quarta-feira, 26 de outubro de 2011

A farsa parlamentar do diálogo pela busca de soluções para os problemas indígenas e quilombolas





Um espetáculo teatral: diálogo para solucionar os problemas fundiários envolvendo agricultores, indígenas e quilombolas no Estado do Rio Grande do Sul - O palco: Assembléia Legislativa do Estado – Os atores principais: senadora Ana Amélia Lemos, deputados federais do RS e fazendeiros vinculados à Confederação Nacional da Agricultura – Os Coadjuvantes: pequenos agricultores – As vítimas: povos indígenas e quilombolas.

Assim pode ser descrita a “audiência pública” convocada pela Comissão de Agricultura e Reforma Agrária do Senado Federal, realizada no dia 21 de outubro, em Porto Alegre, com o intuito de estabelecer um diálogo para a “busca de soluções à questão da demarcação das terras indígenas e quilombolas no Rio Grande do Sul”. No palco, dirigiu a cena a senadora Ana Amélia Lemos (PP), auxiliada pelos deputados estaduais Edson Brum (PMDB) e Gilberto Capoani (PMDB), e pelos de deputados federais Alceu Moreira (PMDB) e Luiz Carlos Heinze (PP), todos parlamentares do Rio Grande do Sul. E, como toda cena teatral requer apoiadores, lá estavam representadas algumas instituições: Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), Federação da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul (Farsul), Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Rio Grande do Sul (Fetag/RS), Federação da Associação dos Municípios do Estado do Rio Grande do Sul (Famurs), Fundação Cultural Palmares, Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), Ministério Público Estadual (MPE), a subchefe da Casa Civil do Estado Mari Peruzzo e ainda representantes da Fundação Nacional do Índio (Funai) e do Instituto Nacional de Reforma Agrária (INCRA). E, para aplaudir a performance dos protagonistas deste espetáculo, centenas de pequenos agricultores lotaram a platéia da Assembléia Legislativa.  

Da “audiência”, cuja temática versava particularmente sobre os direitos constitucionais dos povos indígenas e quilombolas, representantes destas populações não participaram como convidados. Não bastasse isso, sua entrada, como espectadores, só se deu de maneira forçada sendo que quase não conseguiram adentrar no auditório Dante Barone. Nem mesmo a Funai, que havia sido convidada para a audiência, se interessou em informar e articular as comunidades indígenas da região. Por sua vez ela se fez presente no palco do espetáculo, representando, no enredo, o Governo Federal e seus interesses. Estava lá para prestar esclarecimentos sobre procedimentos de demarcação, para justificar a inoperância do governo, apesar de ter por obrigação constitucional criar e executar uma política indigenista e demarcar todas as terras indígenas do país.

O que desejavam os promotores desta audiência, com ares de espetáculo e direito a aplausos fervorosos e vaias ensandecidas, não era o diálogo e, muito menos, uma solução justa para o conflito fundiário que se estende por décadas, transformando a vida dos povos indígenas e comunidades quilombolas em um drama sem fim. A questão tomou proporções vultosas no estado do Rio Grande do Sul porque há segmentos importantes do agronegócio implicados. Por isso, a justa luta dos povos indígenas e dos quilombolas pela terra é vista como um “problema” que afeta o bem estar, a produtividade, o desenvolvimento do estado. No teatro que se encenou com a alcunha de audiência pública, o interesse era fazer uma demonstração de força, comprometendo os parlamentares com a “causa” dos segmentos econômicos e social (latifúndio e agronegócio), cuja intenção primeira é limitar os direitos constitucionais dos povos indígenas e dos quilombolas que lutam pela garantia da demarcação e o usufruto de suas terras.

E isso ficou evidente quando os personagens principais da peça teatral procederam à leitura de suas propostas para solucionar o problema no estado: a suspensão das demarcações de terras dos quilombolas e indígenas em áreas onde não há consenso (ou seja, todas as áreas indígenas, com exceção, por enquanto, dos barrancos de beira de estrada); revisão dos decretos 1.775/1996 e 4.887/2003(que regulamentam as demarcações de terras indígenas e quilombolas); suspensão de todos os procedimentos administrativos de demarcação de terras em curso no Rio Grande do Sul; garantia de observância do devido processo legal e da ampla defesa (como se essas não estivessem previstas em decretos e na Constituição Federal); revisão da legislação indigenista e da Constituição Federal no que se refere à demarcação das terras indígenas e quilombolas; votação e aprovação da PEC 215/2000 (proposta de Emenda à Constituição Federal que visa transferir a autorização para demarcação de terras ao Congresso Nacional e não ao Poder Executivo); garantir assistência jurídica e antropológica aos produtores rurais; políticas públicas para as comunidades quilombolas e indígenas (essa proposta foi apresentada porque, segundo eles, o problema dos povos indígenas não é fundiário, mas social).

Os efeitos do espetáculo não são, portanto, uma farsa. Longe disso! São reais e estão sendo dinamizadas em diferentes âmbitos, seja por representantes deste novo e articulado movimento ruralista, seja por integrantes do próprio Governo Federal, especialmente da Casa Civil e do Ministério da Justiça. As propostas expostas ao final do último ato daquele bizarro espetáculo falam por si mesmas: são unilaterais, refletem o anseio de impor a vontade de certos segmentos econômicos aos direitos estabelecidos na Constituição Federal e, assim, são propostas que instauram uma insegurança jurídica, uma vez que colocam em questão o teor das leis e também as instituições responsáveis pela sua execução.

O suposto diálogo, que deveria ocorrer nesta audiência realizada no espaço da Assembléia Legislativa do Estado é, então, um grande monólogo que expõe a vergonhosa intenção de restringir os direitos dos povos indígenas e das comunidades quilombolas. Aliás, a teatralidade do evento parece refletir uma tendência que se expressa em âmbito nacional: a de considerar “problemática” a presença indígena e quilombola lutando pela posse e garantia de suas terras, desviando o foco do verdadeiro problema que é a omissão do Estado e a morosidade em fazer valer os direitos territoriais destes povos e comunidades.  

Nesse sentido, a encenação do dia 21 de outubro em Porto Alegre não foi inédita e nem exclusiva.  Ela será reprisada em todos os estados da federação. Haverá, de acordo com a realidade de cada região do país, algumas mudanças e/ou substituições de personagens, mas o conteúdo será o mesmo: alterar os dispositivos constitucionais que asseguram o direito a demarcação das terras indígenas e quilombolas. Iniciativas como esta, propagadas como um momento de “busca de soluções” ou como um espaço democrático de participação e de expressão pública, nem de longe possibilitam que o público seja ouvido e, menos ainda, que os maiores interessados possam se manifestar.

O que ocorreu no Rio Grande do Sul, na verdade, foi uma grande demonstração de intolerância e de desrespeito: os indígenas e quilombolas tentaram manifestar suas posições e foram recebidos com vaias pela platéia. Mesmo estando em franca minoria, e mesmo sendo desrespeitados dentro da Assembléia Legislativa, espaço em que, teoricamente, se resguardam preceitos legais e se legisla, os indígenas e quilombolas exigiram um espaço para se manifestar.  

O líder indígena Kaingang, Sr. Francisco dos Santos, sob muita vaia da platéia, disse: “Nós indígenas sofremos muito e fomos mortos e ainda estamos sendo mortos. Esse país, Brasil, pertence aos povos indígenas. O que eu quero é a demarcação das terras que sobraram. Eu respeito a terra dos brancos, a que eles compraram, mas eu não posso deixar a minha terra, mesmo que os brancos digam que a tenham comprado. Eu respeito a lei, mas não sou culpado se vocês embarcaram em um barco furado quando compraram terras que eram nossas, que nós vivíamos em cima delas. Todos nós sofremos e estamos aqui para dialogar. Mas nós indígenas e quilombolas precisamos defender nossas terras. Quero o que pertence para mim, pro meu povo. Vocês (os brancos) não respeitaram a natureza, não respeitaram os bichos, os peixes. Vocês terminaram com a minha natureza. Quero o meu direito que a Constituição determina. Eu vou até a morte. Os culpados são os políticos, os governos que assentaram vocês nas terras indígenas”.

