domingo, 21 de outubro de 2012

Che Guevara: uma biografia - Jon Lee Anderson

 





O anjo e o demônio
“Ali, onde o amor desperta, morre o eu, déspota sombrio”
O ser humano é multifacetado e esta é a beleza da humanidade Não somos nem anjos e nem demônios, mas um amálgama de desejos, sonhos e ações. Ainda assim, tendemos a cair na armadilha do maniqueísmo. A forma como analisamos a vida e a morte do revolucionário argentino Ernesto “Che” Guevara é um exemplo disso.
Quarenta e cinco anos após sua execução na Bolívia, sua imagem ainda divide opiniões, apaixonadamente. Endeusado por setores da esquerda como exemplo da pureza socialista, de homem de bem. Execrado por setores da direita como um assassino sanguinário, personificação do mal. Ambas as leituras deixam de lado o ser humano Ernesto. Menino, adolescente, homem repleto de virtudes e de defeitos, desejos e esperanças.
A maioria das obras sobre sua vida é formada por hagiografias oficiais cubanas ou demonizações montadas por inimigos políticos. É fato que Che encarnou todo o horror proveniente da cegueira ideológica que justifica os atos mais monstruosos em nome de uma causa superior, de uma verdade absoluta. É fato, também, que abriu mão de tudo o que estimava para lutar e morrer em um campo de batalha estrangeiro tendo em mente a construção de um mundo melhor.
Fruto de um trabalho hercúleo do escritor Jon Lee Anderson, o livro “Che Guevara: uma biografia” – cuja edição revisada foi lançada recentemente e cuja leitura finalizei esta semana – aborda com maestria esta dicotomia em uma viagem fascinante pela vida e pensamento de Che.
O livro de Anderson nos leva a uma jornada que aponta os caminhos que concretizaram a formação de seu caráter e, posteriormente, a construção de sua base político-ideológica que desagua em uma série de acontecimentos que transformaram um jovem argentino de classe privilegiada em um revolucionário internacional, revelando, ainda, como, no choque entre a bigorna e o martelo, surgiu um homem apaixonado por uma ideia e disposto a matar e morrer por ela.
Confrontado pelas marcantes diferenças sociais com que se deparou em suas andanças pelas Américas do Sul e Central na década de 50, e pela constante e despótica ingerência norte-americana na região durante o início da Guerra Fria, Che alimentou pouco a pouco uma concepção de mundo na qual o enfrentamento entre as massas exploradas do continente e o imperialismo norte-americano seria inevitável. Posteriormente, esta concepção encontrou o respaldo teórico no marxismo e, em última instância, na luta armada.
Para Che, a política era um mecanismo para as mudanças sociais e eram elas, e não o poder em si, que o impeliam. Mas é exatamente na manipulação prática do poder, em uma opção ideológica focada no marxismo, que repousa o principal equivoco de Che (e dos demais movimentos revolucionários de esquerda que irromperam no entre as décadas de 60 e 70): a supressão do indivíduo e da individualidade pela força e pela coerção, a adoção da “fé socialista” em detrimento das mais básicas noções de humanidade. Em suas próprias palavras: “Não lhe posso dizer, nem aproximadamente, em que momento deixei o caminho da razão e adotei algo parecido com a fé, porque o caminho foi muito longo e com muitos passos para trás.”.
Este caminho, cujo início é marcado por “Nota al Margen”, texto escrito por Che em Buenos Aires retratando suas experiências na Guatemala, levou-o a uma encruzilhada que, alguns anos depois, culminou em sua morte.
“O futuro pertence ao povo e, pouco a pouco, ou de um só golpe, ele vai tomar o poder, aqui e no mundo inteiro. O ruim é que eles têm de se civilizar e isso não pode acontecer antes, mas só depois que tomarem o poder. Eles se tornarão civilizados somente aprendendo às custas de seus próprios erros, que serão graves, e que custarão muitas vidas inocentes. Ou talvez não, talvez não sejam inocentes, porque terão cometido o imenso crime contra natura, que significa sua falta de capacidade de se adaptar. Todos eles, todos os que não forem adaptáveis, você e eu, por exemplo, morrerão amaldiçoando o poder que nós, com enorme sacrifício, ajudamos a criar”.
O texto acima é a primeira expressão de Che da abstração do “eu” em prol do “nós”. Ocorre que não existe “nós” sem o “eu”.
“Quando a sociedade chega a certo estágio de desenvolvimento e é capaz de iniciar a dura luta de destruir o poder opressor, de destruir seu braço forte, o Exército, e de tomar o poder, então o homem recupera uma vez mais a antiga sensação de felicidade no trabalho, a felicidade de cumprir com um dever, de se sentir importante dentro do mecanismo social. Torna-se feliz por se sentir um dente na engrenagem, um dente que tem suas próprias características e é necessário, embora não indispensável, para o processo produtivo, um dente consciente, um dente que tem seu motor próprio, e que tenta conscientemente esforçar-se mais e mais a fim de levar a um feliz desfecho uma das premissas da construção do socialismo: a criação de uma quantidade suficiente de bens de consumo para toda a população.”
O hábito de Che de se referir ao povo, aos trabalhadores, como peças de maquinaria permite vislumbrar seu distanciamento emocional da realidade individual. Ele tinha a mentalidade friamente analítica do pesquisador médico e do jogador de xadrez. Os termos que empregava para os indivíduos eram redutores, enquanto o valor do trabalho no contexto social era idealizado, apresentado liricamente.
Em carta a mãe, disse: “A noção do ‘eu’ desapareceu inteiramente, para dar lugar a noção do ‘nós’. Era um ponto da moral comunista e, naturalmente, pode parecer um exagero doutrinário, porém realmente foi (e é) maravilhoso ser capaz de sentir a remoção do ‘eu’”.
“Che Guevara agora estava em guerra, tentando criar uma revolução. Fizera um salto consciente de fé e entrara em um domínio no qual se podiam tomar vidas por um ideal e os fins de fato justificavam os meios. As pessoas não eram mais apenas pessoas. Cada uma representava um lugar dentro de um esquema global das coisas e poderia ser vista, na maioria das vezes, como amiga ou inimiga”, reflete Anderson.
Che abraçara a revolução como a encarnação definitiva das lições da história e como o caminho correto para o futuro. Agora, convencido de que estava certo, olhava em volta com os olhos de um inquisidor em busca daqueles que poderiam pôr em perigo sua sobrevivência.

