1780, há mais de 220 anos. Com as manifestações, a população do país não pedia o fim da monarquia, mas sim uma maior representação em seu governo.

Após um mês de protestos, a Arábia Saudita enviou forças militares e policiais por meio da ponte de mais de 25 quilômetros que une o território continental saudita à ilha de Bahrein. A partir desse momento, reprimiu-se cada vez com mais força e violência os manifestantes, a imprensa e as organizações de direitos humanos.

Uma valente jovem ativista bahreiní a favor da democracia, Zainab al-Khawaja, viu a brutalidade de perto. Para seu horror, foi testemunha de como seu padre, Abdulhadi al-Khawaja, um destacado ativista pelos direitos humanos, foi golpeado e preso. Ela descreveu o ocorrido, desde Manama:

“Forças de segurança atacaram minha casa. Chegaram sem aviso prévio. Derrubaram a porta do edifício, derrubaram a porta de nosso apartamento e atacaram diretamente meu pai, sem explicar os motivos de sua prisão nem dar-lhe oportunidade para falar. Arrastaram meu pai pelas escadas e o golpearam na minha frente. Bateram nele até que ficou inconsciente. A última coisa que ouvi-lo dizer foi que não podia respirar. Quando tratei de intervir, tentei dizer-lhes: “Por favor, deixem de bater nele, ele irá com vocês voluntariamente. Não precisam golpeá-lo assim”. Basicamente me disseram que calasse a boca, me agarraram e me arrastaram escadas acima até o apartamento. Quando voltei a sair, o único rastro que havia de meu pai era seu sangue na escada”.

A organização de direitos humanos Human Rights Watch pediu a imediata libertação de Al-Khawaja. O esposo e o cunhado de Zainab também foram presos. Zainab publica no twitter como “angryarabiya” e, em protesto pelas prisões, iniciou uma greve de fome, ingerindo apenas líquidos. Também escreveu uma carta ao presidente Barack Obama, na qual diz: “Se algo acontecer com meu pai, com meu esposo, meu tio, meu cunhado ou comigo, declaro-o tão responsável como o regime de Al Khalifa. Seu apoio a esta monarquia faz com que seu governo seja cúmplice de seus crimes. Todavia, abrigo a esperança de que você se dê conta de que a liberdade e os direitos humanos significam o mesmo para uma pessoa do Bahrein do que para uma pessoa dos Estados Unidos”.

No discurso de condenação ao governo de Kadafi, Obama justificou os recentes ataques militares a Líbia com estas palavras: “Assassinaram pessoas inocentes. Atacaram hospitais e ambulâncias. Prenderam, agrediram e assassinaram jornalistas”. Agora ocorre o mesmo no Bahrein e Obama não tem nada a dizer.

Do mesmo modo que ocorreu no Egito e na Tunísia, o sentimento é nacionalista e não religioso. O país é 70% xiita, mas governador por uma minoria sunita. No entanto, uma das principais consignas presentes nos protestos tem sido: “Nem xiita, nem sunita, bahreiní”. Isso desmoraliza o argumento esgrimido pelo governo do Bahrein, segundo o qual o atual regime seria a melhor defesa contra a crescente influência do Irã, um país xiita, no rico em petróleo Golfo Pérsico. Some-se a isso o papel estratégico do Bahrein: é ali que se encontra a base da 5ª Frota Naval dos EUA, encarregada de proteger os “interesses estadunidenses” como o Estreito de Ormuz e o Canal de Suez, e de dar apoio às guerras no Iraque e no Afeganistão. Não está também entre os interesses estadunidenses o de apoiar a democracia e não os ditadores?

Nabeel Rajab é presidente do Centro pelos Direitos Humanos do Bahrein, organizado que foi dirigida pelo recentemente sequestrado Abdulhadi al-Khawaja. Rajab pode enfrentar um julgamento militar por publicar a fotografia de uma manifestante que morreu enquanto permanecia preso. Rajab me disse: “Centenas de pessoas estão presas e são torturadas por exercer sua liberdade de expressão. E tudo por vingança, porque um dia, há um mês, quase a metade da população do Bahrein foi para as ruas exigir democracia e respeito pelos direitos humanos”.

Rajab observou que a democracia no Bahrein poderia implicar a luta pela democracia nas ditaduras vizinhas do Golfo Pérsico, especialmente na Arábia Saudita. É por isso que a maioria dos governos regionais têm interesse no fim dos protestos. A Arábia Saudita está bem posicionada para tarefa já que é recente beneficiária do maior acordo de venda de armas na história dos EUA. Apesar das ameaças, Rajab foi firme: “Enquanto respirar, enquanto viver, vou seguir lutando. Acredito na mudança. Acredito na democracia. Acredito nos direitos humanos. Estou disposto a dar minha vida. Estou disposto a dar o que for preciso para alcançar essa meta”.

(*) Amy Goodman é editora e apresentadora do Democracy Now.

(**) Denis Moynihan colaborou na produção jornalística desta coluna


Tradução: Katarina Peixoto

Carajás 15 anos, o massacre presente


Aniversário da chacina lembra a necessidade de punição aos assassinos e de tratamento e indenização às vítimas


Márcio Zonta
de Eldorado dos Carajás (PA) no Brasil de Fato

Ao andar pelas ruas da vila do assentamento 17 de abril em Eldorado dos Carajás, ainda escuta-se muitas histórias sobre a marcha que culminou no massacre da curva do S, na rodovia PA 150, em Eldorado do Carajás, há 15 anos. Os sobreviventes ainda têm dúvidas quanto ao número oficial de mortos divulgados pelo Estado, pois há crianças, homens e mulheres desaparecidos que não estavam na lista dos mortos e, tampouco, foram encontrados depois. As marcas do massacre persistem tanto na simbologia da conquista das cinco fazendas, parte das 15 existentes no complexo Macaxeira, quanto no corpo dos mutilados ou na cabeça de muitos que viveram aquele 17 de abril de 1996.
“Foi a tarde mais sangrenta da minha vida”, recorda Haroldo Jesus de Oliveira, o primeiro sobrevivente a conversar com a reportagem. Quem o vê trabalhando atencioso e calmo na Casa Digital 17 de abril, monitorando jovens e crianças no manuseio da internet, não imagina as recordações que ele guarda. “Acordamos felizes naquela manhã do dia 17, pois o Coronel Pantoja, junto a uma comissão, do então governador Almir Gabriel (PSDB), disse que daria os ônibus para que fossemos até Belém, onde pressionaríamos o governo para desapropriação dessas terras. Inclusive, já tínhamos desobstruído a rodovia na noite anterior, já que esse era nosso acordo, e preparado a alimentação para as famílias que participavam da marcha”, diz Oliveira.
Onze horas da manhã venceu o prazo do acordo, e em vez de chegar os ônibus, que levariam cerca das 1,8 mil famílias da marcha, chegou o batalhão da Polícia Militar, o que fez com que as famílias retomassem a estrada. “Eu me lembro como se fosse hoje. Estávamos de prato na mão, almoçando, sob uma chuvinha leve, um sereninho bom. Muitos homens começaram a descer dos ônibus da polícia e montar o acampamento, por volta de três da tarde, e ficaram cerca de 90 minutos preparando-se, como se fossem para uma guerra”, relata Oliveira.
Depois de estabelecidos os policiais no local, a mesma comissão disse que não providenciaria os ônibus e que tinha ordens do governador para retirar as famílias da via. “Nós nunca pensamos que poderia acontecer aquilo. Perto das 17 horas, começaram a jogar bombas de efeito moral contra as pessoas e a atirar no chão. Pessoas tomavam tiros nas pernas e caiam. Mas aqueles que iam para cima, eles atiravam no peito mesmo”. A carnificina começou naquele momento e pelas contas de Oliveira durou cerca de cinquenta minutos.
“Tive que sair pelo chão me arrastando para o miolo de gente junto à água da chuva, que se misturava com sangue, tinha muita gente no asfalto ferida, gritando, chorando...”, lembra emocionado Oliveira.