Este pronunciamento emocionado, feito por uma liderança Kaingang, dá conta do sofrimento que tem sido imputado aos povos indígenas, sistematicamente perseguidos e desrespeitados pelos políticos que defendem exclusivamente interesses econômicos, que não encontram no poder público o amparo e a proteção que lhes é devida. O pronunciamento feito por um representante quilombola foi igualmente comovido, e expressou a profunda tristeza de ver que, em pleno século XXI, são ainda vistos como improdutivos, como ineficientes, como incômodos que não se moldam aos preceitos da vida para consumo.

E essa idéia se evidenciou claramente na audiência, quando esse representante fez referência, em seu discurso, ao fato de serem os indígenas e os quilombolas também agricultores, o que gerou uma estridente e prolongada vaia. Tal manifestação coletiva mostra o quanto aquele espetáculo e seus espectadores vindos em caravana estavam armados contra os povos indígenas e as comunidades quilombolas. As faixas espalhadas do lado de fora da assembléia também demonstravam a falta de abertura ao diálogo.

Os povos indígenas e as comunidades quilombolas são, na concepção da grande maioria dos políticos, governos e dos “produtores rurais”, um estorvo. Seus direitos tratados como penduricalhos e suas culturas consideradas atrasadas. Impera, nesta lógica de pensamento dominante, a idéia de que alguns são seres superiores e os demais povos e culturas precisam submeter-se aos seus interesses e ideologias. Lamentavelmente as vaias destinadas aos povos indígenas e quilombolas refletem o quanto a sociedade “branca” é intolerante e racista. 

Porto Alegre, RS, 24 de outubro de 2011.

Roberto Antonio Liebgott
Cimi Regional Sul - Equipe Porto Alegre

Tratados como animais. De abate, não de estimação


Cuiabá – Há mais de dez anos, uso a expressão “tratados piores que certos animais” para se referir às condicões a que determinados produtores rurais sujeitam seus empregados (o “certos” se dá pelo fato de que existe muito bichinho de estimação com consumo per capita bem maior que muito brasileiro). Muitos dizem que exagero nessas horas.
É mesmo?
De acordo com reportagem de Bianca Pyl, da Repórter Brasil, uma operação do grupo móvel de fiscalização do governo federal encontrou 19 trabalhadores, um deles com 17 anos de idade, em condições análogas à escravidão em propriedade rural pertencente ao médico Gilson Freire de Santana, que foi prefeito de Açailândia (MA) entre 1997 e 2000 e é dono do Hospital Santa Luzia. Do total de libertados da Fazenda Santa Maria, 15 dormiam no curral, ao lado de animais e de agrotóxicos. As outras quatro pessoas resgatadas estavam em uma casa precária de madeira, com o teto prestes a desabar.
Os empregados dormiam em redes próprias e enfrentavam dificuldades para descansar por causa do barulho dos animais. “Quando dava 3h da manhã, ninguém conseguia dormir mais. Nosso horário [para acordar] era 6h30, mas o vaqueiro chegava gritando com os bichos e aí era uma barulheira danada a madrugada toda”, revelou um dos libertados.
Os libertados eram responsáveis pela limpeza do terreno para formação de pastagem, além de manutencão e ampliação de cercas. A operacão foi realizada em setembro, mas os valores devidos só foram pagos aos trabalhadores um mês depois.
Não é a primeira vez que trabalhadores são encontrados dormindo em currais e não será a última.
O que me lembra um caso ocorrido há três anos no Rio Grande do Sul, quando auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego e procuradores do Ministério Público do Trabalho proibiram que empregados de fazendas dormissem junto com os animais durante a Expointer, uma das mais importantes feiras agropecuárias do mundo, realizada anualmente no Estado. Creio que é desnecessário explicar o porquê da proibição (caso alguém ache normal dormir com o gado no curral, por favor pare de ler este post e mude de blog). Houve revolta dos proprietários rurais e um deles, “doutor em direito e pecuarista”, escreveu um artigo que circulou na rede, defendendo o sentido de “tradição”.
Mas também eram “tradições” a possibilidade legal de comprar seres humanos (até 1888) ou a impossibilidade de mulheres votarem (até 1932). Muitas aberrações da humanidade foram – e são – justificadas por serem tradições, ou seja, mantras repetidamente cantados, porém dificilmente discutidos. Na verdade, elas são apenas construções sociais, normalmente impostas ao longo dos anos pelos mais fortes até serem serem aceitas por determinado grupo sem que se lembre de onde ela surgiu.
É a tradição do local dormirem com o gado? Vamos criar outra! De agora em diante passa a ser tradição o dono da fazenda dormir com o gado.

Servidores Públicos e Governo: os grandes desafios

Redação do SUL21

Com o anúncio de três medidas de incentivo ao funcionalismo público, o governo do Estado do Rio Grande do Sul deu início na segunda-feira (24) às comemorações do Dia do Servidor Público, a acontecer na próxima sexta-feira (28).
Será concedido: 1) aumento de 35% para 50% e que pode chegar a 80% na gratificação de permanência aos servidores que, em idade e com tempo para aposentadoria, optarem por permanecer no cargo; 2) linha de crédito do Banrisul para aquisição de imóveis novos ou usados, inclusive terrenos, reforma e ampliação, com taxa de juros abaixo do mercado e prazo de pagamento dilatado e 3) emissão de contracheque verde, que passará a estar disponível no Portal do Servidor e no Banrisul, para diminuir o impacto ambiental das impressões em papel e promover uma economia de até R$ 425 mil ao ano. Além disso, será decretado feriado no Dia do Servidor, que sempre foi considerado como “ponto facultativo”. Na prática, este último ato não tem grande consequência, já que a maioria dos órgãos públicos costuma dispensar grande parte se não todos os funcionários nesta data, mas indica a intenção do governo em se aproximar dos servidores e de valorizá-los.
O gesto de boa vontade do governo só se completará, no entanto, se além dos benefícios indiretos, agora concedidos aos servidores, forem também implementadas medidas de recuperação salarial, de um lado, para valorizar de modo direto os servidores, e de avaliação de desempenho, de outro, para que todos os serviços públicos passem a beneficiar de modo efetivo aos cidadãos. Tudo isto só será possível se o governo se dispuser a enfrentar pelo menos quatro outros grandes desafios, divididos em dois grandes eixos, a saber: 1) o do próprio serviço público e 2) o da relação com os demais poderes estaduais e instâncias de poder (federal e municipal).
Os eixos e as respectivas medidas a serem adotadas precisarão ser trabalhados em conjunto, pois que todos estão relacionados entre si e nenhum deles pode ser aplicado e resolvido se os demais não o forem também: 1) a reformulação da matriz salarial dos servidores de todos os poderes e órgãos estaduais; 2) a reformulação da estrutura das diferentes carreiras de servidores, com a (re)definição dos critérios de seleção e ingresso, avaliação e promoção, além dos de incorporação de vantagens; 3) a reformulação do sistema de aposentadoria e previdência social e 4) a renegociação da dívida estadual e a superação do déficit crônico do tesouro público estadual.
Enfrentar estas questões exigirá disposição política do governo e, ao mesmo tempo, dos servidores públicos e de suas entidades de classe. Se, de um lado, o governo se acomodar em adotar medidas parciais, mesmo que simpáticas e populares, e se, de outro lado, os servidores de todos os poderes se aferrarem na defesa corporativa de seus interesses imediatos e possíveis privilégios, nada se fará de efetivo.
Perderão, com isto, tanto o governo do Estado, que não superará questões que são fundamentais para o desenvolvimento do Rio Grande do Sul hoje, quanto os servidores, que não terão resolvidas as questões que assegurarão melhores condições de trabalho, remuneração e previdência no futuro próximo e perderá, por fim, como sempre ocorre nestes casos, o conjunto da população, que será privado, mais uma vez, da possibilidade da retomada do desenvolvimento e de ser beneficiado com a prestação de serviços públicos de melhor qualidade.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Desenvolvimento e ciências humanas


