sábado, 18 de fevereiro de 2012

“Perdendo o mundo”: o declínio dos EUA em perspectiva


O declínio dos Estados Unidos entrou, há algum tempo, em uma nova fase: a do declínio autoinfligido. Desde os anos 70 tem havido mudanças significativas na economia dos EUA, à medida que estrategistas, estatais e do setor privado, passaram a conduzi-la para a financeirização e à exportação de plantas industriais. Essas decisões deram início ao círculo vicioso no qual a riqueza e o poder político se tornaram altamente concentrados, os salários dos trabalhadores ficaram estagnados, a carga de trabalho aumentou e o endividamento das famílias também. O artigo é de Noam Chomsky.

Aniversários significativos são comemorados solenemente – o do ataque japonês à base da Marinha norteamericana de Pearl Harbor, por exemplo. Outros são ignorados, e podemos sempre aprender importantes lições que eles nos dão de como é possível seguir mentindo adiante. Na verdade, agora.

No momento, estamos errando em não comemorar o 50° aniversário da decisão do presidente John F Kennedy de promover a mais assassina e destrutiva agressão do período pós-Segunda Guerra: a invasão do Vietnã do Sul, e depois de toda a Indochina, deixando milhões de mortos e quatro países devastados, com perdas ainda crescentes causadas pela exposição do país aos carcinogênicos mais letais de que se tem conhecimento, que comprometerem a cobertura vegetal e a produção de alimentos.

O primeiro alvo foi o Vietnã do Sul. A agressão depois se espalhou para o Norte, e então para a sociedade remota do nordeste do Laos, até finalmente chegar ao rural Camboja, que foi bombardeado de tal maneira que chegou ao nível impressionante de ser alvo de todas as operações aéreas aliadas da região do Pacífico durante a Segunda Guerra Mundial, incluindo as duas bombas lançadas em Hiroshima e Nagasaki. Aí, as ordens de Henri Kissinger estavam sendo obedecidas – “qualquer coisa que voe ou se mova”; uma rara convocação para o genocídio na história.

Pouco disso tudo é lembrado. A maior parte desses massacres é escassamente conhecida para além dos estreitos círculos de ativistas.
Quando a invasão teve início, há cinquenta anos, a preocupação era tão pouca que havia poucos esforços de justificação; dificilmente iam além do impassível apelo do presidente de que “estamos nos opondo, ao redor do mundo, a uma conspiração monolítica e brutal que opera principalmente em meios disfarçados de expansão de sua esfera de influência” e se a conspiração consegue realizar seus objetivos no Laos e no Vietnã, “os portões estarão amplamente abertos".

Em outro lugar, ele alertou em seguida que “as sociedades leves, complacentes e autoindulgentes estavam para ser varridas para os escombros da história [e] só a força... pode sobreviver”, neste caso refletindo a respeito do fracasso da agressão e do terror estadunidenses para esmagar a independência cubana.

Quando os protestos começaram a crescer, meia dúzia de anos depois, o respeitado historiador militar e especialista em Vietnã Bernard Fall, nenhum pacifista, previu que “o Vietnã como uma entidade histórica e cultural...está ameaçada de extinção...[enquanto]...a sua área rural literalmente morre sob as explosões da maior máquina militar jamais em operação numa área deste tamanho”. Ele estava, mais uma vez, referindo-se ao Vietnã do Sul.

Quando a guerra acabou oito horrendos anos depois, a opinião dominante estava dividida entre aqueles que a descreviam como uma “causa nobre” que poderia ter sido vencida com mais dedicação e o extremo oposto, os críticos, para quem se tratou de “um erro” que se provou altamente custoso. Por volta de 1977, o Presidente Carter chamou pouca atenção quando explicou que “não havia dívida” nossa com o Vietnã porque “a destruição foi mútua”.

Há lições importantes em tudo isso para hoje, mesmo deixando de lado os fracos e derrotados que são chamados para responder por seus crimes. Uma lição é que para entender o que está acontecendo devemos buscar não apenas criticar os acontecimentos no mundo real, frequentemente dispensados pela história, mas também aquilo em que os líderes e a opinião da elite acreditam, mesmo que com tintas de fantasia. Uma outra lição é que, ao lado dos frutos da imaginação fabricados para aterrorizar e mobilizar o público (e talvez acreditados por aqueles enganados pela própria retórica), há também planejamento geoestratégico baseado em princípios que são racionais e estáveis em longos períodos, porque estão enraizados em instituições estáveis e na agenda destas. Isso também é verdade no caso do Vietnã. Eu voltarei a isso, só destacando aqui que os elementos persistentes na ação estatal são geralmente bastante opacos.

A guerra do Iraque é um caso instrutivo. Ela foi vendida para um público aterrorizado com as ameaças usuais da autodefesa contra uma formidável ameaça à sobrevivência: a “única questão” que George W. Bush e Tony Blair declararam foi se Saddam Hussein iria encerrar o seu programa de desenvolvimento de armas de destruição em massa. Quando a única questão recebeu a resposta errada, a retórica do governo mudou rapidamente para o nosso “anseio por democracia”, e a opinião pública educada seguiu devidamente o curso; o de sempre.

Mais tarde, à medida que a escalada da derrota no Iraque se tornou difícil de esconder, o governo quietamente concedeu o que estava claro para todo mundo. Em 2007-2008, a administração anunciou oficialmente que um acordo final deve assegurar a permanência de bases militares dos EUA e o direito de operações de combate, no país, e deve privilegiar os investidores estadunidenses na exploração de seu rico sistema energético – demandas que mais tarde foram relutantemente abandonadas diante da resistência iraquiana. E tudo ficou bastante escondido da maioria das pessoas.

Padronizando o declínio americano
Com essas lições em mente é útil dar uma olhada ao que é destacado na manchete dos maiores jornais de política e opinião, hoje. Peguemos a mais prestigiada das publicações do establishment, Foreign Affairs. A manchete estrondosa da capa de dezembro de 2011 estampava em negrito: “A América acabou?”.

O artigo da capa pedia “corte de gastos” nas “missões humanitárias” no exterior, que estavam consumindo a riqueza do país, para impedir o declínio americano, que é o maior tema nos discursos do ambiente de negócios, que frequentemente vem acompanhado do corolário de que o poder está mudando para o Leste, para a China e (talvez) a Índia.

Agora os principais artigos são a respeito de Israel e Palestina. O primeiro, de autoria de dois altos oficiais israelenses, é intitulado “O Problema é a Rejeição Palestina”: o conflito não pode ser resolvido porque os palestinos se recusam a reconhecer Israel como Estado Judeu – então em conformidade com a prática diplomática padrão: estados são reconhecidos, mas não seus setores privilegiados. A demanda é dificilmente outra coisa que um novo dispositivo para deter a ameaça de solução política para os assentamentos ilegais que minaria os objetivos expansionistas israelenses.

A posição oposta é defendida por um professor estadunidense tem o título “O Problema é a Ocupação”. No subtítulo se lê: “Como a Ocupação está Destruindo a Nação”. Qual nação? A de Israel é claro. Ambos os artigos aparecem com o título, em cache: “Israel sitiado”.

A edição de janeiro de 2012 lança ainda um outro chamamento para o bombardeio do Irã, agora, antes que seja tarde demais. Alertando contra “os perigos da dissuasão”, o autor sugere que “céticos com relação à ação militar falham em avaliar o verdadeiro perigo que um Irã com armas nucleares imporia aos interesses dos EUA no Oriente Médio e além. E em suas previsões sombrias imaginam que a cura pode ser pior do que a doença – quer dizer, que as consequências de um ataque estadunidense ao Irã seriam tão ruins ou piores do que se o país conseguisse levar a cabo suas ambições nucleares. Mas essa é uma suposição falsa. A verdade é que um ataque militar visando a destruir o programa nuclear iraniano, se for feito com cuidado, poderia significar para a região e para o mundo uma ameaça muito real e melhorar dramaticamente a segurança nacional dos Estados Unidos no longo prazo”.

Outros argumentam que os custos seriam altos demais e no limite alguns chegam a dizer que um ataque [ao Irã] violaria o direito internacional – como o fazem os moderados, que regularmente fazem ameaças de violência, em violação à Carta das Nações Unidas.

Vamos rever cada uma dessas preocupações dominantes

O declínio americano é real, embora a visão apocalíptica reflita a percepção bastante familiar da classe dominante de que algum controle menor ou total implica o desastre total. A despeito desses lamentos piedosos, os EUA persevera como poder dominante mundial por larga margem, e não há competidores à vista, não apenas em dimensões militares, a respeito das quais os EUA reina supremo.

A China e a Índia registraram crescimento rápido (embora altamente desigual), mas permanecem países muito pobres, com problemas internos enormes não enfrentados pelo Ocidente. A China é o maior centro industrial do mundo, mas majoritariamente como uma linha de montagem para as potências industriais avançadas em sua periferia e para as multinacionais ocidentais. É provável que isso mude com o tempo. A indústria em regra provê as bases para a inovação e a invenção, como vem ocorrendo às vezes, na China. Um exemplo que impressionou os especialistas ocidentais foi a tomada chinesa da liderança no mercado crescente de painéis solares, não apenas com base na mão de obra barata, mas no planejamento coordenado e, crescentemente, na inovação.

Mas os problemas que a China enfrenta são sérios. Alguns são demográficos, reportados na Science, o líder dos semanários estadunidenses de divulgação científica. O estudo mostra que a mortalidade caiu bruscamente na China durante os anos maoístas, “principalmente um resultado do desenvolvimento econômico e das melhorias nos serviços educacionais e de saúde, especialmente ao movimento de higiene pública que resultou num golpe drástico à mortalidade por doenças infecciosas”. Esse progresso acabou com o início das reformas capitalistas no país, há 30 anos, e a taxa de mortalidade desde então tem aumentado.

Além disso, o crescimento econômico chinês recente contou substancialmente com um “bônus demográfico”, uma grande população em idade economicamente ativa. “Mas a janela para o uso desse bônus pode fechar logo”, com um “impacto profundo no desenvolvimento”: “o excesso de mão de obra barata, que é um dos maiores fatores de condução do milagre econômico chinês não estará mais disponível”. A demografia é apenas um dos muitos problemas sérios pela frente. No que concerne a Índia, os problemas são ainda mais graves.