Premeditado
Amanhece no assentamento 17 de abril e, enquanto, muitos agricultores já estão na roça, as 7h, começa a entrada das crianças na escola que leva o nome de Oziel Alves Pereira, sem-terra de 17 anos espancado até a morte no hospital pelos policiais, por gritar palavras de ordem do MST, na noite do dia 17 de abril, em Curianópolis (PA), para onde foram levados os feridos.
Zé Carlos, companheiro de linha de frente junto a Oziel no dia do massacre, confere a mochila do filho na frente da escola, passa algumas recomendações e o beija ao se despedir. Sobre o dia da chacina, que lhe custou uma bala alojada na cabeça e a perda de um olho, Zé Carlos é enfático: “utilizaram-se de táticas de guerra”. Zé lembra que um caminhão que estava parado na estrada, por causa do bloqueio, foi oferecido às famílias como proteção. “O motorista chegou e disse: ‘vou atravessar esse caminhão na pista para ajudar vocês’. Mas estranhamente toda a ação policial iniciou-se atrás desse veículo, sendo o escudo principal deles, tapando nossa visão. Foram os policiais que pediram”, garante.
Zé conta que os policiais vinham do sentido de Parauapebas e Marabá, ambas cidades paraenses interligadas pela rodovia, além dos que saíam do meio da mata dos dois lados da pista. “Nos cercaram para matar mesmo, pois vinham de todas as direções atirando”. Segundo Zé, é difícil para quem esteve no dia aceitar o número de apenas 21 mortos ditos pelo Estado.“Isso é brincadeira. Morreu muita gente, entre homens, mulheres e crianças. Vi muita gente morta, não pode ser, Tenho até medo de falar, deixa isso para lá. Mas garanto que foi muito mais”.

Ao apagar das luzes
Como se um espetáculo tivesse acabado, ao anoitecer no dia 17 de abril, as luzes do município de Eldorado do Carajás foram apagadas e seu cenário de morte, desmontado. Essa é a sensação que teve a jovem Ozenira Paula da Silva, com 18 anos na época do acontecido. “Apagaram as luzes para desmontar o que tinham feito, para limparem a via. Jogavam corpos e mais corpos em caçambas de caminhão, que tomavam rumos diferentes”.
Após os primeiros disparos, Ozenira só teve tempo de pegar os seus três filhos, todos com menos de cinco anos, e correr para a mata ao lado, percebendo momentos depois que tinha sido baleada na perna esquerda, na altura da coxa. “Tinha muita gente escondida na mata, próximo às margens da rodovia e foi justamente essas pessoas que viram muitos corpos sendo desviados para fora do caminho do Instituto Médico Legal (IML), de Marabá, para onde eram levados os mortos”.
Ozenira diz que algo lhe intriga até hoje. “Depois que terminou a matança, uma criança branquinha de uns dois anos foi achada na escuridão do mato, aos prantos, por uma mulher que procurava seus familiares. Essa mulher a recolheu. Sei que essa criança viveu com ela bastante tempo em Curianópolis, mas depois perdi o contato”.
Onde estariam os pais da criança naquela noite? Ozenira responde: “Não tenho como provar, mas tenho quase certeza que estavam em algum caminhão de remoção de cadáveres”, finaliza.

O massacre continua
Poucos mutilados receberam seus direitos de indenização e até hoje, quinze anos depois, muitos nem recebem a pensão mensal de R$346. Ozenira é uma delas. “Fui atendida no hospital apenas no dia do acontecido, depois nunca mais tive atendimento médico, tenho dias de dores horríveis e outros de dormência na perna”, conta.
Já Zé, hoje aos 32 anos, foi um dos únicos a receber, em 2008, uma indenização de R$ 85 mil reais, mais a pensão mensal no valor citado acima. Hoje vive do que seus irmãos plantam em seu lote, já que tem dificuldades para trabalhar em função das sequelas do tiro na cabeça.
Mas, um caso em especial entre os mutilados chama a atenção. Mirson Pereira, um dos únicos que conseguiu uma cirurgia, no Hospital Regional de Marabá, para retirar uma bala alojada na perna esquerda. “Pensei que seria o fim das dores, mas quando voltei da sala de cirurgia o médico disse que havia errado e feito o corte na perna errada, disse que no outro dia realizaria o procedimento na perna certa, mas desisti, fiquei com medo e saí do hospital”. Pereira continua com a bala na perna e ainda aguarda sua indenização.
O descaso do Estado brasileiro em relação ao massacre de Eldorado dos Carajás já gerou contra o governo um processo, em 1998, na Corte Interamericana de Direitos Humanos, com sede nos Estados Unidos, feita pelo Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL). “O governo brasileiro agiu de duas formas quando foi notificado pela entidade internacional. Primeiramente, culpou os próprios marchantes pelo ocorrido e, num segundo momento, por força da opinião pública, disse que já fazia coisas no assentamento, o que compensava o ocorrido”, explica Viviam Holzhacker, advogada assistente da CEJIL, que acompanha o caso.
No entanto, por pressão internacional, a advogada diz que o governo brasileiro aderiu a um processo, recentemente, de buscar acordo com os mutilados. “São feitas propostas de ambos os lados até chegar a um acordo. Deve levar mais uns cinco anos para ser resolvido o caso de todos”, explica.
Diante deste imbróglio, na ausência de um tratamento médico adequado que cuide do corpo e da mente dos participantes da marcha, Índio, um dos mutilados, com duas balas alojadas na perna esquerda desabafa: “Aconteceu o massacre em 1996. Mas ele terminou? Não! Pois esse grupo [do assentamento] ficou apenas porque o Estado não deu conta de matar no dia. Ficamos para contar a história, sofrer e ir morrendo aos poucos num massacre diário, que só terminará por completo com nossa morte”.

Começa o Congresso do Partido Comunista Cubano. Modelo econômico do país vai mudar

Raul Castro anunciou, em 2010, anunciou a necessidade de reduzir o paternalismo estatal - Foto: "Manu Dias/Flickr/AGECOMBA

Stela Pastore / Especial no Sul21

Cuba está às vésperas de aprovar importantes medidas para a atualização do modelo econômico. Deste sábado até terça (16 a 19) ocorre o 6º Congresso do Partido Comunista Cubano, o primeiro em 14 anos. As mudanças econômicas vêm sendo tratadas em todo o país desde meados de 2010, quando o presidente Raul Castro anunciou a necessidade de reduzir o paternalismo estatal e garantir maior equilíbrio econômico. “A revolução é mudança permanente”, lembrou o dirigente que promoveu um amplo debate sobre a proposta em todo o país. “Temos o dever essencial de corrigir os erros que cometemos durante essas cinco décadas de construção do socialismo em Cuba”, explicou o presidente, que sucedeu o irmão Fidel Castro.
Associações, sindicatos, cooperativas, os Comitês de Defesa da Revolução e meios de comunicação da ilha realizaram intensas discussões sobre o projeto para abranger os 11,2 milhões de cubanos. Serão medidas duras, mas necessárias. Devem ser demitidos cerca de 500 mil cubanos inicialmente e mais de 1,2 milhão nos próximos anos.
Estima-se que 20% de um total aproximado de 5 milhões de servidores públicos estejam em funções obsoletas. A proposta é que sejam realocados para outras atividades estatais ou estimulados a atuar em 178 serviços privados, atuando por conta própria. Cerca de 300 mil “cuentapropistas” já estão registrados, sendo que a metade se inscreveu depois da abertura de novas condições de trabalho em outubro.
Também está na pauta a criação de uma rede de cooperativas urbanas e rurais para estimular a ida para este modelo associativo; maior autonomia das empresas estatais, descentralização do setor agroalimentar, redução dos subsídios e estabelecimento de um sistema fiscal. Talvez a mudança mais substancial seja a eliminação da cartela de abastecimento — “libreta” — uma cesta de alimentação subsidiada.
“Não podemos seguir adiante sem estas transformações. Precisamos produzir mais comida e mais bens”, reforça o líder da Central de Trabalhadores de Cuba, Raymundo Fernandez. E esclarece: ”É uma atualização do socialismo”.
O bloqueio econômico mantido pelos Estados Unidos há meio século, os impactos climáticos e a crise do capitalismo mundial são fatores que estimulam as mudanças. Na última década, 16 furacões devastaram a ilha, com grandes prejuízos. A crise mundial reflete-se na redução do preço pago ao níquel, produto número um na balança comercial de exportação de Cuba, que reduziu de 54 mil dólares para 8 mil dólares a tonelada no mercado internacional.
Por outro lado, a expectativa de vida aumentou: passou de 51, em 1955, para 78 anos, o que também obrigou a ampliar a idade de aposentadoria de 60 para 65 anos, já em vigor. Em 1989, havia sete cubanos ativos para um aposentado. Atualmente, este número reduziu para a metade.
Para muitos cubanos, as medidas são a regularização de algo que hoje de alguma maneira já ocorre com a atuação paralela de muitos cubanos em atividades não estatais.
Porém, estão resguardadas várias políticas igualitárias que destacam Cuba no mundo. Não está prevista qualquer mudança por exemplo, nos sistemas de saúde e educação, que continuam integralmente gratuitos, de qualidade e referência global.
Há tranquilidade em áreas fundamentais que dão ao país os melhores dados no Índice de Desenvolvimento Humano. Antes da Revolução, a taxa de analfabetismo era de 18% e atualmente é zero; o número de professores subiu de nove mil para 137 mil. O total de médicos aumentou de 6.280 para 72 mil. A mortalidade infantil, que era de 60 a cada mil nascidos vivos, reduziu para 4,5 em 2010, uma das menores do mundo.
Os salários baixos — entre 15 a 20 euros –, a circulação de duas moedas — peso cubano e o peso “convertível” — torna desproporcional a diferença entre os quem tem acesso à moeda pareada ao euro e dificultam a sobrevivência a quem está restrito ao peso local. Déficit habitacional e qualidade dos serviços também são temas candentes aos cubamos, que devem ser abordados neste encontro, que reúne mais de mil delegados eleitos em todas as províncias. O 6º Congresso do PCC também elegerá os membros do comitê central, que designarão os membros do secretariado e do birô central.
Bloqueio econômico é mantido apesar da ONU
O bloqueio econômico americano, vigente desde 1962, já causou um prejuízo estimado em US$ 751 bilhões ao pequeno país, distante 180 quilômetros dos EUA. A Assembleia-Geral da ONU condenou, em outubro, o embargo comercial americano. Foi a 19ª vez que isso ocorreu, sem qualquer avanço. A resolução teve apoio de 187 dos 192 países membros. Antes da revolução de 1959, 70% das importações vinham dos EUA, país destino de 67% dos produtos cubanos.
O embargo proíbe que empresas americanas tenham relações comerciais com Cuba, ou se associem a outras, de outros países, que mantenham comércio com Cuba. Um estudo recente divulga os danos do bloqueio (www.cubavsbloqueo.cu). “Estas sanções são as mais prolongadas da história e privam o povo cubano de desenvolver-se como poderia. Castiga-se também os que comerciam conosco”, registra a subdiretora para a América do Norte do Ministério das Relações Exteriores, Johana Tablada.

