segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Atenas arde em protestos contra política da "troika"


A Grécia viveu neste domingo os mais violentos protestos dos últimos meses contra as políticas impostas ao país pela chamada "troika" (Fundo Monetário Internacional, Banco Central Europeu e Comissão Europeia). Em meio a violentos protestos, o parlamento grego aprovou um novo "pacote de austeridade", que resultará em milhares de demissões e cortes de gastos públicos. No início da noite, vários prédios históricos de Atenas estavam em chamas e os manifestantes enfrentavam a polícia com pedras e coqueteis molotov.


Dezenas de milhares de pessoas compareceram à maior manifestação em Atenas contra a austeridade e os cortes de gastos públicos aprovados neste domingo no parlamento grego. A multidão dispersou da Praça Syntagma quando a polícia a atacou com gás lacrimogêneo, mas muitos grupos permaneceram no centro de Atenas enfrentando a polícia com pedras e coqueteis molotov.

Manolis Glezos, o herói da resistência grega ao nazismo e membro do Syriza, perguntava à imprensa "como é possível implementar estas medidas com gás lacrimogéneo?". "Elas não têm o voto do povo grego", acrescentou este militante de 90 anos, ainda com a máscara de gás colocada e dificuldade em respirar.

Outro veterano nesta manifestação contra o governo da troika foi o compositor Mikis Theodorakis. Foi quando se preparava para dirigir à multidão na Praça Syntagma que a polícia começou a disparar o gás lacrimogêneo. Aos microfones duma rádio grega, uma porta-voz de Theodorakis acusou a polícia de "tentativa de assassinato" por ter tentado deliberadamente atingir o compositor de 86 anos. Em declarações aos jornalistas, Theodorakis afirmou-se confiante que "o povo vencerá", tal como aconteceu contra os nazis e a junta militar.

Todo o centro de Atenas ficou sob a nuvem do gás policial e os focos de incêndio estão também disseminados, com os confrontos sem fim à vista. Ao fim da tarde, estavam encerradas quatro estações de metrô no centro de Atenas por ordem da polícia. O líder sindical do metrô disse que os trabalhadores não viam razões para o encerramento e que a intenção da polícia era impedir as pessoas de chegarem à Praça. Entretanto, a outra manifestação da tarde, convocada pela central sindical PAME, dirigia-se para a Praça Syntagma.

Dentro do Parlamento, o debate teve início depois das 15h, com o ministro das Finanças tentando explicar aos deputados a pressa para aprovar a proposta até à meia noite de domingo. Um deputado independente questionou o parlamento sobre se tinha a certeza do que estava para ser votado, quando há várias falhas no documento, incluindo partes em que aparece "XX" em vez do número da quantia a que se refere.

O dia parlamentar também foi marcado pela tomada de posse de alguns deputados, em substituição daqueles que se demitiram em protesto contra o pacote de austeridade que vai reduzir o salário mínimo, despedir milhares de funcionários públicos e cortar ainda mais na Saúde e gastos sociais. Mas há casos em que o substituto, em vez de vir apoiar o governo cada vez mais frágil, toma posse para votar contra o seu partido. É o que acontece à atriz Anna Vagena, da lista do PASOK.

No sábado, era já conhecida a oposição de mais de dez deputados do PASOK, que se tem afundado nas sondagens nos últimos meses, e mesmo da Nova Democracia, incluindo o líder parlamentar e os deputados responsáveis pelos assuntos da Defesa e do Interior. A extrema-direita do LAOS, que retirou o apoio ao Governo de Lucas Papademos, também votará contra, à exceção dos seus antigos ministros.

O xadrez das ameaças ao Irã


Governo israelita quer guerra já; Washington reluta. Conflito incendiaria o Médio Oriente, atingindo abastecimento do petróleo e economia mundial

