terça-feira, 26 de junho de 2012

Surpresa no Paraguai: é possível reverter o golpe


Há resistência social no país e isolamento internacional dos golpistas. Aos poucos, desvenda-se trama que levou à quebra da legalidade

Por Antonio Martins no OUTRAS PALAVRAS

Nas primeiras horas de domingo, o presidente eleito pelos paraguaios, Fernando Lugo, abandonou a postura de resignação que mantinha desde sexta-feira, quando deposto, e tomou uma atitude que pode mudar o futuro imediato do país. Lugo dirigiu-se à rua Alberdi, no centro de Assunção, onde centenas de manifestantes haviam ocupado a TV Pública, em protesto contra ameaças de censura. Dirigiu-se a eles e à imprensa internacional sem meias palavras: “Sem dúvidas, foi um golpe. Um golpe parlamentar contra a cidadania e a democracia, e isso precisa ser denunciado aos quatro ventos”.
Precedida de intensa movimentação social e diplomática, a fala desfez a aparência de “normalidade” com que contavam os golpistas e seus apoiadores locais e externos – Estados Unidos e Vaticano, em especial. Está gerando uma reação em cadeia de resistências sociais e diplomáticas cujos lances mais recentes são a exclusão do “presidente” golpista do Mercosul e da Unasul (domingo à tarde) e a formação de um governo paralelo liderado por Lugo (esta manhã, em Assunção). Caso se mantenha, este processo pode reverter o golpe de Estado e colocar em novo patamar o que alguns chamam de “nova independência” sul-americana. Os fatos decisivos estão se produzindo neste início de semana: aos poucos, torna-se possível desvendá-los e romper a cortina de silêncio que os jornais comerciais brasileiros insistem em manter sobre o episódio.
A resistência avança explorando o calcanhar-de-aquiles dos golpistas: “como careciam de causas racionais que justificassem uma medida tão extrema, optaram por praticá-la com máxima pressa, explica, no jornal paraguaio Última Hora o analista político Alfredo Boccia. Ele prossegue: “O libelo acusatório causa vergonha alheia, de tão ridículo: não cuidaram das mínimas formalidades legais e atropelaram o respeito aos prazos de defesa”.
Lugo estava no Brasil, participando da Rio+20, quando a Câmara dos Deputados abriu, na quinta-feira, o “processo” que levaria a sua “cassação”. Washington Uranga, colunista do Página 12 argentino, conta: os opositores aproveitaram-se da ausência para concretizar finalmente uma ameaça que fizeram “em 23 ocasiões anteriores, pelos mais diversos motivos”. E mais: “a maioria destas manobras foi facilitada pelo próprio vice-presidente Federico Franco. (…) Sabendo que contava com os votos próprios [do Partido Liberal] mais os do Partido Colorado, em várias ocasiões o vice foi até a sede do governo para ameaçar Lugo e tentar extorqui-lo com a ameaça de juízo político, apenas para obter benefícios econômicos para si mesmo…”
Vinte e quatro horas depois, o Legislativo, que sempre bloqueou todas as iniciativas apresentadas por Lugo (da reforma agrária à nomeação de embaixadores), decretava seu impeachment por ampla maioria (39 x 4). A flagrante ilegalidade da aventura foi destacada pelo chanceler argentino Héctor Timerman, em entrevista ao Página 12: “Praticaram uma execução sumária. Darem duas horas de defesa a um presidente democraticamente eleito – um tempo menor que o se concede a quem recorre de uma multa por avançar um sinal vermelho”.
Mas quem dava respaldo aos aventureiros? “É muito provável que o pequeno Paraguai se dispusesse a confrontar as regras do Mercosul e da Unasul, entrando em conflito com seus dois vizinhos, se não contasse com o estímulo e proteção do governo norteamericano”, sugere o economista Flávio Lyra, num texto que Outras Palavras publica hoje. Na mesma entrevista ao Página 12, um relato do chanceler argentino confirma esta impressão. Timerman estava em Assunção nas horas que antecederam o golpe. Havia voado para lá com uma delegação de colegas da Unasul, alarmados pela perspectiva de deposição do presidente eleito. Reporta, em detalhes, as insistentes tentativas de diálogo dirigidas pelos diplomatas à oposição paraguaia – e a soberba com que foram rechaçadas. Eis um dos trechos: “Às 11h45 [de sexta-feira], faltavam 15 minutos para o começo do julgamento. Disse-lhes: ‘Senhores, virão épocas muito duras para o Paraguai, porque nós teremos de aplicar a cláusula democrática’. Não pareceu comovê-los em nada”.
No final da tarde de sexta, Lugo estava deposto. Quase sincronicamente, em Washington, o porta-voz do Departamento de Estado para a América Latina, Darla Jordan, emitia nota que se calava diante do ataque à democracia, mas pedia “calma e responsabilidade” aos paraguaios… Ao contrário do que se informou no sábado, porém, a Casa Branca ainda não reconheceu oficialmente o novo “governo” paraguaio. Já o Vaticano e os bispos – que exercem forte influência, num país católico e conservador – foram menos sutis. Na quinta-feira, uma comitiva episcopal tentou, sem sucesso, convencer Lugo a renunciar. No domingo, o núncio apostólico Eliseo Ariotti, representante oficial do Papa no Paraguai, afirmou, a respeito da deposição do presidente: “alegra-me muito que o povo simples e todas as autoridades tenham pensado no bem do país”. Como se o grotesco da declaração fosse pouco, anunciou que celebraria uma missa na catedral “pela paz”. Na cerimônia, ofereceu pessoalmente a comunhão ao golpista (foto).
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A primeira atitude de Lugo, após a deposição, foi conformar-se. Débil no Parlamento desde o início de seu governo, o presidente também viveu, ao longo do mandato, uma série de desencontros com os movimentos sociais. Houve erros de parte a parte, consideram Emir Sader  (em Carta Maior) e Santiago O’Donnel (em Página 12): o presidente não cumpriu a maior parte de seu programa; os movimentos não compreenderam que, sem apoiá-lo, ele não teria força para executar as reformas propostas.
Por paradoxo, talvez o golpe tenha produzido uma aproximação necessária. A partir da noite de sábado, a TV Pública, criada por Lugo em 2011, converteu-se num centro da resistência popular. Centenas de manifestantes acorreram à rua Alberdi, assim que surgiram sinais de que o governo ilegítimo pretendia censurá-la. O Página 12 narra: naquela mesma noite, grupos de jovens construíram duas barricadas nas ruas de acesso. O cineasta Marcelo Martinessi, diretor nomeado pelo presidente eleito, alegrou-se: “as pessoas estão tomando este projeto como seu”. Um microfone foi estendido aos manifestantes: a resistência já tinha um canal para ir ao ar.
Na manhã de domingo, Lugo compareceria ao local, para sua fala emblemática. Horas depois, os ativistas já eram milhares. Foram eles que rapidamente restabeleceram, à tarde, o fornecimento de energia e recolocaram a emissora no ar, depois de um corte executado pela agência nacional de eletricidade.
Os fatos vêm se acelerando desde então. Formou-se  uma Frente pela Defesa da Democracia no Paraguai. Mais tarde, ainda no domingo, Lugo deu novo passo e anunciou a formação de um governo paralelo, composto por seus ministros e com primeira reunião marcada para esta manhã. A edição desta manhã de Pagina 12 estampa uma entrevista  em que confirma “já começamos a resistência pacífica. (…) Já surgem manifestações de cidadãs e cidadãos. (…) O repúdio [ao golpe] crescerá”. O jornal confirma: estão programadas para hoje manifestações diante dos edifícios públicos e interrupção do trânsito em avenidas estradas.
Ao contrário do que ocorreu em tantos precedentes históricos, os governos da América do Sul parecem dispostos a reagir ao golpe. O envio de uma delegação de chanceleres a Assunção pode ser mais que um gesto simbólico. Ainda no sábado, convocou-se uma reunião de emergência do Mercosul, em Córdoba (Argentina), a partir da próxima quinta-feira. No domingo, anunciou-se que Fernando Lugo – e não o governo instituído por golpe – será recebido como representante do Paraguai. Num primeiro sinal de vacilação, Federico Franco, o presidente instituído pelo golpe, anunciou que pediria ao homem que depôs para “atenuar as tensões desencadeadas na América Latina”. Foi, evidentemente, rechaçado por Lugo.
Desde sexta-feira, os países da América do Sul estão retirando seus embaixadores de Assunção, em protesto contra o golpe de Estado. Há dois anos, na resistência ao golpe de Estado praticado em Honduras, o Brasil jogou papel destacado. Desta vez, a presidente da Argentina, Cristina Kirchner, parece ter assumido este papel. Foi ela quem tomou a iniciativa, ainda na sexta-feira, de retirar seu embaixador de Assunção, “até o restabelecimento da ordem democrática”. Nos dias seguintes, o gesto seria seguido por Bolívia, Brasil, Equador, Uruguai e Venezuela. Nas últimas horas, aderiram ao movimento Colômbia e México, o que parece indicar uma tendência isolamento dos Estados Unidos. A própria Organização dos Estados Americanos, em outras épocas dominada por Washington está agora questionando a legitimidade da deposição de Lugo.

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Ninguém é capaz de dizer, a esta altura, qual será o desfecho dos acontecimentos. Mas é evidente que uma sequência tão impressionante de fatos novos, cheia de surpresas, num país vizinho ao Brasil, seria um tema jornalístico de relevância máxima. A mídia brasileira, porém, trata-o de forma modorrenta e burocrática. Na maior parte das publicações, o Paraguai esteve nas manchetes apenas quando Lugo foi afastado. Ao contrário da imprensa argentina, nenhuma publicação ousou usar a palavra golpe.
No momento em que este texto é concluído, a manchete  da Folha de S.Paulo, em sua edição online, destaca as declarações do “chanceler” (do governo golpista paraguaio, que se queixa de ter sido afastado “sem defesa” da reunião do Mercosul… Por sugestiva coincidência,O Globo e Estado de S.Paulo, embora menos discretos, ocultam a série de reviravoltas em Assunção para destacar o mesmo personagem… Já o UOL, também do grupo Folha, enviou por algum motivo o repórter Guilherme Balza à capital paraguaia – mas tem relegado a segundo plano as ótimas matérias produzidas por ele (como este vídeo)…
O rápido surgimento de um movimento de resistência no Paraguai – e em especial o fato emblemático de ele ter por centro a TV Pública – revelam: talvez, também no Paraguai, a sociedade já seja capaz de superar as velhas formas de controle da informação e seus laços com os antigos donos do poder…

segunda-feira, 25 de junho de 2012

O papel da Monsanto na morte dos camponeses e no golpe contra Lugo



 Por Idilio Méndez Grimaldi
Na Carta Maior via PORTAL DO MST



Quem está por trás desta trama tão sinistra? Os impulsionadores de uma ideologia que promove o lucro máximo a qualquer preço e quanto mais, melhor, agora e no futuro. No dia 15 de junho de 2012, um grupo de policiais que ia cumprir uma ordem de despejo no departamento de Canindeyú, na fronteira com o Brasil, foi emboscado por franco-atiradores, misturados com camponeses que pediam terras para sobreviver.
A ordem de despejo foi dada por um juiz e uma promotora para proteger um latifundiário. Resultado da ação: 17 mortos, 6 policiais e 11 camponeses, além de dezenas de feridos graves. As consequências: o governo frouxo e tímido de Fernando Lugo caiu com debilidade ascendente e extrema, cada vez mais à direita, a ponto de ser levado a julgamento político por um Congresso dominado pela direita.