Jornalismo e economia uma combinação perigosa




Para alguns, economia pode ser uma ciência de difícil compreensão, ainda mais quando se usa o economês, ao relatar ou comentar um processo econômico, este, em sua maioria, é realizado por jornalistas, mas pouquíssimos, com raríssimas exceções, procuram fazer uma análise mais detalhada e criteriosa e, também, por que não dizer, relativamente mais acessível.
Ao comentar sobre a crise européia, a única justificativa que se tem, são os altos gastos do governo, como a previdência, saúde, educação etc., mas esquecem-se de relatar o alto grau de financeirização da economia européia.
Ou no caso brasileiro, nos faz parecer que o único remédio para a inflação é o aumento dos juros, ou então, os gastos do governo precisam ser reduzidos, mas jamais afirmam qual gasto é o mais alto, ou onde cortariam, sem contar que; não diferenciam os tipos de inflações e se realmente vivemos um surto inflacionário. O contexto internacional é completamente escanteado do noticiário, quando o fazem, é de maneira errática.
Ao falar de orçamento público, é uma tragédia, tentam comparar um orçamento familiar ou de uma empresa, com o público, são ambientes e peças diferentes, por uma razão muito simples, o Estado tem o poder de emitir moeda e títulos públicos, ou seja, tem a capacidade de auto-financiar, evidentemente, haverá conseqüências, mas não se pode negar jamais essa solução.
Neste sentido, é importante lembrar que a economia não possui um único pensamento, e, por isso, o tecnicismo puro é inexistente. É mais do que necessário levar em conta as relações sociais e de classe, a história e a política. Não que a economia seja uma ciência menor, é justamente o contrário, é por conta da economia que os interesses afloram, divergem e comungam.
Ao emitir uma opinião, os veículos de comunicação têm uma determinada opção política e social e isto é importante e necessário, mas seria de relevante importância e honestidade, se afirmassem de que lado estão, para que os ouvintes, os(as) leitores(as), ou telespectadores saibam suas causas e conseqüências de um determinado pensamento econômico e jornalístico.
Portanto, ao se encontrarem, o jornalismo e a economia, atrelado a política, podem fazer estragos incomensuráveis em uma determinada sociedade.  Por exemplo, no Brasil, a quem interessa propagar que existe um surto inflacionário?
Desde 1999, com a introdução da política de metas de inflação, em nenhum momento atingiu-se o centro da meta, algo tão desejado pelos governos e, em particular, pelo Banco Central. Façamos a seguinte constatação: Em 2001 a meta de inflação, conforme resolução do Banco Central era de 4% a.a., mas atingiu 7,67%a.a. praticamente o dobro, no ano seguinte; em 2002, a meta inflacionária foi audaciosa, ou porque não dizer, irresponsável, era de 3,5% a.a. e bateu a casa dos dois dígitos, com 12,53%a.a. 3,6 vezes maior do que o almejado.
Nesses dois momentos, pelo menos grande parte da mídia, nunca se falou em surto inflacionário, ou até mesmo, em riscos de volta da inflação como se fala atualmente, um reflexo claro de que há lado nessa história, não há isenção da notícia ou da análise econômica. Isso não quer dizer que vivemos um período de não inflação, mas é importante constatar que atualmente a inflação é um fenômeno global. Para citar os BRICs, na Rússia há uma projeção de 9%a.a, na Índia 7%a.a, na China 5%a.a e no Brasil poderemos chegar a 6%a.a.
Uma sociedade se desenvolve não somente só, com uma única opinião, mas sim, com suas divergências e convergências, para tanto, é mais do que urgente jornalistas e economistas  ao comentarem um processo econômico, tenham no mínimo a honestidade de dizerem que pensamento econômico estão inseridos. Informação é poder! Por isso, pode-se desejar compartilhar ou concentrar de acordo com os interesses estabelecidos.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Para dirigente político da Tunísia, sindicatos e juventude foram os protagonistas da revolução



Igor Natusch no Sul21

Porto Alegre recebeu, durante a quinta-feira (14), a visita de uma pessoa que ajudou a mudar o panorama político da Tunísia e abrir caminho para uma série de revoltas que está redefinindo o mundo árabe. Amami Nizar, dirigente sindical da Federação de Correios e Telégrafos da Tunísia e integrante da Liga de Esquerda Operária, participou de palestra na Câmara de Vereadores de Porto Alegre, promovida pela Fundação Lauro Campos com apoio da Secretaria de Relações Internacionais do PSol. Durante sua fala, o dirigente descreveu o processo que conduziu à Revolução de Jasmim, além de explicar o atual momento do país, que aguarda as eleições para uma nova Assembleia Constituinte, marcadas para 24 de julho.
Amami Nizar atua politicamente desde os anos 70, quando era estudante secundarista. Ajudou a fundar a Liga Comunista Revolucionária, no início dos anos 80, entidade filiada à Quarta Internacional. Passou a atuar no meio sindical a partir de 1990, quando ingressou nos correios e acabou tornando-se secretário-geral do sindicato da categoria. Nessa época, lutou contra a privatização dos correios na Tunísia e contra a precarização das condições de trabalho de vários setores. Como dirigente da Liga da Esquerda Operária, Amami Nizar participou diretamente das mobilizações que resultaram na queda de Zine al-Abidine Ben Ali, e atualmente participa da mobilização política que busca garantir uma mudança efetiva nos rumos da política tunisiana.
Antes da palestra, Amami Nizar concedeu uma entrevista coletiva para blogueiros e representantes de veículos alternativos de mídia. Durante cerca de uma hora, falou do clima tenso que imperava na Tunísia antes da revolução, e criticou o governo de transição, que descreveu como uma representação da burguesia do país árabe. Falou também da importância das redes sociais em estimular a revolta popular, além de criticar a postura dos países ocidentais, que teriam apoiado durante anos as ditaduras que oprimem vários países da região. A seguir, os principais trechos da coletiva.