Por Márcio Pochmann no GRABOIS
 
O Renascentismo Europeu, ao final do século XIV, inaugurou uma nova fase de entendimentos acerca da natureza do homem e do funcionamento do mundo, o que concedeu às ciências humanas um valor estratégico substancial. Por meio de um conjunto filosófico comum e acompanhado do método de aprendizado fundamentado na razão e evidência empírica, as humanidades terminaram por subverter a perspectiva espiritualista predominante até então no mundo medieval.
Com o desafio estabelecido de compreender a realidade em sua totalidade, floresceram as universidades e a pesquisa comprometidas com o papel central de organização, produção e difusão técnico-científico de caráter universal. Concomitantemente às revoluções industriais dos séculos XVIII e XIX, as ciências, sobretudo as aplicadas, foram incorporadas às exigências do padrão de desenvolvimento urbano-industrial. Ou seja, foram incorporadas à vida nas cidades, uma vida constituída pela materialidade do consumismo decorrente da produção de bens e serviços em escala cada vez mais global.

Para isso, a partilha do conhecimento em múltiplas especializações se fez crescente, gerando fragmentação do ensino e pesquisa compatível com os requisitos de maior produtividade técnico-científica exigidos por distintos setores de atividade econômica. A aplicação recorrente do conhecimento técnico-científico à produção material de bens e serviços modernos tornou possível agregar valor ao processo de acumulação de capital e impor progresso material inimaginável às sociedades urbano-industriais.

A perspectiva de crescente especialização da produção técnico-científica, que até então se encontrava encastelada em contidos centros de pesquisas, possibilitou a emergência de novos laboratórios e investimentos em pesquisa inseridos nos plano de negócios empresariais. Assim, a associação entre diversos centros difusores das ciências humanas - públicos e privados - fortaleceu gradualmente a crença de que a mercantilização do trabalho imaterial deveria atender às exigências do padrão de desenvolvimento urbano-industrial.

Tudo isso, contudo, não deixou de produzir colateralmente o esvaziamento de uma unidade filosófica comum que concedia às ciências humanas o valor estratégico no entendimento totalizante da realidade do mundo e do homem. Certa cegueira situacional passou a acompanhar o desenvolvimento fragmentado das ciências humanas, com inegáveis graus de alienação na produção do conhecimento.

Tanto assim que a partir dos últimos 25 anos do século XX, a produção do conhecimento, anteriormente centrado nas universidades tradicionais, foi sendo substituída pelas chamadas universidades corporativas, responsáveis por funções como a formação de quadros e capacitação permanentes dos trabalhadores nas grandes empresas. Nos dias de hoje, somente as 500 maiores corporações transnacionais respondem por cerca de 4/5 de toda a produção global de investimentos em ciência e tecnologia. Em vários países do mundo, a quantidade de universidades corporativas supera as universidades tradicionais.

A reação radicalizada do sistema universitário tradicional foi o de se comprometer com a maior elevação da produtividade nas ciências, especialmente por meio do aprofundamento das especializações, o que a dispensou de vez de qualquer compromisso com a existência de algum corpo filosófico integrador do entendimento acerca do homem e do mundo. Por conta disso, currículos foram simplificados e esvaziados da identidade comum, enquanto as ciências humanas seguiram aprendizagem desinteressante e descomprometida da referência e aplicação prática na realidade.

No mesmo sentido, as agências públicas de financiamento da pesquisa concentraram-se no fomento setorial e individualizado da produção do conhecimento comprometido fundamentalmente com a perspectiva de elevação da produtividade sistêmica das ciências humanas. Apostaram-se também na competição inter e intrauniversitária movida pelo uso de tecnologias das competências, o que rompeu com a fronteira nacional dos conteúdos curriculares. De caráter cada vez mais internacionalizado, as medidas nacionais de avaliação e monitoramento do ensino e pesquisa subordinam-se à coordenação exógena e descolada dos interesses nacionais. Tanto assim que não tem sido incomum conceder à produção técnico-científica valorização superior com publicação externa e descontextualizada do que aquela comprometida com as exigências da realidade nacional.

Esse modelo internalizado nos países não-desenvolvidos não reduziu o fosso que separa a produção técnico-científica das exigências associadas ao setor produtivo. Da mesma forma, o movimento de internacionalização do parque produtivo tornou mais interessante a importação da tecnologia dominante na mesma medida em que empresas multinacionais realizam concentradamente em suas matrizes os maiores esforços de desenvolvimento da pesquisa em ciência e tecnologia. É isso que faz com que somente 10% dos 11 mil doutores formados anualmente no Brasil possam se estabelecer nos centros de pesquisa vinculados ao setor produtivo, bem ao contrário de outros países.

A recuperação da unidade filosófica comum nas ciências humanas e o seu engajamento no entendimento do mundo e do homem atual constituem peças fundamentais de uma estratégia de superação do atraso subdesenvolvimentista. Do contrário, produção do conhecimento e exigências do padrão de desenvolvimento poderão continuar a andar em sentido distinto.

Marcio Pochmann é presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), professor licenciado do Instituto de Economia e do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)

Fonte: Valor Econômico

Cristina Kirchner impõe maior vitória da redemocratização argentina


Cristina Kirchner impõe maior vitória da redemocratização argentina
Cristina, a primeira mulher eleita diretamente à presidência da Argentina, será também a primeira reeleita (Foto: Presidência da Argentina)

Buenos Aires – A presidenta da Argentina, Cristina Kirchner, obteve neste domingo (23) a maior vitória eleitoral desde a redemocratização do país, em 1983. Segundo a contagem parcial de votos, ela obteve mais de 53% dos votos válidos, 36 pontos à frente do segundo colocado, o ex-governador da província de Santa Fé, Hermes Binner.

Tomando como marco a volta argentina à democracia, este pleito estabeleceu alguns grandes recordes. O primeiro é exatamente a diferença para o segundo colocado. Binner conseguiu capitalizar parte do eleitorado insatisfeito ou indeciso na reta final, crescendo consideravalmente desde as prévias de agosto, mas não o suficiente para evitar uma margem extremamente confortável a favor da continuidade. Além disso, este é o percentual mais alto do vencedor, superando os 51,7% obtidos por Raúl Alfonsín em 1983. Será a primeira vez que uma mesma coalizão emplaca três governos seguidos.

Na história eleitoral argentina, Cristina, que havia sido a primeira mulher eleita diretamente, é também a primeira reeleita. De quebra, recuperou o controle do Congresso, uma avaliação que, para ser fechada de todo, terá de esperar algumas horas. É provável ainda que tenha imposto a vitória na enorme maioria das províncias, com grande possibilidade de superar o recorde anterior, de Carlos Menem.