Nem todas as vozes proeminentes anteveem o declínio americano. Na mídia internacional, não há nada mais sério e respeitável que o Financial Times. O jornal recentemente dedicou uma página inteira às expectativas otimistas de que nova tecnologia para extrair combustível fóssil norteamericano pode fazer com que os EUA se torne energeticamente independente, mantendo portanto sua hegemonia por um século. Não há menção ao tipo de mundo que os EUA comandará nesse acontecimento feliz, mas não por falta de evidência.

Quase ao mesmo tempo, a Agência Internacional de Energia reportou que, com o aumento rápido das emissões de carbono dos combustíveis fósseis, o limite de uso seguro será atingido por volta de 2017, se o mundo continuar no atual curso. “A porta está fechando”, disse o economista-chefe da AIE, e em muito breve “fechará de vez”.

Pouco antes, o Departamento de Energia dos EUA informou que as imagens mais recentes das emissões de dióxido de carbono, com “a elevação para o maior índice já registrado”, chegaram num nível mais elevado do que os piores cenários antecipados pelo Painel Internacional de Mudanças Climáticas (IPCC). Isso não é surpresa para muitos cientistas, inclusive os do programa do MIT para mudança climática, que por anos alertou que os prognósticos do IPCC eram conservadores demais.

Esses críticos das previsões do IPCC receberam virtualmente atenção pública nenhuma, ao contrário dos grupos denegadores do aquecimento global, que são apoiados pelo setor corporativo, juntamente a imensas campanhas de propaganda que tem levado os americanos para fora do espectro internacional dessas ameaças. O apoio das corporações também se traduz diretamente no poder político. A denegação é parte do catecismo que deve ser entoado pelos candidatos republicanos na ridícula campanha eleitoral em curso, e no Congresso eles são poderosos o suficiente para abortar até investigações sobre o efeito do aquecimento global, deixando de lado qualquer ação séria a respeito. Numa palavra, o declínio americano pode talvez ser interditado se abandonarmos a esperança pela sobrevivência decente, prognóstico também bastante real, dado o equilíbrio de forças no mundo.

“Perdendo” a China e o Vietnã
Deixando de lado essas coisas desagradáveis, um olhar de perto para o declínio americano mostra que a China na verdade joga um grande papel nele, tanto como o jogava há 60 anos. O declínio que agora gera tanta preocupação não é um fenômeno recente. Ele remonta ao fim da Segunda Guerra Mundial, quando os EUA tinha metade da riqueza do mundo e dispunha de níveis globais de segurança incomparáveis. Os estrategistas políticos estavam naturalmente bastante conscientes dessa enorme disparidade de poder e pretendiam mante-la assim.

O ponto de vista básico foi apresentado com admirável franqueza numgrande documento de 1948. O autor era um dos arquitetos da Nova Ordem Mundial da época, o representante da equipe de Planejamento Político do Departamento de Estado dos EUA, o respeitado estadista e acadêmico George Kennan, um pacifista moderado, dentre os estrategistas. Ele observou que o objetivo político central era manter a “posição de disparidade” que separava a nossa enorme riqueza da pobreza dos outros. Para alcançar esse objetivo, advertiu, “nós deveríamos para de falar de objetivos vagos e... irreais, como direitos humanos, a elevação do padrão de vida e a democratização”, e devemos “lidar com conceitos estritos de poder”, não “limitados por slogans idealistas” a respeito de “altruísmo e o benefício do mundo”.

Kennan estava se referindo especificamente à Ásia, mas as observações dele se generalizam, com exceções, aos participantes do atual sistema de dominação global dos EUA. Ficou bastante claro que os “slogans idealistas” deveriam ser apresentados sobretudo quando dirigidos aos outros, inclusive às classes intelectualizadas, das quais se esperava que os disseminassem.

O plano de Kennan ajudou a formular e a implementar a tomada de controle dos EUA do Hemisfério Oeste, do Extremo Leste e das regiões do ex-império britânico (incluindo os incomparáveis recursos energéticos do Oriente Médio), e o quanto foi possível da Eurásia, sobretudo seus centros comerciais e industriais. Esses não eram objetivos irreais, dada a distribuição do poder. Mas o declínio foi então definido de vez.

Em 1949, a China declarou independência, um evento conhecido no discurso do Ocidente como “a perda da China” – nos EUA, com algumas recriminações amarguradas e o conflito interpretativo a respeito de quem tinha sido o responsável por essa perda. A terminologia é reveladora. Só é possível perder o que em algum momento se teve. A assunção tácita era que os EUA tinham a China, por direito, juntamente à maior parte do resto do mundo, tanto como os estrategistas do pós-guerra pensavam.

A “perda da China” foi o primeiro grande passo do “declínio americano”. Foi o que teve grandes consequências políticas. Uma delas foi a decisão imediata de apoiar o esforço francês de reconquista da sua ex-colônia da Indochina, para que esta também não fosse “perdida”.

A Indochina mesma não era motivo de preocupação maior, a despeito das afirmações de suas riquezas naturais por parte do presidente Eisenhower e outros. A preocupação maior era antes com a “teoria do efeito dominó”, a qual é frequentemente ridicularizada quando os dominós não caem, mas permanece um princípio regulador da política, porque é bastante racional. Para adotar a versão Henri Kissinger dele, uma localidade que cai fora do controle pode se tornar um “vírus” que irá “contagiar”, induzindo outros a seguirem o mesmo caminho.

No caso do Vietnã, a preocupação era que esse vírus do desenvolvimento independente pudesse infectar a Indonésia, que de fato é rica em recursos. E isso pode levar o Japão – o “superdominó”, como o proeminente historiador da Ásia John Dower chamava – a “acomodar” uma Ásia independente como seu centro tecnológico e industrial num sistema que escaparia do alcance do poder dos EUA. Isso significaria, com efeito, que o EUA tinha perdido a fase Pacífico da Segunda Guerra, na qual lutou para tentar impedir que o Japão estabelecesse uma Nova Ordem na Ásia.

O modo de lidar com um problema desse é claro: destruir o vírus e “inocular” aqueles que podem ser infectados. No caso do Vietnã, a escolha racional era destruir qualquer esperança de desenvolvimento independente bem sucedido e impor ditaduras brutais nos arredores. Essas tarefas foram levadas a cabo com sucesso – embora a história tenha sua própria astúcia, e algo similar ao que foi temido desde então tenha se desenvolvido no Leste da Ásia, a maior parte para consternação de Washington.

A vitória mais importante das guerras da Indochina deu-se em 1965, quando um golpe de estado militar, com o apoio dos EUA, liderado pelo general Suharto significou crimes massivos comparados pela CIA aos de Hitler, Stalin e Mao. A “assombrosa matança massiva”, como descreveu o New York Times, foi acuradamente reportada nos meios dominantes, e com euforia desenfreada.

Foi um “brilho de luz na Ásia”, como observou o comentarista liberal James Reston, no Times. O golpe encerrou as ameaças à demoracia ao demolir o partido político de massas, dos pobres, estabelecendo uma ditadura que registrou as piores violações aos direitos humanos no mundo, e deixou as riquezas do país abertas aos investidores ocidentais. Poucos questionaram que depois de tantos horrores, inclusive a quase genocida invasão do Timor LesteSuharto ter sido bem recebido pela administração Clinton, em 1995, como “nosso tipo de cara”.

Anos após os grandes eventos de 1965, o Conselheiro para Assuntos de Segurança Nacional de Kennedy e Johnson, McGeorge Bundy refleteria que teria sido sensato acabar com a guerra do Vietnã a tempo, com o “vírus” virtualmente destruído e, o principal, o dominó solidamente no lugar, no esteio de outras ditaduras apoiadas pelos EUA pela região.

Procedimentos similares são rotineiramente seguidos em outros lugares. Kisssinger estava se referindo especificamente à ameaça da democracia socialista no Chile. Essa ameaça acabou em outra data esquecida, que os latino-americanos chamam de “O Primeiro 11 de Setembro”, que em violência e efeitos nefastos excedeu em muito o 11 de Setembro comemorado no Ocidente. Uma ditadura viciosa foi imposta ao Chile, como uma parte da praga de repressão brutal que se espalhou pela América Latina, chegando até a América Central, nos anos Reagan. 

Esse vírus tem gerado preocupações profundas aqui e ali, inclusive no Oriente Médio, onde a ameaça de um nacionalismo secular tem consternado os estrategistas britânicos e estadunidenses, induzindo-os a apoiar o fundamentalismo islâmico a opor-se a isso.

A concentração da riqueza e o declínio americano
Mesmo com essas vitórias, o declínio americano continuou. Por volta de 1970, a parte da riqueza do mundo dos EUA saltou para 25%, basicamente onde está hoje, concentração ainda colossal, mas bastante inferior àquela de fins da Segunda Guerra. Nessa época, o mundo industrial era “tripolar”: a base norte americana, dos EUA, a europeia, da Alemanha, e a do Leste da Ásia, já a região industrial mais dinâmica, naquele tempo com base no Japão, mas hoje incluindo as ex-colônias japonesas de Taiwan e o Sul da Coreia, e mais recentemente a China.

Nesse período o declínio americano entrou numa nova fase: a do declínio autoinfligido. Desde os anos 70 tem havido mudanças significativas na economia dos EUA, à medida que estrategistas, estatais e do setor privado, passaram a conduzi-la para a financeirização e à exportação de plantas industriais, levada a cabo em parte pelo declínio da taxa de lucro na indústria doméstica. Essas decisões deram início ao círculo vicioso no qual a riqueza se tornou altamente concentrada (dramaticamente nos 0,1% da população), levou à concentração de poder político, e então a uma legislação que o levou adiante, no que concerne à tributação e outras políticas fiscais, à desregulação, às mudança nas regras da administração corporativa - o que permitiu imensos ganhos para os executivos - e por aí vai.

Enquanto isso, para a maioria, os salários reais foram majoritariamente estagnados e ao povo só restou aumentar a carga de trabalho (muito além da europeia), a dívida insustentável e as repetidas bolhas, desde os anos Reagan; criando riquezas de papel que desapareceram inevitavelmente quando a bolha estourou (e os perpretadores foram resgatados pelos contribuintes). Em paralelo a isso, o sistema político foi cada vez mais fragmentado, enquanto ambos os partidos mergulharam cada vez mais nos bolsos das corporações, com a escalada do custo das eleições (os republicanos ao nível do absurdo e os democratas – agora majoritariamente os “ex-republicanos moderados” – não ficaram muito atrás).