A ditadura de Zine al-Abidine Ben Ali

“Como qualquer ditadura, a da Tunísia foi regida por um processo imperialista, economicamente submissa ao FMI. Essa crise na Tunísia foi, no fundo, a falência desse sistema baseado no Fundo Monetário Internacional. A taxa de desemprego era muito grande, cerca de 130 mil pessoas que saíram das universidades sem perspectivas de emprego. A desigualdade de desenvolvimento entre as diferentes regiões da Tunísia também contribuiu na decadência do regime. A gente observava, na realidade política da Tunísia, um espaço muito restrito para as pessoas se manifestarem, além de um controle total dos mecanismos de poder. Os donos do poder eram corruptos, e havia muita repressão. Mesmo os partidos organizados de oposição não podiam usufruir de liberdades constitucionais, não tinham liberdade de reunião, por exemplo. A polícia não deixava as pessoas se reunirem, a repressão era forte, e isso criou uma tensão tão grande que a vida política tornou-se quase inexiste”.
As mobilizações contra o regime
“Mesmo nesse contexto, algumas revoltas e manifestações aconteciam, especialmente da parte dos estudantes, pedindo bolsas de estudo, e das centrais sindicais. Essas organizações impulsionaram os protestos de muitos setores, como os correios, professores, médicos e bancários. Trabalhadores do setor têxtil e operários também fizeram protestos, já que sofriam muitas arbitrariedades. Temos também um grupo feminista, chamado Associação de Mulheres Pela Democracia, que faz esforços para lutar, mas sempre sofreu muita repressão. Então, durante os 30 anos de governo de Ben Ali – na verdade mais de 30, porque ele representava um regime que comanda o país desde a independência – tivemos muitas mortes e repressão muito violenta dos opositores. Então, as revoltas surgiram de forma espontânea, mas há também um acúmulo de anos, promovidos pelos partidos e pelas organizações de esquerda. Talvez não haja uma cabeça por trás da revolução, mas as organizações sindicais e a juventude certamente foram os grandes protagonistas”.

"Temos ministros que são independentes, mas que estão inseridos na burocracia do Estado" | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

O processo de transição para a democracia

“Após duas quedas de presidente, agora temos a volta de um velho presidente, que é representação da burguesia tunisiana. Além disso, temos diversos ministros que são independentes, mas estão inseridos na burocracia do Estado. Em relação às perspectivas para as eleições, foi votada há poucos dias uma lei especial na assembleia constitucional, votada e aprovada por quase todos os partidos que lutaram contra Ben Ali. Essa lei tem três aspectos principais. Primeiro, paridade de homens e mulheres nas listas de votação. Em segundo lugar, a proibição, durante 23 anos, de Ben Ali e qualquer outro que esteve no governo concorrer a cargos eletivos. Por fim, uma eleição por lista, mas com uma proporcionalidade que favoreça a consolidação e o crescimento dos partidos políticos na Tunísia. Outro ponto positivo é que teremos um poder independente para fiscalizar as eleições, com a presença de representantes internacionais”.
A atuação das potências ocidentais nos conflitos árabes
“Falando de forma concreta e especificamente de países como a França, há uma espécie de jogo dúbio, uma via de mão dupla. Na verdade, eles adotam um discurso de democracia, mas a França só foi apoiar de fato a revolta depois do dia 14 de janeiro, depois que já tínhamos derrubado Ben Ali do governo. A então ministra de Relações Internacionais da França chegou a prestar solidariedade a Ben Ali, e depois foi obrigada a se demitir por causa disso. Quanto à intervenção da Otan no governo de (Muammar) Kadafi, a Liga da Esquerda Operária tem como postura apoiar iniciativas independentes. Claro que Kadafi precisa sair o mais rápido possível, não há nenhuma dúvida disso. Mas acreditamos que essa intervenção da Otan é uma tentativa de alguns países ocidentais de achar um ponto de fixação dentro da Líbia, para a partir daí encontrar formas de acessar recursos do país. A Otan sempre defendeu regimes ditatoriais no mundo árabe. Os EUA, por exemplo, mandou soldados para o Bahrein, para conter a revolta popular no país”.

Uma onda de mudanças no mundo árabe?

“É uma região comum, e certamente existem pontos que unem esses países. A questão palestina, por exemplo. Há também um inimigo comum, que é o sionismo, o que acaba sendo claramente um ponto de unidade dos países árabes. Mas existem muitas diferenças políticas, com relação às organizações, ao grau de consolidação dos partidos políticos e outros pontos semelhantes. No caso da Tunísia, temos três elementos que podem ser citados como diferenciais políticos. Primeiro, tivemos uma constituinte em 1860, que foi a primeira constituinte (do mundo árabe) e teve um caráter bastante reformista. Segundo, temos um espaço sindical consolidado desde os anos 1920, e essas entidades tiveram papel importante na independência da Tunísia. E, em terceiro lugar, o fato de termos, desde 1959, um código de defesa das mulheres. São três particularidades que nos diferencia

Um partido em busca do povo tunisiano

“A Liga da Esquerda Operária herda uma cultura da Liga Comunista Revolucionária. Queremos ser abertos à população. Queremos manter a tradição da Quarta Internacional, queremos manter os princípios trotskistas, mas também queremos ser um partido de massas, com um diálogo direto com a população, para que possamos estar ao lado delas na busca de uma situação melhor para o país”.

A importância da internet para a Revolução de Jasmim

“No caso da Tunísia, o principal impacto foi de redes sociais como o Facebook, que foram meios alternativos para disseminar informação. Certamente essas redes tiveram papel fundamental para que mais pessoas soubessem do massacre, das arbitrariedades do regime. Mesmo porque a mídia oficial sempre teve um caráter de desinformação, de tirar a atenção da população para o que estava acontecendo e até de inverter as coisas, colocando os revolucionários como inimigos da nação. Policiais colocavam fogo em escolas, em estabelecimentos públicos, e a mídia do governo dizia que eram os revolucionários que estavam fazendo isso, para jogar a população contra os que estavam fazendo a revolta. Hoje, a mídia continua sendo toda do Estado, e está de acordo com o governo: uma mídia liberal, burguesa, que não está realmente comprometida com o povo e com quem provocou a revolução em nosso país. Mas há um anseio da população para que se abra novos espaços, para que a mídia não fique apenas nas mãos do governo e possam surgir novos espaços além dos oficiais”.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

O ensino do agronegócio na escola pública


Setor aposta na educação para manter sua influência, ou alienação, sobre a futura geração de trabalhadores



Eduardo Sales de Lima da Redação do Brasil de Fato

O cantor e compositor Alceu Valença é um ilustre admirador da cana-de-açúcar. A pequena Quirinópolis, no sul de Goiás, nunca mais foi a mesma depois da chegada de duas usinas de açúcar e etanol. O etanol não compete com os alimentos. A cana-de-açúcar já é segunda maior fonte de energia limpa do país.
Essas e outras informações positivas sobre setor sucroalcooleiro estão compiladas numa cartilha. O problema é que essa propaganda está sendo trabalhada como disciplina em escolas públicas no interior do Brasil. O Projeto Agora é de responsabilidade da União da Indústria de Cana-de-Açúcar (única) e atinge educandos da 7ª. e 8ª. séries, com idade entre 12 a 15 anos, em uma parceria público-privada entre instituições governamentais, sindicatos e empresas como Itaú, Monsanto e Basf.
Cem municípios da região centro-sul, espalhados por São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraná e Goiás, contam com o projeto. Resumidamente, a apostila usada em sala de aula foca o desenvolvimento do setor canavieiro no Brasil e o empreendedorismo dos grandes latifundiários sob a ótica do progresso, sem apresentar aos alunos qualquer exemplo que venha desvelar contradições trabalhistas ou ambientais. A apostila não pondera, por exemplo, as contradições do trabalho escravo e a superexploração dos cortadores de cana-de-açúcar em tempos atuais. E que a monocultura e o latifúndio sempre foram “avessos à diversidade produtiva”.
No mínimo, um problema pedagógico para a economista e educadora Roberta Traspadini. “Não aparecem as lutas ocorridas nos territórios, as disputas reais vividas pelos diversos sujeitos sociais, e a produção de processos políticos antagônicos sobre a apropriação do trabalho”, critica, em recente artigo.
Ela reforça ainda que o ensino do agronegócio dentro da escola pública passa por uma “validação da lógica dominante voltada para os grandes projetos, para a incorporação de um ser pertencente à vantagem competitiva do grande capital, ou um ser excluído desta possibilidade”. Não só isso, denuncia-o como um processo de construção da intencionalidade “educativa” do capital que objetiva formar um “exército industrial de reserva consciente de sua necessidade de inclusão dentro da ordem”.