Nascida há 58 anos na cidade de La Plata, capital da província de Buenos Aires, Cristina entrou para a vida política na década de 1970, quando cursava advocacia. Ao mesmo tempo, conheceu Néstor, com quem se casaria em 1975. Durante a ditadura, o casal se mudou para Rio Gallegos, na fria província de Santa Cruz, ao sul, onde se dedicaram a um escritório de advocacia. Só após o fim do regime repressor voltaram a atuar politicamente. Em 1989, Cristina se elegeu deputada provincial, enquanto Néstor foi eleito governador em 1991.

Em 1995, Cristina conquistou seu primeiro mandato no Senado, em 1997 foi eleita deputada e em 2001 voltou a ser senadora, no ano em que o país foi ao patamar mais profundo de sua crise política, econômica e social, com a queda do presidente Fernando de la Rúa.

Em 2003, Néstor foi escolhido pelo presidente provisório, Eduardo Duhalde, para ser o candidato. Sem acordo, o Partido Justicialista, conhecido fora da Argentina por peronista, lançou três candidatos, entre eles Carlos Menem, que saiu vitorioso do primeiro turno com 24% dos votos. O santa crucenho ficou em segundo, com 22%, e deveria disputar o segundo turno, mas Menem, ao notar que teria uma rejeição de 70% da população, renunciou à disputa.

Néstor chegou à Casa Rosada em uma eleição que não venceu, longe de contar com o apoio da maioria da população e precisando resgatar a economia nacional e a confiança da população na classe política.

A recuperação econômica, com criação de emprego e aumento de renda, e as políticas sociais e de direitos humanos garantiram a Néstor um bom respaldo. Em 2007, surpreendeu a todos anunciando que abriria mão da candidatura em prol da esposa. Cristina foi eleita com 45% dos votos válidos. Em 2010, a morte do ex-presidente eliminou a possibilidade mais provável para este ano, de que disputasse novamente o cargo, e jogou para a presidenta a decisão de continuar. Em março, ela anunciou que aceitava concorrer mais uma vez, em um momento em que já tinha grande respaldo popular.

O que as mobilizações chilenas nos ensinam?


Por Caio Zinet na CAROS AMIGOS

Durante os últimos quatro meses, os estudantes chilenos estão mobilizados em uma forte luta pela educação pública, gratuita e de qualidade. São cerca de 700 colégios e universidades ocupados por todo o país e até o momento foram realizadas, pelo menos, seis manifestações que reuniram em torno de 500 mil pessoas nas ruas de várias cidades do país. A maior delas, realizada no dia 18/9, reuniu um milhão de pessoas em Santiago.
A popularidade do governo Piñera despencou desde o começo do ano, e o apoio às pautas estudantis aumentou vertiginosamente desde o início dos protestos. Nesse período, também foram realizadas duas grandes greves gerais que paralisaram o país e colocaram a necessidade de se discutir também as leis trabalhistas herdadas da ditadura.
As mobilizações no Chile, e o imenso apoio popular que vem recebendo, apontam para o esgotamento de um modelo de educação gestado a partir de 11 de setembro de 1973, quando um golpe militar derrubou o governo socialista de Salvador Allende, e conduziu o general Augusto Pinochet ao poder.
Junto a Pinochet vieram as ideias dos teóricos neoclássicos (ou neoliberais, como preferir), como Milton Friedman, Hayek entre outros. Os “chicago boys”, como ficaram conhecidos, fizeram do Chile umas das primeiras experiências neoliberais da história contemporânea.
O Estado, dentro dessa concepção, é um grande e pesado ator social que deve preparar a economia do país para as empresas, retirando barreiras para o mercado financeiro, transformando os países em grandes fantoches do capital financeiro internacional.
Dentro dessa visão, o Chile transformou quase toda a sua educação em privada, e a parte que não é privada é subvencionada pelo Estado. Dessa forma, todo o chileno que quiser estudar terá que arcar com altos gastos de mensalidades, e pesados juros. As dívidas acompanham os estudantes chilenos por muitos anos. Estima-se que 40% dos estudantes deixem a universidade com dívidas.
A educação brasileira caminha para o mesmo rumo. Em 1995, cerca de 60% dos estudantes do ensino superior estavam matriculados no ensino privado, em 2007 essa proporção saltou para 74,6%.
As políticas estatais que propiciaram essa inversão foram gestadas durante os dois governos do presidente Fernando Henrique Cardoso, e se tornaram ainda mais concretas com o governo Lula, consolidando programas como o Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (Fies) e criando o Programa Universidade Para Todos (ProUni) e o que tiram verbas da educação pública e remetem para os grandes grupos de educação brasileira. Ao mesmo tempo, a educação pública vem sendo sucateada, e a qualidade de ensino é deixada em segundo plano.
Ao contrário do que sustenta o governo federal, o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação das Universidades Federais (Reuni), não melhorou a qualidade do ensino público no país, pelo contrário. Aumenta-se o número de alunos por sala de aula e os recursos permanecem praticamente os mesmos.
Na prática o que se nota é que a educação pública está sendo aos poucos sucateada. Prova disso são as mais de dez ocupações de universidades federais e estaduais que estão acontecendo ou aconteceram por todo o país nesse segundo semestre, e tem entre suas principais pautas infraestrutura e qualidade de ensino. Os estudantes entraram em universidades públicas, mas não tem salas de aula, laboratórios adequados, faltam restaurantes universitários a todos, muitas vezes nem mesmo os prédios que abrigaram os cursos estão prontos.
A luta dos estudantes chilenos reflete ao que a educação chilena foi submetida, e mostra que o caminho que vem sendo trilhado pelo Brasil na educação leva ao fortalecimento do modelo privatista de educação, e a destruição do ensino público, gratuito, de qualidade e acessível a todos e a todas sem distinção de classe.
Aos estudantes e a sociedade brasileira que não esperem que a educação brasileira chegar a uma crise tão profunda como a chilena para se levantar contra esse modelo de educação. Aos estudantes brasileiros que se revoltem agora, que lutem para que 10% do Produto Interno Bruto (PIB) sejam destinados à educação pública.
O modelo chileno que deve nos guiar é o dos estudantes nas ruas dizendo que "educação não é mercadoria", e não o modelo neoliberal de educação, herança de Pinochet, que se mostra cada vez mais insustável.

Caio Zinet é jornalista

domingo, 23 de outubro de 2011

Blind Lemon Jefferson - Classic Sides 2003

créditos: BECO DO BLUES

CD1
01- I Want To Be Like Jesus In My Heart
02- All I Want Is That Pure Religion
03- Got The Blues
04- Long Lonesome Blues
05- Booster Blues
06- Dry Southern Blues
07- Black Horse Blues
08- Corinna Blues
09- Got The Blues
10- Long Lonesome Blues
11- Jack O' Diamond Blues
12- Jack O' Diamond Blues
13- Chock House Blues
14- Beggin Back
15- Old Rounders Blues
16- Stocking Feet Blues
17- That Black Snake Moan
18- Wartime Blues
19- Broke And Hungry
20- Shuckin' Sugar Blues
21- Booger Rooger Blues
22- Rabbit Foot Blues
23- Bad Luck Blues

CD2
01- Black Snake Moan
02- Match Box Blues
03- Easy Rider Blues
04- Match Box Blues
05- Match Box Blues
06- Rising High Water Blues
07- Weary Dogs Blues
08- Right Of Way Blues
09- Teddy Bear Blues
10- Teddy Bear Blues
11- Black Snake Dream Blues
12- Hot Dogs
13- He Arose From The Dead
14- Struck Sorrow Blues
15- Rambler Blues
16- Chinch Bug Blues
17- Deceitful Brownskin Blues
18- Sunshine Special
19- Gone Dead On You Blues
20- Where Shall I Be?
21- See That My Grave's Kept Clean
22- One Dime Blues
23- Lonesome House Blues