 
Ignacio Ramonet - BrasilDeFato

Será 2012 o ano do fim do mundo? É o que, dizem, vaticina uma lenda maia — que inclusive fixaria a data exata do apocalipse: o 12 de dezembro próximo (12/12/12). Em qualquer caso, num contexto de recessão econômica e grave crise financeira e social em diversas partes do mundo (especialmente na Europa), não faltarão riscos este ano – que verá, entre outros fatos, eleições decisivas nos Estados Unidos, Rússia, França, México e Venezuela.
Mas o principal perigo geopolítico continuará situado no Golfo Pérsico. Israel e Estados Unidos lançarão o anunciado ataque militar contra as instalações nucleares do Irã? O governo de Teerã reivindica o seu direito a dispor de energia nuclear civil. E o presidente Mahmud Ahmadinejad repetiu que o objetivo do seu programa não é militar; que a sua finalidade é simplesmente produzir energia de origem nuclear. Também lembra que o Irã assinou e ratificou o Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP), enquanto Israel nunca o fez.
As autoridades israelitas pensam que não se deve esperar mais. Segundo elas, aproxima-se perigosamente o momento em que o regime dos ayatollahs disporá da arma atômica; e a partir deste instante, já não se poderá fazer nada. Estará rompido o equilíbrio de forças no Médio Oriente, onde Israel já não gozará de uma supremacia militar incontestável. O governo de Benjamin Netanyahu avalia que, nestas circunstâncias, a própria existência do Estado Judeu estaria ameaçada.
Segundo os estrategistas israelitas, o momento atual é o mais propício para golpear. O Irã está debilitado. Tanto no âmbito econômico – após as sanções impostas desde 2007, pelo Conselho de Segurança da ONU, com base em informes alarmantes da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) – quanto no contexto geopolítico regional. O seu principal aliado, a Síria, vive insurreição interna e está impossibilitado de prestar-lhe ajuda. A incapacidade de Damasco repercute-se noutro parceiro iraniano, o Hezbollah libanês, cujas linhas de abastecimento militar desde Teerã deixaram de ser confiáveis.
Por estas razões, Israel deseja que o ataque seja executado o quanto antes. Para preparar o bombardeamento, já há, infiltrados no Irã, efetivos das forças especiais. E é muito provável que agentes israelitas tenham concebido os atentados que causaram, nestes últimos dois anos, as mortes de cinco importantes cientistas nucleares iranianos.
Ainda que Washington também acuse Teerã de levar a cabo um programa nuclear clandestino para dotar-se de armas atômicas, a sua análise sobre a oportunidade do ataque é diferente. Os Estados Unidos estão saindo de duas décadas de guerras nesta região, e o balanço não é animador. O Iraque foi um desastre, e terminou em mãos da maioria xiita, que simpatiza com Teerã. No lodaçal afegão, as forças norte-americanas mostram-se incapazes de vencer os talibãs, com quem a diplomacia da Casa Branca se resignou a negociar, antes de abandonar o país ao seu destino.
Estes conflitos custosos debilitaram os Estados Unidos e revelaram aos olhos do mundo os limites da sua potência, assim com o início de seu declínio histórico. Não é hora de novas aventuras. Muito menos num ano eleitoral, em que o presidente Barack Obama não tem a certeza de ser reeleito. E quando todos os recursos são mobilizados para combater a crise e reduzir o desemprego.
Além disso, Washington tenta mudar a sua imagem no mundo árabe-muçulmano, sobretudo depois das insurreições da “Primavera Árabe”, no ano passado. Antes cúmplice de ditadores – em particular, o tunisiano Ben Ali e o egípcio Mubarak –, deseja agora aparecer como mecenas das novas democracias árabes. Uma agressão militar contra o Irã, sobretudo em colaboração com Israel, arruinaria estes esforços e despertaria o anti-norteamericanismo latente em muitos países. Especialmente naqueles cujos novos governos, surgidos das revoltas populares, são dirigidos por islamitas moderados.
Uma importante consideração complementar: o ataque contra o Irã teria consequências não apenas militares (não se pode descartar que alguns mísseis iranianos alcancem o território israelita, ou consigam atingir as bases norte-americanas no Kuwait, Barhein ou Omã) mas, principalmente, econômicas. A resposta mínima do Irã a um bombardeamento das suas instalações nucleares consistiria, como os seus dirigentes militares não se cansam de alertar, no bloqueio do Estreito de Ormuz. É o funil do Golfo Pérsico, por lá passa um terço do petróleo do mundo, 17 milhões de barris por dia. Sem este abastecimento, os preços do combustível chegariam a níveis insuportáveis, o que impediria reativar a economia mundial e deixar a recessão para trás.
O Estado-maior iraniano afirma que “não há nada mais fácil que fechar este Estreito”. Multiplica as manobras navais na região, para demonstrar que está em condições de cumprir as suas ameaças. Washington respondeu que o bloqueio da passagem estratégica de Ormuz seria considerado um “caso de guerra”, e reforçou a sua V Frota, que navega pelo Golfo.
É muito improvável que o Irã tome a iniciativa de bloquear a passagem de Ormuz (embora possa tentá-lo, em represália a uma agressão). Em primeiro lugar, porque daria um tiro no pé, já que exporta o seu próprio petróleo por esta via, e que os recursos destas exportações lhe são vitais.
Em segundo lugar, porque atingiria alguns dos seus principais parceiros, que o apoiam no seu conflito com os Estados Unidos. Principalmente a China, cujas importações de petróleo, que chegam a 15% do consumo, procedem do Irã. A sua eventual interrupção paralisaria parte do aparelho produtivo.
As tensões estão abertas. As chancelarias do mundo observam, minuto a minuto, uma perigosa escalada que pode desembocar num grande conflito regional. Estariam implicados não apenas Israel, os Estados Unidos e o Irã, mas também três outras potências do Médio Oriente: a Turquia, cujas ambições na região voltaram a ser consideráveis; a Arábia Saudita, que sonha há décadas em ver destruído o seu grande rival islâmico xiita; e o Iraque, que poderia romper-se em duas partes: uma xiita e pró-iraniana; outra sunita e pró-ocidental.
Além disso, um bombardeamento das instalações nucleares iranianas pode provocar uma nuvem radioativa nefasta para a saúde de todas as populações da área (incluídos os milhares de militares norte-americanos e os habitantes de Israel). Tudo isso conduz a pensar que embora os belicistas ergam a voz com força, o tempo da diplomacia ainda não terminou.

Ignacio Ramonet é jornalista e diretor do jornal Le Monde Diplomatique.

Tradução de Antonio Martins para Outras Palavras

Mulheres rurais e indígenas se somam à Marcha Nacional pela Água


No portal Adital

As mulheres de diferentes regiões são parte do grande rio que vem confluindo na Marcha Nacional da Água impulsionada por movimentos sociais e cidadãos do país em defesa deste recurso básico para a existência humana, em risco, entre outros fatores, pela atividade mineira que se realiza a margem da responsabilidade social e ambiental à que estão obrigados.
O Centro da Mulher Peruana Flora Tristán expressa seu apoio e respaldo à participação das peruanas que desde o norte, centro, sul e oriente do Peru chegaram até a capital para solicitar às autoridades do executivo e do legislativo que preservem este recurso finito para garantir um presente e futuro saudável e sustentável.
As mulheres rurais se encarregam de regar seus campos, dão de beber a seus animais e usam a água para preparar os alimentos em seus lares assim como para seu asseio pessoal, limpeza e lavagem das roupas delas e de suas famílias. Elas gerenciam este recurso e vivem as dificuldades e problemas originados tanto por sua contaminação como carestia.
Problemas de saúde em seus filhos e filhas, complicações nas gestações e partos, desnutrição infantil, incremento do tempo investido em busca de água ante a diminuição de volume dos rios, desaparição de lagoas e secas, são parte de sua realidade cotidiana que deteriora seu direito ao bem-estar físico e emocional.
A isso se soma o impacto econômico em sua produção. A falta de água para regar coloca a perder as colheitas. O que reforça o círculo de pobreza em que se encontram e agrava as dificuldades para assegurar a alimentação para elas e suas famílias e também para aqueles que vivem nas cidades e são abastecidos com estes produtos.
Nesse contexto, as mulheres rurais se identificam com a defesa das reservas de água na região de Cajamarca ante uma mineração que descumpre seus compromissos e que pretende colocar seus interesses privados acima dos direitos humanos, situação que também acontece em outras regiões do país.
Igualmente, com a exigência da regulamentação da Lei de Consulta Prévia, e com a necessidade urgente de que as autoridades estatais adotem medidas deliberadas, com participação de mulheres e suas organizações, frente às mudanças climáticas, fatores que impactam também no acesso à água.
A Marcha Nacional da Água – que chegou ontem a Lima - é um esforço autogestionado que implicou no deslocamento pacífico de mulheres e homens de diferentes regiões, assistidos com seus próprios recursos. O grande rio humano confluirá nesta sexta-feira, 10, na Praça Dois de Maio, onde campesinas, indígenas, mulheres rurais, artistas, intelectuais, trabalhadoras, feministas, exigiremos que não sigam depredando nosso território.
Esta mobilização pacífica e cidadã contará com a presença de uma Missão Internacional de Observadores que é encabeçada por Pedro Arrojo, doutor em Ciências Físicas pela Universidade de Zaragoza, Espanha.