Naturalização

Não é apenas a Unica que tem seguido essa estratégia de propaganda dentro do ensino público. Em Ribeirão Preto (SP), as concepções do agronegócio estão sendo repassadas aos estudantes por meio do projeto “Agronegócio na Escola” e têm gerado polêmica na cidade. O Conselho Municipal de Educação entrou na briga e pediu detalhes sobre o projeto pedagógico. Desenvolvido em parceria com a Associação Brasileira do Agronegócio da região de Ribeirão Preto (Abag-RP), o programa é utilizado nas aulas a alunos do 8º e do 9º ano desde 2009. Anteriormente, o projeto foi aplicado por dez anos na rede estadual. Cerca de 112 mil estudantes da região já passaram pelo curso.
A Abag-RP oferece cartilhas aos estudantes e um vídeo, que é utilizado por professores nas aulas. A cartilha aborda temas como o surgimento da agricultura e sua modernização. Professores são levados para conhecer usinas e são capacitados pela entidade.
A Secretaria da Educação do município e a entidade patronal defendem que o conteúdo aborda temas regionais importantes, tanto do ponto de vista econômico, quanto do ponto de vista social, e que trabalham simplesmente com a realidade em que os alunos estão imersos.
Mas não é assim que enxerga a integrante do Conselho Municipal de Educação de Ribeirão Preto, Ana Paula Soares da Silva. Na visão dela, é importante que as crianças e adolescentes conheçam o agronegócio; o problema ocorre quando o material auxilia na naturalização dos problemas gerados nesse meio. “Esse material ajuda a naturalizar as desigualdades, as relações de propriedade e de dominação”, argumenta. Mesmo dentro da linha da educação contextualizada, segundo ela, outras práticas deveriam ser abordadas, como a agroecologia, por exemplo.

Dominação”

Outro programa pedagógico polêmico, o Projeto Escola no Campo, a exemplo dos já mencionados, nasceu em 1991, por meio de uma parceria da Syngenta, transnacional do ramo de sementes, com a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo. Ampliou-se para outros estados e até 2007 já havia atingido cerca de 405 mil crianças de comunidades rurais do país.
Maria Cristina Vargas, do setor de educação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), relata o quão grave é a transmissão dessas ideias à população jovem do campo. Segundo ela, por meio desse projeto tenta-se convencer os estudantes, por exemplo, da positividade da relação entre sustentabilidade e utilização dos agrotóxicos. “Eles trabalham que o saudável é o bonito, é a plantação limpa, sem ter a diferenciação de outras espécies, a diversidade de culturas”, denuncia a educadora.
Segundo Ana Paula Soares da Silva, não é necessário ir muito a fundo no debate para concluir que os materiais pedagógicos distribuídos pelo agronegócio tentam esconder diferenças e intenções de “classe”. “A intenção é de que as pessoas vão aceitando isso, deixando de ser o sujeito histórico, com a possibilidade de mudar a história. Não são projetos que incluem, não são projetos de justiça social; mas de dominação”, arremata.
O Brasil de Fato entrou em contato com assessoria de imprensa da Unica, que afirmou ainda não haver um posicionamento sobre as críticas ao Projeto Agora.

terça-feira, 12 de abril de 2011

Caminhos para a descolonização da América Latina






110411_jornadas-2011IELA - [Elaine Tavares]

A sétima edição das Jornadas Bolivarianas discutiu este ano um tema árduo e muito pouco palatável: a presença imperialista na cultura latino-americana.

A idéia foi dar um panorama de como o império vai consolidando sua forma de ser na capilaridade da vida cotidiana através da escola, dos meios de comunicação, da vestimenta, da comida, da indústria do entretenimento, da moda etc... Como um conta-gotas, misturando-se aos diversos aspectos da vida cultural, grande parte das vezes sem usar a força bruta, o modo de vida do império toma conta das gentes, até parecer ser natural esquecer os mitos locais, os pratos típicos, a maneira de viver, as brincadeiras, e até a língua. A cultura, expressão material da realidade humana, na América Latina, segue cativa do colonialismo e a tarefa de descolonização mostra-se, às vezes, grande demais, para os países que continuam sem uma alternativa política nacional/popular. Nestas Jornadas, discutiu-se a situação dramática da América Central, as tentativas de mudança na América do Sul e a proposta ainda solitária de Cuba, que desde há 50 anos busca a criação de um pensamento próprio, baseado na cultura nacional. O totalmente novo ficou por conta da perspectiva indígena, que desde os anos 90, assoma na América Latina, recuperando elementos chave de sua cultura ancestral.
Poucas pessoas desconhecem a força da cultura estadunidense na vida da América Latina. Desde que proclamaram sua independência da Inglaterra, em 1776, os Estados Unidos da América do Norte decidiram trilhar o caminho da rapina e da dominação. Como foi o primeiro país a realizar o feito de se libertar da colônia em todo o território do "mundo novo", nada poderia ser mais natural que os demais povos o vissem como um exemplo a ser seguido. Mas, o que veio logo depois já deveria ter servido como um sinal de que as famosas "13 colônias", agora livres e unificadas, também iriam arvorar-se a disputar o cargo de donas do mundo. A doutrina do "destino manifesto" - que tinha por princípio defender a idéia de que os colonos norte-americanos de origem calvinista teriam sido eleitos por Deus para comandar todos os povos da terra, com a missão civilizatória de ocupar os territórios situados entre os oceanos Atlântico e Pacífico – levou à trágica conquista do Oeste, com a destruição de nações indígenas inteiras. O massacre dos povos locais expandiu o território e aguçou a pretensão de fazer daquele país um império. Naqueles dias, os governantes já faziam uso de armas químicas como bem mostra essa célebre frase do presidente Benjamin Franklin "Se faz parte dos desígnios da Providência extirpar esses selvagens para abrir espaço aos cultivadores da terra, parece-me oportuno que o rum seja o instrumento apropriado. Ele já aniquilou todas as tribos que antes habitavam a costa". E assim foi.
Poucos anos depois da independência, já no século XIX, outra doutrina expansionista iria ganhar corpo, a doutrina Monroe, que pregava a idéia de a "América para os americanos". No discurso, os governantes estadunidenses afirmavam a necessidade da independência das terras latino-americanas, mas, na verdade, tudo o que queriam era anexá-las aos seu círculo de poder, já configurado como imperialismo.
Assim, em 1820, quando a América Latina dava consequência ao sonho de libertação, o governo estadunidense invadia o que hoje é o Texas, ocupando também a Califórnia, o Novo México, Nevada, Arizona e Utah. Com esta segunda incursão expansionista (a primeira foi a que anexou os territórios indígenas do centro do país) roubava grande parte das terras mexicanas, conformando pela força das armas e da destruição o seu atual território. Nesse sentido, em 1850 os EUA já eram um império, no modo de operar e na política de disseminação da cultura de dominação.
Terminada a operação de ocupação das terras mexicanas, os dirigentes do país se voltaram para a América Latina recém liberada. As guerras de independência já tinham sido travadas e os estados-nação começavam a formar-se. Era necessário, na visão dos estadunidenses, que alguém ficasse no comando e esse alguém eram eles, coisa já definida por deus no destino manifesto. É a Nicarágua, em 1855, o primeiro país a ser ocupado pelas tropas do já formado império, pelas mãos do mercenário William Walker que desembarca e se faz presidente, distribuindo terras aos fazendeiros do sul dos EUA. Depois, em 1898, é a vez de Cuba, tirada da Espanha e transformada em quintal estadunidense, um protetorado que durou até 1933. No mesmo ano de 98, o Havaí também é ocupado, sendo colônia até hoje.
Quando o século XX nasceu, trouxe com ele a sede de expansão do império estadunidense, que nunca mais parou. Intrigas muito bem urdidas lograram a separação do Panamá da Colômbia e lá ficou o pequeno país, com a riqueza de um canal ligando os dois oceanos, nas mãos do império. Como bem lembrou Rafael Cuevas Molina, da Universidade Central da Costa Rica, presente nas Jornadas Bolivarianas, a América Central passou a ser um espaço estratégico para os Estados Unidos e desde então, nunca mais conseguiu caminhar com as próprias pernas. A cada tentativa de garantir soberania, os países eram invadidos e submetidos aos desejos dos governantes estadunidenses.
Pouco depois da Primeira Guerra Mundial, num mundo devastado pelo conflito, os Estados Unidos iniciaram outra estratégia de dominação na América Latina. A proposta era conquistar corações e mentes pela via da cultura. Enriquecido pela indústria da guerra, os EUA deram linha para a indústria cultural. Inicia-se um período de ouro no cinema, no qual os filmes eram produzidos para propagandear o "modo americano de ser". O mito do mundo livre, das oportunidades para todos, da democracia, vai se construindo e invadindo a América Latina. O círculo do far west (corrida para o oeste) demoniza os índios, transformando-os em assassinos sanguinários, enquanto os cowboys (vaqueiros) era pintados como heróis. A completa inversão de valores. Em toda América Latina esses produtos culturais se popularizaram e em pouco tempo as crianças sabiam mais de John Wayne do que de seus vizinhos. Estava aberta a veia da dominação "limpa". Igualmente, os açucarados filmes românticos mostravam o jeito de ser da sociedade estadunidense, gravando nas cabeças latino-americanas o desejo de ser como aqueles heróis que infestavam os cinemas de todos os países. No campo da comunicação de massa, o rádio também reproduzia a propaganda do "mundo livre" e com ela, introduzia nos países as megaempresas que iriam dominar economicamente cada pedaço desse chão. No Brasil, o repórter Esso, noticiário diário, era um fenômeno de audiência. Só o que se noticiava ali, sob a chancela da Esso, era considerado verdade.
E é essa forma de dominação - que ocorre num terreno aparentemente invisível - que as Jornadas Bolivarianas se propuseram discutir. Compreender qual o alcance desta política ainda hoje nos países latino-americanos e encontrar as brechas para sair do atoleiro da dominação cultural.