CD3
01- Blind Lemon's Penitentiary Blues
02- 'Lectric Chair Blues
03- See That My Grave Is Kept Clean
04- Lemon's Worried Blues
05- Mean Jumper Blues
06- Balky Mule Blues
07- Change My Luck Blues
08- Prison Cell Blues
09- Lemon's Cannon Ball Moan
10- Long Lastin' Love
11- Piney Wood's Money Mama
12- Low Down Mojo Blues
13- Competition Bed Blues
14- Lock Step Blues
15- Hangman's Blues
16- Sad News Blues
17- How Long How Long
18- Lockstep Blues
19- Hangman's Blues
20- Christmas Eve Blues
21- Happy New Year Blues
22- Maltese Cat Blues
23- D B Blues

CD4
01- Eagle Eyed Mama
02- Dynamite Blues
03- Disgusted Blues
04- Competition Bed Blues
05- Sad News Blues
06- Oil Well Blues
07- Tin Cup Blues
08- Big Night Blues
09- Bed Spring Blues
10- Saturday Night Spendor Blues
11- That Black Snake Moan No- 2
12- Peach Orchard Mama
13- Big Night Blues
14- Bed Spring Blues
15- Yo Yo Blues
16- Mosquito Man
17- Southern Woman Blues
18- Bakershop Blues
19- Pneumonia Blues
20- Long Distance Moan
21- That Crawlin' Baby Blues
22- Fence Breakin' Yellin' Blues
23- Cat Man Blues
24- The Cheaters Spell
25- Bootin' Me 'Bout

Tarso rechaça editorial da RBS e diz que empresa manipulou conteúdo de conferência


Governador do RS rechaça editorial publicado pelo jornal Zero Hora que o acusa de querer "censurar o jornalismo investigativo" e "restringir a liberdade de imprensa. Em conferência realizada no MP gaúcho, Tarso criticou jornalismo que quer julgar e condenar, substituindo trabalho das instituições que têm essas atribuições. Governador acusa empresa de manipular conteúdo de sua conferência e de omitir o que ele disse sobre liberdade de imprensa.


O jornal Zero Hora publicou um editorial neste sábado (22) manifestando “estarrecimento” pelo que chama de “ataque desfechado pelo governador Tarso Genro ao jornalismo investigativo”. O editorial acusa o governador de sustentar uma posição que “tende a interessar mais aos corruptos do que aos cidadãos”. ZH acusa Tarso também de querer “restringir preventivamente a liberdade de imprensa” e o trabalho da “imprensa livre e independente”, no momento em que “o país passa por uma limpeza ética”.

Na quinta-feira (20), em meio a uma conferência proferida no Congresso do Ministério Público do Rio Grande do Sul, Tarso Genro criticou as práticas jornalísticas que denunciam, julgam e condenam, pretendendo substituir as instituições republicanas que têm essas atribuições. A RBS reagiu no mesmo dia, acusando o governador gaúcho de querer "censurar o jornalismo investigativo". (A íntegra da conferência de Tarso Genro está disponível aqui. A íntegra do editorial de ZH só está disponível para assinantes)

“A reação violenta da RBS”, declarou o governador Tarso Genro à Carta Maior, “parece querer interditar o debate e o faz através da manipulação da informação sobre a conferência que proferi no Congresso do Ministério Público”. “Essa conferência versa sobre um tema que vem sendo debatido em todo o mundo há mais de vinte anos e que aqui no Brasil ocorre no âmbito da academia e em setores da intelectualidade fora da academia: a superposição das instituições “de fato”, oriundas da força econômica do capital financeiro - agora em crise - sobre as instituições do Estado”. “Ela sequer versava”, acrescentou, “sobre alguma empresa de comunicação em particular ou sobre alguma investigação jornalística, ou, ainda, sobre a liberdade de informar. Tanto é que eu digo claramente na minha exposição:

(...) Não proponho, em absoluto, qualquer controle da informação por parte do Estado. Nem a sonegação de informações relevantes, para que os processos e as investigações tenham ampla publicidade pela mídia que, de resto, pode cumprir o papel político que quiser dentro da democracia. Nem se trata, também, de alegar a existência de uma “conspiração” dos meios de comunicação contra a democracia e o devido processo legal. Trata-se de compreender que já vivemos um período da sociedade da informação em que os poderes de fato, no capitalismo tardio, estão se sobrepondo aceleradamente ao poder das instituições formais do Estado. Isso não ocorre somente em relação à mídia, mas também em relação a outros poderes fáticos oriundos da força econômica dos grupos privados.

O governador acusou a RBS de querer interditar o debate manipulando o conteúdo de sua conferência ao “não publicar nem mencionar o trecho acima que dá sentido à toda a exposição”. “O que proponho - e isto está escrito também no texto da conferência - é uma união das instituições do Estado com os políticos sérios e honestos (que são a maioria em todos os partidos) para combater a corrupção, com mais condições técnicas para os inquéritos, reformas legais que acelerem os processos e os cumprimentos de pena”, afirmou Tarso. E acrescentou:

“O que faz reduzir a corrupção é a punição pelo Estado e não o justiçamento paralelo da mídia, nem as investigações dos repórteres, que obviamente podem ser feitos e devem ser feitos. Mas o produto destas investigações é matéria jornalística e é, portanto, mercadoria-notícia, não prova de crime”.

"Esta atitude da RBS, pretendendo interditar o debate com ameaças de campanhas difamatórias que estão subjacentes no mesmo editorial, marca o ápice da petulância e da arrogância que poucas empresas de comunicação têm a coragem de expor publicamente. Mentem, quando dizem que sou contra o jornalismo investigativo, quando o que sou contra é julgamento sumário de pessoas, independentemente de que sejam culpadas ou não. Mentem quando contrastam dois textos meus sobre assuntos diferentes, mesmo tendo, na Conferência, manifestação explícita da minha parte que confirma a minha posição de princípio a favor da total liberdade da imprensa e de respeito irrestrito ao trabalho dos jornalistas," disse ainda o governador gaúcho.

Ainda segundo a avaliação do governador, “o sentido da avalanche de críticas que recebi está muito bem exposto no editorial de ZH desta manhã”. Mais precisamente, explicou, “está contido na expressão “limpeza ética”, de origem e marca bem conhecidos na história”. Recentemente na Europa Oriental se falava em “limpeza étnica”. Limpeza se faz num lugar sujo (a política e o país) e quem faz a “limpeza” é o virtuoso (a mídia), nós, humanos sujamos, por isso nem temos o direito de dizer que o processo judicial, o inquérito do Ministério Público e dos órgãos de controle, não podem ser superpostos por justiçamentos e linchamentos públicos, que transformam crimes comuns em crimes políticos e consequentes condenações políticas, sem direito de defesa com a mesma exposição e intensidade das acusações”.

“O editorial”, prosseguiu o governador, “chega a sugerir que estou tentando me proteger de futuras denúncias”. “É jogo sujo: eu poderia dizer, se fizesse o mesmo raciocínio, que quando eles atacam quem quer fortalecer o MP e o Judiciário, para evitar linchamentos públicos, eles estão protegendo corruptos que eles apoiam ou apoiaram. Mas, sinceramente não penso assim. Acho que eles não leram a integralidade da minha conferência e pensaram que ela era dedicada a eles”.