Um estudo recente do Instituto de Política Econômica, que tem sido a maior fonte de dados respeitáveis sobre o desenvolvimento, intitula-se Failure by Design [no contexto, algo como Fracasso por Ecomenda]. A frase “by design” é acurada. Outras escolhas eram certamente possíveis. E como mostra o estudo, o “fracasso” tem um corte de classe. Não há fracasso para os “designers”. Longe disso. Antes, as políticas fracassaram para a imensa maioria, os 99% na imagem dos movimentos Occupy – e para o país, que tem declinado e irá continuar a fazê-lo, sob essas políticas.

Um fator que o explica é a transferência das plantas industriais. Como ilustra o exemplo do painel solar, mencionado acima, a industrialização tem a capacidade de promover as bases e o estímulo para a inovação, levando a estágios mais avançados de sofisticação na produção, no design e na invenção. Isso, também, está sendo terceirizado, o que não é um problema para os “mandarins do dinheiro”, que cada vez mais mandam na política, mas é um sério problema para o povo trabalhador e as classes médias, e um desastre real para os mais oprimidos, os afroamericanos, que nunca escaparam do legado da escravidão e de sua mais feia consequência, cujamagra riqueza desapareceu virtualmente depois do colapso da bolha imobiliária, em 2008, originando a mais recente crise financeira, a pior até agora.

(*) Noam Chomsky é professor emérito do Departamento de Linguística e Filosofia do MIT. É o maior linguista do mundo e um dos mais, senão o mais rigoroso e consequente anarquista vivo.

Tradução: Katarina Peixoto

Fonte:

China e o novo centro dinâmico | Marcio Pochmann




do Revista Fórum
O sucesso do milagre econômico chinês apresentou ao mundo uma novidade quase não imaginada frente à inconteste hegemonia estadunidense. Seja na evolução do comércio externo ou na presença crescente dos investimentos externos, a China se posiciona de forma cada vez mais sólida como eixo integrador da dinâmica mundial.

Antes da crise do capitalismo global, a economia estadunidense apresentava sinais de certa decadência frente ao seu esvaziamento produtivo e da relativa perda de importância do dólar. Mas, a partir de 2008, a perda de influência norte-americana tornou-se cada vez mais evidente, sobretudo quando se considera o sucesso transformista chinês.

Para piorar, os Estados Unidos passam a apresentar sinais crescentes de subdesenvolvimento, como no caso da concentração de renda. Nas últimas três décadas, por exemplo, o segmento constituído pela faixa do 1% mais rico da população teve a sua renda aumentada em 256%, enquanto o rendimento dos pobres subiu somente 11%. Como resultado disso, os EUA voltaram a deter um padrão de desigualdade de renda somente verificado antes da Depressão de 1929.

Diante do descenso estadunidense e do auge chinês, os governos têm a oportunidade de rever estrategicamente o posicionamento de suas economias. Do contrário, a trajetória das relações comerciais e de investimento com a China tende cada vez mais a aprofundar as características históricas já notabilizadas, especialmente durante a antiga ordem internacional estabelecida a partir da Inglaterra. Como a China atual, o Reino Unido dependia fortemente de produtos primários, enquanto se mantinha como forte produtor e exportador de produtos manufaturados. Ou seja, dava-se o estabelecimento de uma convergência internacional para a produção e exportação de produtos primários e simultânea dependência da dinâmica local à internacionalização dos seus parques produtivos segundo a lógica inglesa.

Em geral, a China passa a deter não somente relações comerciais como presença de investimento superiores às dos EUA. Por meio da globalização financeira, não obstante os sinais de certo esvaziamento do seu papel monetário (fim do padrão ouro-dólar nos anos 1970) e de enfraquecimento relativo de sua produção e difusão tecnológica, os Estados Unidos se transformavam praticamente num império unipolar. Tanto assim que prevaleceu a concepção de pensamento único e visão de fim da História, com predomínio da democracia liberal e do livre mercado.

Nos dias de hoje, com o esgotamento do movimento de globalização financeira, registrado por várias crises de dimensão internacional, o milagre chinês ascendeu rapidamente. Assim, a expansão da economia do país possibilitou que em apenas dez anos a sua produção fosse triplicada, contrastando com a realidade estadunidense. Somente entre 1999 e 2010, por exemplo, a variação acumulada do Produto Interno Bruto dos Estados Unidos foi equivalente a apenas 1/8 da verificada na China.

No mesmo sentido, o país asiático responde cada vez mais por uma maior parcela da produção de manufaturados do mundo; em 2009, representou 18% do valor agregado industrial mundial. A participação chinesa no valor adicionado mundial na indústria de transformação de alta tecnologia também saltou de 4%, em 2000, para 18%, em 2009. Atualmente, a China assume a condição de segunda nação mais importante na produção de material de escritório e informática do mundo, na produção de material de rádio, TV e comunicação, e a primeira na produção de veículos automotores e nos investimentos na indústria aeroespacial, de supercomputadores e de núcleos eletrônicos, entre outras posições estratégicas mundiais.

Por conta disso, a China deve ultrapassar a posição dos EUA durante a segunda década do século XXI, embora isso não signifique necessariamente o desaparecimento das centralidades dinâmicas das economias pertencentes à União Europeia e aos Estados Unidos, mas o que se destaca é o aparecimento de um mundo multipolar. Além da Ásia – especialmente a China e Índia – há um espaço regional capaz de gerar uma nova centralidade dinâmica no sul do continente americano, com forte importância para a economia brasileira.

Em síntese, o Brasil passa a ter maior relevância num novo contexto mundial multipolarizado, bem distinto daquele verificado durante o momento de sua constituição, em que os Estados Unidos exerciam uma centralidade unipolar. Mas o seu reposicionamento deve partir de um olhar de mais longo prazo, uma vez que as alternativas estão postas. O deslocamento do centro dinâmico estabelece oportunidades inequívocas de reforço da pujança econômica brasileira. Mas isso pode ocorrer tanto pelo lado da Fazenda, Mineração e Maquiladora dos Produtos Manufaturados (FAMA), como pela via do encadeamento dos sistemas produtivos a partir de maior agregação do Valor Agregado e Conhecimento (VACO).

As alternativas estão postas, com a China presente no novo centro dinâmico mundial. Ao Brasil, cabe uma decisão clara e objetiva em torno do papel que deseja desempenhar neste novo contexto internacional.

Esta crônica é parte integrante da edição 105 da revista Fórum

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Chávez ainda enterrará Merval Pereira



Por Eduardo Guimarães, no Blog da Cidadania:via BLO DO MIRO

Não faz muito tempo, li no portal do jornal O Estado de São Paulo na internet um artigo de uma das marionetes dos barões da imprensa atacando o que chamou de “jornalismo cidadão”. O sujeito dizia que blogs como este não teriam qualidade jornalística, não checariam informações como a grande imprensa, e que, portanto, não seriam confiáveis.



Naquele momento, a primeira coisa que me veio à mente foi a ficha policial falsa que o jornal Folha de São Paulo recebeu por e-mail de fonte anônima há alguns anos e publicou no alto de sua primeira página, com o maior destaque possível. Fiquei me perguntando como alguém pode ser tão cara-de-pau a ponto de dizer que uma imprensa que faz isso seria mais confiável.

Para fortalecer sua teoria, o teleguiado da família Mesquita usou como “exemplo” de sua tese notícias veiculadas por blogs sobre desaparecidos durante o massacre do Pinheirinho. O tal “blogueiro” do Estadão mentiu dizendo que blogs anunciaram mortes, quando anunciaram desaparecimentos.

O fato é que a blogosfera tem sido um exemplo de bom jornalismo, pois quando erra faz suas reparações e permite espaço ao contraditório de suas diversas linhas editoriais, contraditório esse que a grande imprensa nega a quem dela diverge.

Se checagem rigorosa de informações for evidência de bom jornalismo – e é, apesar de não ser a única –, a mídia da ficha falsa da Dilma ou do grampo sem áudio no STF agora tem mais um passivo, a morte iminente de Hugo Chávez que começou a ser anunciada em janeiro e que na última quinta-feira (16) foi endossada, sem checagem, pelo “imortal” Merval Pereira.

Leia, abaixo, post de Merval em seu blog no qual “mata” Hugo Chávez.

*****

Blog de Merval Pereira

16.02.12

Quadro grave

A saúde do presidente Hugo Chávez, da Venezuela, pode afetar a eleição presidencial. Os últimos exames, analisados por médicos brasileiros, indicam que o câncer está em processo de metástase, se alastrando em direção ao fígado, deixando pouca margem a uma recuperação.

Como a eleição presidencial se realiza dentro de 8 meses, a 7 de outubro, dificilmente o presidente venezuelano estaria em condições de fazer uma campanha eleitoral que exigirá muito esforço físico, pois a oposição já tem em Henrique Capriles um candidato de união.

O ex-embaixador dos Estados Unidos na OEA, Roger Noriega, invocando informações de dentro do governo venezuelano, escreveu artigo recentemente no portal de internet da InterAmerican Security Watch intitulado “A Grande mentira de Hugo Chávez e a Grande Apatia de Washington”.

Nesse artigo ele dizia que o câncer está se propagando mais rapidamente do que o esperado e poderia causar-lhe a morte antes mesmo das eleições presidenciais.

*****

Em primeiro lugar, que “Exames analisados por médicos brasileiros” são esses? Quem são os tais “médicos brasileiros”? Como os tais “exames” foram obtidos? A mídia que acusa blogs de não checarem informações, ignora cuidados mínimos ao divulgar uma notícia dessa gravidade, que, sendo verdadeira, teria implicações estrondosas na geopolítica das Américas.

Merval não checou nada e ainda trocou as bolas. Confundiu matérias que saíram em órgãos de imprensa espanhóis e norte-americanos que fazem oposição cerrada a Chávez com uma notícia divulgada pela “Folha.com” em julho do ano passado. Veja a matéria, abaixo:

*****

Folha.com

19/07/2011

Exames mostram que Chávez tem câncer de próstata, dizem médicos

Profissionais brasileiros que tiveram acesso aos exames de Hugo Chávez dizem que o presidente venezuelano tem câncer de próstata.

A informação é da coluna de Mônica Bérgamo publicada nesta terça-feira na Folha e cuja íntegra está disponível para assinantes do jornal e do UOL, empresa controlada pelo Grupo Folha, que edita a Folha.

A informação, contudo, não foi confirmada pelo urologista Miguel Srougi, especialista em câncer de próstata que foi chamado para a reunião com os diplomatas venezuelanos.