A América Central

Na franja de terra que separa as Américas do Sul e do Norte, a vida nunca foi fácil, desde a dominação espanhola. Depois, com a influência estadunidense, as condições de vida das gentes só pioraram. Sem os "patrões" europeus, os países da América Central e do Caribe passaram a ser dominados pelas grandes empresas estadunidenses, principalmente as chamadas bananeiras. No controle da economia, elas ainda tinham pleno domínio da política e elegiam e derrubavam governos ao seu bel prazer. Eram um estado dentro do estado. Assim, as regiões que antes eram espaços das culturas Caribe, Chicha, Maya, Kuna e outras, passam a receber mão de obra escrava vinda da Jamaica, já inoculada com a cultura britânica, a qual tinha absorvido com a colonização. Com o enclave bananeiro, o modo de vida que passou a ser hegemônico foi o estadunidense. "O planejamento urbano, a religião, a cultura, a arquitetura, a língua, tudo estava ligado com a vida nos Estados Unidos", diz o professor da Universidade Nacional da Costa Rica, Rafael Cuevas Molina.
Segundo ele foi Augusto César Sandino o primeiro a se insurgir contra essa dominação que já extrapolava o campo do território e se espraiava pela via da cultura. Quando no início do século XX os EUA invadem outra vez a Nicarágua para tomar conta do canal e desde ali frear a revolução mexicana, Sandino aparece com seu "pequeno exército louco", dando vida a um nacionalismo latino-americanista e antiimperialista, capaz de mostrar que seria possível a vida sem as megaempresas e sem o domínio do mal nominado "Tio Sam" (já que irmão de nossa pátria ele não, como dizia Alí Primera). E é essa idéia que vai incendiar as lutas populares nos anos 60 por toda a América Central com o surgimento dos movimentos armados de libertação nacional.
O resultado de décadas de lutas insurgentes, praticamente todas derrotadas, é o que se vê na realidade atual. A constituição de um Estado terrorista, que torna naturalizada a cultura da violência e da discriminação. Os anos 80, que marcaram o derrocamento das propostas revolucionárias, ainda trouxeram consigo as reformas neoliberais, esgarçando um pouco mais o frágil tecido social. O resultado disso é uma identidade cultural esfacelada, o que torna ainda mais fácil a dominação. E, se a bananeiras já não tem mais poder na América Central, o espaço foi tomado pelas empresas maquiladoras, que seguem trabalhando no mesmo velho ritmo: trabalho precário, produção de coisas que as gentes jamais usarão e esgotamento total das pessoas. O que sobra é a violência, a pobreza, o crime organizado e as gangues juvenis. Sem horizontes de futuro, os jovens ou se matam ou migram. E, de um jeito ou de outro vão se transformando em uma cópia mal feita dos jovens empobrecidos do centro do poder. "Na América Central, hoje, os ricos sonham com Nova Iorque, os de classe média sonham com Miami e os pobres com o que vêem na TV. Isso é uma mostra segura de que há um mal estar cultural. Todos, de alguma forma, imitam a vida dos EUA".

A comunicação é a via de transmissão do imperialismo

Se nos anos 30 os EUA iniciaram sua corrida às mentes do povo latino-americano pode-se dizer que isso segue sendo feito num ritmo frenético. Usando a velha tática da repetição, a indústria cultural estadunidense continua hegemônica em praticamente todos os países. O cinema exporta o modo estadunidense de ser, os programas de televisão, as séries, os desenhos animados, as teorias culturais, os movimentos artísticos, a estética, a filosofia. Tudo é colonizado. E, os meios de comunicação bombardeiam o cérebro das pessoas diuturnamente. Romper essa dominação colonial requer mudanças drásticas na vida dos países, ensina o jornalista uriguaio/venezuelano Aram Aharonian, um dos formuladores da proposta da Telesur – um canal de televisão latino-americano.
Para Aram é impossível mudar qualquer coisa nos países que vivem dominados culturalmente, se não houver primeiro uma mudança radical de paradigma. "Há mais de 40 anos que não temos uma teoria nova na comunicação. Tudo copiamos dos gringos". Essa formulação teórica tem de ser própria, fruto da realidade local. Já basta de pensar com a cabeça mergulhada num mundo que não é nosso.
Mas, fazer isso tampouco é fácil, uma vez que o império, ao ser confrontado com novas teorias e paradigmas usa de todas as armas para absorver o impacto, usando-as para contra-atacar. "Nós pudemos ver isso quando na Telesur colocamos nossos apresentadores de maneira bem informal, como são os latino-americanos. Não passaram dois meses e lá estava a CNN em espanhol copiando nossa forma de fazer, e usando isso contra nós". Assim, nossa tarefa parece ser cada dia mais desafiadora.
Aharonian adverte que se no mundo da arte, da cultura e da comunicação estamos cada dia mais enfeitiçados pelo sistema hegemônico, a única saída parece ser liberar os 1.400 cm cúbicos de cérebro que cada um tem. É a capacidade de pensar com a própria cabeça que definirá o futuro. Aram mostrou que mesmo a comunicação dita alternativa, que fez sucesso em determinado momento, acabou se domesticando. "As rádios comunitárias se profissionalizaram e não são mais o espaço popular, os sindicatos se conformem em ter apenas um boletim, a palavra está sequestrada pelas empresas. Estamos cegos de nós mesmos. Não sabemos quem somos e não cremos em nós mesmos. É isso que precisa mudar".
Uma comunicação libertadora precisa ter o compromisso de manejar ela mesma a agenda informativa. Os espaços alternativos não podem ser marginais, precisam almejar ao universal. O grande desafio é deixar de copiar conteúdos e formas. Criar o próprio estilo e a partir daí criar redes de comunicação que possam chegar ao maior número de pessoas. "Nós vivemos a síndrome da praça sitiada. Ocorre que ela não está mais sitiada, nós podemos romper o sítio. Mas, para isso, temos de criar nosso próprio paradigma. Já basta de choramingar e de gritar palavras de ordem. Vamos produzir conteúdo de qualidade e formar redes. Assim, superaremos a dominação cultural".No campo do cinema a ordem parece ser a mesma. Sérgio Santeiro, cineasta brasileiro que bebe na proposta estética e filosófica de Glauber Rocha - como se pode ver no seu deslumbrante curta metragem "Paixão" (http://youtu.be/AS3Oep2cCsw ) - desafia a se constituir uma estética própria, fora dos padrões "roliudianos", que dêem conta da realidade latino-americana e que provoquem o desconforto gerador da mudança. Glauber, de alguma forma, conseguiu isso no seu tempo, mas a nova geração precisa encontrar outro caminho, original. Outra estética para vencer a lógica da violência e do medo imposta pela arte cinematográfica estadunidense. Igualmente a proposta do pensamento crítico e próprio, na senda do ensinamento de Simón Rodriguez, que pregava como um louco a máxima: "Basta de imitar. Há que criar".