A notícia é do Centro da Mulher Peruana Flora Tristán

domingo, 12 de fevereiro de 2012

História da dignidade!

 Uma pequena mostra, que pretende seu uma justa homenagem, uma recordação e motivo de reflexão da enorme historia da dignidade humana, desencadeadas por valorosos homens e mulheres do planeta.

 

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Noam Chomsky: Depois das não-pessoas, os não-eventos

Por Noam Chomsky, no Truthout

Tradução: Heloisa Villela via VIOMUNDO

George Orwell cunhou o termo “não-pessoa”, muito útil para as criaturas que têm suas existências negadas porque não toleram a doutrina do estado. Podemos somar o termo “sem-história” para nos referir às não-pessoas expurgadas da história em bases semelhantes.
 
A falta de história das não-pessoas ganha destaque nos aniversários de morte. Os importantes são, normalmente, comemorados com solenidade quando é apropriado: Pearl Harbor, por exemplo. Alguns não são, e podemos aprender muito sobre nós mesmo retirando-os da lista dos sem-história.
Neste momento não estamos marcando um evento de grande significado humano: o aniversário de 50 anos da decisão do Presidente Kennedy de deflagrar uma invasão direta no Vietnã do Sul, que logo se tornaria o caso de crime de agressão mais extremo desde a Segunda Guerra Mundial.

Kennedy mandou a Força Aérea bombardear o Vietnã do Sul (em Fevereiro de 1962, centenas de missões já tinham voado); autorizou a guerra química para destruir as plantações e matar de fome até a submissão a rebelião popular; e deu início ao programa que em última análise expulsou milhões de moradores do campo para as favelas dos centros urbanos, virtuais campos de concentração, ou “Hamlets Estratégicos”. Lá, os moradores estariam “protegidos” da guerrilha que, como a administração americana sabia, eles estavam dispostos a apoiar.

Esforços oficiais para justificar os ataques eram fracos e mais do que tudo, fantasiosos. Foi típico o discurso do presidente para a Associação Americana de Editores de Jornais, no dia 27 de Abril de 1961, quando ele avisou que “nós enfrentamos um movimento de oposição no mundo, uma conspiração monolítica e sem lei, que se apoia, principalmente, em métodos secretos para expandir sua esfera de influência”. Nas Nações Unidas, em 25 de Setembro de 1961, Kennedy disse que se a conspiração alcançasse seus objetivos em Laos e no Vietnã, “as cercas seriam escancaradas”.

O resultado de curto prazo foi documentado pelo muito respeitado especialista em Indochina e historiador militar Bernard Fall – nenhuma pomba (pacifista), mas um desses que se preocupava com as pessoas de países atormentados.

No começo de 1965 ele estimou que cerca de 66.000 vietnamitas do sul tinham sido assassinados entre 1957 e 1961; e outros 89.000 entre 1961 e Abril de 1965, quase todos vítimas do regime cliente dos EUA ou “do peso massacrante das armaduras americanas, do napalm, dos bombardeiros aéreos e, finalmente, dos gases que provocam vômitos”.

As decisões foram mantidas nas sombras, como são as consequências, que persistem. Para mencionar apenas um exemplo: “Schorched Earth”, de Fred Wilcox, o primeiro estudo sério do impacto horroroso e persistente da guerra química contra os vietnamitas, surgiu há poucos meses – e provavelmente vai se juntar a outros trabalho de não-história. O cerne da história é o que aconteceu. O cerne da não-história é fazer “desaparecer” o que aconteceu.

Em 1967, a oposição aos crimes cometidos no Vietnã do Sul atingiu uma escala importante. Centenas de milhares de tropas americanas estavam agindo de forma destrutiva no Vietnã do Sul e áreas de grande densidade populacional eram vítimas de bombardeios intensos. A invasão tinha se espalhado par ao resto da Indochina.

As consequências se tornaram tão horrendas que Bernard Fall previu que “o Vietnã, como entidade cultural e histórica… está ameaçado de extinção…, enquanto o campo literalmente morre sob os ataques da maior máquina militar jamais lançada contra uma área deste tamanho”.

Quando a guerra terminou oito devastadores anos mais tarde, a opinião majoritária estava dividida entre os que a chamavam de uma “causa nobre” que poderia ter sido vitoriosa com mais dedicação; e o extremo oposto, os críticos, para os quais havia sido “um erro” que se mostrou muito caro.

Ainda estava por vir o bombardeio da sociedade camponesa do norte do Laos, de uma magnitude que as vítimas passaram anos vivendo em cavernas para sobreviver; e pouco depois o bombardeio da zona rural do Camboja, que ultrapassou o nível da soma dos bombardeios aliados no Pacífico, durante a Segunda Guerra Mundial.

Em 1970, o Assessor de Segurança Nacional dos EUA, Henry Kissinger, ordenou “a campanha de bombardeio massivo no Camboja. Tudo que voa em tudo que se move” – uma ordem de genocídio como raramente se viu em documentos arquivados.
Laos e Camboja eram “guerras secretas”, nelas a documentação era escassa e os fatos ainda são pouco conhecidos do público geral e até mesmo das elites educadas que, ainda assim podem recitar de memória os crimes, reais ou alegados, dos inimigos oficiais.

Em três anos nós poderemos –  ou não – comemorar outro evento de grande relevância contemporânea: o aniversário de 900 anos da Carta Magna.
Este documento é a fundação do que a historiadora Margaret E. McGuiness, ao se referir aos julgamentos de Nuremberg, aclamou como “um tipo de legalismo particular dos americanos: punição apenas para os se podia provar que eram culpados através de um julgamento justo com uma panóplia de proteções processuais”.

O Grande Capítulo declara que “nenhum homem livre” deve ser privado de direitos “com exceção do julgamento legal de seus pares e da lei local”. Os princípios foram expandidos depois para se aplicarem aos homens em geral. Eles cruzaram o Atlântico e entraram na constituição dos EUA e na Lei dos Direitos, que declarou: nenhum pessoa pode ser privada de seus direitos sem o devido processo e julgamento rápido.

Os fundadores (da democracia americana), claro, não tinham a intenção de usar o termo “pessoa” para designar todas as pessoas. Os índios americanos não eram pessoas. Nem os escravos. As mulheres raramente eram pessoas. Ainda assim, vamos nos prender ao cerne da noção que presume inocência, o que foi relegado a categoria de não-história.