Por fim, Tarso Genro afirmou que não mudará um milímetro a relação que mantém com a RBS e nem com a imprensa em geral. “Essas controvérsias são boas para a democracia. Todos fulminaram sistematicamente Lula e o PT e a esquerda em geral, às vezes até com razão, e nós continuamos vivos e crescendo. Enfrentei seguidas manipulações da imprensa sobre as minhas posições quando Ministro da Justiça: caso da punição dos torturadores, caso Daniel Dantas, caso Battisti, caso Cacciola e nunca perdi a serenidade”. E concluiu:

“Na verdade o que temos com a grande mídia é uma divergência histórica de fundo: no ocaso do modelo neoliberal eles têm que substituir o alvo dos seus ataques, que era o “gigantismo” do Estado, agora é a corrupção e a política em abstrato, sem avaliar as suas origens e fundamentos, que, na verdade estão contidos na fraqueza das leis e das instituições, geradas pelo modelo econômico neoliberal, para combater o crime, a corrupção e o aparelhamento do Estado pelos grandes grupos econômico-financeiros, em detrimento da ampla maioria dos próprios empresários e sociedade em geral”.


Fotos: Governador Tarso Genro, durante conferência proferida no Ministério Público do RS (Caco Argemi/Palácio Piratini)

sábado, 22 de outubro de 2011

Integração da Infraestrutura Regional da América: Caminhos e agentes da pilhagem na América Latina

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La Haine - [Ana Esther Ceceña, Tradução de Diário Liberdade] Há um enorme peso do capital estadunidense nas atividades mais importantes. Isso autoriza a seguir falando do sujeito estadunidense como sujeito hegemônico.

Encontramo-nos atualmente em um momento de crise. Crise sistêmica que não anuncia uma queda ou estalar imediato, mas que é a expressão da vocação mutante do capitalismo e de sua capacidade de adaptação ou readequação às condições mutantes do acontecer não só econômico, mas também social. O caráter sistêmico da crise mostra a insustentabilidade civilizatória do capitalismo, mas não o elimina de maneira natural nem o impede de buscar sua recomposição. A crise dá passo a uma concentração de poder e riqueza muito maior e concede condições de força e ao mesmo tempo de vulnerabilidade um poder cada vez mais exclusivo e excludente que, em sua arrogância, vai colocando em operação mecanismos variados de suporte e de articulação ou coesionar em um entorno crescentemente contraditório.
A crise cíclica, nas circunstâncias atuais, é indicativa da incapacidade do mercado para garantir por si mesmo as condições gerais do processo de acumulação do capital e de apropriação privada da riqueza e, nesse sentido, apela aos mecanismos de contenção social para assegurar aquele que o mercado não consegue fazer coesão e controlar, sobretudo quando a economia capitalista é ao mesmo tempo legal e ilegal. A ninguém escapa que a crise econômica não está tocando os setores ilegais que, sem dúvida, contribuíram a gerá-la e muito provavelmente serão parte de sua solução.
Como queira, a crise exige uma mudança de estratégia e uma mudança de modalidade de dominação que abarca todas as dimensões da organização social, territorial e política do sistema, sobretudo porque a necessidade de restabelecimento das condições gerais de valorização correspondente aos momentos de ajuste cíclico, característicos do funcionamento regular do processo de acumulação de capital, ocorre agora em um contexto de questionamento integral, de crise sistêmica, de incapacidade para resolver internamente a contradição progresso-depredação que provém dos fundamentos mesmos da sociedade capitalista como lugar do domínio da natureza pelo homem.
Por esse motivo, a crise atual não é somente financeira e nem se resolver com subsídios e ajustes estatais ou com fusões e centralização de capital. Isso permite seguir adiante, mas simultaneamente agrava a situação do suicídio técnico no qual se encontra irremediavelmente o capitalismo, apesar de sua capacidade para manter o mundo inteiro sob suas regras de funcionamento, ainda que sabendo que tendem, paradoxalmente, à insustentabilidade da própria vida.

A IIRSA como estratégia de poder hegemônico

A força interna do capitalismo se defende e se reconstrói permanentemente através do desenho de um conjunto de estratégias integrais, multidimensionais, que se difundem planetariamente, entre as que se encontram nos megaprojetos de reordenamento territorial, que são necessariamente também de reordenamento político, como o da Integração da Infraestrutura Regional da América do Sul, a IIRSA. A principal virtude de projetos como IIRSA é a de ser capazes de restabelecer e potencializar as condições gerais da valorização, mais que a de gerar negócios suculentos em sua própria colocação em prática, coisa que também ocorre.
Observados desde uma perspectiva ampla, a IIRSA e o Plan Plueba Panamá são duas partes de um mesmo projeto: os dois foram supostamente idealizados por algum Presidente da região, em um caso Vicente Fox, no México, e em outro Fernando Henrique Cardoso, no Brasil. Com toda distância cultural, intelectual e política que há entre ambos, supostamente ao mesmo tempo desenharam dois projetos semelhantes e geograficamente empatados. As negociações e colocação em prática específicas variam de acordo com as condições sub-regionais, mas os fundamentos dos projetos não: construir uma infraestrutura de comunicações, transporte e geração de energia que constitua um ágil e dinâmico sistema circulatório que permita enlaçar as economias regionais ao mercado mundial.
Um único projeto de mercantilização total da natureza para uso massivo desde o centro do México até a ponta da Terra do Fogo (extremo sul da Argentina). Não se trata da exploração dos elementos naturais para o uso doméstico, nem local nem nacional, mas de sua exploração de acordo com as dimensões de um comércio planetário sustentado, em cerca de 50%, por empresas transnacionais. A infraestrutura que se propõe – e que se requer – é justamente a que permitirá a América Latina a se converter em uma peça chave no mercado internacional de bens primários, ao custo da devastação de seus territórios, abrindo novamente essas veias de abundância que sangram a Pachamama e que alimentam a acumulação de capital e a luta mundial pela hegemonia. O desenho desta infraestrutura vai do coração às extremidades, do centro da América do Sul até os portos no caso de IIRSA e de Colômbia-Panamá até a fronteira com os Estados Unidos no caso do Projeto Mesoamericano, novo nome do Plan Puebla Panamá.
A dimensão da exploração do território da América Latina e de extração de seus elementos valiosos se encontram em relação com dois níveis crescentes demandados por uma economia mundial que responde às vertiginosas necessidades de multiplicação dos próprios lucros, muito mais que as necessidades reais da população do mundo, e chama a uma agilização da circulação de mercadorias para reduzir ao máximo os momentos improdutivos do capital. O nível de extração e produção das empresas envolvidas, mesmo quando sua origem seja local, modificou-se em proporção a esta nova demanda de recursos. Casos como o da Vale do Rio Doce são sintomáticos das novas dinâmicas: empresa enraizada na produção mineira em uma zona de grande abundância de minerais é pouco a pouco estrangeirada através da colocação de ações na bolsa de valores de Nova Iorque ou semelhantes e seus níveis de produção, já grandes, multiplicam-se de acordo com as necessidades de valorização dos capitais proprietários. O ritmo dos trens que transportam o ferro ao porto se incrementou e a quantidade de vagões com cargas se multiplicou nos últimos anos, assegurando com isso a possessão privada, fora da terra, já em qualidade de mercadoria, de um elemento natural que se converteu em parte importante da disputa hegemônica. Com isto se gera a energia que constitui um ágil e dinâmico sistema circulatório que permite enlaçar as economias regionais ao mercado mundial.
A dimensão da exploração do território da América Latina e de extração de seus elementos valiosos se encontra em relação com os níveis crescentes demandados por uma economia mundial que responde às vertiginosas necessidades de multiplicação dos próprios lucros muito mais que das necessidades reais da população do mundo, e chama a uma agilização da circulação de mercadorias para reduzir ao máximo os momentos improdutivos do capital. O nível de extração e produção das empresas envolvidas, mesmo quando sua origem seja local, modificou-se em proporção a esta nova demanda de recursos.
O ritmo dos trens que transportam o ferro ao porto se incrementou e a quantidade de vagões carregados se multiplicou nos últimos anos, assegurando assim a possessão privada, além da terra, já em qualidade de mercadoria, de um elemento natural que se converteu em parte importante da disputa hegemônica. Com isto se acrescenta a pilhagem que foi objeto os povos latino-americanos desde há mais de 500 anos, com os inícios da conquista-colonização, e se submete os territórios, espaço da relação natureza-sociedade em uma depredação selvagem e irreversível.
A exportação de matérias-primas, vista pelos analistas macroeconômicos como um sinal de desenvolvimento e prosperidade, está alterando as condições mesmas da vida por seu caráter massivo e por responder a necessidades alheias às das sociedades locais. E o mesmo que ocorre com as modernas vias de transporte que se propõem e estão sendo habilitadas com a IIRSA. As rotas da IIRSA colocam o enorme território sul-americano à disposição das necessidades de pilhagem dos recursos estratégicos, como se pode observar no mapa abaixo que mostra o que eu considero o desenho estratégico da IIRSA.
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Agora os canais interoceânicos não buscam a rota mais curta entre oceanos, mas a mais vasta, a mais rica. Os 80km do Canal do Panamá são agora substituídos pelos 20 mil km da rota amazônica. Esta diferença de critérios põe em evidência que a conexão tem outros propósitos que os buscados no passado, em conformidade com o aumento de capacidades e envergadura da apropriação capitalista. Com as rotas da IIRSA se assegura não somente a extração de recursos de cada uma de suas partes, mas que essa extração se realize de maneira articulada. Vinculam-se interesses nacionais ou locais com interesses transnacionais e inclusive estratégicos.
As rotas da IIRSA passam pelas fontes d'água, minerais, gás e petróleo; pelos corredores industriais do subcontinente; pelas áreas de diversidade genética mais importantes do mundo, pelos refúgios indígenas e por tudo aquilo que é valioso e apropriável na América do Sul. A ampliação das margens dos rios para dedicá-los ao trânsito intenso está colocando em risco os pantanais e degradando as condições de vida de espécies animais e vegetais ao mesmo tempo que violenta os modos de vida de comunidades aldeãs ou vinculadas; a exploração e exportação massiva de minerais castiga à selva com um tráfico pesado constante que vai se comendo rapidamente a mancha amazônica e ameaça os glaciares; as modalidades locais de organização da vida se veem confrontadas com uma dinâmica vertiginosa que não lhes corresponde e que as altera externa e irreversivelmente.