A proposta cubana

Faz mais de 50 anos que a pequena ilha caribenha, Cuba, busca um caminho original. Até o triunfo da revolução, a mídia, comandada pelos EUA, confundia o mundo e os cubanos sobre o que passava no país. Na ilha se podia viver em inglês, como lembrou o vice-ministro da Cultura, Fernando Rojas. Depois não. A revolução, pela proposta de liberdade que carregava, foi definindo uma identidade que até então só aparecia nos escritos de José Martí. Hoje, depois de acertos e erros, a cultura cubana segue rechaçando o neocolonialismo que se expressa na invasão do ar via televisão desde Miami, mas busca estabelecer uma relação dialógica com a cultura dos EUA. "Nós acreditamos que é preciso conhecer muito bem essa cultura para podermos conformar um anti-imperialismo. Mas, a proposta é enfrentar a colonização cultural com o melhor do pensamento socialista, fazendo assomar a rumba, o guagancon e o balé nacional de Cuba".
Segundo Fernando, a ilha de Cuba já superou os tempos em que se buscava importar a experiência socialista do leste. Atualmente, incorporados os elementos da afro descendência, dos indígenas, dos descendentes dos colonizadores, as forças políticas do campo e a cultura popular urbana, tem-se a cultura cubana, tomada por uma liderança coletiva anticolonialista e anti-imperialista. "Em Cuba há uma questão que nos parece vital. Todas as pessoas têm acesso à cultura. Nós não dizemos: crê. Dizemos: lê. E, com isso, os cubanos recebem gratuitamente o melhor da cultura, inclusive a dos EUA. Fundamos escolas de arte em todo o país, na montanha e na capital. E esse acaba sendo nosso desafio. Afinal, temos de pensar em como sustentar isso economicamente".Em Cuba as políticas culturais significam esforços estatais e públicos. Vem daí a Casa das Américas, a escola de Cinema e outras milhares de instituições de cultura de base. "Como tudo isso custa, agora andamos pensando em cobrar do público para ver um teatro, por exemplo. Mas é coisa simbólica, nada comparada ao mundo capitalista no qual é praticamente impossível aos trabalhadores freqüentarem o teatro".
A polêmica em Cuba agora passa pela discussão do direito de autor. Segundo Fernando, existem manifestações da cultura popular que precisam de proteção e que não podem ser apropriadas por este ou aquele. São construções coletivas. "Mas esse ainda é um debate ainda inicial". Para o vice-ministro, a originalidade cubana está no fato de o governo ter uma política cultural que possibilita a liberdade criativa e a garantia do acesso ilimitado à cultura. É uma aposta na qualidade da vida das pessoas, pois, com isso, elas se tornam pessoas melhores. Ele ressaltou que Cuba vive sob bloqueio econômico, mas não cultural. Todo o lixo produzido no império chega às casas cubanas e, por isso, esse campo de batalha é tão importante. Vencer aí é fazer meio caminho no rumo da sustentação da nova sociedade.

O paradigma andino

Se a questão do enfrentamento do império passa pelo desafio de sermos originais, o mundo indígena tem muito a contribuir para esse debate. Foi o que mostrou a socióloga aymara Silvia Rivera Cusicanqui na sua exposição. Segundo ela os índios há muito que deixaram de ser estudo de caso e sua cosmovisão assoma como uma proposta de vida absolutamente diferente da que foi pregada pelo mundo ocidental, europeu. Muito antes da invasão já havia muitas culturas aqui nestas terras, com histórias milenares, que, mesmo sob a dominação, mantiveram-se vivas e hoje saem da obscuridade, oferecendo novas formas de viver no mundo. Sua originalidade consiste justamente na diferença radical. Enquanto a filosofia ocidental busca o uno, o mundo andino, por exemplo, trabalha com a idéia do terceiro incluído: ou seja, os contrários podem sim conviver e se encontrar. Silvia defende a idéia de que a cultura é um sistema de significados que não tem como passar pelo mercado. É o imaginário, o desejo das comunidades, mas ao mesmo tempo é o que se torna real pela força da arte humana. Segundo ela, na Bolívia, a esquerda não tem falado em imperialismo ao discutir as mazelas do tempo presente. "Falam em pós-colonialismo, mais encobrindo do que revelando o que está por trás de tudo isso". Ela conta que os povos indígenas da Bolívia sabem muito bem que a identidade naquele país é uma questão política de primeira grandeza. E tanto que conforme são os dirigentes mudam as cifras sobre a porcentagem de indígenas no país. Já houve momentos em que a porcentagem foi de 19%, pulando no ano seguinte para 68%. O trágico é que o racismo contra o índio é algo internalizado também na esquerda, até porque suas fileiras são formadas por gente que tem o pensamento colonizado também.
Nos Andes, as comunidades vivem sob outro paradigma, fora da dualidade maniqueísta ocidental. "Para nós é fundamental o conflito das dualidades, porque isso é a energia que nos move". Entre os indígenas das comunidades andinas a cultura é parte da forma de organizar a vida. Nos tempos mais remotos, mesmo as obras públicas sempre eram precedidas de grandes festas, de encontros com dança, música, imagens e gestos, tudo recheado do simbólico e do sagrado. Mesmo a religião é múltipla, com deuses de muitas faces, que são anjos e demônios ao mesmo tempo, porque é esse conflito que move a vida. Coisas bastante difíceis de serem assimiladas pelos cérebros formatados na mentalidade ocidental. Palavras desconcertantes para os 1.400 cm cúbicos de racionalidade instrumental. "Para nós o futuro é algo que está atrás, porque não sabemos dele, o passado é algo que está à frente, pois dele temos conhecimento. E o presente é o que de fato importa". Para Silvia a tarefa de descolonização dos estados na América Latina é árdua e difícil, mas esta é uma batalha que precisa ser travada. Derrubar o colonialismo, o racismo, o preconceito. No território que serpenteia junto à cordilheira dos Andes, as comunidades estão descobrindo suas potencialidades, estão recuperando suas formas de organizar a vida. "É bobagem pensar que não podemos ser modernos. Podemos sim. Comunitários e modernos. Temos nossos paradigmas e nossa cultura. Mas, o fato é que nós vimos o mundo ao contrário. Nossa lógica é "al revés". Isso precisa ser entendido e respeitado".

Desafios do presente

A experiência indígena pode parecer desconcertante num primeiro momento, já que coloca o mundo de pernas para o ar. Mas a idéia de convivência dos contrários parece ser a única possível num mundo onde as diferenças se afirmam cada vez mais. Transitar neste território conflituoso e desde aí criar o novo é também desafiador. A nova sociedade sonhada pela racionalidade marxista precisa levar em conta esse paradigma indígena, precisa incorporar as demandas destas comunidades que assomam cada dia com mais força. Desconhecer esse mundo é apostar no fracasso. Assim já foi com Simón Bolívar, quando subestimou a força dos lañeros venezuelanos e foi derrotado por eles. Só depois de voltar do Haiti, com os ensinamentos dos revolucionários negros sobre a necessidade de incorporar a cultura local é que Bolívar logrou a confiança dos indígenas e, com eles, abriu caminhos para a libertação. Foi assim com Artigas, na Banda Oriental, que, conhecendo e respeitando a cosmovisão Charrua, trouxe os indígenas para fazer real o sonho da liberdade. Tanto Bolívar quanto Artigas respeitaram de verdade a forma de viver dos indígenas, não fizeram mero uso instrumental, como se vê por aí. Esse pode ser o segredo.
Em toda a América Latina vive e pulsa uma Abya Yala, um espaço de propostas que exigem mudanças radicais na forma de raciocinar sobre a realidade. Outra episteme, outra forma de conhecer. Não necessariamente precisa-se aceitar toda a cosmovisão que vem destes povos milenares aqui nestas terras, mas fundamentalmente há que se incorporar essas formas de ver a realidade. Os indígenas querem estar no mundo, fazer parte da planetização da vida boa e bonita. Mas eles precisam ser compreendidos na sua cultura. Assim, no conflito destes contrários, mundo indígena X mundo colonizado, talvez se possa chegar ao novo tão esperado. Uma América Latina descolonizada, livre do imperialismo, aberta para o presente.