Ele prefere manter o silêncio para evitar falhas e diz que Chávez “fez muito bem” de ir para Cuba, onde terá a intimidade preservada.

Chávez revelou ter câncer em 30 de junho, após semanas de especulação, em uma mensagem lida em rede nacional em Havana, onde deveria encerrar uma turnê de visitas iniciada no Brasil no começo do mês.

Menos de quatro dias depois do anúncio da doença, Chávez retornaria de surpresa a Caracas, às vésperas do aniversário de 200 anos do país.

Naquele momento, ele anunciou ter feito duas cirurgias em Cuba –uma delas para a retirada de um tumor. Chávez não informa que órgãos ou tecidos foram atingidos pelo câncer nem qual seu estágio. Negou, porém, que a doença tenha atingido o cólon ou o estômago.

A coluna de Bergamo de sábado (16) já apontava indícios de lesão na próstata do presidente venezuelano, mas ressaltava que mais exames eram necessários.

Até semana passada, tudo indicava que Chávez viria ao Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, para fazer sessões de quimioterapia contra seu câncer, como fez seu colega paraguaio, Fernando Lugo, que sofreu de câncer linfático no ano passado.

No sábado (16), contudo, Chávez chegou à Cuba, onde informou que deseja seguir o tratamento quimioterápico para câncer. Ele não descartou uma visita futura ao Brasil, no entanto.

*****

Além de preguiçoso – ou mal-intencionado – ao checar informações, Merval nem soube identificar a origem de boatos que pretendem apenas desestabilizar, tanto na Venezuela quanto no exterior, a candidatura de Chávez à reeleição.

Quem saiu primeiro com essa história de metástase do câncer de próstata do líder venezuelano foi o diário norte-americano Wall Street Journal, em novembro do ano passado. Diz o “journal”:

*****

Os relatórios, com base em entrevistas com pessoas que tiveram acesso à equipe médica de Chávez, alimentam rumores recentes de que o homem que governa a Venezuela desde 1999 não será saudável o suficiente para disputar a reeleição em outubro, potencialmente jogando o futuro político do país em dúvida.

*****

No final do mês passado, o diário espanhol “ABC”, que faz oposição a Chávez – bastando, para comprovar, fazer busca de seu nome no sítio do veículo, onde se constatará uma impressionante artilharia contra ele –, publicou matéria anunciando que o venezuelano teria um ano de vida a menos que aceite um tratamento intensivo.

O artigo do ex-embaixador dos Estados Unidos na OEA Roger Noriega, invocado por Merval, baseia-se nas mesmas invenções sobre “médicos” que teriam “analisado exames” de Chávez e concluído que seu câncer estaria se espalhando rapidamente.

Chega a ser ridículo achar que médicos brasileiros, espanhóis e americanos teriam tido acesso livre a exames de um Chávez que nega peremptoriamente que sua doença tenha se agravado e que certamente toma todos os cuidados com informações sobre a própria saúde.

Aliás, não se entende de que adiantaria um homem que tem menos de um ano de vida disputar uma eleição. Sendo eleito em outubro, se seu estado de saúde moribundo fosse real ele não viveria para assumir o cargo. Teria que estar louco para se meter em tal empreitada sabendo que mesmo vencendo a eleição seria derrotado.

A estratégia da direita midiática internacional é óbvia: acha que pode fazer o povo venezuelano deixar de votar em Chávez com medo de que ele morra e deixe o país acéfalo.

Chávez praticamente não deu bola a uma notícia que já corre o mundo há semanas e que chega atrasada ao Brasil. Aliás, fez troça. Mas os mervais e os PIGs espalhados pelo mundo mergulharam de cabeça no que julgam um filão, cheios de esperança que estão no candidato com que a direita venezuelana deve tentar retomar o poder, o tal de Henrique Capriles.

Se essa direita midiática não fosse tão preguiçosa e tivesse se dado ao trabalho de fazer o que este blogueiro fez muitas vezes ao incursionar nos “cerros” (morros) de Caracas, desjejuando arepa (espécie de pão sírio), suero (coalhada) e té (chá) enquanto ouvia o verdadeiro povo venezuelano, entenderia o que jamais entendeu.

Chávez não é causa, é consequência. Assim como Evo Morales, Rafael Correa, Lula e outros presidentes progressistas que decorreram da onda de governos de esquerda que na década passada varreu a América Latina, ele é o braço político do povo. Se morresse, o povo acharia um substituto.

Essa gente não entende que a morte de Chávez o transformaria em um mártir e permitiria ao seu partido eleger qualquer poste, sem falar na fúria que seria desencadeada entre a imensa maioria de venezuelanos que o apóia com a alma não por ele mesmo, mas porque é o campeão que aquele povo encontrou para reverter a concentração de renda que esmagou a Venezuela por décadas.

O povo venezuelano já está escolado. Em cada uma das sucessivas eleições que Chávez venceu sem que houvesse um único questionamento sério e reconhecido, até a antevéspera de cada um daqueles pleitos a direita midiática sempre disse que daquela vez ele estaria derrotado por antecipação.

Chávez não está moribundo, quem está é essa direita demente que jamais entendeu que ao menos nesta parte do mundo os povos já sabem que não podem permitir que ela volte a governar até que o mal que perpetrou ao longo de séculos seja desfeito. Chávez, portanto, viverá para assistir ao enterro político dessa gente.

Entrevista com Boaventura de Sousa Santos sobre neoliberalismo e o sequestro do direito

170212_entrevista-boaventuraCronicón - [Fernando Arellano Ortiz] Enquanto o sistema imperante no mundo não tem respostas às demandas sociais, como consequência da crueldade do neoliberalismo, as lutas e os protestos de movimentos como os "Indignados" e os "Ocupa", convidam para o "otimismo trágico", afirma o cientista social português Boaventura de Sousa Santos, explicando que em meio às múltiplas dificuldades estão surgindo alternativas sustentadas pelo que denomina sociologia das emergências e por novos processos de produção e de valorização de conhecimentos válidos, científicos e não científicos, que reconhece em sua teoria da Epistemologia do Sul.