O quadro de interesses da IIRSA

Foram amplamente denunciados os danos presentes ou previsíveis que acompanham este projeto e ainda assim a insistência por mantê-lo é tenaz. Cabe se perguntar então que tipo de interesses prevalecem sobre os altíssimos riscos ecológicos e sociais que entranha a IIRSA.
Por um lado, o fato de contar com a anuência ou inclusive o entusiasmo de muitos dos governos latino-americanos é resultado de uma combinação na qual governos e empresas locais recebem alguns benefícios que, em seu nível, podem ser significativos.
Por outro lado, evidentemente uma rede infraestrutura das características planejadas é sem dúvida um facilitador das atividades extrativas, e econômicas em geral, dos grandes capitais do mundo em busca de recursos competidos e valiosos, que em muitos casos podem ser considerados estratégicos para a reprodução global do sistema e, portanto, para o asseguramento não só das condições de vida do capitalismo, mas também da hegemonia.
A construção mesma da infraestrutura parece não ser a chapa mais cobiçada. As grandes transnacionais tem como foco de interesse a exploração dos recursos, muito mais que os negócios grandes para os investidores locais, mas relativamente pequenos para elas, da construção de estradas, ferrovias, hidrovias, represas e outros semelhantes.
Pela maneira como se comportaram os governos e as empresas, parece ter quase um acordo de complementaridade no qual ambos se beneficiam e por isso mesmo ambos defendem o projeto como próprio. A variegação de interesses acrescentou ultimamente pela entrada de capitais estrangeiros em empresas locais, a maioria das vezes relacionadas com as atividades extrativas, como é o caso da Vale do Rio Doce. Estas empresas se potencializam, aumentam sua produção e, evidentemente, suas exportações; vinculam-se mais estreitamente ao mercado mundial, mas seguem aparecendo como nacionais quando em vários casos seu capital já é majoritariamente estrangeiro.
Talvez a empresa latino-americana mais favorecida pela IIRSA atualmente é a Odebrecht, que se anuncia como empresa brasileira. Por se tratar de uma empresa de engenharia e construção, nesta primeira etapa se envolveu em projetos em toda a região de IIRSA.
Odebrecht tem investimentos na América em 13 países, além do Brasil. Abarca geograficamente desde o México até a Argentina, com atividades também no Caribe (República Dominicana), América Central (Costa Rica, Panamá) e América do Sul (Venezuela, Colômbia, Equador, Peru, Bolívia, Chile, Paraguai e Uruguai), como se pode observar no mapa abaixo, que mostra a proximidade das áreas de seus projetos de investimento com as que contém os recursos mais valiosos.
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Nas atividades extrativas historicamente se registrou a presença de grande transnacionais estrangeiras, e daí esta vinculação de interesses que mencionávamos. É um setor no qual a competência dificulta a entrada de capitais nacionais, sobretudo depois da desproteção e a mudança de critérios sobre os patrimônios nacionais induzidos pelo neoliberalismo.
Revisando as listas das 500 maiores empresas do mundo elaborada desde há um longo tempo pela revista Fortune, e aquelas das 500 maiores da América elaborada pela revista América Economia, o que se observa é a escassa participação de empresas latino-americanas nas atividades de maior envergadura. Ainda quando se encontrem nestas atividades, sua participação é de muito menor monta, exceto nos casos da Odebrecht, Aracruz e Votorantim, as três originalmente brasileiras.
A extração de petróleo e gás tem em alguns países exclusividade de empresas do Estado, mas, no que toca ao restante, as empresas principais neste setor são Exxon, Royal Dutch, British Petroleum, Chevron, CONOCO-Philips, ENI, Petrobras, Repsol-YPF, SK, Occidental Petroleum, Lukoil, EnCana e Oil and Natural Gas. A localização de projetos destas empresas não deixa dúvida de seu bom tino pois se encontram em todas as regiões de importantes jazidas, como se observa no mapa. Estas localizações ficam bem protegidas pelas facilidades infraestruturais projetadas pela IIRSA, de modo que seu acesso ao mercado mundial, já bastante ágil, se veria ainda muito melhor. Veja o mapa abaixo.
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Os minerais, elementos que formam a estrutura material básica dos processos produtivos, tem na América Latina um de seus espaços de maior diversidade e abundância. Os minerais metálicos são foco de atração de grandes empresas de dimensão planetária como Anglo American, BHP Billinton, Río Tinto, Vale, Xstrata e Nippon Mining Holdings, e sua distribuição territorial as leva a diversas regiões sul-americanas que em todos os casos terão a virtude de ser articuladas através das rotas de IIRSA (ver mapa abaixo).
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A apropriação de bosques, naturais ou gerados artificialmente, tem suas principais zonas em pontos muito específicos. Seu distribuição territorial é muito menos extenso que os das atividades anteriores, mas se trata também de capitais de grande envergadura, vinculados com a produção de celulose e papel (mapa abaixo).
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Basta observar o que está acontecendo no estado brasileiro do Pará, originalmente selvagem, hoje cheio de pastos para o gado e crateras mineiras que desflorestam, transformam lógicas locais de socialidade e organização da reprodução.
As principais empresas que se encontram no setor são Stora Enzo, Weyerhauser, Aracruz Celulose, Votorantim Celulose, Kablin, Suzano Papel e Celulosa, CELCO e CMPC, as duas últimas com investimentos no sul do Chile.
Evidentemente, além de todas as empresas mencionadas há um quadro de empresas menores vinculadas com as atividades das grandes, entretanto são completamente dependente destas, ou seus níveis de produção não repercutem nos grandes mercados e nem definem as dinâmicas da economia.
A ideia de mostrar a distribuição geográfica destes grandes investimentos provém do interesse de revisar a capacidade destes agentes capitalistas para ocupar e definir o território e suas dinâmicas. Uma das coisas que nos deve preocupar é como o território está sendo expropriado e como projetos como IIRSA reforçam essa tendência.
E, em realidade, ainda que neste terreno possamos constatar a grande quantidade e diversidade dos interesses em jogo, é o sujeito hegemônico que marcha à cabeça do processo. Nós temos um cálculo do território estrangeiro ocupado por bases militares estadunidenses mas seria necessário medir o ocupado pelas propriedades das empresas para ter uma ideia cabal da dimensão territorial da dominação.
Com esses cálculos poderíamos nos encontrar em melhores condições para analisar se a IIRSA é um projeto dos Estados sul-americanos ou uma exigência desses grandes capitais que arrastam os Estados a formularem as políticas que os beneficiam, porque quais são os Estados hoje se não uma parte desse sujeito econômico, desse sujeito dominante que às vezes se chama capital brasileiro, às vezes capital equatoriano, muitíssimas vezes capital estadunidense mas que, finalmente, revela uma fusão de interesses em relação com o grande capital das empresas transnacionais, impulsionadas, protegidas e representadas pelo Estado norte-americano.
Inclusive hoje, ainda que seja difícil de falar da nacionalidade do capital, efetivamente há um enorme peso do capital estadunidense em todas mais importantes atividades, mais dinâmicas e com maior futuro no mundo. Isso autoriza a seguir falando do sujeito estadunidense como sujeito hegemônico, ou seja, esse grande capital que se aglutina em torno do Estado estadunidense, ainda que tenha alguns mexicanos, brasileiros, japoneses ou capitais provenientes de qualquer outro lugar, mas incorporados organicamente a essa estrutura de poder.