Um passo mais adiante, para minimizar os princípios da Carta Magna, foi dado quando o Presidente Obama assinou o Ato de Autorização da Defesa Nacional, que codifica as práticas de Bush-Obama para prender indefinidamente, sem direito a julgamento, sob custódia militar.
Esse tratamento agora é obrigatório nos casos do acusados de ajudar as forças inimigas durante a “guerra ao terror”, ou são opcionais se os acusados forem cidadãos americanos.

A dimensão da medida é ilustrada pelo primeiro caso de Guantánamo a ser julgado durante a administração Obama: o de Omar Khadr, um ex-soldado criança acusado de crimes hediondos ao tentar defender a vila afegã onde morava quando ela foi atacada por forças dos EUA. Capturado aos 15 anos, Khadr ficou preso, durante oito anos, em Bagram e Guantánamo, até ser levado a um tribunal militar, em Outubro de 2.10, quando pode escolher entre se declarar inocente e ficar para sempre em Guantánamo ou se declarar culpado e servir mais outo anos. Khadr escolheu o último.

Vários outros exemplos ilustram o conceito de “terrorista”. Um deles é o de Nelson Mandela, retirado da lista de terroristas apenas em 2008. Outro foi Saddam Hussein. Em 1982 o Iraque foi retirado da lista de estados que apoiam o terrorismo para que a administração Reagan pudesse fornecer ajuda a Hussein, que acabara de invadir o Iran.

Acusações são caprichosas, sem revisão ou recursos, e comumente refletem objetivos de política – no caso de Mandela, para justificar o apoio do Presidente Reagan aos crimes do Estado de Apartheid para se defender do “grupo terrorista mais notório do mundo”: o Congresso Nacional Africano de Mandela.

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Vinte anos sem a URSS




 
O desaparecimento da União Soviética é uma das três questões-chave que explicam a realidade no século XXI. As outras duas são o reforçar dos chineses e o início da decadência norte-americana. E essa decadência, neste contexto, ameaça conduzir o mundo a uma tragédia global.