Os pressupostos da Epistemologia do Sul são a ecologia dos saberes e a tradução intercultural, que projetam um pensamento alternativo baseando-se nas experiências práticas, nas lutas sociais e em trabalhos de campo, nos diversos cantos do mundo.
Santos explica, tanto em seus textos como em suas conferências, que a ecologia dos saberes é "o diálogo horizontal entre conhecimentos diversos, incluindo o científico, como também o camponês, o artístico, o indígena, o popular e outros tantos que são descartados pela quadrícula acadêmica tradicional". De tal maneira que a tradução intercultural é o procedimento que possibilita criar entendimento recíproco entre as diversas experiências de mundo.
Dessa forma, ele assinala, pode-se assimilar outras concepções de vida produtiva distintas daquelas do capitalismo reproduzidas pela ciência econômica convencional, como, por exemplo, o "swadeshi" - estratégia formulada por Mahatma Gandhi - que propõe a autossuficiência econômica e o autogoverno; ou o "sumak kawsay" - conceito indígena do bem viver - incorporado nas constituições do Equador e da Bolívia, que significa reconhecer e aprender das sabedorias dos povos tradicionais que na América Latina estão ligados com a natureza e seu bom aproveitamento. Estas experiências produtivas assentam-se na sustentabilidade, solidariedade e reciprocidade.
Ao mesmo tempo, o sociólogo andarilho e intelectual militante, como ele se define, considera que boa parte do mundo, sobretudo o Ocidente, está entrando num processo pós-institucional, na medida em que a política esqueceu-se do cidadão, o que se evidencia na sua ativa presença em ruas e praças que "ainda não foram colonizadas pelas transnacionais".
Por isso, ele propõe a refundação do Estado e também dos partidos políticos, sobretudo de esquerda, para que mude não somente o criminoso modelo econômico que está acabando com o planeta, como também para organizar a vida em condição mais humana, elevando os níveis de participação democrática e respondendo de maneira satisfatória às demandas e necessidades sociais. Atualmente, o que agrega "os conceitos jurídicos e sociológicos tradicionais ou eurocêntricos, é muito débil para enfrentar a realidade social".
A consequência funesta gerada pelo neoliberalismo e seu afã de lucro desenfreado é um caso patético, ao superar o âmbito jurídico até o ponto em que não esteja mais claro definir o legal do ilegal. "Segundo os critérios de poder é que se determina a ilegalidade ou legalidade", sustenta.
Para aprofundar a esse respeito e sobre outros temas dos conflitos sociais no mundo, o Observatório Sociopolítico Latino-americano - Cronicon entrevistou Boaventura de Sousa Santos durante sua última visita a Bogotá, convidado pela Faculdade de Direito da Universidade dos Andes, em que recebeu a distinção Sócrates por sua contribuição à sociologia jurídica, aos direitos humanos e para a transformação social.
Durante o evento acadêmico, o professor português proferiu a conferência: "Para uma teoria jurídica dos indignados".
Santos, doutor em sociologia do Direito da Universidade de Yale e catedrático da Universidade de Coimbra, também é professor do Centro de Estudos Sociais desta instituição, assim como professor da Universidade de Wisconsin-Madison e de diversos estabelecimentos acadêmicos do mundo. É um dos cientistas sociais e pesquisadores mais importantes na área da sociologia jurídica e cumpre o papel de ativista do Fórum Social Mundial. Seus diversos livros, ensaios e artigos jornalísticos são referentes ao pensamento alternativo, na medida em que ele analisa com visão aguda, e mesmo autocrítica, temas como a globalização, a sociologia do direito e do Estado, os movimentos sociais, a epistemologia e a geopolítica.
A IRRUPÇÃO DOS INDIGNADOS: PONTO DE PARTIDA DA MUDANÇA SOCIAL
Como você bem destacou, apesar dos movimentos espontâneos dos "Indignados" e do "Ocupa" não terem uma articulação política, estaria sendo gestado neles um sujeito político que pressione as mudanças socioeconômicas que o mundo requer?
Eu estou certo que sim. Considero que isto é um começo, um ponto de partida, e por isso as várias as análises que enfocam os "Indignados" como algo que já está consolidado são equivocadas, pois ao contrário, parece-me que este é um sintoma das coisas ruins que estão ocorrendo em nossas democracias e é um início de algo que não sabemos como continuará. Esses movimentos, que são de jovens, não tem vinculação com os partidos políticos porque muitos dos partidos progressistas perderam a juventude, não de agora, mas há muito tempo. Agora mesmo, venho do Brasil e uma das discussões que tive com os dirigentes do Partido dos Trabalhadores (PT) foi como renovar o partido com a participação dos jovens. Também tive um encontro de hip hop com os jovens das periferias, que me acolheram e com quem trabalhei e escrevi coisas que depois eles transformarão em músicas. A revolta e a raiva da juventude se expressa na cultura hip hop dos subúrbios das cidades e o PT não sabe quem são eles, não conhecem o que é hip hop, não sabem o que é a cultura urbana de nossos tempos, então existe uma distância entre os partidos políticos, sobretudo de esquerda, com os jovens.
O segundo elemento, que me parece muito importante, é que nós, na política de esquerda e na teoria crítica, sempre nos preocupamos com a sociedade civil organizada, nos centramos muito na relação partidos-movimentos, porque a esquerda eurocêntrica nasce como um movimento que logo se transforma em partido. Depois, os partidos se desligaram, assumiram que tinham o monopólio da representação dos interesses de classe ou de grupos sociais e não atenderam os interesses dos movimentos, no entanto, tudo mudou nos últimos trinta anos, sobretudo quando os novos movimentos sociais que defendem os direitos humanos e cidadãs, das mulheres, dos indígenas, dos camponeses, o direito à moradia, etc., começaram a ter uma presença muito forte frente aos velhos, como o movimento trabalhista e os sindicatos. Além disso, os movimentos acabaram competindo com os partidos e é esse o caminho percorrido até agora. O Fórum Social Mundial, de alguma maneira, é um sintoma de que os partidos já não tinham o monopólio da representação e, ao contrário disso, dava-se uma grande prioridade aos movimentos sociais, assim passamos a última década.
O FRACASSO DA SOCIALDEMOCRACIA
E por conta disso a irrupção tão forte do "Ocupa" e dos "Indignados"...
Os movimentos dos "Indignados" e do "Ocupa" representam algo novo, no sentido de que nós, na teoria crítica e na política de esquerda, esquecemos por muito tempo que a grande maioria das pessoas não são militantes de nenhum partido e nem se mobilizam em movimentos sociais, consideramos que estas pessoas não são atores políticos porque não se organizam para isso. Estes jovens mostraram que existem momentos de definição e então surgem e se mobilizam por coisas e causas que merecem respeito, saindo à rua, arriscando o emprego, amigos e comodidades. Na esquerda não havíamos conhecido como é esta dinâmica e por isso estamos desarmados. A esquerda está totalmente desarmada porque estes movimentos, em sua grande maioria, estão contra a política institucional e rejeitam os partidos sem haver distinção entre os da esquerda e os da direita. E isto acima de tudo é muito perigoso para a esquerda, porque quando não se faz a distinção, a direita que é quem domina nossas sociedades, a política, a economia, os meios de comunicação, etc., sai favorecida.
Realmente, esta crítica em não reconhecer a distinção vem de muitos erros institucionais da esquerda nas últimas duas décadas, especificamente da socialdemocracia que na Europa e em outros países adotou o que na Inglaterra se chamou de Terceira Via. Ela foi impulsionada pelo Partido Trabalhista inglês e logo se propagou para outros continentes, não sendo outra coisa que a aceitação do dogma do neoliberalismo. Com isto, a esquerda socialdemocrata considerou que o neoliberalismo tinha uma fase humana mediante a aplicação de algumas políticas sociais, porém mais sustentadas no mercado e na economia do que no Estado.
Um modus vivendi dentro do capitalismo que permitia minimizar os custos sociais, como você escreveu num de seus livros...
Exatamente. O que aconteceu é que a esquerda socialdemocrata, que pensava que havia uma alternativa dentro do marco neoliberal, fracassou. Porque, de fato, como vemos claramente na Europa, não existe alternativa alguma dentro do neoliberalismo e a esquerda que aceitou as receitas e as condições do Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional e das agências que comandam este modelo financeiro, acabou desarmada. É o que temos visto em Portugal, na Espanha, na Grécia, com a queda dos partidos socialistas, e na Inglaterra com o Partido Trabalhista do primeiro ministro Gordon Brown, ou seja, houve um colapso da esquerda socialdemocrata, na Europa, que nos faz refletir. Ao contrário disso, os partidos progressistas que estão governando alguns países latino-americanos como Brasil, Argentina, Bolívia, Equador, Uruguai e Venezuela não aceitaram as receitas neoliberais e estão fazendo o que poderíamos denominar como capitalismo de Estado, ou seja, um controle muito maior dos recursos econômicos por parte do Estado.
O ENFOQUE ECONÔMICO DOS GOVERNOS DA AMÉRICA LATINA
Você a definiu como uma socialdemocracia de um novo tipo...
Sim. Porque eles pensavam que podiam seguir com o estilo da socialdemocracia europeia, que foi um processo de compatibilização da democracia com o capitalismo por meio das grandes redistribuições de riquezas universais, o que se denominou direitos econômicos e sociais, ou Estado de bem-estar, que se desenvolveu mais na Europa do que em outro continente. Os países latino-americanos sabiam que provavelmente não seria possível impulsionar esses tipos de direitos sociais e econômicos universais e por isso foram para outros tipos de políticas sociais. Elas se concretizaram na política de bônus, não muito distantes do que propunha o Banco Mundial, mas dirigidas e enfocadas nos setores vulneráveis da população e que são distribuídas, nos diversos países, com diferentes nomes. No Brasil: bolsa família; na Bolívia: Juancito Pinto; na Argentina: atribuição universal por filho, etc.
São políticas seletivas que não se apresentam como direito social. Podem ser eliminadas se não houver condições, mas, sobretudo não mudam o modelo econômico, não fazem uma regulação do capitalismo e não permitem, por exemplo, que as pessoas em situação de vulnerabilidade saiam por si mesmas da pobreza. Exceto o Brasil, elas não contam com uma política para desenvolver formas de economia solidária, ou cooperativa, que possam organizar as pessoas para que tenham capacidade de gerar renda, criar microempresas e deixar de necessitar dos bônus. Então, este é o modelo de socialdemocracia que até agora deu resultado porque coincidiu com um período de valorização das matérias-primas, desse continente, devido ao grande avanço da China, que permitiu que países que tinham déficits comerciais agora tenham superávit, como são os casos de Brasil e Argentina.
Ao colocar em andamento políticas neoliberais a socialdemocracia europeia traiu sua identidade ideológica e, como disse o sociólogo argentino Atilio Borón, é melhor o original do que a cópia, por isso é possível que voltem os governos de direita no velho continente, que sabem executar de maneira mais drástica e sem nenhum pudor o receituário do livre mercado, você não acha?
Sim, sim. Essa é nossa leitura há algum tempo. Nós criticamos este desvio da socialdemocracia há mais de vinte anos, quando tudo isso começou.
E a Terceira Via formulada pelo sociólogo inglês Anthony Giddens é uma concepção de direita?
Sim, claro. A Terceira Via foi iniciada na Austrália e Giddens, como assessor de Tony Blair, a sistematizou para desenvolvê-la na Inglaterra, embora tenha sido aplicada em outros países por partidos trabalhistas e socialdemocratas. Defende porque é necessário aceitar todos os critérios de competência que o mercado determina para as agências públicas. Concebe, por exemplo, um mercado interno para os serviços de saúde e educação, fomentando a competência sob o pretexto de reduzir os custos desses serviços, abrindo espaço para que o setor público não se distinga do setor privado. Seu objetivo é o rendimento mediante o sistema contributivo das pessoas, por isso inventaram taxas moderadoras e os planos que os cidadãos devem fazer para ter acesso a uma cirurgia ou consulta médica. Dessa maneira, legitimou a entrada do capital privado nos serviços públicos, sobretudo na saúde, na seguridade social, na educação e no sistema de pensões. Em minha opinião, isto foi o que destruiu toda a socialdemocracia na Europa e é por isso que eu considero que ela necessita de uma refundação. Vamos ver o que acontecerá com o candidato presidencial socialista François Hollande, na França. Pode ser que as pessoas que estão descontentes com as políticas de austeridade de Sarkozy deem a Hollande a vitória, entretanto, ele não possui nenhum programa alternativo que avance além das condições dadas pelo Fundo Monetário Internacional e pela ortodoxia dos capitais financeiros não regulados.