Trata-se de um duro revés para a esquerda e para as organizações sociais e campesinas, acusadas pela oligarquia latifundiária de instigar os camponeses. Representa ainda um avanço do agronegócio extrativista nas mãos de multinacionais como a Monsanto, mediante a perseguição dos camponeses e a tomada de suas terras. Finalmente, implica a instalação de um cômodo palco para as oligarquias e os partidos de direita para seu retorno triunfal nas eleições de 2013 ao poder Executivo.

No dia 21 de outubro de 2011, o Ministério da Agricultura e Pecuária, dirigido pelo liberal Enzo Cardozo, liberou ilegalmente a semente de algodão transgênico Bollgard BT, da companhia norteamericana de biotecnologia Monsanto, para seu plantio comercial no Paraguai. Os protestos de organizações camponesas e ambientalistas foram imediatos. O gene deste algodão está misturado com o gene do Bacillus thurigensis, uma bactéria tóxica que mata algumas pragas do algodão, como as larvas do bicudo, um coleóptero que deposita seus ovos no botão da flor do algodão.

O Serviço Nacional de Qualidade e Saúde Vegetal e de Sementes (Senave), instituição do Estado paraguaio dirigida por Miguel Lovera, não inscreveu essa semente nos registros de cultivares pela falta de parecer do Ministério da Saúde e da Secretaria do Ambiente, como exige a legislação.

Campanha midiática

Nos meses posteriores, a Monsanto, por meio da União de Grêmios de Produção (UGP), estreitamente ligada ao grupo Zuccolillo, que publica o jornal ABC Color, lançou uma campanha contra o Senave e seu presidente por não liberar o uso comercial em todo o país da semente de algodão transgênico da Monsanto. A contagem regressiva decisiva parece ter iniciado com uma nova denúncia por parte de uma pseudosindicalista do Senave, chamada Silvia Martínez, que, no dia 7 de junho, acusou Lovera de corrupção e nepotismo na instituição que dirige, nas páginas do ABC Color. Martínez é esposa de Roberto Cáceres, representante técnico de várias empresas agrícolas, entre elas a Agrosan, recentemente adquirida por 120 milhões de dólares pela Syngenta, outra transnacional, todas sócias da UGP.

No dia seguinte, 8 de junho, a UGP publicou no ABC uma nota em seis colunas: “Os 12 argumentos para destituir Lovera”. Estes supostos argumentos foram apresentados ao vice-presidente da República, correligionário do ministro da Agricultura, o liberal Federico Franco, que naquele momento era o presidente interino do Paraguai, em função de uma viagem de Lugo pela Ásia.

No dia 15, por ocasião de uma exposição anual organizada pelo Ministério da Agricultura e Pecuária, o ministro Enzo Cardoso deixou escapar um comentário diante da imprensa que um suposto grupo de investidores da Índia, do setor de agroquímicos, cancelou um projeto de investimento no Paraguai por causa da suposta corrupção no Senave. Ele nunca esclareceu que grupo era esse. Aproximadamente na mesma hora daquele dia, ocorriam os trágicos eventos de Curuguaty.

No marco desta exposição preparada pelo citado Ministério, a Monsanto apresentou outra variedade de algodão, duplamente transgênica: BT e RR, ou Resistente ao Roundup, um herbicida fabricado e patenteado pela transnacional. A pretensão da Monsanto é a liberação desta semente transgênica no Paraguai, tal como ocorreu na Argentina e em outros países do mundo.

Antes desses fatos, o diário ABC Color denunciou sistematicamente, por supostos atos de corrupção, a ministra da Saúde, Esperanza Martínez, e o ministro do Ambiente, Oscar Rivas, dois funcionários do governo que não deram parecer favorável a Monsanto.

Em 2001, a Monsanto faturou 30 milhões de dólares, livre de impostos (porque não declara essa parte de sua renda), somente na cobrança de royalties pelo uso de sementes de soja transgênica no Paraguai. Toda a soja cultivada no país é transgênica, numa extensão de aproximadamente 3 milhões de hectares, com uma produção em torno de 7 milhões de toneladas em 2010.

Por outro lado, na Câmara de Deputados já se aprovou o projeto de Lei de Biossegurança, que cria um departamento de biossegurança dentro do Ministério da Agricultura, com amplos poderes para a aprovação para cultivo comercial de todas as sementes transgênicas, sejam de soja, de milho, de arroz, algodão e mesmo algumas hortaliças. O projeto prevê ainda a eliminação da Comissão de Biossegurança atual, que é um ente colegiado forma por funcionários técnicos do Estado paraguaio.

Enquanto transcorriam todos esses acontecimentos, a UGP preparava um ato de protesto nacional contra o governo de Fernando Lugo para o dia 25 de junho. Seria uma manifestação com máquinas agrícolas fechando estradas em distintos pontos do país. Uma das reivindicações do chamado “tratoraço” era a destituição de Miguel Lovera do Senave, assim como a liberalização de todas as sementes transgênicas para cultivo comercial.

As conexões

A UGP é dirigida por Héctor Cristaldo, apoiado por outros apóstolos como Ramón Sánchez – que tem negócios com o setor dos agroquímicos -, entre outros agentes das transnacionais do agronegócio. Cristaldo integra o staff de várias empresas do Grupo Zuccolillo, cujo principal acionista é Aldo Zuccolillo, diretor proprietário do diário ABC Color, desde sua função sob o regime de Stroessner, em 1967. Zuccolillo é dirigente da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP).

O grupo Zuccolillo é sócio principal no Paraguai da Cargill, uma das maiores transnacionais do agronegócio no mundo. A sociedade entre os dois grupos construiu um dos portos graneleiros mais importantes do Paraguai, denominado Porto União, a 500 metros da área de captação de água da empresa de abastecimento do Estado paraguaio, no Rio Paraguai, sem nenhuma restrição.

As transnacionais do agronegócio no Paraguai praticamente não pagam impostos, mediante a férrea proteção que tem no Congresso, dominado pela direita. A carga tributária no Paraguai é apenas de 13% sobre o PIB. Cerca de 60% do imposto arrecadado pelo Estado paraguaio é via Imposto sobre Valor Agregado (IVA). Os latifundiários não pagam impostos. O imposto imobiliário representa apenas 0,04% da carga tributária, cerca de 5 milhões de dólares, segundo estudo do Banco Mundial, embora a renda do agronegócio seja de aproximadamente 30% do PIB, o que representa cerca de 6 bilhões de dólares anuais.

O Paraguai é um dos países mais desiguais do mundo. Cerca de 85% das terras, aproximadamente 30 milhões de hectares, estão nas mãos de 2% de proprietários, que se dedicam à produção meramente para exportação ou, no pior dos casos, à especulação sobre a terra. A maioria desses oligarcas possui mansões em Punta del Este ou em Miami e mantém estreitas relações com transnacionais do setor financeiro, que guardam seus bens mal havidos nos paraísos fiscais ou tem investimentos facilitados no exterior. Todos eles, de uma ou outra maneira, estão ligados ao agronegócio e dominam o espectro político nacional, com amplas influências nos três poderes do Estado. Ali reina a UGP, apoiada pelas transnacionais do setor financeiro e do agronegócio.

Os fatos de Curugaty

Curuguaty é uma cidade na região oriental do Paraguai, a cerca de 200 quilômetros de Assunção, capital do país. A alguns quilômetros de Curuguaty encontra-se a fazenda Morombi, de propriedade do latifundiário Blas Riquelme, com mais de 70 mil hectares nesse lugar. Riquelme provém das entranhas da ditadura de Stroessner (1954-1989), sob cujo regime acumulou uma intensa fortuna. Depois, aliou-se ao general Andrés Rodríguez, que executou o golpe de Estado que derrubou o ditador Stroessner. Riquelme, que foi presidente do Partido Colorado por muitos anos e senador da República, dono de vários supermercados e estabelecimentos pecuários, apropriou-se mediante subterfúgios legais de aproximadamente 2 mil hectares que pertencem ao Estado paraguaio.

Esta parcela foi ocupada pelos camponeses sem terra que vinham solicitando ao governo de Fernando Lugo sua distribuição. Um juiz e uma promotora ordenaram o despejo dos camponeses, por meio do Grupo Especial de Operações (GEO), da Polícia Nacional, cujos membros de elite, em sua maioria, foram treinados na Colômbia, sob o governo de Uribe, para a luta contra as guerrilhas.

Só uma sabotagem interna dentro dos quadros de inteligência da polícia, com a cumplicidade da promotoria, explica a emboscada, na qual morreram seis policiais. Não se compreende como policiais altamente treinados, no marco do Plano Colômbia, puderam cair facilmente em uma suposta armadilha montada pelos camponeses, como quer fazer crer a imprensa dominada pela oligarquia. Seus camaradas reagiram e dispararam contra os camponeses, matando 11 e deixando uns 50 feridos. Entre os policiais mortos estava o chefe do GEO, comissário Erven Lovera, irmão do tenente coronel Alcides Lovera, chefe de segurança do presidente Lugo.

O plano consiste em criminalizar, levar até ao ódio extremo todas as organizações campesinas, para fazer os camponeses abandonarem o campo, deixando-o para uso exclusivo do agronegócio. É um processo doloroso, “descampesinização” do campo paraguaio, que atenta diretamente contra a soberania alimentar, a cultura alimentar do povo paraguaio, por serem os camponeses produtores e recriadores ancestrais de toda a cultura guarani.