O desaparecimento da União Soviética é uma das três questões chave que explicam a nossa realidade no século XXI. As outras duas são o reforçar dos chineses e o início da decadência norte-americana. A dissolução da União Soviética precipitou-se na atmosfera de crise e de confronto que se apoderou da vida soviética nos últimos anos do governo de Gorbatchev, ainda que este tenha encabeçado um processo de renovação (no início, exigindo um retorno ao leninismo), levou a uma gestão desastrosa de governo e a uma torpe acção política que agravou a crise e facilitou a acção dos adversários do sistema socialista. As disputas entre Yeltsin e Gorbatchev, o premeditado e apressado desmantelamento das estruturas soviéticas e da organização do Partido Comunista, foram acompanhadas por reivindicações nacionalistas, que começaram na Arménia e se espalharam como uma mancha de óleo por outras repúblicas da União, enquanto a crise económica se aprofundava, abastecimentos escasseavam e os laços económicos entre as diferentes partes da União começavam a ressentir-se. Os problemas enfrentados por Gorbatchev eram muitos, e a sua administração piorou-os: a aspiração por maior liberdade, face ao autoritarismo soviético, e um explosivo cocktail de más colheitas, inflação galopante, queda na produção industrial, a escassez de alimentos e medicamentos, escassez de matérias-primas, uma reforma monetária dirigida pelo incompetente Valentin Pavlov em Janeiro de 1991, juntamente com as ambições pessoais de muitos líderes políticos, bem como as distorções na economia socialista e o ajuste da nova economia privada, aumentaram o mau estar da população.
Em Maio de 1990, Yeltsin tornou-se presidente do parlamento (Soviete Supremo) da Federação da Rússia, anunciando a intenção de declarar a soberania da república russa, contribuindo assim para o aumento da tensão e das pressões de ruptura, com que já avançavam os dirigentes das repúblicas bálticas. Pouco depois, em Junho de 1990, o Congresso dos Deputados da Rússia aprovou uma “declaração de soberania”, que proclamava a supremacia das leis russas sobre as soviéticas. Foi um torpedo na linha de água do grande navio soviético. Surpreendentemente, a declaração foi aprovada por 907 deputados a favor e apenas 13 votaram contra. Em 16 de Junho, o parlamento russo, por proposta de Yeltsin, anulou o papel dirigente do Partido Comunista. Egor Ligachev, um dos líderes da oposição a Yeltsin e à deriva de Gorbatchev, afirmava que o processo que estava sendo seguido era perigoso e levava ao “colapso da URSS.” Eram palavras proféticas. Yeltsin, já depois de liquidada a União, converteu em 1992 essa data em feriado nacional russo, enquanto os comunistas hoje a consideram justamente um “dia negro” para o país.
As tensões nacionalistas desempenharam um papel importante na destruição da URSS; por vezes com obscuras operações que a historiografia ainda não abordou de forma rigorosa. Um exemplo pode ser suficiente: em 13 de Janeiro de 1991 houve um massacre frente á torre de televisão de Vilnius, capital lituana. Treze civis e um militar do KGB foram mortos, e a imprensa internacional classificou o incidente como “brutal repressão soviética”, como manchete de muitos jornais. O Presidente George Bush criticou a actuação de Moscovo, e a França e a Alemanha, bem como a NATO, pronunciaram duras palavras de condenação: o mundo ficou horrorizado com a violência extrema do governo soviético, enfrentando o governo nacionalista lituano que controlava nessa época o Sajudis, liderado por Vytautas Landsbergis. Sete dias depois, em 20 de Janeiro, uma maciça manifestação em Moscovo exigia a renúncia de Gorbatchev, enquanto Yeltsin o acusava de incitar o ódio nacionalista, acusação obviamente falsa. Uma onda de protestos contra Gorbatchev e o PCUS, e em solidariedade com os governos nacionalistas bálticos, sacudiu muitas cidades da União Soviética.
No entanto, sabemos agora que, por exemplo, Audrius Butkevicius, membro do Sajudis e responsável da segurança no governo nacionalista lituano, e depois ministro da Defesa, se vangloriou perante a imprensa pelo seu papel na preparação desses eventos, a fim de desacreditar o exército soviético e o KGB; chegou a reconhecer que sabia que ocorreriam vítimas nesse dia ante a torre de televisão, e também sabemos agora que os mortos foram provocados por franco-atiradores nos telhados de edifícios e não receberam tiros em trajectória horizontal, como seria o caso se tivessem sido atacados pelas tropas soviéticas que estavam na entrada da torre de TV. Butkevicius reconheceu anos após os factos que membros do DPT (Departamento de Protecção do Território, o embrião do exército criado pelo governo nacionalista) colocados sobre a torre de televisão dispararam para a rua. Não se trata de desenvolver uma teoria da conspiração para a queda da URSS, mas as provocações e planos de desestabilização existiram. Assim como as tensões nacionalistas, de modo que estas provocações actuaram em solo fértil, excitando a paixão e os confrontos.
Em Março de 1991, neste clima de paixões nacionalistas, ocorreu o referendo sobre a preservação da URSS. Os governos de seis repúblicas recusaram-se a organizar a consulta (as três bálticas que haviam declarado a sua independência, embora não efectiva; e da Arménia, Geórgia e Moldávia), apesar de que oitenta por cento dos eleitores soviéticos participaram, e os resultados deram uma percentagem de apoiantes da conservação de 76,4 e de 21,4 que votaram negativamente, valores que incluem as repúblicas onde o referendo não se verificou. O esmagador resultado favorável à manutenção da URSS foi ignorado pelas forças que trabalhavam para a ruptura: os nacionalistas e os “reformadores”, que já controlavam grande parte das estruturas de poder, bem como instituições russas. Yeltsin, como presidente do parlamento russo, praticava um jogo duplo: não se opunha publicamente à manutenção da União, mas activamente conspirava com outras repúblicas para destruí-la. De facto, uma das razões, se não a mais importante, do referendo de Março de 1991 foi a tentativa do governo central de Gorbatchev para limitar a voracidade dos círculos dirigentes de algumas repúblicas e, acima de tudo, para travar a louca corrida de Yeltsin para o fortalecimento de seu próprio poder, para o que precisava de destruir o poder central representado por Gorbatchev e o governo soviético. Sem esquecer que, neste clima de confusão e descontentamento, a demagogia de Yeltsin ganhou muitos seguidores.