O NEOLIBERALISMO QUE PRODUZIU A CRISE ESTÁ TENTANDO "RESOLVÊ-LA"
Embora seja evidente que o sistema capitalista esteja numa grave crise, entretanto, o retorno de governos de direita nos países europeus e a ortodoxia econômica aplicada nos Estados Unidos, e em outros países da América Latina, demonstram que há um robustecimento do neoliberalismo que segue favorecendo o capital financeiro e as transnacionais. Você não vê assim?
Eu penso que a crise do capitalismo é de outro tipo. Em curto prazo, não há nenhum sinal de crise, ao contrário, o surpreendente é que poderíamos dizer que o neoliberalismo que produziu a crise, entre aspas, está tentando "resolvê-la". São os mesmos banqueiros culpados por essa crise econômica os que buscam resolvê-la.
Analisemos o caso do português Antonio Borges, diretor do Fundo Monetário Internacional para a Europa e vice-presidente da Goldman Sachs, foi ele que organizou a armadilha de investimento bancário que se estendeu para a Grécia. Este mesmo senhor agora está ditando as receitas do Fundo à Europa. Imagine a promiscuidade entre o capital financeiro e a democracia europeia que, em minha opinião, está em suspenso porque o primeiro ministro grego Lucas Papademos; Mário Monti na Itália, Mário Draghi, presidente do Banco Central Europeu, semelhante ao próprio Borges, vem da Goldman Sachs. Eles não somente representam o capital financeiro, como também são da mesma empresa, o que é trágico. Penso que a socialdemocracia contribuiu por sua omissão para um colapso da União Europeia, que eu vejo muito próximo, se não houver realmente um ato de desobediência que precisa ser muito forte para conquistar seu relançamento.
Isso caminha para o que você chama "democradura" na Europa?
Sim, é isso o que temos. Constituições muito progressistas, mas práticas muito reacionárias e oligárquicas. Constituições, como a portuguesa e a espanhola, garantem todos os direitos, porém todos os dias esses direitos são excluídos, suspendidos e as autoridades não interferem, ou seja, existe uma suspensão da democracia que pode ser chamada de "democradura" ou "ditabranda". Estes processos não apresentam futuro algum para a democracia europeia e os partidos políticos devem analisar muito bem o que está acontecendo para não caírem nos mesmos erros.
O neoliberalismo está fazendo com que a legalidade caminhe lado a lado com a ilegalidade. Essa crise do capitalismo tem aberto brechas para o que você fez referência em sua conferência, na Universidade dos Andes de Bogotá, a uma confusão das categoriais de ilegalidade, legalidade e o sem lei, em boa medida pelo fenômeno da acumulação por expropriação. Como explicar esta situação gerada pela voracidade capitalista?
A questão é muito complexa porque a democracia no século XX iludiu o imaginário popular. Como sabemos, no início a democracia liberal não era muito democrática porque em sua origem somente os proprietários podiam votar, a grande maioria da população não sabia o que era a democracia. Ela conquistou credibilidade e alcançou o imaginário popular, como se verifica, atualmente, os "Indignados" que pedem democracia verdadeira e real, em boa medida devido à institucionalização dos conflitos sociais. Aceitou-se que haja divergências na sociedade entre o capital e o trabalho, por exemplo, e que as mesmas devem ser solucionadas de forma pacífica, cuja solução se traduz na lei, por isso acreditou-se na legalidade, pois antes as classes populares só conheciam a legalidade repressiva, não conheciam nenhum direito. Acreditou-se, portanto, num direito facilitador, protetor dos direitos sociais, econômicos, do auxílio desemprego, e começou-se a notar que a legalidade era algo mais amplo e favorável às classes populares. Isto tem sido um grande engano da democracia representativa e liberal porque nas constituições, tanto da Europa e da América Latina, consagra-se uma série de lutas sociais como direitos, por exemplo, os direitos indígenas que antes eram desconhecidos inclusive pela mesma esquerda que os consideravam invisíveis, o qual mudou nos últimos vinte anos precisamente devido ao neoliberalismo, à repressão aos movimentos sociais e a criminalização dos protestos.
O que aconteceu é que as transnacionais aprenderam a lição segundo a qual é possível pressionar os governos, influenciar congressos legislativos para produzir leis a seu favor, e por isso elas mesmas produziram uma legislação que é tão legal como a outra: a que protege as classes populares, entretanto, agora é uma legalidade que permite com que façam coisas que antes não podiam fazer. E, por isso, pode-se dizer que o fazem legalmente, não é totalmente legal porque se for observado muitas dessas leis que foram criadas para concessões da mineração e dos recursos naturais, e tudo o que se refere ao extrativismo, existe uma série de condições que eles esquecem depois como, por exemplo, a proteção ambiental, ou as violações massivas às consultas indígenas dispostas na Convenção 169 da OIT. A legalidade caminha lado a lado com a ilegalidade, isto é um grande engano e vamos vê-lo, logo mais, na Rio +20, em junho de 2011, com toda esta discussão sobre o capitalismo verde, a economia verde, de desenvolvimento sustentável, que é o grande conceito dos últimos trinta anos. Tudo o que vamos observar neste momento, no Rio, não é mais que o resultado de um sequestro do direito pelas transnacionais e por isso falam do capitalismo verde. Para mim, o capitalismo só é verde nas cédulas do dólar, não é verde em nenhum outro sentido.
Dessa maneira, a legalidade é pouco apropriada, mas também porque aumenta a desigualdade social, inventam ameaças de luta social em que a seguridade em termos de seguridade militar e policial tem uma força tão grande que se criam formas de estados de emergência não declarados em muitos países. Não é o caso da Colômbia porque este país teve um passado de estados de sítios ou estados de exceção muito fortes. Quando estava aqui, realizando meus estudos, os estados de exceção eram normais, por isso que a Colômbia não teve ditaduras como outros países da América Latina. Isso nós analisávamos em seguida, mas atualmente existem formas que vão além da legalidade, por exemplo, quando os Estados Unidos matam os cidadãos norte-americanos no Yemen por meio dos drones, isto é legalidade, ou ilegalidade, isto já não tem normas. Porque a legalidade exige uma norma, digamos assim, e isto é algo completamente novo.
ESTRANGEIRIZAÇÃO DE TERRAS, NOVO COLONIALISMO
Como o caso do centro de concentração de Guantánamo?
Guantánamo é o mesmo. É uma ausência total de critérios de legalidade, é mais que ilegal, é sem lei. Para entender isso, é preciso voltar aos séculos XVI e XVII, quando neste continente americano produziu-se o extermínio dos indígenas, o que não era propriamente ilegal, era sim sem lei. Como existia a ideia de que os indígenas não eram humanos, então os conquistadores não aplicavam os critérios da legalidade ou da ilegalidade, eram coisas, escravos.
Hoje, o mundo possui características pelas quais já não se pode falar em intervenção política e social porque às vezes são tão cruéis e agressivas contra certas populações, que sendo consideradas inferiores não se aplicam a elas os critérios de legalidade e por isso se apresenta a arbitrariedade. Podem-se notar casos, por exemplo, na África, neste momento em que está acontecendo com muita ênfase a acumulação pela expropriação, bem como na Índia e na América Latina com a mineração e o extrativismo. No caso africano, apresenta-se por meio do monopólio a forte compra de terras por países como Brasil, China, Coréia do Sul, que estão buscando possuir reservas de terra fora de seus respectivos Estados. Este é um novo colonialismo que não temos pensado. A concessão é legal, porém o que acontece com os camponeses deslocados de suas terras e que de um dia para o outro são convertidos em ocupantes ou invasores? Isto é legalidade? É uma acumulação primitiva violenta que atua de maneira pela qual não existe, politicamente, nenhuma forma de resgate. Isto não é ilegalidade, é mais grave do que isso, é sem lei. Isso ocorre dentro de Estados de direito e de democracias; outro grande desafio para as esquerdas, sobretudo de raiz socialdemocrata, que crê na institucionalidade.
Dentro desse obscuro panorama da crise civilizatória, originada pelo capitalismo, você que se confessa otimista trágico formulou uma teoria jurídica de emancipação social, assim como um novo conceito de cidadania e de direitos humanos que paulatinamente não obtém somente o apoio popular como também segue abrindo passagem. Esse não é um motivo para ser moderadamente otimista?
Sim. O pessimismo é sempre conservador, porque eu posso ser pessimista se tenho meu salário, tenho minha casa, minha moradia, eu posso ser niilista, até cínico, porque minha vida cotidiana está garantida. No entanto, o que acontece com as pessoas que têm comida para sua família hoje, mas não sabe se terá amanhã; o que acontece com as pessoas que estão vivas hoje, mas podem ser vítimas de uma violência em que não estão diretamente envolvidas; a maior parte da população do mundo encontra-se em condição em que sua sobrevivência não está minimamente garantida; estas pessoas não podem ser pessimistas. Estas pessoas têm que sair à rua e lutar, encontrar formas de garantir sua sobrevivência e de sua família, não podem ficar paralisadas, são ativistas. O problema é que não são ativistas políticos em nosso sentido, são ativistas da vida. O que necessitamos é transformar esse ativismo da vida em ativismo político, por isso trabalho muito com os movimentos sociais e com as pessoas que estão nessas situações difíceis.
Graças à minha atividade acadêmica e à minha trajetória eu as conheço bem, por compartilhar muitas lutas com elas.
Por essa razão, eu posso dizer que me anima o fato de que estes setores sociais não podem ser passivos, eles têm que ter esperança. Temos que construir cotidianamente a possibilidade de uma nova sociedade, é isso que me dá a ideia do otimismo trágico; ou seja, a ideia de que existe uma alternativa, mas também muitas dificuldades. A tragédia é essa, que há muitas dificuldades que não podemos minimizar, porém temos que saber que nem tudo está perdido, como dizia a grande cantora argentina Mercedes Sosa. Quando pensamos que estamos no fim da política, que não existe ativismo e que o neoliberalismo dominou tudo, surgem os "Indignados", os "Ocupa", a Primavera Árabe que derruba os ditadores, então na sociedade sempre existem as emergências, o que chamo de sociologia das emergências.
O novo projeto de pesquisa que estou iniciando busca analisar as emergências para torná-las conhecidas, porque o problema é que muitas maravilhosas lutas não são conhecidas, de pessoas que resolveram o problema da água, da propriedade, da cidadania, na comunidade da Índia, da África do Sul e de outros países. No mundo as pessoas seguem com esperança, buscando soluções, porque não possuem alternativas, vivem uma situação demasiadamente cruel e vergonhosa, por isso não podem cruzar os braços. Um intelectual militante como eu me considero, não um teórico de vanguarda porque não sou e nem quero ser, mas sim de retaguarda, no sentido de apoiar estes movimentos, tem que teorizar a esperança em condições difíceis, é claro, gerando um respeito pelas pessoas.
Nós temos uma cultura nos partidos de esquerda segundo a qual a massa que não está organizada é massa de manobra, portanto pensamos por ela e por isso vamos com frases e slogans para comandá-la. Não, isso não é assim, hoje as pessoas que se mobilizam é porque possuem suas razões, estão mais preparadas. Pode-se observar isto em países muito controversos como a Venezuela, em que as pessoas adquiriram uma cultura política muito interessante, que podem estar com Chávez ou contra Chávez, mas estão muito mais conscientes das condições, do que deveria ser e o que é, e muito mais exigentes, não podem ser manipuladas por ideias abstratas que não lhes dizem nada sobre suas vidas cotidianas. Esse é o respeito pelas pessoas que a esquerda deve ter no futuro imediato.