Tanto o Ministério Público, como o Poder Judiciário e a Polícia Nacional, assim como diversos organismos do Estado paraguaio estão controlados mediante convênios de cooperação com a USAID, agência de cooperação dos Estados Unidos.

O assassinato do irmão do chefe de segurança do presidente da República obviamente foi uma mensagem direta a Fernando Lugo, cuja cabeça seria o próximo objetivo, provavelmente por meio de um julgamento político, mesmo que ele tenha levado seu governo mais para a direita, tratando de acalmar as oligarquias. O ocorrido em Curuguaty derrubou Carlos Filizzola do Ministério do Interior. Em seu lugar, foi nomeado Rubén Candia Amarilla, proveniente do opositor Partido Colorado, o qual Lugo derrotou nas urnas em 2008, após 60 anos de ditadura colorada, incluindo a tirania de Alfredo Stroessner.

Candia foi ministro da Justiça do governo colorado de Nicanor Duarte (2003-2008) e atuou como procurador geral do Estado por um período, até o ano passado, quando foi substituído por outro colorado, Javier Díaz Verón, por iniciativa do próprio Lugo. Candia é acusado de ter promovido a repressão contra dirigentes de organizações campesinas e de movimentos populares. Sua indicação como procurador geral do Estado em 2005 foi aprovada pelo então embaixador dos Estados Unidos, John F. Keen. Candia foi responsável por um maior controle do Ministério Público por parte da USAID e foi acusado por Lugo no início do governo de conspirar para tirá-lo do poder.

Após assumir como ministro político de Lugo, a primeira coisa que Candia fez foi anunciar o fim do protocolo de diálogo com os campesinos que ocupam propriedades. A mensagem foi clara: não haverá conversação, mas simplesmente a aplicação da lei, o que significa empregar a força policial repressiva sem contemplação. Dois dias depois de Candia assumir, os membros do UGP, encabeçados por Héctor Cristaldo, foram visitar o flamante ministro do Interior, a quem solicitaram garantias para a realização do tratoraço no dia 25. No entanto, Cristaldo disse que a medida de força poderia ser suspensa, em caso de sinais favoráveis para a UGP (leia-se: liberação das sementes transgênicas da Monsanto, destituição de Lovera e de outros ministros, entre outras vantagens para o grande capital e os oligarcas), levando o governo ainda mais para a direita.

Cristaldo é pré-candidato a deputado para as eleições de 2013 por um movimento interno do Partido Colorado, liderado por Horacio Cartes, um empresário investigado em passado recente nos Estados Unidos por lavagem de dinheiro e narcotráfico, segundo o próprio ABC Color, que foi ecoado por várias mensagens do Departamento de Estado dos EUA, conforme divulgado por Wikileaks. Entre elas, uma se referia diretamente a Cartes, no dia 15 de novembro de 2011.

Julgamento político de Lugo

Enquanto escrevia esse artigo, a UGP (4), alguns integrantes do Partido Colorado e os próprios integrantes do Partido Liberal Radical Autêntico (PLRA), dirigido pelo senador Blas Llano e aliado do governo até então, começaram a ameaçar com a abertura de um processo de impeachment de Fernando Lugo para destituí-lo do cargo de presidente da República. Lugo passou a depender do humor dos colorados para seguir como presidente do país, assim como do de seus aliados liberais, que passaram a ameaçá-lo com um julgamento político, seguramente buscando mais espaços de poder (dinheiro) como condição para a paz. O Partido Colorado, aliado a outros partidos minoritários de oposição tinha a maioria necessária para destituir o presidente de suas funções.

Talvez esperassem “os sinais favoráveis” de Lugo que a UGP – em nome da Monsanto, da pátria financeira e dos oligarcas – estava exigindo do governo. Caso contrário se passaria à fase seguinte, de interrupção deste governo que nasceu como progressista e lentamente foi terminando como conservador, controlado pelos poderes da oposição.

Entre outras coisas, Lugo é responsável pela aprovação da Lei Antiterrorista, patrocinada pelos EUA em todo o mundo depois do 11 de setembro. Em 2010, ele autorizou a implementação da Iniciativa Zona Norte, que consiste na instalação e deslocamento de tropas e civis norteamericanos no norte da região oriental – no nariz do Brasil – supostamente para desenvolver atividades a favor das comunidades campesinas.

A Frente Guazú, coalizão das esquerdas que apoia Lugo, não conseguiu unificar seu discurso e seus integrantes acabaram perdendo a perspectiva na análise do poder real, ficando presos nos jogos eleitorais imediatistas. Infiltrados pelo USAID, muitos integrantes da Frente Guazú, que participavam da administração do Estado, sucumbiram ao canto de sereia do consumismo galopante do neoliberalismo. Se corromperam até os ossos, convertendo-se em cópias vaidosas de novos ricos que integravam os recentes governos do direitista Partido Colorado.

Curuguaty também engloba uma mensagem para a região, especialmente para o Brasil, em cuja fronteira se produziram esses fatos sangrentos, claramente dirigidos pelos senhores da guerra, cujos teatros de operações estão montados no Iraque, Líbia, Afeganistão e, agora, Síria. O Brasil está construindo um processo de hegemonia mundial junto com a Rússia, Índia e China, denominado BRIC. No entanto, os EUA não recuam na tentativa de manter seu poder de influência na região. Já está em marcha o novo eixo comercial integrado por México, Panamá, Colômbia, Peru e Chile. É um muro de contenção aos desejos expansionistas do Brasil na direção do Pacífico.

Enquanto isso, Washington segue sua ofensiva diplomática em Brasília, tratando de convencer o governo de Dilma Rousseff a estreitar vínculos comerciais, tecnológicos e militares. Além disso, a IV Frota dos EUA, reativada há alguns anos após estar fora de serviço desde o fim da Segunda Guerra Mundial, vigia todo o Atlântico Sul, caracterizando um outro cerco ao Brasil, caso a persuasão diplomática não funcione.

E o Paraguai é um país em disputa entre ambos países hegemônicos, sendo ainda amplamente dominado pelos EUA. Por isso, os eventos de Curuguaty representam também um pequeno sinal para o Brasil, no sentido de que o Paraguai pode se converter em um obstáculo para o desenvolvimento do sudoeste do Brasil.

Mas, acima de tudo, os mortos de Curuguaty representam um sinal do grande capital, do extrativismo explorador que assola o planeta e aplasta a vida em todos os rincões da Terra em nome da civilização e do desenvolvimento. Felizmente, os povos do mundo também vêm dando respostas a estes sinais da morte, com sinais de resistência, de dignidade e de respeito a todas as formas de vida no planeta.

“Estamos saindo às ruas e conversando com os cidadãos”, diz Lugo em entrevista ao Página 12


Lugo mantém reuniões com integrantes do antigo ministério | Foto: Presidência do Paraguai

Por Martín Granovsky, do Página 12 via SUL21

O presidente deposto do Paraguai, Fernando Lugo, não pretende cruzar os braços após sua derrubada do poder no país. Oficialmente, Federico Franco, ex-vice de Lugo, está no comando do país, mas, extraoficialmente, o agora ex-presidente vem mantendo articulações locais e internacionais para tentar retornar ao palácio presidencial.
Em entrevista concedida na noite de domingo (24) ao jornal argentino Página 12, Lugo conta que está conversando com cidadãos, com líderes sindicais e políticos, e que ainda mantém unido o primeiro escalão de seu governo. O ex-presidente também justifica a reação pacífica que adotou ao que qualifica como “golpe de Estado parlamentar”. “Nos submetemos ao impeachment e aceitamos o veredito para evitar derramamento de sangue”, explicou.

Página 12 – Franco diz que o senhor é o responsável por qualquer represália externa que o Paraguai possa receber. Que só o senhor pode evitar os conflitos internacionais.

Fernando Lugo – Cospem em você e ao mesmo tempo dizem que você é bonito. Não são castigos ao Paraguai. Estamos diante de um grande movimento de solidariedade internacional no qual participa o teu país também. A Argentina é um país irmão, um vizinho muito próximo que conhece muito bem a realidade paraguaia.

Página 12 – Retirou o embaixador Rafael Romá.

Lugo – A Argentina fez o que, dentro de sua soberania, considerou que seria útil para a liberdade e a soberania de um país que quer a democracia como o Paraguai.
Chanceler brasileiro Antonio Patriota (esquerda) esteve no Paraguai para apoiar Lugo | Foto: Fernando Lugo/Flickr

Página 12 – E se a solidariedade ao Sr. se converter em problemas para os cidadãos, como o senhor reagirá?

Lugo – Lamentavelmente, muitos inocentes podem sofrer as consequências. Eu quero o melhor para o Paraguai e por isso repudio o atual regime.

Página 12 – Na madrugada de domingo, em frente à sede da televisão pública, o senhor defendeu uma resistência pacífica. Essa será a tática?

Lugo – Sim, já começamos a resistência pacífica e um não reconhecimento da Presidência que se instalou depois do golpe de Estado parlamentar. E já é possível ver as manifestações de cidadãs e cidadãos, elas existem e são crescentes e pacíficas. Se expressam contra o que o Parlamento decidiu naquela sexta-feira negra. Também faremos uma reunião de gabinete.

Página 12 – Quando?

Lugo – Às 6h (desta segunda-feira, 25). Todos os meus colaboradores que integravam o gabinete ministerial quando estávamos no governo irão participar.

Página 12 – Quando o senhor se despediu dos chanceleres da Unasul, disse a eles que voltaria ao seu trabalho político nas bases.

Lugo – E já começamos a fazer isso. Vamos unir forças com os movimentos sociais e os sindicatos.

Página 12 – Sempre dentro da lógica da não violência?

Lugo – Sim, sempre.

Página 12 – Por isso na sexta, quando o senhor foi deposto, teve uma atitude pacífica?

Lugo – Exatamente. Nos submetemos ao impeachment e aceitamos o veredito para evitar derramamento de sangue. Somos contra todo o tipo de violência e neste dia havia a possibilidade de violência e repressão. Hoje, já com o espírito sereno, as manifestações da cidadania são exemplares. É o que se pode ver nas ruas ou nas transmissões do Canal 13.

Página 12 – Essa forma de ação política será também adotada no interior do Paraguai?