Elaine Tavares é jornalista e coordenadora do IELA/UFSC.

A estranha lógica do futebol

<br /><b>Crédito: </b> ARTE PEDRO LOBO SCALETSKY

Crédito: ARTE PEDRO LOBO SCALETSKY
A lógica do mundo do futebol é muito particular.
 
Juremir Machado da Silva no Correio do povo
 
Um treinador que sai muito mal de um clube, de onde foi demitido por ter sido, na opinião de torcedores e comentaristas, incompetente, pode ser contratado por outro clube como a salvação da lavoura.

Nenhuma empresa séria usaria esse método de avaliação profissional. Um executivo que leva uma empresa à falência ou a ficar muito longe de alcançar as suas metas dificilmente seria contratado para tirar outra empresa do buraco. Ou seria? O paradoxo do futebol é este: a culpa é sempre do treinador, tanto que, se os resultados não chegam, ele é demitido, mas, ao mesmo tempo, ele nunca é culpado de coisa alguma, pois, com frequência, é imediatamente contratado por outro clube, o qual aposta que, noutro contexto e com outros jogadores, tudo poderá dar certo. O culpado é prontamente absolvido. Que coisa!

Veja-se o rendimento dos principais treinadores brasileiros: quantos anos faz que Luxemburgo não ganha um título? Mesmo assim, continua recebendo uns R$ 500 mil por mês. E o Felipão? Dizem que ganha mais de R$ 1 milhão por mês. Não fatura um título desde 2002.

O futebol é talvez o único campo profissional em que nove anos de fracassos permitem novos contratos milionários e a renovação permanente da confiança em perdedores do presente que vivem de glórias do passado.

Celso Roth teve 56% de aproveitamento no Inter. Até uma porta, com o elenco do Inter, teria aproveitamento equivalente. Ganhou uma Libertadores da América em apenas quatro partidas. Qualquer outro treinador, ganhando R$ 20 mil, obteria o mesmo rendimento ou algo muito próximo.

Falcão, quanto treinou o Inter, se não me engano, ficou nos 50% de aproveitamento. O porteiro do clube alcançaria o mesmo desempenho. O que explica tão altos salários para tão baixos desempenhos? O futebol é irracional e o dinheiro é do clube, uma associação. O Inter contratou Falcão para resolver seus problemas.

Falcão não trabalha como treinador há, sei lá, 15 anos.

Como pode um profissional que não exerce sua atividade há 15 anos ser chamado para resolver uma situação de crise? Alguém chamaria um cirurgião parado há 15 anos para uma operação de alto risco? O pensamento mágico comanda o futebol. O Grêmio tem Renato, seu principal ídolo, como técnico. O Inter precisa ter Falcão. O futebol, a exemplo da vida, na frase do grande argentino Borges, gosta de leves simetrias. Não, no caso, de simetrias escancaradas.

O único técnico que pode apresentar um currículo recente com uma relação sólida entre salário e resultados é Muricy Ramalho. Ganhou quatro campeonatos brasileiros em cinco anos. Poderiam ser cinco em seis anos se o Inter não tivesse sido roubado em favor do Corinthians em 2005. Técnico existe para ser o sargento que policia a galera, jovem e rica, sedenta de sexo e emoções caras, e a motiva para vencer. Jogadores de futebol de clubes como o Inter ganham uma fortuna para empatar ou perder. A vitória custa prêmio extra. O treinador leva uma banana para escolher entre dois esquemas: 4-4-2 ou 3-5-2. É barbada. Falcão vai botar time faceiro. Pode se consagrar ou dar vexame. Ou alcançar 58% de aproveitamento. Uau!

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Hugo Chávez para presidente do Peru? Zero Hora acha que sim


Alexandre Haubrich
O imperialismo, enquanto braço forte do capitalismo moderno, é a principal bandeira da velha mídia internacional quando a pauta é política exterior. No Brasil, da mesma forma como ocorre nos outros países da América Latina, o mundo ideal da mídia (ainda) dominante é aquele no qual o próprio país é entregue aos mais poderosos (EUA, por exemplo, no nosso caso) ao mesmo tempo em que domina e explora os países menos “competitivos”. Assim as empresas – nacionais e internacionais – que financiam esses conglomerados de mídia seguem crescendo, avançando sobre a autonomia das nações menos desenvolvidas, e os grupos de comunicação crescem junto. Ao mesmo tempo, é sabido que as influências políticas externas acabam, de uma forma ou de outra, chegando aos países próximos. A guinada à esquerda da América Latina na última década segue esse caminho.
É nesse contexto que cada eleição em qualquer país latino-americano é motivo de preocupação para os conglomerados de mídia brasileiros. A consciência de autonomia dos povos, o anti-imperialismo, o fortalecimento do Estado e o empoderamento do povo vêm, obviamente, acompanhados da perda de força dos grupos que historicamente dominam a política, a economia e, por consequência, a mídia. E é isso o que, em medidas diferentes, tem acontecido na América Latina. A tendência é flagrante.
A estratégia é aplicada em conjunto pela grande imprensa internacional aliada ao capital multinacional: vincular os candidatos de esquerda a Hugo Chávez ao mesmo tempo em que constroem em Chávez a imagem do demônio. Essa última construção já foi mostrada aqui no Jornalismo B por diversas vezes.
Nos mais diversas veículos da direita brasileira, Chávez é ridicularizado, apontado como louco, ignorante, ansioso por mais poder, autoritário, ditador, cruel, etc etc etc. Raríssimas reportagens dão conta das mudanças na sociedade venezuelana, na política do país, enfim, do que acontece de importante por lá. Apenas intriguinhas aparentemente infantilóides, que, no desespero por atacar os avanços da esquerda latino-americana, infantilizam os leitores ou a audiência como forma de criar uma imagem estereotipada do presidente venezuelano.
Agora, a eleição no Peru. No último domingo aconteceu a votação em primeiro turno, com o candidato da esquerda, Ollanta Humala, aparecendo à frente nas pesquisas, seguido de Keiko Fujimori (filha do ex-presidente, hoje presidiário, Alberto Fujimori), com Pedro Paulo Kuczynski e o atual presidente Alejandro Toledo logo atrás. Como o jornal gaúcho Zero Hora destacou o dia do pleito? Uma cobertura de duas páginas: na segunda, uma entrevista com Humala; na primeira, a matéria “Peru vota temendo o chavismo”.
Nessa reportagem, da página 16, Keiko é citada uma vez, assim como Kuczynski. Toledo é lembrado em duas oportunidades. O foco do texto é Humala, cujo nome é citado nove vezes. Mas e o que dizer de Chávez? Seu nome e a palavra “chavismo” estão presentes no texto em sete oportunidades. Chávez é mais importante para a eleição do Peru do que os próprios candidatos? Como disse o sociólogo Cristóvão Feil no domingo, “Quem ler Zero Hora (grupo RBS) de hoje vai achar que Hugo Chávez é candidato a presidente do Peru”.
Na entrevista com Humala, três das cinco perguntas se referem às ligações do presidenciável com Chávez ou com o PT! Sim, porque há também uma retranca à matéria principal que conta a participação de brasileiros na campanha do candidato esquerdista. O texto tenta dar a entender que o PT estaria intervindo nas eleições peruanas.
A cobertura de Zero Hora é inteira um desrespeito à autonomia e à capacidade do povo peruano de escolher seus representantes com independência. Usa a eleição peruana para voltar a atacar Chávez e colocar sobre os movimentos de esquerda da América Latina a sombra de uma grande conspiração “subversiva”, “autoritária”.
Em tempo: ao menos no primeiro turno a tentativa de amedrontar e despolitizar o processo não funcionou, e Humala venceu. Vai enfrentar Keiko Fujimori no segundo turno. A mídia internacional segue perdendo batalhas na América Latina. E os ataques deverão ser cada vez mais violentos, é o instinto do animal acuado.

*Ressalte-se que a cobertura da Folha de S. Paulo não foi por esse caminho. Nas edições de sábado e domingo, trouxe reportagens equilibradas e realmente informativas.

*Sobre quem são os candidatos à presidência do Peru, vale a leitura de artigo do Altamiro Borges.