Assim, antes da tentativa de golpe no verão de 1991, Yeltsin reconheceu em Julho a independência da Lituânia, numa clara provocação ao governo soviético a que Gorbatchev foi incapaz de responder. Os dirigentes das repúblicas queriam consolidar o seu poder, sem ter que prestar contas ao centro federal, e para isso precisavam da ruptura da União Soviética. Um sector dos partidários da manutenção da URSS facilitou com a sua torpeza o avanço das posições da coligação tácita entre os nacionalistas e os “reformadores” liberais, que também eram apoiados pelos partidários do sector da economia privada que floresceu sob Gorbatchev, e inclusive do mundo do crime, que farejava a possibilidade de alcançar magníficos negócios, para não mencionar os líderes do PCUS, como Alexandr Yakovlev, que trabalhavam activamente para destruir o partido. Um dia antes do dia fixado para a assinatura do novo Tratado da União, os golpistas avançaram com um denominado Comité Estatal para a situação de emergência na URSS. O comité contava com o vice-presidente Gennady Yanaev, o primeiro-ministro Pavlov, o ministro da Defesa, Yazov, presidente do KGB Kryuchkov, o ministro do Interior Boris Pugo, e outros dirigentes como Baklanov e Tiziakov. O fracasso do golpe de Agosto de 1991, impulsionado por sectores do PCUS em oposição à política de Gorbatchev, serviu de detonante para a contra-revolução e incentivou as forças que defendiam, ainda que sem o formularem, a dissolução da URSS.
A improvisação dos golpistas, apesar de contarem com chefe da KGB e o ministro da Defesa, chegou ao extremo de anunciar o golpe antes de porem em movimento as tropas que supostamente os apoiavam; nem sequer fecharam os aeroportos, nem tomaram os meios de comunicação, nem detiveram Yeltsin e outros dirigentes reformistas e a imprensa internacional pode movimentar-se à vontade. Os serviços secretos dos EUA confirmaram a incrível improvisação do golpe, e a ausência de movimentos de tropas importantes que pudessem apoiá-lo. Na verdade, a estupidez dos golpistas tornou-se a principal via dos sectores anticomunistas que acabaram com a URSS: ainda que pretendessem o contrário, sua acção, como a de Gorbatchev, facilitou o caminho aos partidários da restauração capitalista.
A seguir ao fracasso do golpe, Yeltsin voltou novamente a adiantar-se: a 24 de Agosto reconhecia a independência da Estónia e da Letónia. E não foi só Yeltsin, que iniciou os passos para a proibição de comunismo: também Gorbachev incapaz de lidar com as pressões da direita. Em 24 de Agosto de 1991, Gorbachev anunciava a sua renúncia como secretário-geral do PCUS, a dissolução do Comité Central do partido, e a proibição da actividade das células comunistas no exército, no KGB, e no Ministério do Interior, assim como o confisco de seus bens. O PCUS ficava sem organização e recursos. Não havia travão para a revanche anticomunista. Yeltsin já havia proibido todos os jornais e publicações comunistas. A fraqueza de Gorbachev era evidente, a ponto de Yeltsin, presidente da república russa, ser capaz de impor ministros de sua própria confiança ao próprio presidente soviético nos ministérios da defesa e interior, fundamentais na situação crítica do momento. Yeltsin já tinha proibido o PCUS na Rússia e apreendido os seus arquivos (na verdade, esses arquivos eram os arquivos centrais do partido comunista), e outras repúblicas seguiram o exemplo (Moldávia, Estónia, Letónia e Lituânia apressaram-se a proibir do Partido Comunista e solicitar aos Estados-Unidos o apoio para a sua independência), enquanto o “reformista” presidente da Câmara de Moscovo apreendia e lacrava edifícios comunistas na capital. Por sua parte, Kravchuk anunciava em 24 de Agosto o abandono de suas posições no PCUS e no Partido Comunista da Ucrânia. Yeltsin, que contava com um importante apoio social, abstinha-se cuidadosamente de revelar a sua intenção de restaurar o capitalismo.
A desenfreada corrida para o desastre continuou durante os últimos meses de 1991. O referendo realizado na Ucrânia em 1 de Dezembro de 1991 contava com o controle do aparelho de Kravchuk, até poucos meses o secretário comunista da República, reconvertido em nacionalista, campeão da independência ucraniana. Na sequência dos resultados, no dia seguinte, Kravchuk anunciou a sua recusa em assinar o Tratado de União com as outras repúblicas soviéticas. Kravchuk foi o protótipo do perfeito oportunista, pronto a adoptar qualquer ideologia para manter o seu papel: em Agosto de 1991 com a tentativa de golpe contra Gorbachev, não deixou clara a sua posição, nem apoiou Yeltsin nem Gorbachev, mas após o fracasso adoptou uma posição nacionalista, abandonou o Partido Comunista e lançou-se a reivindicar a independência da Ucrânia. Ele era um profissional do poder, que intuiu os acontecimentos, e tendo sido eleito presidente do parlamento ucraniano em 1990 pelos deputados comunistas, após o fracassado golpe, deixou as fileiras comunistas. Então, tudo se precipitava. Se alguns meses antes, em 17 de Março de 1991, a população ucraniana tinha amplamente apoiado a conservação da URSS (83% votaram a favor e apenas 16% contra) a campanha maciça do poder controlado por Kravchuk conseguiu o milagre de que, oito meses depois, a população ucraniana apoiasse a declaração de independência do parlamento por 90%, com uma participação de 84%.
Yeltsin anunciou como pretexto, que se a Ucrânia não assinava o novo Tratado da União, a Rússia também não o faria: era a explosão descontrolada da URSS. Por trás, havia um activo trabalho ocidental: dois dias depois do referendo da Ucrânia no dia 1 de Dezembro, Kravchuk conversava com Bush sobre o reconhecimento da independência pelos EUA: ainda que Washington mantivesse a cautela oficial nas relações com Moscovo, a sua diplomacia e os seus serviços secretos trabalhavam activamente apoiando as forças da ruptura. Também a Hungria e a Polónia, já convertidos em estados satélites de Washington, reconheciam Ucrânia. Yeltsin fez o mesmo, já lançado na destruição da URSS. Imediatamente foi lançado um plano para dissolver a União Soviética numa operação protagonizada por Yeltsin, Kravchuk e o bielorrusso Shushkevich em 8 de Dezembro de 1991, reunidos na residência de Viskulí na Reserva Natural de Belovezhskaya Pushcha, na Bielorrússia, onde proclamaram a dissolução da URSS e correram a informar George Bush para obter a sua aprovação. Faltam investigar muitos aspectos dessa operação, embora os personagens vivos, como Shushkevich, insistam em que não estava preparada com antecedência a dissolução da URSS, que foi decidida no momento. O Presidente bielorrusso foi encarregado de relatar a um Gorbachev impotente e ultrapassado pelos acontecimentos, que sabia que ia celebrar-se a reunião de Viskulí, e se fez participante, para agrado de George Bush. A rápida sucessão de eventos, com a assinatura em Alma-Ata, em 21 de Dezembro, por onze repúblicas soviéticas da criação da CEI e a renúncia de Gorbachev, quatro dias depois, com a retirada simbólica da bandeira vermelha soviética do Kremlin, marcaram o fim da União Soviética.
Numa disparatada corrida de reivindicações nacionalistas, muitas forças políticas que tinham crescido ao abrigo da perestroika reivindicavam soberania e independência, argumentando que a sua república iria começar um novo caminho de prosperidade e progresso, sem as alegadas hipotecas que implicavam a adesão à União Soviética. Desde o Cáucaso às repúblicas Bálticas, passando pela Ucrânia, Bielorrússia e Moldávia, e com a excepção das repúblicas da Ásia Central, a maioria dos protagonistas foram rápidos a quebrar os laços soviéticos… para se apoderar do poder nas suas repúblicas. A aliança tácita entre sectores nacionalistas e liberais (que supostamente deveriam iluminar de liberdade e prosperidade), velhos dissidentes, altos funcionários do Estado e directores de fábricas e combinados industriais, oportunistas do PCUS, dirigentes comunistas reconvertidos à pressa para manter o seu estatuto (Yeltsin já o tinha feito, e foi seguido por Yakovlev, Kravchuk, Shushkevich, Nazarbayev, Aliyev, Shevardnadze, Karimov, etc.), sectores comunistas desorientados, e ambiciosos chefes militares dispostos a tudo, até mesmo a trair os seus juramentos, para se manter na escala ou dirigir os exércitos de cada república, confluíram no esforço de demolir a URSS.