Lugo – Sim e estamos tranquilos para essa tarefa. É por isso que nossa atitude na sexta-feira foi muito bem pensada. Há muita violência no Paraguai. Naquela sexta-feira, os mercadores da morte estavam rondando. O impeachment foi injusto, irracional e sem argumentos, mas precisávamos reagir da forma como reagimos. Era o melhor.
Ex-presidente participará da reunião de cúpula do Mercosul nesta semana | Foto: PR/PY

Página 12 – O dinamismo da suas ações aumentará?

Lugo – Estamos saindo às ruas e conversando com os cidadãos. Hoje mantivemos uma série de reuniões com líderes sociais e políticos. O repúdio está crescendo, estou certo disso. Haverá uma consolidação do repúdio contra a Presidência que surgiu após a minha destituição.

Página 12 – Franco insiste em dizer que o Congresso apenas aplicou o artigo da Constituição que estipula os procedimentos do impeachment.

Lugo – É interessante destacar o que disse o presidente da Colômbia, Juan Manuel Santos. A ferramenta do impeachment é válida do ponto de vista jurídico e constitucional, mas os congressistas exageraram na maneira como agiram.

Página 12 – Os congressistas poderiam dizer que votaram com maiorias qualificadas.

Lugo – Foi um simples acordo de cúpulas feito entre os dirigentes dos três partidos tradicionais.

Página 12 – Na sua primeira aparição pública após a destituição, o senhor disse que havia setores políticos vinculados ao narcotráfico. A quem o senhor se referia?

Lugo – Há muitos parlamentares acusados de ter uma grande participação em negócios ilícitos. O narcotráfico está presente em alguns setores da política. Há investigações que foram publicadas e denunciadas.

Tradução de Samir Oliveira.

domingo, 24 de junho de 2012

TÍTULO DO FILME: CABRA MARCADO PARA MORRER (Brasil, 1984) DIREÇÃO: Eduardo Coutinho



Filme documentário, Cabra Marcado para Morrer foi dirigido por Eduardo Coutinho inicialmente em fevereiro1964, sendo obrigado a interromper as filmagens devido ao golpe militar de 31 de março, quando as forças militares cercam a locação no engenho da Galiléia. Dezessete anos depois em 1984 retoma o projeto, seu lançamento foi no ano seguinte em 1985.
Conta história das Ligas Camponesas de Galiléia e de Sapé além da vida de João Pedro Teixeira que era um líder camponês da Paraíba assassinado a mando de latifundiários de Pernambuco em 1962.
Através de depoimento da viúva Elizabeth Teixeira, de seus filhos e de camponeses que presenciaram a história, coletou informações para o documentário. O tema principal do filme passa a ser a trajetória de cada um dos personagens que, por meio de lembranças e imagens do passado, evocam o drama de uma família de camponeses durante os longos anos do regime militar.

TÍTULO DO FILME: CABRA MARCADO PARA MORRER (Brasil, 1984) DIREÇÃO: Eduardo Coutinho
ELENCO: Elisabeth Teixeira e família, João Virgínio da Silva e os habitantes de Galiléia (Pernambuco). Narração de Ferreira Gullar, Tite Lemos e Eduardo Coutinho. 120 min., Globo Vídeo.
Gênero: Documentário, Ano de Lançamento: 1985, País de Origem: Brasil, Idioma do Áudio: Português do Brasil,

Para saber mais leia em:
http://www.historianet.com.br/conteudo/default.aspx?codigo=242
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cabra_Marcado_para_Morrer
http://nuevomundo.revues.org/1520
http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=vtls000386663

Ironia na internet: bonitinha, mas ordinária




Como hoje é sexta, trouxe uma leitura mais leve. A gente merece, né? Afinal de contas, a Rio+20 produziu um excelente documento final, está tudo em paz no Paraguai e os trabalhadores rurais desfrutam de segurança no Pará.
Pedi para Rodolfo Vianna, jornalista, mestre em Linguística e amigo, escrever um texto para este blog sobre o seu objeto de estudo: a ironia. Achei que seria pertinente ainda mais em um tempo em que as pessoas se levam a sério demais. Afinal, o milagre não é uma ironia passar despercebida mas, sim, ser entendida. 
“Toda vez que ouço Wagner, me dá uma vontade de invadir a Polônia…”
Woody Allen

Bonitinha, mas ordinária. Assim podemos definir a ironia, já que ela se caracteriza como uma argumentação indireta tida como astuta, inteligente, articulando um ponto de vista sob um manto de humor, numa jocosidade nobre daqueles que sabem que somente as grandes burrices tendem a ser gravemente sérias. Entretanto, a mesma ironia pode não ser compreendida, pode agir justamente no sentido contrário da argumentação pretendida pela sua manifestação, voltar-se contra seu feiticeiro.
A beleza da ironia, enquanto manifestação retórica, está na sua economia argumentativa. Por meio de um comentário irônico, posso ridicularizar toda uma construção argumentativa sólida e extensa; da mesma forma que, para se desconstruir uma ironia, o mesmo trabalho argumentativo extenso é necessário. O poder de síntese que a ironia possui é que a faz ser vista como uma manifestação de inteligência, de sagacidade, já que ela mobiliza no seu intuito argumentativo um vasto conjunto de informações e valores para, a partir deles, construir sua argumentação indireta: seu elogio como crítica, sua aprovação como censura, sua afirmação como uma negativa.
Vale ressaltar aqui, en passant, que a ironia não se reduz a dizer algo com o intuito de expressar justamente seu contrário. A ironia abre-se à inferência de um ou mais significados que não estão presentes na literalidade do enunciado irônico, significados estes que carregam valores apreciativos sobre esse mesmo dito. Esses outros significados que podem ser depreendidos de uma ironia não necessariamente se restringem à negação do dito, como uma simples antífrase.
Ambiguidade – Mas por que ordinária? Ora, a ironia só se realiza quando percebida como ironia, independentemente da intenção daquele que a produziu. Uma metáfora, por exemplo, se não for reconhecida como tal passa a ser uma contra-verdade: se eu não entender que “chove canivete lá fora” é uma metáfora, a frase perde sua validade pela confrontação com a realidade, já que não chove canivete. Agora, se eu falasse para o Neymar que ele poderia ser modelo se não fosse jogador de futebol, e ele, por algum misterioso motivo, não entendesse a ironia, poderia até mesmo me agradecer pelo comentário. E nada impede, por sua vez, de ser esse agradecimento também uma ironia por parte dele. É da natureza da ironia ser ambígua, e na ambiguidade está a armadilha.
É no reconhecimento da ironia, ou não, que mora o perigo. Aquele que propõe fazer uma construção irônica deve prever como será a possível percepção dela por aqueles a quem a dirige. E, para isso, é necessário haver um compartilhamento de crenças, valores, experiências, assim como conhecer aquele faz a ironia, para que desse arcabouço comum se possam extrair elementos que permitam entender aquele enunciado como irônico. “Prefiro o cheiro dos meus cavalos ao cheiro do povo” seria uma ironia se fosse dita por Florestan Fernandes. Mas não foi ele quem disse, e não era ironia.
Entretanto, toda a previsão é suscetível a falhas, ainda mais quando falamos do universo da linguagem, do imaginário e da compreensão de outrem. Por mais que existam recursos que o ironista utiliza para sinalizar que se trata de uma ironia, seja numa conversa, seja num texto, eles não garantem a obrigatoriedade da sua compreensão. E como não existe ironia se ela não for percebida como tal (já que o significado literal, não irônico, permanece válido), a responsabilidade última de fazê-la existir é do destinatário, e não do ironista: se não há reconhecimento da ironia, logo também não existe o ironista. Esse é o preço a se pagar pela economia argumentativa da ironia, o preço da ambiguidade, ou seja, o de assumir o argumento/opinião do qual queria se afastar.
Por essas e outras que, muitas vezes, somos levados a não enxergar ironia onde ela foi proposta, como também a entender alguma coisa como irônica quando ela não fora assim intencionada. Atualmente, no caso específico da internet, isso acaba ocorrendo frequentemente, já que links em páginas de relacionamentos ou em portais nos levam a textos de pessoas que nunca lemos antes, que não conhecemos, que não sabemos quais são seus pontos de vista, e, portanto, não temos um arcabouço de subentendidos e pressupostos que possibilitariam identificar pistas de uma possível ironia presente. O quê me faz crer que esse tal de Woody Allen não queira mesmo invadir a Polônia?
Apesar de tudo, a ironia existe, é objeto de reflexão há mais de 2 mil anos, remontando à Sócrates, e cotidianamente nos deparamos com ela. Porém, sua concretização está mais próxima de um milagre do que da efetivação de uma equação matemática, uma vez que ela é um paradoxo à fria racionalidade. Mas o mundo intersubjetivo é, antes de tudo, ruído. E na linguagem verbal nem sempre 2 + 2 = 4.
Enfim, tantas linhas para dizer que a ironia não passa de uma bobagem…

Rodolfo Vianna é formado em jornalismo (USP) e mestre em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem (PUC-SP). É autor da dissertação Jornalismo, ironia e “informação”. Para baixá-la, clique aqui.

sábado, 23 de junho de 2012

Os bancos ocidentais ganham milhões com a cocaína colombiana

– Enquanto a produção de cocaína devasta os países da América Central, os consumidores dos EUA e da Europa ajudam as economias desenvolvidas a enriquecerem-se com os lucros dessa produção.

por Ed Vulliamy
Os vastos lucros do tráfico e da produção de droga vão para os países ricos e consumidores – como os da Europa ou os Estados Unidos da América – numa proporção muito superior do que ficam nos países devastados por essa produção, como a Colômbia ou o México, revela um estudo recente [1] . Os seus autores afirmam que as entidades reguladoras são relutantes em investigar o enorme processo da lavagem de dinheiro da droga, levada a cabo pelos bancos europeus e norte-americanos.

A mais recente análise da economia da droga – no caso específico da Colômbia – demonstra que apenas 2,6 % do total do valor de mercado da cocaína produzida fica nesse país, ao passo que uns espantosos 97,4% dos lucros são arrecadados pelas máfias criminosas do chamado primeiro mundo, sendo posteriormente submetidos a um processo de "lavagem de dinheiro" nos bancos desses países.

"A história acerca de quem realmente lucra com a cocaína colombiana é uma metáfora para o fardo desproporcionado colocado de todas as maneiras sobre países "produtores" como a Colômbia em consequência da proibição das drogas" afirma, Alejandro Gaviria, um dos autores do estudo, aquando do lançamento da edição inglesa do mesmo na semana passada.