Na imagem: diretor do Observatório Sociopolítico Latino-americano - Cronicon, Fernando Arellano Ortiz (a esquerda), durante a entrevista com o cientista social português, Boaventura de Sousa Santos (a direita), em Bogotá no mês de fevereiro de 2012. Foto de Agostinho Fagua.

Tradução: Cepat/IHU.

Palestinos vão às ruas em apoio a militante em greve de fome



Milhares de palestinos marcharam em Gaza e na Cisjordânia na sexta-feira em apoio ao líder da Jihad Islâmica Khader Adnan, que entrou no 62º dia de greve de fome em protesto contra sua detenção por Israel.


Manifestantes palestinos dão apoio a Khader Adnan, um membro da Jihad Islâmica
que está em greve de fome há dois meses / Foto: AFP
"Somos todos Khader Adnan", gritava a multidão reunida na Faixa de Gaza, com ativistas dos principais partidos políticos unindo forças em uma rara exibição de unidade palestina.

Adnan, de 33 anos, vem se recusando a comer desde meados de dezembro, depois de sua prisão na Cisjordânia ocupada. Ele é mantido sob a chamada "detenção administrativa", significando que Israel pode detê-lo indefinidamente sem direito a julgamento ou a uma acusação.

O grupo Jihad Islâmica, que defende a destruição do Estado de Israel, disse que vai aumentar a violência se Adnan morrer, seguindo relatos de que a saúde dele está deteriorando.

"Nós continuaremos nossa Jihad e nossa resistência. Velejaremos no mar de sangue e martírio até desembarcarmos na costa do orgulho e da dignidade", disse o líder da Jihad Islâmica, Nafez Azzam, durante um sermão na sexta-feira na mesquita a-Omari, a mais antiga de Gaza.

O grupo Médicos para os Direitos Humanos em Israel, que vem monitorando o estado de Adnan em um hospital israelense, disse na sexta-feira que ele corria "perigo imediato de morte", acrescentando que ele havia sofrido "uma atrofia muscular significante".

O Exército israelense disse em comunicado que Adnan foi preso "por atividades que ameaçam a segurança regional". Não entrou em detalhes.

Adnan é dono de uma padaria e de uma venda de frutas e legumes em seu vilarejo na Cisjordânia, Arabeh. Ele servia como porta-voz da Jihad Islâmica, que o descreve como um líder local.

Milhares nas ruas

Pelo menos 5 mil pessoas saíram às ruas de Gaza portando uma mistura de bandeiras negras da Jihad, bandeiras verdes do grupo islâmico Hamas e as bandeiras amarelas do movimento secular Fatah do presidente palestino Mahmoud Abbas.

Testemunhas disseram que milhares também protestaram na cidade de Jenin, no norte da Cisjordânia.

Presos palestinos fazem regularmente greves de fome para tentar obter melhores condições ou para denunciar a ocupação israelense dos Territórios Palestinos.

No entanto, tais protestos costumam acabar rapidamente e as autoridades disseram que nenhum persistiu tanto quanto Adnan, que é casado e tem dois filhos, e cuja mulher está esperando um terceiro bebê.

O Hamas, que governa Gaza, disse que estava pressionando a Liga Árabe e o Egito para que insistissem pela libertação de Adnan.

"O povo palestino, com todos os seus componentes e facções, nunca abandonará os presos heróis, principalmente estes que lideram essa batalha de greve de fome", disse a maior autoridade do Hamas no território Mediterrâneo, Ismail Haniyeh.

O PHR disse que Adnan poderia morrer mesmo se rompesse seu jejum. "Há um risco à sua saúde mesmo se ele começar a comer agora porque seu sistema se acostumou a não ter nenhum tipo de alimento", disse um porta-voz do grupo.

Fonte: Reuters

Uma rede social onde só entra cientista

Felipe Machado no OBSERVATÓRIODAIMPRENSA


Todos os dias, entre quatro e cinco mensagens chegam à caixa postal de Fabiana Soares, vindos de uma rede social na qual ela entrou recentemente. Pode parecer um movimento pequeno para quem se acostumou ao Facebook ou ao Twitter, mas as mensagens não são as fotos de amigos em férias nem as “cutucadas” que costumam movimentar essas redes. Doutoranda em ciências farmacêuticas e pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP), Fabiana é procurada por pessoas que querem conhecer melhor seu trabalho sobre modificações em óleos e gorduras. Os interessados são pesquisadores que, como a brasileira, fazem parte da ResearchGate, uma rede social na qual cientistas de todo o mundo podem trocar informações sobre seus estudos, em várias áreas de conhecimento.
Fundada em 2008, a ResearchGate permite a seus membros criar um perfil com informações acadêmicas, profissionais e de pesquisa. É possível também seguir outras pessoas, publicar trabalhos, participar de grupos de discussão e obter informações sobre conferências e ofertas de emprego em instituições de pesquisa. A ResearchGate reúne atualmente 1,4 milhão de participantes, provenientes de 192 países, segundo dados da empresa. A meta é conectar 8 milhões de pessoas, o equivalente a cerca de 80% da comunidade científica mundial, até o fim de 2013.
“Por volta de 90% dos cientistas querem compartilhar informações”, afirma ao Valor, por telefone, Ijad Madisch, fundador e executivo-chefe da companhia. Dono de um PhD em virologia, Madisch teve a ideia de criar a rede quando precisou de informações para uma de suas pesquisas. O site funciona graças a aportes financeiros feitos por empresas de investimento. Entre eles estão os fundos Benchmark Capital, que aplicou dinheiro no Twitter, e a Accel Partners, que apostou no Facebook, entre outros sites. Ainda não há um modelo de negócios definido. A prioridade, diz Madisch, é aumentar o número de usuários.
“Uma Amazon.com para a ciência”
Com mais de 43 mil pesquisadores inscritos na rede, cerca de 3% do total, o Brasil é um dos países cuja comunidade científica em expansão atrai a atenção da ResearchGate.
Para Helena Nader, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), a troca de informações durante o trabalho de pesquisa é uma exigência da atividade. Não existe nenhum “laboratório tão amplo que seja capaz de reunir todas as metodologias de que um cientista precisa”, diz a pós-doutora em biologia. Contatada na semana retrasada por cientistas de Harvard e da Universidade de Boston interessados em conversar sobre uma publicação, Helena também consulta trabalhos de colegas para obter abordagens diferentes para seus temas de estudo. Os cientistas dos Estados Unidos, diz ela, interagem mais que os brasileiros.
O intercâmbio internacional é uma questão cada vez mais relevante nos meios acadêmicos. Jerson Silva, diretor da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e diretor científico da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), também considera que a troca de informações poderia ser maior no país. Ele cita o empenho crescente da China em fazer com que seus alunos sejam treinados no exterior.
Na ResearchGate, com sede em Berlim, a expectativa é transformar a rede em um negócio rentável, mas ainda não há previsão de quando a empresa se tornará lucrativa. Entre as ideias para remunerar o site está fornecer sistemas de comunicação para grandes instituições de pesquisa, como universidades. Os pontos de atração seriam ferramentas para aumentar a produtividade, como a possibilidade de gerenciar o uso de laboratórios virtualmente. Outra possibilidade em estudo é criar um sistema de publicidade de itens usados por pesquisadores – como livros, vírus e culturas de bactérias – o que Madisch compara a “uma Amazon.com para a ciência”. As empresas pagariam para ter seus produtos anunciados, que seriam avaliados pela comunidade da rede social.
Mais de 100 seguidores virtuais
Madisch reconhece que o ResearchGate ainda precisa evoluir em termos de funcionalidades. Várias mudanças estão previstas para março. Entre elas, o lançamento de um sistema para conhecer a reputação dos pesquisadores. Segundo o executivo, um cientista demora, em média, sete anos para fazer suas primeiras publicações. Durante esse período, ele precisa mostrar seu trabalho de alguma forma.
No Brasil, a plataforma virtual de currículos Lattes, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), é o balcão que os pesquisadores procuram para conseguir informações sobre seus pares. O sistema da agência de fomento do Ministério da Ciência e Tecnologia permite criar perfis com dados sobre formação e trabalhos dos cientistas. Helena Nader, da SBPC, se diz “dependente, no bom sentido” do recurso. Pós-doutor em bioquímica, Silva, da ABC, também tem suas atividades registradas no sistema. Fabiana, outra pesquisadora com currículo na plataforma, diz já ter usado o recurso para saber mais sobre as linhas de pesquisa de professores.
Os três pesquisadores são favoráveis às facilidades dos meios digitais, mas também fazem uso de mecanismos tradicionais para manter contato com outros cientistas, o que inclui a velha prática da conversa pessoal nos intervalos dos congressos científicos. Foi justamente após retornar de um congresso nos Estados Unidos que Fabiana recebeu um e-mail com o convite para participar da ResearchGate. A doutoranda gostou da ideia e convidou seus colegas da USP a aderir à novidade. Hoje, ela já tem mais de 100 seguidores virtuais no site.

Música Country: os acordes do novo conservadorismo norte-americano


A música country, nascida nos estados do sul, espalha seu sotaque fora de moda, evocando um cowboy mal-ajambrado, e conquista o universo cultural de todos os Estados Unidos. Não é por outra razão que dois dos três álbuns mais vendidos de 2010 foram de artistas country
por Sylvie Laurent no DIPLOMATIQUE BRASIL
As articulações republicanas para definir um candidato às eleições de 2012 não conseguiram ocultar o fato de que o presidente atual também está engajado em uma campanha de sedução, destinada sobretudo a convencer aqueles que não votaram nele em 2008.
Com essa motivação, no dia 21 de novembro de 2011, o casal Obama organizou um festival de música country na Casa Branca, rebatizada para a ocasião de “Casa do Povo”, com a presença de estrelas como James Taylor, Lyle Lovett e Dierks Bentley. Nesse evento, o presidente revelou ter aprendido, ao longo dos encontros com seus concidadãos, a também apreciar essa música “que lhe é tão cara”.
Não faltou elegância a essa iniciativa. Ocorre que essa forma privilegiada da cultura popular da América branca, habitualmente desprezada pela fina flor de Washington, é identificada como um espaço simbólico da direita: ódio ao Estado, desconfiança em relação às minorias e denúncia das elites urbanas. É sem dúvida uma iniciativa em que o presidente Barack Obama se aventura em terras mais dominadas pelo movimento Tea Party do que pelos democratas – sobretudo negros e diplomados de Harvard.
Esse estilo de música é identificado com a afirmação de velhos ressentimentos de homens brancos apegados às suas raízes, reencontrando um americanismo que acreditavam desviado e corrompido, em um patriotismo exacerbado que tem uma longa história. Obama compreendeu perfeitamente que esse estilo musical não seria capaz de ser privilégio do partido republicano; ao contrário, ele se identifica mais com as caricaturas de “rednecks”.1 A música country, nascida nos estados do sul, espalha seu sotaque fora de moda, evocando um cowboy mal-ajambrado, e conquista o universo cultural de todos os Estados Unidos.
Não é por outra razão que dois dos três álbuns mais vendidos de 2010 foram de artistas country: atrás do cantor de rap Eminem, encontra-se Need you now, do grupo Lady Antebellum, seguido por Taylor Swift e seu álbum Speak now. Os dois totalizaram cerca de 6 milhões de álbuns vendidos.
Desde o início de sua carreira, Taylor Swift já teria vendido mais de 20 milhões de discos. No cinema, o gênero ganhou igualmente títulos de nobreza depois que o filme biográfico do cantor Johnny Cash, Walk the line [no Brasil, Johnny e June], ganhou um Oscar em 2005. Quatro anos depois, o filme Crazy heart [Coração louco], que narra as errâncias de um ex-cantor country alcoólatra e solitário, foi adulado pela crítica, enquanto Country strong [Onde o amor está], de 2010, atingiu um vasto público. É ainda mais significativo que, em abril de 2011, uma das maiores estrelas de rhythm and blues (R&B) do país, a cantora negra Rihanna, tenha sido convidada para o Country Music Awards – considerado até então o máximo do mau gosto –, testemunhando o atual “momento” country dos Estados Unidos.
A música country tem suas raízes em um mundo rural norte-americano isolado onde, no início do século XX, alguns produtores experientes descobriram as old time songs [canções de antigamente], que supostamente encarnavam a verdadeira alma do país. Se as primeiras gravações datam do início dos anos 1920, alguns historiadores e etnomusicólogos remontam sua existência à Guerra de Independência.2 As baladas e cantos folclóricos com instrumentação típica (guitarra, banjo, voz) e palavras melancólicas seduziram sobretudo o coração dos Estados Unidos rural, em particular depois da Grande Depressão.
Se os negros oprimidos têm o blues, as comunidades rurais das montanhas ou das planícies têm a música country, às vezes chamada hillbilly blues: o “blues dos caipiras”, que expressa o ideal pastoral dos pioneiros, a visão mítica de um sul branco, popular, preservado das corrupções do mundo e que apela a um nacionalismo jacksoniano ultrapassado.3
Após a dolorosa derrota de 1865, a nostalgia impregnada de amargura de um sul vencido constituiu o pano de fundo do que se tornaria a música country: a trilha sonora de um patriotismo norte-americano contrariado. Ela foi frequentemente brandida como uma arma e um escudo diante da ameaça de diluição da identidade nacional, conceito hipócrita na medida em que existe, na realidade, uma variedade infinita no seio do próprio gênero musical.
 