Com todo o poder em suas mãos, e com o Partido Comunista desarticulado e proibido, Yeltsin e os líderes das repúblicas lançaram-se na recolha dos despojos, nas privatizações selvagens, no roubo da propriedade pública. Não havia freios. Depois, para esmagar a resistência à deriva capitalista, seria o golpe de Yeltsin em 1993, inaugurando a via militar para o capitalismo, a sangrenta matança nas ruas de Moscovo, o bombardeio do Parlamento (algo sem precedentes na Europa pós-1945, que chocou o mundo, mas que foi apoiado pelos governos de Washington, Paris, Berlim e Londres) e, finalmente, a manipulação e roubo nas eleições de 1996 na Rússia, que foram ganhas pelo candidato do Partido Comunista, Gennady Zyuganov.
A destruição da URSS tornou milhões de pessoas pobres, destruiu a indústria soviética, desarticulou completamente a complexa rede científica do país, destruiu a saúde e educação públicas, e levou à eclosão de guerras civis em várias repúblicas, muitas das quais caíram nas mãos de déspotas e ditadores. É verdade que havia uma insatisfação evidente entre uma grande parte da população soviética, que teve suas raízes nos anos de repressão estalinista e que foi agravada pelo controle obsessivo da população, e ainda mais, pela desorganização progressiva e falta de alimentos e suprimentos que caracterizou os últimos anos sob Gorbachev, mas a dissolução piorou todos os males. Essa parte da população estava predisposta a acreditar nas mentiras que percorriam a URSS, muitas vezes recolhidas na comunicação ocidental.
Nas análises e na historiografia que se foi construindo nos últimos vinte anos tem sido um lugar-comum questionar sobre as razões para a falta de resposta do povo soviético perante a dissolução da URSS. Vinte anos depois, a visão de conjunto é mais clara: o aprofundamento da crise paralisou grande parte das energias do país, as disputas nacionalistas colocaram o debate nas supostas vantagens da dissolução da União (todas as repúblicas, incluindo a russa, ou pelo menos os seus dirigentes, proclamavam que o resto se aproveitava dos seus recursos, fossem quais fossem, agrícolas ou mineiros, industriais ou de serviços, e que a separação iria superar a crise e o início de uma nova prosperidade), e as ambições políticas de muitos dirigentes (novos ou velhos) passava pela criação de novos centros de poder, novas repúblicas. Além disso, ninguém poderia organizar a resistência, porque as principais lideranças do Estado encabeçavam a operação de desmantelamento, de forma activa como Yeltsin, ou passiva, como Gorbachev, e o Partido Comunista tinha sido declarado ilegal e as suas organizações desmanteladas. O PCUS tinha sido confundido durante anos com a estrutura do Estado, e essa condição dava-lhe força, mas também fraqueza: quando foi proibido, os seus milhões de militantes ficaram órfãos, sem iniciativa, muitos deles expectantes e impotentes diante das mudanças rápidas que sucediam.
No passado, esses líderes oportunistas (como Yeltsin, Aliev, Nazarbayev, o presidente do Cazaquistão desde o desaparecimento da URSS, cuja ditadura acaba de proibir a actividade do novo Partido Comunista do Cazaquistão) tiveram que agir dentro do âmbito de um partido único na URSS e sob leis e uma Constituição que os obrigou a desenvolver uma política favorável aos interesses populares. O colapso da União mostrou o seu verdadeiro carácter, tornando-os protagonistas da pilhagem de propriedade pública, e da criação de regimes repressivos, ditatoriais e populistas… que receberam imediata compreensão dos países capitalistas ocidentais. Numa sinistra ironia, os dirigentes que protagonizaram o maior roubo da história eram apresentados pela imprensa russa e ocidental como “progressistas” e “renovadores”, enquanto aqueles que tentavam salvar a URSS e manter as conquistas sociais da população eram apresentadas como “conservadores” e “imobilistas”. Esses “progressistas” iriam lançar-se depois num saque frenético da propriedade pública, roubo às mãos cheias, porque os “libertadores” e “progressistas” iam ao leme da maior fraude na história e de um massacre de dimensões assustadoras, não só pelo bombardeamento do Parlamento, mas também porque essa operação de engenharia social, a privatização selvagem, causou a morte de milhões de pessoas.
Um aspecto secundário, mas relevante devido às suas implicações para o futuro, é a questão de quem ganhou com o desaparecimento da URSS. Desde logo, não foi o povo soviético, que, vinte anos depois, continua abaixo dos níveis de vida a que ele tinha chegado na URSS. Três exemplos bastam: a Rússia tinha 150 milhões de habitantes, e agora só tem 142; a Lituânia, que contava em 1991, com 3.700.000 habitantes, tem agora apenas dois milhões e meio; a Ucrânia, que atingiu os 50 milhões, hoje tem apenas 45. Além dos milhões de mortes, a expectativa de vida caiu em todas as repúblicas. O desaparecimento da URSS foi uma catástrofe para a população, que caiu nas mãos de criminosos, de sátrapas, de ladrões, muitos deles agora convertidos em “respeitáveis empresários e políticos.” Os Estados Unidos apressaram-se a declarar vitória, e tudo parecia indicar que assim tinha sido: o seu principal adversário ideológico e estratégico tinha deixado de existir. Mas, se Washington ganhou então, a sua desastrosa gestão de um mundo unipolar deu início á sua própria crise: seu declínio, embora relativo, é um facto, e sua retirada militar do mundo vai aumentar, apesar dos desejos de seus governantes.
Vinte anos depois, a União Soviética permanece na memória dos cidadãos, tanto entre os veteranos, como entre as gerações mais jovens. Olga Onóiko, uma jovem escritora de 26 anos, que ganhou o prestígio prémio Debut, disse (com uma ingenuidade que também revela a consciência de uma grande perda) alguns meses atrás: ” A União Soviética aparece na minha mente como um grande e belo país, ensolarado e festivo, o país do meu sonho de infância, com um céu azul claro e acenando bandeiras vermelhas.” Enquanto isso, Irina Antonova, uma mulher excepcional de 89 anos, directora em exercício do famoso Museu Pushkin, em Moscovo, acrescentava: “A época de Estaline foi um momento difícil para a cultura e para o país. Mas também vi como muito depois se perdeu um grande país de uma maneira involuntária e desnecessária. […] Às vezes digo a mim mesma que só quero ir para um outro mundo depois de ter voltado a ver os ramos verdes de algo novo, algo realmente novo. Um Picasso que transforme essa realidade a partir da arte, da beleza e da emoção humana. Mas a cultura de massas tem devorado tudo. Baixou o nosso nível. Apesar de ir passar. É apenas um mau momento. E sobreviveremos a ele.”