"A sociedade colombiana tem sofrido imenso e não tem retirado nenhuma vantagem económica do tráfico de drogas, os verdadeiros lucros revertem a favor das redes criminosas de distribuição nos países consumidores de drogas, que os "reciclam" no sistema bancário local, sistema esse que opera com muito menos restrições do que o sistema bancário colombiano."

O seu co-autor, Daniel Mejia, acrescentou: "O sistema aplicado pelas autoridades dos países consumidores de drogas tem como objectivo a repressão do pequeno distribuidor, ele é o elo mais fraco da rede, estas nunca procuram atingir os grandes negociantes de drogas ou os sistemas financeiros que os suportam e é aí que está realmente o grosso do dinheiro".

Este trabalho, de dois economistas da Universidade de Los Andes, em Bogotá, faz parte de uma iniciativa do governo da Colômbia para reformular a política anti-droga global recentrando-a nos processos de lavagem de dinheiro levados a cabo pelos grandes bancos norte-americanos e europeus, assim como na prevenção social e num processo de descriminalização de algumas ou mesmo de todas as drogas.

Estes economistas tomaram em consideração vários factores económicos, sociais e políticos, das guerras da droga que têm devastado a Colômbia. O conflito estendeu-se, com graves consequências, ao México e receia-se que possa alastrar-se à América Central. Mas a conclusão mais chocante está relacionada com aquilo a que os autores chamam "microeconomia da produção de cocaína" na Colômbia.

Gaviria e Mejía calculam que, ao mais baixo valor que a cocaína pura produzida na Colômbia pode atingir nas ruas (cerca de 100 dólares/ 80 euros por grama) o lucro foi, no ano de 2008, de 300 mil milhões de dólares, dos quais apenas 7,8 mil milhões ficaram no país.

"É uma porção minúscula do PNB", disse Mejía, "o que pode ter um efeito desastroso na vida política e social da Colômbia, mas não na economia. A economia da cocaína colombiana está fora da Colômbia".

Mejía disse ainda a The Observer: "Na minha perspectiva a proibição das drogas é um processo de transferência de custos do problema das drogas, dos países consumidores para os países produtores".

"Se países como a Colômbia lucrassem economicamente com o tráfico de droga, ainda faria um pouco de sentido" afirmou Gaviria". Em vez disso, a Colômbia e o México pagam o maior preço para que outros tenham lucro".

"Eu gostava de ilustrar a situação para os cidadãos norte-americanos: imaginem que o consumo de cocaína nos Estados Unidos desaparecia e se deslocava para o Canadá. Será que os americanos gostariam de ver a taxa de homicídio de Seattle disparar para que se evitasse que a cocaína e o dinheiro fossem para o Canadá? Desta maneira talvez percebessem os custos desta situação para países como o México e a Colômbia"

Os mecanismos de lavagem de dinheiro foram tratados pelo The Observer no ano passado, depois de um raríssimo acordo judicial em Miami entre o governo federal dos Estados Unidos e o Wanchovia Bank, tendo este último admitido que fazia entrar 110 milhões de dólares de dinheiro da droga nos Estados Unidos. No entanto as autoridades não conseguiram monitorizar os 376 mil milhões de dólares que, ao longo de quatro anos, entraram nas contas desse banco através de casas de câmbio no México. O Wachovia Bank foi, já depois deste acordo, adquirido pelo Wells Fargo que cooperava com a investigação.

No entanto ninguém foi preso, e o banco está hoje fora de qualquer complicação judicial. "O sentimento geral é o de uma grande relutância em ir atrás dos lucros reais da droga" disse Mejía. "Eles não se ocupam daquela parte do sistema onde está a maior soma. Na Europa e nos EUA o dinheiro está disperso – quando chega a estes países o dinheiro entra no sistema, em todas as cidades, em todos os estados. Eles preferem ir atrás da pequena economia, dos pequenos intermediários e das plantações de coca na Colômbia, mesmo sabendo que essa economia é minúscula".

O Dr. Mejía acrescentou: "Na Colômbia eles colocam aos bancos questões que nunca colocariam aos bancos nos Estados Unidos. Se o fizessem seria contra as leis do sigilo bancário. Nos Estados Unidos existem leis muito fortes que protegem o segredo bancário, na Colômbia tais leis não existem – ainda que a lavagem de dinheiro se faça mais nos Estados Unidos. É um sistema um pouco hipócrita, não?"

"É uma extensão da forma como operam no seu próprio país. Vão atrás das classes baixas, dos elos mais fracos da cadeia, do pobre tipo – para mais facilmente mostrar resultados. Mais uma vez: é a vontade de transferir o custo da guerra da droga para os mais pobres, deixando o sistema financeiro e os grandes negociantes intocados, que motiva todo este sistema"

Tendo o Reino Unido suplantado os EUA e a Espanha como o maior consumidor mundial de cocaína per capita , a investigação ao Wachovia mostrou também que muito do dinheiro da droga era lavado através da City de Londres, onde o principal denunciante do caso, Martin Woods, estava sediado, no departamento anti-lavagem de dinheiro do banco. Martin Woods foi posteriormente demitido depois de ter denunciado a situação.

Gaviria disse ainda: "Nós sabemos que as autoridades nos Estados Unidos e no Reino Unido sabem mais do que aquilo que as suas acções fazem transparecer. As autoridades apercebem-se de inúmeros casos de pessoas que tentam movimentar dinheiro para o tráfico de droga – mas a DEA (Departamento Anti-droga dos EUA) age apenas num número mínimo de casos"

"É um verdadeiro tabu perseguir os grandes bancos" acrescentou Mejía, "seria suicidário neste clima económico devido às elevadas quantias de dinheiro reciclado"

[1] Alejandro Gaviria Uribe e Daniel Mejía Londoño, Políticas antidroga en Colombia: éxitos, fracasos y extravíos , Ediciones Uniandes, Bogotá, 2012, 458 pgs., ISBN/ISSN: 978-958-695-602-4

O original encontra-se em www.guardian.co.uk/world/2012/jun/02/western-banks-colombian-cocaine-trade
Tradução de MQ.


Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

O que os Estados Unidos podem ganhar com o golpe no Paraguai


por Luiz Carlos Azenha

A reação de Washington ao golpe “democrático”  no Paraguai será, como sempre, ambígua. Descartada a hipótese de que os estadunidenses agiram para fomentar o golpe — o que, em se tratando de América Latina, nunca pode ser descartado –, o Departamento de Estado vai nadar com a corrente, esperando com isso obter favores do atual governo de fato.
Não é pouco o que Washington pode obter: um parceiro dentro do Mercosul, o bloco econômico que se fortaleceu com o enterro da ALCA — a Área de Livre Comércio das Américas, de inspiração neoliberal. O Paraguai é o responsável pelo congelamento do ingresso da Venezuela no Mercosul, ingresso que não interessa a Washington e que interessa ao Brasil, especialmente aos estados brasileiros que têm aprofundado o comércio com os venezuelanos, no Norte e no Nordeste.
Hugo Chávez controla as maiores reservas mundiais de petróleo, maiores inclusive que as da Arábia Saudita. O petróleo pesado da faixa do Orinoco, cuja exploração antes era economicamente inviável, passa a valer a pena com o desenvolvimento de novas tecnologias e a crescente escassez de outras fontes. É uma das maiores reservas remanescentes, capaz de dar sobrevida ao mundo tocado a combustíveis fósseis.
Washington também pode obter condições mais favoráveis para a expansão do agronegócio no Chaco, o grande vazio do Paraguai. Uma das preocupações das empresas que atuam no agronegócio — da Monsanto à Cargill, da Bunge à Basf — é a famosa “segurança jurídica”. Ou seja, elas querem a garantia de que seus investimentos não correm risco. É óbvio que Fernando Lugo, a esquerda e os sem terra do Paraguai oferecem risco a essa associação entre o agronegócio e o capital internacional, num momento em que ela se aprofunda.
Não é por acaso que os ruralistas brasileiros, atuando no Congresso, pretendem facilitar a compra de terra por estrangeiros no Brasil. Numa recente visita ao Pará, testemunhei a estreita relação entre uma ONG estadunidense e os latifundiários locais, com o objetivo de eliminar o passivo ambiental dos proprietários de terras e, presumo,  facilitar futura associação com o capital externo.
Finalmente — e não menos importante –, o Paraguai tem uma base militar “dormente”  em Mariscal Estigarribia, no Chaco. Estive lá fazendo uma reportagem para a CartaCapital, em 2008.  É um imenso aeroporto, construído pelo ditador Alfredo Stroessner, que à moda dos militares brasileiros queria ocupar o vazio geográfico do país. O Chaco paraguaio, para quem não sabe, foi conquistado em guerra contra a Bolívia. Há imensas porções de terra no Chaco prontas para serem incorporadas à produção de commodities.
O aeroporto tem uma gigantesca pista de pouso de concreto, bem no coração da América Latina. Com a desmobilização da base estadunidense em Manta, no Equador, o aeroporto cairia como uma luva como base dos Estados Unidos. Não mais no sentido tradicional de base, com a custosa — política e economicamente custosa — presença de soldados e aviões. Mas como ponto de apoio e reabastecimento para o deslocamento das forças especiais, o que faz parte da nova estratégia do Pentágono. O renascimento da Quarta Frota, responsável pelo Atlântico Sul, veio no mesmo pacote estratégico.
É o neocolonialismo, agora faminto pelo controle direto ou indireto das riquezas do século 21: petróleo, terras, água doce, biodiversidade.
Um Paraguai alinhado a Washington, portanto, traz grandes vantagens potenciais a interesses políticos, econômicos, diplomáticos e militares estadunidenses.

“Boleiros podem mudar cultura homofóbica”, diz psicólogo especialista em sexualidade


Psicólogo paulista afirma: "ser homossexual é conviver com a ideia de ser o que o mundo diz que não é bom". /Foto: Reprodução

Rachel Duarte no SUL21

‘Ele é gay porque foi abusado na infância’. ‘A educação dele foi muito castrada por isso ele é gay’. ‘Não vou aceitar para ver se meu filho desiste dessa ideia de ser gay’. Muitas teorias são levantadas quando se discute a orientação sexual das pessoas que se relacionam com outras do mesmo sexo. O senso comum ainda acredita na origem da homossexualidade como doença, perversão ou opção. O psicólogo paulista com especialização em sexualidade humana Cláudio Picazio esclarece estes e outros preconceitos relacionados aos homossexuais em entrevista ao Sul21.