A modernidade texana
Não sem ironia, o Texa s, ao produzir cantores com aparência de maus rapazes, introduziu a modernidade na tradição. Mas é a minoria mais conservadora que influencia os espíritos. Em 1969, o legendário título “Okie from Muskogee”, do cantor Merle Haggard,representou uma declaração de ódio a esses hippies de cabelos compridos que, nos campiou nas cidades do norte, levavam, segundo ele, o país à ruína. Haggard, ex-detento e porta-voz dos trabalhadores explorados, poderia ter se tornado um novo Woody Guthrie, cantor folk e bardo socialista da consciência proletária, mas foi tragado por uma época em que os valores morais eram a ordem, a nação e a identidade.
Richard Nixon, ao afirmar em 1974 que essa música do povo “tornava os Estados Unidos melhores”, embrulhou o gênero na bandeira estrelada. Desde então, a música country seduz o país inteiro, mas é fora dos Estados Unidos que ela vende mais. Ronald Reagan afirmou em 1983: “trata-se de uma das raras formas de arte puramente norte-americana, de alma patriótica”.
No entanto, entre os cantores que usavam o chapéu Stetson de cowboy, os mais célebres ficaram longe desse lugar-comum: uns contrários à Guerra do Vietnã ou a favor da legalização das drogas, outros ardentes feministas ou críticos do monopólio de Nashville (Tennessee) sobre a produção country. Mas o marketing hábil das produtoras, ao colocar o gênero na moda introduzindo o rock em seu repertório, garantiu que as rádios divulgassem antes de tudo as mensagens de patriotismo dos “verdadeiros” norte-americanos, as dos pequenos hipócritas esquecidos.
 O Texas se tornou a terra de predileção do gênero.4 Bush coroou seu direitismo ao declarar que se tratava de sua música preferida: a retórica da autenticidade e da “solidariedade cultural” se afirmou ainda mais.
Após o 11 de Setembro, os produtores viram na recuperação de símbolos e fetiches do americanismo uma oportunidade para a comercialização de títulos idôneos. Em uníssono com um presidente belicoso, o célebre Toby Keith cantou “Courtesy of the red, white and blue”, prometendo se vingar daqueles que haviam ousado atacar os Estados Unidos.
Em 2003, a estrela de 25 milhões de álbuns vendidos era acompanhada por Willie Nelson ao cantar, em “Beer for my horses”, que os Estados Unidos do povo deviam eles mesmos fazer justiça, como no tempo em que, ao modo texano, enforcavam os representantes das forças do mal. Apesar de algumas reações preocupadas diante dessa nostalgia ambígua, o título permaneceu seis semanas no topo das vendas, tornando-se um dos maiores sucessos de Toby Keith, a ponto de ser adaptado para o cinema em 2008, com o cantor no papel principal.
A confusão entre patriotismo e nacionalismo, entre apologia dos valores perdidos do homem comum e a exaltação ideológica é desconcertante.
Em março de 2003, Nathalie Maine, cantora do grupo The Dixie Chicks, declarou, em um show na Inglaterra, ter “vergonha” de partilhar as origens texanas com o presidente Bush.5 Poucos dias depois, as Dixie Chicks foram objeto de violentos ataques na mídia; todas as estações de rádio boicotaram suas músicas. Certamente, o auditório tradicional havia ficado irritado com uma declaração feita fora do território nacional e julgada ainda mais inconveniente por exacerbar um contexto já elétrico. Mas esse banimento brutal não teve nada de espontâneo. Sabe-se hoje que o toque de rendição foi essencialmente orquestrado pela Clear Channel Radio, uma empresa fundada no Texas e proprietária de 1.250 estações, preocupada com as repercussões políticas de tais discursos.
Outros no mundo da música country criticaram a Guerra do Iraque, incluindo artistas de primeiro plano, como Roseanne Cash, Sheryl Crow, o próprio Merle Haggard e Steve Earle. Este último, fazendo eco às canções de contestação dos anos 1970, cantarolava em 2004, em “Rich man’s war”: “Bobby tinha uma águia e uma bandeira tatuadas no braço/ Vermelho, branco e azul até a raiz dos cabelos quando aterrissou em Kandahar/ Deixou uma linda mulher e uma filhinha/ E também uma pilha de faturas a pagar para ir salvar o mundo/ Fez um ano agora e ele ainda está lá/ Perseguindo fantasmas no ar seco/ Enquanto em casa pegaram seu carro/ Mais um rapaz sem dinheiro enviado para a guerra do homem rico/ Quando aprenderemos?”.
 
Música e política
Na campanha presidencial de 2008, os cantores country que expressaram publicamente seu apoio a um dos candidatos estavam longe de se alinhar do lado republicano. Mas Toby Keith, o cantor de modos violentos diante dos inimigos dos Estados Unidos, que havia defendido Bush contra as Dixie Chicks, chegou até a expressar sua simpatia por Obama. Os próprios cowboys também estavam cansados desse patriotismo que não os protegeu do desencantamento, tantas vezes conjurado nas canções populares.
A Fox News não deixou de convidar os mais conservadores e os mais fanfarrões entre eles. Crazy heart e Country strong são filmes de anti-heróis, de estrelas que buscam uma redenção diante de uma bandeira desgastada. E o Tea Party mobilizou muitos cantores country em seus encontros. Partilham com eles muitos pontos em comum. Assim como os fabricantes de hits de Nashville partem da música tradicional para definir sua estratégia comercial, essas reuniões heteróclitas buscam estabelecer uma identidade para colocar em cena grupos de interesse poderosos. Nesses dois casos, observa-se um discurso sobre uma consciência de classe que, não chegando a ser dita, assume a máscara da identidade cultural. Teabaggers e countrymen celebram o mito norte-americano de uma sociedade sem classes, mas só existem paradoxalmente no relato vitimizado de uma classe desprezada.
Em um artigo de 2010, o universitário Angelo Codevilla analisou o abismo assustador das desigualdades sociais nos Estados Unidos. Ele opõe uma overclass (superclasse), que teria ultrapassado os enraizamentos partidários, a uma classe popular, que ele chama de country class, desconsiderada pela elite e abandonada pelos grandes partidos políticos. Provavelmente é essa country class que se consola com os sotaques da música country.
Alguns artistas revelam a natureza socioeconômica da exclusão, como o cantor John Rich, fervoroso apoiador do candidato republicano às eleições presidenciais de 2008, John McCain, que hoje denuncia os responsáveis por Wall Street. Os maiores sucessos vêm de artistas livres dos sinais de ostentação da “tradição”. É o caso do grupo Lady Antebellum, que amplia sua audiência para bem além do público habitual, apesar de seu patrimônio evocado, por não fazer a menor alusão política ou identificação regional.
Taylor Swift, cantora de Nashville, foi indicada a artista do ano no American Music Awards de 2011. Ela só canta histórias sentimentais, trata do amor e de belas paisagens. Quando, por ocasião de uma cerimônia de premiação, em 2009, ela foi criticada no palco pelo cantor de rap Kanye West, que contestou a legitimidade de seu troféu, o próprio Obama se sentiu obrigado a condenar o gesto. Vulnerável e sem arrogância, a cantora de música country é agora o rosto inocente e consensual de um país que dizem profundo, que abriga milhões de cidadãos arrastados pela crise econômica e pela arrogância dos poderosos, e que encontram, ao escutar uma música popular e populista com temas nostálgicos, uma razão para celebrar seu americanismo.
Sylvie Laurent
Autora de Poor white trash: la pauvreté odieuse du blanc américain [Poor White Trash: a pobreza odiosa do branco norte-americano], Presses l’Université Paris-Sorbonne, Paris, 2011.


Ilustração: Daniel Kondo
1 Termo pejorativo que designa os brancos que moram no campo, em particular nos estados do sul, representados como pessoas rudes, alcoólatras e atrasadas.
2 James Edward Akenson, Country music goes to war [A música vai à guerra], University Press of Kentucky, Lexington, 2005.
3 Forma de nacionalismo intransigente, derivada do nome de Andrew Jackson, sétimo presidente norte-americano (1829-1837).
4 Aaron A. Fox, Real country: music and language in working-class culture (Country/País real: música e linguagem na cultura da classe trabalhadora], Duke University Press, Durham, 1994.
5 Ler Jessie Emkic, “Une chasse aux sorcières contre les Dixie Chicks” [Caça às bruxas contra as Dixie Chicks], Le Monde diplomatique, mar. 2008.