Nota

(1) Este trabalho contou com a valiosa contribuição de Rodrigo Yedra, membro do Observatório Latino-americano de Geopolítica.

Ana Esther Ceceña é Diretora do Observatório Latino-americano de Geopolítica no Instituto de Investigações Econômicas, Universidade Autônoma do México. Coordenadora do grupo de trabalho Hegemonias e Emancipações de CLACSO. Livros: Producción estratégica y hegemonía mundial (México: Siglo XXI); Hegemonías y emancipaciones en el siglo XXI (Buenos Aires-Sao Paulo: CLACSO); Desafíos de las emancipaciones en un contexto militarizado (Buenos Aires: CLACSO); Derivas del mundo en el que caben todos los mundos (México: Siglo XXI); De los saberes de la dominación y la emancipación (Buenos Aires: CLACSO).
Traduzido para Diário Liberdade por Lucas Morais

O dia do Saci Pererê

Elaine Tavares no PALAVRAS INSURGENTES

Não há nada mais servil do que se deixar dominar culturalmente. Quando a força das armas vem, pode-se até entender. Mas quando o domínio se dá de forma sub-reptícia, via cultura, parece mais letal. O Brasil vive isso de forma visceral. A música estadunidense invade as rádios e a juventude canta sem entender a mensagem. No comércio abundam os nomes de lojas em inglês e até as marcas de roupa ou sapato são na língua anglo-saxônica, “porque vende mais” dizem as atendentes. Nas vitrines, cartazes de “sale”, ou “50% off” embandeiram a escravidão cultural. E tudo acontece automaticamente, como se fosse natural. Não é!
Outra prática que vem invadindo as escolas e até os jardins de infância é a comemoração do Halloween, o dia das bruxas dos estadunidenses. Lá, no país de Obama, esta data, o 31 de outubro, é um lindo dia de festividades com as crianças, no qual elas saem fazendo estripulias, exigindo guloseimas. Tudo muito legal dentro da cultura daquele povo, que incorporou esta milenar festa irlandesa lá pelo início do 1800. Nesta festa misturam-se velhas lendas de almas penadas, de gente que enganou o diabo e outras tantas comemorações pagãs. Além disso, hoje, ela nada mais é do que mais uma boa desculpa para frenéticas compras, bem ao estilo do capitalismo selvagem, predador.
Aqui no Brasil esta festa não tem qualquer razão de ser, exceto por conta das mentes colonizadas, que também associam o Halloween ao consumo. Não temos raízes celtas, nem irlandesas ou inglesas. Nossas raízes são outras, Guarani, Caraíba, Tupinambá, Pataxó... Nossos mitos – e são tantos – guardam relação com a floresta, com a vida livre, com a beleza. O mais conhecido deles é ainda mais bonito, fala de alegria e liberdade. É o Saci Pererê. Uma figurinha buliçosa que tem sua origem nas lendas dos povos originários, como guardião das generosas florestas que garantiam a vida plena das gentes. Com a chegada dos povos das mais variadas regiões da África, o menino guardião foi agregando novos contornos. Ficou negro, perdeu uma perna e ganhou um barrete vermelho na cabeça, símbolo da liberdade. Leva na boca um cachimbo (o petyngua), muito usado pelos mais velhos nas comunidades indígenas. Sua missão no mundo é brincar, idéia muito próxima do mito fundador de quase todas as etnias de que o mundo é um grande jardim.
Pois é para reviver a cada ano as lendas e mitos do povo brasileiro que vários movimentos culturais e sociais usam o 31 de outubro para comemorar o Dia do Saci. Com atividades nas ruas, as gentes discutem a necessidade da libertação - coisa própria do Saci - das práticas culturais colonizadas. Ao trazer para o conhecimento público figuras como o Saci, o Caipora, o Boitatá, o Curupira, a Mula Sem Cabeça, todos personagens do imaginário popular, busca-se, na brincadeira que é próprias destes personagens mitológicos, incutir um sentimento nacional, de brasilidade, de reverência pela cultura autóctone. Não como sectária diferença, mas como afirmação das nossas raízes.
Em Florianópolis, quem iniciou esta idéia foi o Sindicato dos Trabalhadores da UFSC, que decidiu instituir o 31 de outubro como o Dia do Saci e seus amigos. Assim, neste dia, durante vários anos, os mitos da nossa gente invadiam as ruas, não para pedir guloseimas, mas para celebrar a vida. Tendo como personagem principal o Saci, o sindicato discutia a necessidade de valorizarmos aquilo que é nosso, que tem raiz encravada nas origens do nosso povo. Mas, agora, sob outra direção, que não conspira com estas idéias de nacionalismo cultural, o Saci não vai sair com a pompa usual.
Mas, não tem problema, porque ainda assim, prenunciando seu dia, por toda a cidade, se ouvirão os loucos estalos nos pés de bambu. É porque dali saem, às carreiras, todos os Sacis que estavam dormindo, esperando a hora de brincar com as gentes. Redemoinhos, ventanias, correrias e muito riso. Isso é o Saci, moleque danado, guardião da floresta, protetor da natureza. Ele vem, com seus amigos, encantar o povo, fazer com que percebam que é preciso cuidar da nossa grande casa. Não virá pela mão do Sintufsc, mas pelo coração dos homens, mulheres e crianças que estão sempre em luta contra as maldades do mundo. O Saci é protetor da natureza e vai se unir a todos nós, os que batalham contra os vilões do amor. Ah Saci, eu vou te esperar... Que venhas com o vento sul...