Autor dos livros Diferentes desejos, sobre orientação afetiva sexual; Sexo secreto, aulas de temas polêmicos para professores; e Uma outra verdade, com perguntas e respostas para pais e educadores sobre homossexualidade na adolescência, o psicólogo garante que homossexualidade está relacionada ao desejo sexual que nasce com as pessoas, não podendo ser ensinado, estimulado ou adquirido. “As pessoas querem criar teses para justificar a existência de uma orientação sexual que difere da sua”, diz.
Ele vê como urgente o combate ao bullying homofóbico, partindo da maior informação de pais e professores a respeito do tema. “Não é o filho gay que tem que dar suporte a estes pais, são os pais que devem dar suporte para os filhos gays. Esta história está errada”, defende Cláudio Picazio.
O psicólogo também estudou psicoterapia esportiva e por três anos analisou o comportamento dos jogadores de futebol nas categorias de base dos clubes do sudeste do país. Ele conta como os boleiros lidam com a homossexualidade e acredita que uma esperança para a revolução sobre gênero e sexualidade pode estar entre os jogadores de futebol. O afeto explícito dentro de campo pode alterar a noção machista que dita a impossibilidade de homens serem afetivos. “Se Neymar e Ganso se abraçam e se beijam, vemos isso acontecer nas arquibancadas. Existe esta influência na esfera geral, na massa da população”, afirma.

Sul21 – O senhor tem como explicar como é formada nossa orientação sexual?

Cláudio Picazio – Sempre começo corrigindo a terminologia. Não se trata de homossexualismo, é homossexualidade. Tem diferença. Geralmente na ciência tudo que termina com ‘ismo’ é qualificado como doença. Doença ou perversão. Não se fala heterossexualismo. Quando usamos heterossexualismo, trata-se de alguém muito doente nas relações com mulheres. Então, é heterossexualidade, homossexualidade, travestilidade. Comecemos por aí.

Sul21- Certo. Esclarecida a terminologia, como se desenvolve a orientação sexual?

Cláudio Picazio - Todo mundo acredita que a sexualidade é imposta ou aprendida. Não é aprendida. Descobrimos o nosso desejo sexual. Ninguém precisa ensinar o desejo sexual, ele se revela dentro da gente. Existe um preconceito que na educação de um filho se forma a sexualidade. Não é verdade. É algo da natureza. Desde a infância há meninos se interessando por meninos e meninas por meninas. Não podemos castrar isto. O desejo nasce e se orienta dentro de nós. Nós descobrimos isso. Querer entender o que faz uma pessoa virar homossexual também deveria estar relacionado à necessidade de saber o que faz uma pessoa virar hetero. As pessoas querem criar teses para justificar a existência de uma orientação sexual que é diferente da sua. ‘Ele foi muito castrado, por isso virou gay”. Não. As mulheres foram castradas a vida inteira e não foi por isso que viraram lésbicas. O mundo teme agora a exposição assumida dos homossexuais, como se um beijo na novela ou em público fosse influenciar outras pessoas a serem gays. Não é assim. Isto é uma cretinice.

Sul21 – Como o senhor define a homossexualidade?

Cláudio Picazio – Ser homossexual não é simplesmente aceitar que se gosta, ter paixão ou desejo por uma pessoa do mesmo sexo. Se perceber homossexual é se reconhecer como aquilo que o mundo diz que é o pior. Se o goleiro não pega uma bola quando o time adversário faz um gol, do que ele é chamado? Veado. Se alguém da uma fechada no trânsito? É veado. Tudo aquilo que é visto como ruim, errado e perverso, a sociedade vai alimentando como ‘coisa de veado’.
Cláudio Picazio analisou jogadores de futebol por três anos e acredita que boleiros podem mudar cultura homofóbica./Foto: Reprodução

Sul21 – O senhor afirma que o homem heterossexual precisa do homossexual para se afirmar como homem. Para ele ver o quanto tem masculinidade e está distante do ser “afeminado”. Os gays menos afetados seriam os que mais incomodam, por parecerem homens. Mas, os mais vulneráveis e os que estão mais presentes nas estatísticas de violência são os  travestis e os mais claramente homossexuais. Como o senhor explica isso?

Cláudio Picazio – Ele precisa do outro para afirmar a sua diferença. Por outro lado, ele teme um desejo por este diferente. Não necessariamente ele tem o desejo, mas ele teme ter. A partir do momento que ele teme, ele tem que agredir aquele objeto de desejo por achar que assim ele não sentirá desejo. Há também a inconformidade de que aquela pessoa que tem uma sexualidade diversa está rompendo com aquilo que é considerado bom ou correto. No Rio Grande do Sul podemos fazer uma analogia com o comportamento das torcidas de futebol. Os gremistas e colorados brigam não por um querer mudar para o time do outro, mas por entender que a sua opção é superior a do outro. Existe uma tentativa de superioridade. Você é menos por ser colorado ou menos por ser gremista na visão das torcidas adversárias. O humano infelizmente ainda vai muito nesta celeuma de querer hierarquizar as coisas e se afirmar diante de um poder que acha que tem.

Sul21 – A rivalidade também pode ser compreendida pelo caráter passional. Mas por que há essa relação de ódio com a sexualidade alheia? Por que a vida sexual do outro interessa para mim?

Cláudio Picazio – Infelizmente a nossa cultura é baseada nisso. Eu valho mais por aquilo que eu sou. Sou mais macho e melhor quanto mais mulher eu pegar. Tenho mais valor assim. E isto também se transferiu para  amulher. As mulheres estão repetindo este péssimo comportamento masculino. Conforme o número de caras que eu fiquei na balada, mais legal eu sou. Então vai se baseando um valor quantitativo e não qualitativo sobre as relações humanas. A mulher copia o pior do homem neste sentido. Queimaram os sutiãs, conquistaram inúmeros direitos. Têm sua liberdade sexual e erótica. Mas a revolução feminina aconteceu e não houve uma revolução masculina. Ela se igualou aos homens que, na verdade, precisam se transformar. Um homem afetivo hoje é excluído. Ele não pode ter afeto por que é visto como um ‘não homem’. Mais do que homofobia, o problema é a aversão ao afeto. Recordemos o caso dos pai e filho se abraçando em São Paulo que foram agredidos por trocarem afeto e serem confundidos com homossexuais. Esta agressão não foi por causa da sexualidade, foi por causa do gesto de afeto. A nossa sociedade não dá conta da questão amorosa no masculino. A homofobia tem fundamento nisso. O homem amoroso é excluído. No Rio Grande do Sul isso é ainda mais forte. É proibido aos homens serem afetivos, isso é feminino. Se ele transa com outros homens de forma violenta ele é aceito, porque daí é considerado mais macho ainda. Só não pode ter amor. O homem afetivo rompe com o que é esperado de um homem. Quanto menos afetivo for o homem, melhor. Isto é um valor que se reproduz e afeta os relacionamentos e a humanidade. Percebemos na infância que os meninos ainda precisam gostar de jogar futebol ou judô. Se algum menino gostar de escutar Beethoven ou de pintar, o constrangimento dos pais é enorme. Já está feita a confusão de que ele é ou pode ser homossexual.

Sul21 – Falando em futebol, o senhor tem um estudo de três anos nas categorias de base dos times do sudeste do país. O futebol, apesar de alguns avanços femininos no esporte, é genuinamente masculino. Como se lida com a homossexualidade neste universo de boleiros?
"O jogador de futebol para o homem brasileiro é a principal referência de masculinidade".

Cláudio Picazio – O jogador de futebol, para o homem brasileiro, é a principal referência de masculinidade. Ele é aguerrido, combatente em campo e passa essa imagem. Tanto que, se um jogador usa brinco de brilhante ou pinta os cabelos de colorido não é sinônimo de homossexualidade. É permitido. Aquilo deixa de ser feminino nos olhos dos homens se é um jogador de futebol que faz. Eu fico extremamente feliz quando vejo troca de afeto entre jogadores. Por mais que ainda choque ou cause estranhamento em algumas pessoas, é comum ver o mesmo sentimento contagiando a torcida. Se o Neymar e o Ganso se abraçam e se beijam, vemos isso acontecer nas arquibancadas. Existe esta influência na esfera geral, na massa da população. Eu chego a afirmar que a salvação do gênero masculino no Brasil está no comportamento dos jogadores de futebol.

Sul21 – Sabe-se que existem muitos jogadores de futebol homossexuais, mas não publicamente. Admitir isso causaria uma revolução masculina?
"Existem muitos gays que não são afetivos e heteros que não são agressivos. Uma coisa não tem nada a ver com a outra.".

Cláudio Picazio– No caso da homossexualidade de jogadores de futebol, que sabemos que existe bastante, é ainda mais delicado. O preconceito é muito maior. Entre os jogadores não. Eles convivem muito, acabam sendo bastante íntimos e conseguem se respeitar. É como uma grande família. Eles se apoiam. A relação com os técnicos também tende a ser sempre respeitosa porque o importante é o desempenho do atleta e não a vida privada dele. E não existe esta coisa que se pensa no senso comum, que os jogadores gays saem pegando todo mundo no vestiário ou que não podem estar diante dos outros que vão querer pegar. O problema é a visão preconceituosa que vem de fora. Outra coisa: se o homem é gay, ele está condenado a gostar de coisas femininas, não pode gostar de jogar futebol ou mesmo ser um jogador de futebol? Não são nossas preferências que fazem nossa sexualidade. Olhar para um quadro de Monet não fará você se tornar feminino. O que escutar Vivaldi influenciaria em você gostar de um pênis ou de uma vagina? É uma cretinice este tipo de pensamento. Mas, o pior de tudo isso, é a relação com a violência. Para o homem ser homem, ele tem que ser violento. E depois, este homem é violento com a mulher e também é condenado pela sociedade. Qual a alternativa que ele tem? Se o homem não der porrada ele não é homem. Entrando em contato com uma mulher ele vai resolver as coisas como?

Sul21 – Como romper o ciclo educativo da homofobia e do preconceito? Qual a contribuição da escola e dos pais neste processo?