Rebelión publicou este artigo com a permissão do autor através de uma licença da Creative Commons, http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/2.5/es/ respeitando a sua liberdade de publicar em outros lugares.
Tradução: Guilherme Coelho

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Algumas considerações sobre o Irão e a Síria*


James Petras
 
James Petras 
“Essa é outra armadilha em que caem os esquerdistas tontos, idiotas úteis que condenam sempre a Síria, sem entender que se trata de um esforço imperialista para repetir a experiência da Líbia, onde hoje o caos impera. O povo perdeu todos os benefícios e empregos que tinha durante o governo de Kadhafi. O mesmo poderá acontecer na Síria. Por esta razão, a maioria do país não quer esta intervenção”.

Actualmente, é recorrente que o Irão vai cortar as exportações de petróleo à Grécia, Espanha e Itália, como forma de antecipar o embargo anunciado pelos países europeus. Mais uma vez os países imperialistas da Europa estão tomando decisões que vão prejudicar o sul da Europa. Os países líderes não serão afectados por uma possível restrição sobre as exportações do Irão, pois recebem o seu petróleo da Arábia Saudita, da Rússia e de outras partes.
Por esta razão, agora existe um perigo. Caso a Europa anuncie um embargo contra o Irão, o mesmo irá cortar as exportações e colocar grande parte da Europa imersa numa crise ou, pelo menos, aprofundar a situação catastrófica existente.
Isso mostra que o Irão não está disposto a entregar-se aos países imperialistas. O Irão está capacitado para exportar petróleo para a Ásia, não dependendo da Europa. A Europa só constitui 18% do mercado do Irão. E, se os europeus impuserem um embargo, seguindo a liderança do império norte-americano, a China poderá comprar mais petróleo do Irão, assim como a Índia e outros países da Ásia.
Isso mostra, mais uma vez, que o Irão tem a capacidade de enfrentar o imperialismo, tomar medidas de defesa e contestar as agressões.
E, além disso, ouvimos muitas vezes falar do projecto de armas nucleares no Irão. Hoje, o Irão declarou estar disposto a aceitar que os investigadores das Nações Unidas tenham acesso a qualquer centro nuclear, interroguem qualquer cientista e possam investigar qualquer documento. Isso mostra a transparência do Irão e como as acusações, principalmente as movidas pelos EUA e por Israel, são falsas e fabricadas para montar campanhas de difamação. O Irão não possui programa nuclear, isso é consensual entre todos os especialistas.
Agora, o que dizem os Estados Unidos é que, no futuro, poderão ter… Como é que os EUA conhecem o futuro, quando não sabem nem como manejar as suas próprias políticas orçamentais do dia a dia? Aí, outra vez, devemos defender o direito do Irão em prosseguir como país independente, contra todas as agressões do mundo imperialista.
Isso não implica que devamos aprovar o carácter religioso que influencia a sua política. Uma coisa é que o Irão tenha que mudar sua forma de governar, outra coisa é os países imperialistas lançarem campanhas militaristas contra um país pacífico.
Isso leva-nos a outra contradição relacionada com a Síria. A Síria é um país independente, soberano e secular. Agora, encontra-se sob ataque armado. Ultimamente, as fotos publicadas nos jornais mostram pessoas encapuzadas, com metralhadoras, atirando sobre os soldados e contra o governo, ocupando os subúrbios de Damasco, a capital. Todas as sondagens e estudos de opinião mostram que na grande cidade de Alepo e também em Damasco a grande maioria está contra os terroristas, os mercenários tentam derrubar o governo através da força e da violência. Em todas as reportagens não são mencionados quantos civis estes terroristas matam, não são mencionados quantos soldados são assassinados. Só falam de vítimas. E vítimas, para eles, são apenas as da oposição e não as vítimas que apoiam o governo e os sectores militares.
Essa é outra armadilha em que caem os esquerdistas tontos, idiotas úteis que condenam sempre a Síria, sem entender que se trata de um esforço imperialista para repetir a experiência da Líbia, onde hoje o caos impera. O povo perdeu todos os benefícios e empregos que tinham durante o governo de Kadhafi. O mesmo poderá acontecer na Síria. Por esta razão, a maioria do país não quer esta intervenção.
E quero acrescentar uma coisa, pois muitos outros mostram que existem sírios nas ruas, protestando contra o governo. Historicamente, a conquista imperial no mundo passa pelo uso de mercenários… França, Inglaterra e agora os Estados Unidos utilizam colaboradores nacionais, internos e, especialmente, importam mercenários de outros países para fazer o trabalho sujo.
Tenho estado a ler uma história do império inglês e, na conquista do país hindu, foram centenas de milhares de mercenários quem conquistou a Índia. Depois, utilizaram os hindus para conquistar a África. E depois trataram de montar um ataque, no século XIX, para conquistar a América Latina, onde fracassaram.
Porém, esta é a utilização dos mercenários e, mesmo procurando dar-lhe uma roupagem progressista é uma táctica velha com 300 anos de uso, já que os países europeus, historicamente, costumam utilizar somente oficiais militares para dirigir tropas de mercenários e é isso que agora está a ser repetido.

*(Comentários para a CX36 Rádio Centenário, no Uruguai)
Tradução: Maria Fernanda M. Scelza (PCB)

DEUS SEGUNDO SPINOZA


“Pára de ficar rezando e batendo o peito! O que eu quero que faças é que saias pelo  mundo e desfrutes de tua vida. Eu quero que gozes, cantes, te divirtas e que desfrutes de tudo o que Eu fiz para ti.

Pára de ir a esses templos lúgubres, obscuros e frios que tu mesmo construíste e que acreditas ser a minha casa.

Minha casa está nas montanhas, nos bosques, nos rios, nos lagos, nas praias. Aí é onde Eu vivo e aí expresso meu amor por ti.

Pára de me culpar da tua vida miserável: Eu nunca te disse que há algo mau em ti ou que eras um pecador, ou que tua sexualidade fosse algo mau.

O sexo é um presente que Eu te dei e com o qual podes expressar teu amor, teu êxtase, tua alegria. Assim, não me culpes por tudo o que te fizeram crer.

Pára de ficar lendo supostas escrituras sagradas que nada têm a ver comigo. Se não podes me ler num amanhecer, numa paisagem, no olhar de teus amigos, nos olhos de teu filhinho... Não me encontrarás em nenhum livro!

Confia em mim e deixa de me pedir. Tu vais-me dizer como fazer meu trabalho?
Pára de ter tanto medo de mim. Eu não te julgo, nem te critico, nem me irrito, nem te incomodo, nem te castigo. Eu sou puro amor.

Pára de me pedir perdão. Não há nada a perdoar. Se Eu te fiz... Eu te enchi de paixões, de limitações, de prazeres, de sentimentos, de necessidades, de incoerências, de livre-arbítrio. Como posso te culpar se respondes a algo que eu pus em ti? Como posso te castigar por seres como és, se Eu sou quem te fez? Crês que eu poderia criar um lugar para queimar a todos meus filhos que não se comportem bem, pelo resto da eternidade? Que tipo de Deus pode fazer isso?

Esquece qualquer tipo de mandamento, qualquer tipo de lei; essas são artimanhas para te manipular, para te controlar, que só geram culpa em ti. Respeita teu próximo e não faças o que não queiras para ti. A única coisa que te peço é que prestes atenção a tua vida, que teu estado de alerta seja teu guia.

Esta vida não é uma prova, nem um degrau, nem um passo no caminho, nem um ensaio, nem um prelúdio para o paraíso. Esta vida é o único que há aqui e agora, e o único que precisas.

Eu te fiz absolutamente livre. Não há prêmios nem castigos. Não há pecados nem virtudes. Ninguém leva um placar. Ninguém leva um registro.

Tu és absolutamente livre para fazer da tua vida um céu ou um inferno.

Não te poderia dizer se há algo depois desta vida, mas posso te dar um conselho. Vive como se não o houvesse. Como se esta fosse tua única oportunidade de aproveitar, de amar, de existir. 

Assim, se não há nada, terás aproveitado da oportunidade que te dei.
E se houver, tem certeza que Eu não vou te perguntar se foste comportado ou não. Eu vou te perguntar se tu gostaste, se te divertiste... Do que mais gostaste? O que aprendeste?

Pára de crer em mim - crer é supor, adivinhar, imaginar. Eu não quero que acredites em mim. Quero que me sintas em ti. Quero que me sintas em ti quando beijas tua amada, quando agasalhas tua filhinha, quando acaricias teu cachorro, quando tomas banho no mar.

Pára de louvar-me! Que tipo de Deus ególatra tu acreditas que Eu seja?
Aborrece-me que me louvem. Cansa-me que agradeçam. Tu te sentes grato? Demonstra-o cuidando de ti, de tua saúde, de tuas relações, do mundo. Sentes-te olhado, surpreendido?... 

Expressa tua alegria! Esse é o jeito de me louvar.

Pára de complicar as coisas e de repetir como papagaio o que te ensinaram sobre mim. A única certeza é que tu estás aqui, que estás vivo, e que este mundo está cheio de maravilhas. Para que precisas de mais milagres? Para que tantas explicações?

Não me procures fora! Não me acharás. Procura-me dentro... aí é que estou, batendo em ti.

Baruch Spinoza.