Cláudio Picazio – Temos que ensinar a população que agressividade não significa heterossexualidade e homossexualidade não significa doçura e candura. Prova disso é que existem muitos gays que não são afetivos e heteros que não são agressivos. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Certa vez eu presenciei uma cena em uma loja de brinquedos. Um pai e uma mãe caminhando com um filho pequeno e um bebê de colo, no colo do pai. O filho menor foi até uma boneca e segurou no colo como o pai fazia. A atitude da criança causou uma reação imediata do pai que pediu para a mãe ‘tirar a boneca do menino’. O filho queria reproduzir o que o pai fazia e foi repreendido por ser homem brincando de boneca. O pai ficou apavorado e não enxergou o que estava na intenção do menino. E era uma loja de um lugar nobre de São Paulo. Então, a questão não é de classe.
Livro 'Diferentes desejos, sobre orientação afetiva sexual' de Cláudio Picazio./Foto: Reprodução

Pais e filhos devem entender que os filhos não nascem para suprir as expectativas dos pais. A gente existe para corresponder às próprias expectativas. O conselho de alguns colegas é dar um tempo para os pais absorverem a ideia. Isto é errado. Não é o filho gay que tem que dar suporte para estes pais, são os pais que devem dar suporte para os filhos gays. Esta história está errada. Temos nas famílias ainda um processo educacional que é equivocado: “eu vou tentar falar com aversão a respeito, para ver se ele deixa de ser”. Como se esta deseducação pudesse transformar alguém. As pessoas ainda acreditam que homossexualidade é uma opção. Não é. Mas, mesmo se fosse, requer respeito das pessoas. Eu já atendi vários casos de pais que se arrependeram porque os filhos se mataram. Na escola é preciso enfrentar e orientar os professores para detectar e combater o bullying. O bullying homofóbico é cometido de muitas maneiras. Uma risadinha, um olhar torto, chegando até a agressões verbais e físicas. Tudo é muito doido. Os gays escutam o todo tempo falar coisas a seu respeito que muitas vezes não são verdadeiras. Blindar este tipo de bullying, percebido todo o tempo, é muito difícil. Até porque são coisas veladas, como um tio que não te cumprimenta, pais que não te reconhecem. É tudo muito pesado. O processo terapêutico é fundamental para apoiar as vítimas deste bullying.

Sul21 – Já tivemos a oportunidade de falar sobre sexualidade com outros especialistas que acreditam que o futuro da humanidade será de relações bissexuais e/ou poligâmicas. O senhor partilha desta visão?

Cláudio Picazio – É muito controverso isso. O comportamento dos homens e mulheres pode ser bissexual. Homens podem transar com homens e mulheres, assim como mulheres como mulheres e homens. Podem existir relações múltiplas. Enfim, todas as formas de desejo. Agora, para as relações se tornarem bissexuais ou poligâmicas existe um elemento muito crucial que influencia o ser humano a não conseguir viver assim: o ciúme. A perda do objeto amoroso. As pessoas não se acostumam com isso. Os anos 70 não deram certo até hoje por causa disso. Não é possível assistir nossa amada ou amado transando com outro na nossa frente de forma feliz sempre. Em termos afetivos, temos capacidade de amar dois gêneros. Amamos nosso pai e mãe, irmãos e irmãs. Temos uma esfera amorosa que permite o amor por homens e mulheres, mas por um gênero temos desejo sexual e por outro não. Eu particularmente acredito que o futuro da humanidade é ter mais respeito por quem tem desejo erótico por homens ou mulheres, mas não que todos vão virar bissexuais ou poligâmicos. Temos mais liberdade para experimentar, porém, se um gay transa com uma mulher não vai deixar de ser gay e vice-versa. Ele teve uma atitude sexual de determinada orientação, mas o desejo sexual não muda sua orientação. A evolução humana tem que ser para não se preocupar mais com o desejo sexual dos outros. As nossas transas não serem uma espécie de preenchimento de currículo.
Psicólogo defende que orientação sexual é algo que nasce com o indivíduo, não é fruto da educação./Foto: Reprodução

Sul21 – Gostaria de encerrar com uma curiosidade em relação ao orgasmo masculino que o senhor defende: homens não tem orgasmo toda vez que ejaculam?

Cláudio Picazio – O mito do orgasmo masculino. Essa tese eu adoro. (risos) O homem não tem um orgasmo a cada ejaculação, ele tem um gozo. Ele tem um prazer, mas orgasmo é muito diferente. A grande excitação e a grande satisfação, é como perder os sentidos. Isso não é em toda relação que ele tem. Na rapidinha que ele dá, ele ejaculou, mas não foi o grande prazer erótico que o faz levitar, tremer as pernas. Existe um desconhecimento neste sentido e que gera uma perseguição em relação ao orgasmo. O mesmo para mulher. Às vezes as pessoas estão mais dispostas, mais tranquilas e vão conseguir ter. Outras vezes não estão tão confiantes ou excitados e não terão. E o problema é que isto é equiparado com felicidade. Se eu não tive um orgasmo eu não sou feliz. Se eu não enlouquecer na cama, eu não sou homem ou mulher. Mas a intimidade e o prazer não se resumem a ter orgasmo. Às vezes não gozar e só curtir a intimidade é super prazeroso e excitante. Não precisamos ficar escravos de mitos.

sexta-feira, 22 de junho de 2012

A pobre classe média na Espanha

Por Ana Muñoz Álvarez, no sítio da Adital: via BLOG DO MIRO
Mais de 400.000 famílias vivem graças à pensão dos avós. 22% da população estão em risco de pobreza e, segundo a ONU, a pobreza infantil atinge 26% das crianças. Não estamos falando de um longínquo país asiático ou da pobreza na África. São cifras da Espanha, até agora a quarta economia da zona do Euro.


A crise alterou a agenda e o calendário de muitas famílias. Pessoas que até agora viviam bem, tinham trabalho, casa, seus filhos, sua hipoteca... e que, hoje, têm que buscar ajuda junto a organizações como a Cáritas ou a Cruz Vermelha, para poder dar de comer a seus filhos. Um milhão e setecentas mil famílias espanholas estão com 100% de seus membros em situação de desemprego, e seiscentas mil famílias não dispõem de nenhuma fonte de renda. As organizações da sociedade civil espanhola já vinham alertando sobre a situação que poderia atingir a Espanha. 
"A crise trouxe à tona as coisas que estavam aí, mas parece que não eram vistas: desigualdades, injustiças...”, explicam membros da Cáritas. Relatórios de antes de 2008, quando a crise estava no começo, falavam que a Espanha não estava reduzindo os índices de pobreza. E essa era época de bonança! Hoje, colhemos o que foi plantado. Se crescia, havia trabalho...; porém, eram empregos precários e de baixa qualificação.

A infância e a terceira idade são os grupos mais vulneráveis em qualquer crise; e também no caso espanhol isso se repete. Segundo a Unicef, mais de dois milhões de crianças vivem em famílias cujo salário não chega ao fim do mês; recortaram sua lista de compras; não podem arcar com os gastos da lista de material escola. Porém, o pior, segundo os especialistas, ainda está por vir; e explicam que a pobreza infantil ainda pode crescer mais. Há uns dois anos, o perfil de pobreza infantil era o de uma crianças de classe baixa, de famílias desestruturadas ou unifamiliares. Atualmente, isso mudou. São crianças de classe média, que viviam bem, tinham de tudo...; porém, seus pais perderam o trabalho e enfrentam uma realidade difícil.

Na Cáritas explicam que muitas crianças que sofrem fracasso escolar passam por isso como um reflexo do fracasso social e familiar em que vivem. No entanto, a partir das organizações ressalta-se que não se trata de um fracasso do indivíduo, mas de um fracasso coletivo, do conjunto da sociedade, que não soube criar as redes suficientes para que as famílias não caiam no vazio.

Para muitas famílias, as pensões dos avós são a única entrada que recebem. Os avós voltam a exercer o papel de pais de família; os pais, o de filhos mais velhos; e os netos passam a ser filhos caçulas. Para os avós, essa é a quarta crise grave que viveram em democracia. São pessoas que trabalharam durante toda a sua vida e, hoje, voltam a ser o suporte da família; pagam as hipotecas dos filhos; ajudam a pagar o carrinho de compras...

A Cruz Vermelha alerta que 23% das famílias não podem comer nenhum tipo de proteína na semana; nem frango e nem embutidos. Muitas famílias não podem ligar a calefação, nem usar água aquecida.

O rosto da pobreza mudou nos últimos anos. Hoje, finalmente, percebemos que qualquer um de nós pode estar sujeito a fazer fila para receber alimentos da "caridade”. O egoísmo, a avareza, o individualismo, um capitalismo levado ao extremo... nos trouxe uma sociedade onde as desigualdades crescem. Estamos colhendo o que vou plantado. Porém, ainda podemos mudar as coisas. Vamos nos unir para que a voz do povo seja escutada, porque queremos outra Europa, outra sociedade, outra maneira de fazer política e de viver. E hoje, mais do que nunca, porque é necessário.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Entre James Joyce e Karl Marx

210612 joyceRepública da Irlanda - Vermelho - [Alexandre Pilati] Ullysses completa 90 anos. E se nos atrevêssemos a enxergá-lo como revelação do capitalismo dentro de nós?

Nos meios literários, junho é tradicionalmente um mês dedicado a reflexões sobre o Ulysses, romance revolucionário de James Joyce (1842-1941). No dia 16 deste mês, comemora-se o Bloom's Day, pois esta é a data em que se passa a ação do livro do autor irlandês. Em 2012, o "Dia de Bloom" é ainda mais especial, pois nos encontramos a noventa anos da publicação da obra. Além disso, o recente lançamento do filme Notícias da antiguidade ideológica (Versátil Home Video, 2011), de Alexander Kluge provoca a reflexão sobre a dinâmica de forças estéticas/filosóficas/históricas que envolvem os nomes de Marx, Joyce, Kluge e Eisenstein.
Nestes 90 anos, o Ulysses foi pródigo em espalhar mundo afora fascínio e polêmica. Como monumento incontornável da moderna literatura ocidental, o romance do autor irlandês não para de seduzir críticos, ao mesmo tempo que se conserva à prova de qualquer leitura que seja capaz de aludir à totalidade de sua eficácia estética. Como sempre ocorre em grandes obras, qualquer leitura do textoparece ser bem menor do que o próprio texto; mas isso, no seu caso específico, adquire uma consistência ainda mais lancinante. Se já é um tormento para os críticos do livro tentar acercá-lo e compreendê-lo, imaginemos o tamanho da tarefa de inverter um pouco a ordem natural da coisas e usar o Ulysses como método de compreensão de um construto crítico-teórico como O Capital, de Karl Marx (1818-1883).
O primeiro a se propor esse desafio foi o cineasta russo Sergej Eisenstein (1898-1948), que alimentou a ideia por fim malograda de filmar OCapital a partir do método estético empregado por James Joyce emUlysses. Joyce ansiava por conhecer Eisenstein, porque julgava que ele seria o único cineasta capaz de filmar o Ulysses. Por outro lado, o cineasta russo procurara Joyce porque julgava que O Capitalpoderia tornar-se filme estruturando-se de modo similar ao Ulysses, graças à concentração nos movimentos triviais de um homem comum em apenas um dia de sua vida.
No filme Notícias da Antiguidade Ideológica: Marx, Eisenstein, O Capital (Versátil, 2011), o escritor e cineasta alemão Alexander Kluge retoma o projeto de Eisenstein de maneira a potencializar alguns elementos de leitura do mundo contemporâneo bastante explorados tanto por Marx quanto por Joyce e o cineasta russo. É precisamente a partir do projeto não-realizado de Eisenstein, de filmar O Capital a partir do Ulysses, que nascem as nove longas horas do filme de Kluge. O cineasta alemão tem uma perspectiva interessante para a observação do pensamento de Marx, que está apresentada logo no início do texto do encarte que acompanha os DVDs:
- O Sr. Considera Karl Marx um poeta?
- Um poeta talentoso.
- Ele se senta na mais imponente biblioteca de Londres, faz excertos de historiografia e compõe uma história em forma de poesia em torno desses núcleos de fantasia?
- Assim surge o enfoque mais amplo de sua teoria.
- O sr. não estaria sendo injusto ao degradar esse materialista científico à condição de poeta?"
A partir desse texto de Kluge, lançamos uma hipótese para a verificação das forças interpretativas que se intercambiam em nosso quadrilátero de pensadores/artistas: tendo em vista a proposta de Kluge, não apenas o Ulysses pode ser usado como mediação ficcional para ler O Capital, mas também O Capital pode ser a mediação teórica necessária para conectar as experiências formais de Joyce emUlysses com a totalidade histórica de onde emanam tanto formas literárias quanto contradições objetivas formadoras da subjetividade sob a égide do capitalismo. O ponto de apoio para essa análise é o movimento dialético entre subjetividade e objetividade (afinal, não é esta a grande matéria dos poetas?!), ou, como afirma Kluge no texto do encarte que acompanha o conjunto de DVDs, a "longa marcha do mundo exterior para o interior do homem". Essa longa marcha estava entre as mais fundas aspirações de Eisenstein na pesquisa que engendra o conjunto de técnicas que caracterizava o seu método fílmico. Ademais, a dialética entre objetividade/subjetividade pode ser rastreada em todos os volumes de O Capital – de modo especial no primeiro, que trata mais especificamente da lógica da mercadoria e do seu alcance na organização social (coletiva) e psíquica (individual) do mundo capitalista. Mais que tudo isso, esta dialética interno/externo é uma chave para a leitura e a compreensão do imenso filme de Alexander Kluge, pois o cineasta alemão está claramente atento a ela. Lembremos a famosa passagem do Ulysses em que se contrasta a história com um pesadelo: "A história – disse Stephen – é um pesadelo de que tento despertar."i
História e poesia irmanam-se dialeticamente pela sua consistência de pesadelo e utopia. Dizendo mais: uma consistência de pesadelo que deriva precisamente do fato se ser uma forma consciente da necessidade da perspectiva da negatividade. Nesses termos, se a história (ou sua metanarrativa) é um pesadelo, a poesia é um jeito peculiar de acordar dele; por outro lado, a poesia também é um pesadelo, de que podemos acordar pela história. Unidas dialeticamente, história e poesia, tecem aos olhos do leitor atento um novo horizonte, ressignificando de uma vez por todas a palavra utopia. Assim, não haverá utopia sem o consórcio da poesia como interpretação do mundo e da história como narrativa de autoconsciência do homem relativamente ao seu lugar na luta de classes. Quando refletimos sobre esta relação história/poesia, estamos, nada mais nada menos, que operando intelectualmente, como Kluge e Joyce e Marx e Eisenstein entre o externo e o interno. Estamos nos acercando do dinamismo do próprio mundo. Um dinamismo que para Eisenstein é a própria força estruturante da forma dramática do filme.
Joyce tem, como poucos em seu tempo, uma consciência catastrófica relativamente ao avanço modernizador; algo que se exibe em seus textosii. Não são poucos os momentos em que o Ulyssesnos apresenta uma perspectiva duramente embebida em negatividade, ao descrever os movimentos triviais do mundo, os quais sem esforço podemos utilizar na composição de uma complexa mirada acerca da totalidade capitalista.
Mas pode Joyce ser historiador no Ulysses assim como Marx foi poeta no Capital? Sob certa perspectiva, poderíamos afirmar que sim; e poderíamos afirmar mais: essa consistência de revelação da história no Ulysses é um dos elementos-chave da sua atualidade. O que talvez tenha contribuído para instigar Kluge à tarefa de reler os textos de Marx não tanto com a intenção de "descrição da economia exterior e de suas 'leis', senão sobretudo o capitalismo dentro de nós." Essas contradições podem nos dar um mapa para a inteligibilidade da crise do capitalismo no início do século XXI.
Vejamos, por exemplo, a partir de um excerto do Ulysses, a problemática do entesouramento, que, conforme descrita por Marx, tem impactos no mundo objetivo e na consciência do homem ocidental. O entesouramento é um dos aspectos básicos, não é demais lembrar, para compreendermos as razões do desencadeamento da crise financeira de 1929, por exemplo; e para o clima de abalos e contradições da modernização a que o Ulysses de alguma forma dá visibilidade.
No capítulo "O catecismo", vemos a agudização dessa reificação irrestrita na descrição crua do que é a vida humana, perdida no fundo das gavetas. Não são apenas as coisas recônditas; mas o que somos nós dentro das gavetas. Vejamos o parágrafo por inteiro:
"O que continha a segunda gaveta?
Documentos: a certidão de nascimento de Leopold Paula Bloom: uma apólice de seguro de £500 na Sociedade de Seguros das Viúvas Escocesas em nome de Millicent (Milly) Bloom, resgatável aos 25 anos de idade com uma apólice nominal de £430, £462-10-0 e £500 aos 60 anos ou morte, 65 anos ou morte e morte, respectivamente, ou com apólice nominal (à vista) de £299-10-0 junto com pagamento em dinheiro de £133-10-0, opcionalmente: uma carteira bancária para o semestre terminaria em 31 de dezembro de 1903, saldo em favor do correntista: £18-46-6 (dezoito libras, catorze xelins e seis pence, esterlinos), bens líquidos: certificado de posse de £900, títulos a 4% (autenticados) do governo canadense (livres de taxação): extrato de ata do Comitê do Cemitérios (Glasnevin), referente a uma sepultura adquirida: um recorte da imprensa local a propósito de uma mudança de nome por processo cível."iii
Atentemos neste trecho do Ulysses para a forma como a linguagem se dobra à instrumentalização da lógica do dinheiro para dar a ver precisamente as contradições de seu alcance avassalador. Num parágrafo que principia falando de nascimento e termina falando de morte, temos a hipoteca de toda uma existência à especulação financeira. São títulos, bens, seguros, ações. Valores que tilintam, ainda que sem a forma de ouro ou de moeda. Trata-se uma belíssima metáfora do conceito marxista de entesouramento. "O que sou é o dinheiro; a vida minha é meu acúmulo": é o que parece nos dizer uma alma fantasmagórica de dentro da gaveta.
Marx dizia que o dinheiro deve, no capitalismo, possuir a consistência elástica e fantasmagórica de uma matéria capaz de expandir-se e contrair-se. Não nos esqueçamos de que a vida cabe numa gaveta e que Marx diz assim em O Capital: "Para reter o ouro como dinheiro e, portanto, como elemento de entesouramento, é necessário impedi-lo de circular ou de dissolver-se como meio de compra, em artigos de consumo. O entesourador sacrifica, por isso, ao fetiche do ouro os seus prazeres da carne. Abraça com seriedade o evangelho da abstenção."iv
Para sobreviver, o dinheiro no capitalismo depende de que o entesouramento não seja excepcional, mas sim sistêmico, trivial. O homem comum cumpre o entesouramento, no fundo da gaveta mais comum. A disposição reveladora de Joyce está em desejar articular tudo isso aos movimentos orgânicos do personagem, mostrando que o entesourar é tornar-se homem comum, homem médio, pedestre. Um homem como Bloom é um entesourador comum: sem o "defeito" excepcional da avareza, mas com a virtude trivial da "precaução". Trata-se de alguém que incorpora a mercadoria ao próprio existir, com isso garantindo os fluxos de expansão e retração necessários à manutenção da lógica do dinheiro no capitalismo. A força da narrativa de Joyce está em revelar o dado sistêmico, global e total do comum. Não é a excepcionalidade que revela a totalidade, mas a forma despercebida e às vezes dispersa com que o cotidiano anuncia as forças da dinâmica histórica global. O método – concentrar-se nas minúcias aparentemente mais insignificantes – tornou possível um dos relatos da vida cotidiana mais completos já apresentados por um romancista.
Lendo Marx a partir da literatura, como fez Kluge (e como aqui ensaiamos) colocamo-nos diante de algumas das mais instigantes formas de questionar os mitos pós-modernos de que a história acabou e de que o único horizonte possível é a não-superação (ou no máximo domesticação) do capitalismo. A dinâmica de forças que está por trás do quadrilátero Marx-Kluge-Joyce-Eisenstein inclui certamente a ideia de que as contradições da práxis ainda podem ser captadas pela literatura, pela crítica ou pelo cinema. Ativar essas contradições já uma boa justificativa para a tarefa monumental de ler Ulysses através do Capital e de ler O Capital através do Ulysses. Se essas contradições ainda podem ser ativadas, a história em seu dinamismo peculiar permanece e nos persegue: como um pesadelo, ou como a utopia.
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Alexandre Pilati é professor de literatura brasileira da Universidade de Brasília. Autor, entre outros, de A nação drummondiana (7letras, 2009).
iJOYCE, James. Ulysses. Trad. A. Houaiss. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996. p. 30.
iiA esse respeito consultar o ensaio de Franco Moretti "O longo adeus: Ulysses e o fim do capitalismo liberal". In MORETTI, Franco. Signos e estilos da modernidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
iiiJOYCE, James. Ulysses. Trad. C. Galindo. Cia das Letras: 2012, p.1018.
ivMARX, Karl. O Capital. Livro I, vol. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1985. p.253.
Fonte: O Outro Lado da Notícia