É exatamente este ponto da personalidade de Che, a capacidade abstrair-se do indivíduo, da micro-humanidade, em prol de uma visão macro do homem é que mais me fascina, de uma forma negativa, porém. Seu pai, geralmente tão míope em relação ao filho, escreveu: “Ernesto tinha brutalizado sua própria sensibilidade” para se tornar um revolucionário.
Alberto Granado – que percorreu a América Latina com Che em 1952 - recordou uma conversa em que assinalou o que, na sua opinião, era a diferença fundamental entre os dois. Che era capaz de olhar pela luneta de um fuzil para um soldado e puxar o gatilho, sabendo que, ao mata-lo, estava “salvando 30 mil futuras crianças de viver na fome”, enquanto ele, Granado, veria um homem com esposa e filhos.
Este afastamento da realidade – mesmo que em prol de um ilusório bem maior – é o grande símbolo dos totalitarismos de esquerda, a vala na qual todas as experiências do socialismo real atolaram e sucumbiram.
O trecho a seguir é um exemplo da frieza cortante do revolucionário.
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Alguns dias depois, os irmãos testemunharam um exemplo da justiça sumária de Che. Enrique Acevedo relembrou essa ocasião de forma vívida: “De madrugada, trouxeram um homem grande, com uma farda verde, cabeça raspada como os militares, bigodes grandes: é [René] Cuervo, que anda causando encrencas na zona de San Pablo de Yao e de Veja la Yua. Cometeu abusos sob a bandeira do 26 de Julho (...). Che o recebe deitado na rede. O prisioneiro lhe estende a mão, mas não encontra resposta. O que dizem não chega aos nossos ouvidos, embora se perceba que o tom é duro. Parece ser um julgamento sumário. No final, [Che] o manda embora com um gesto de desprezo com a mão. Levam-no para uma ravina e o executam com um rifle de calibre 22, tendo que dar três tiros. [Finalmente] Che salta da rede e berra: Basta!
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A banalização da vida também é marcada por este trecho do diário de Che no qual ele se admoesta por uma “fraqueza” durante os combates. “Houve um pequeno combate e recuamos com muita rapidez. A posição era ruim e eles nos cercavam, mas oferecemos uma pequena resistência. Pessoalmente, notei algo que nunca sentira antes: a necessidade de viver. Isso precisa ser corrigido na próxima oportunidade.”.
Ora, nada mais amedrontador. Um homem capaz de suprimir sua própria necessidade de viver, fatalmente ampliará esta exigência aos demais. Não seria incorreto imaginar que Fidel Castro usou esta faceta de Che para que o argentino fizesse o trabalho sujo enquanto Castro tratava de assegurar sua liderança frente aos muitos grupos políticos envolvidos na vitória da revolução sob a bandeira do Movimento 26 de Julho.
Para Anderson, Fidel precisava de Che para a indispensável tarefa de expurgo do antigo Exército, para consolidar a vitória aplicando a justiça revolucionária contra os traidores, os chivatos (informantes do regime) e os criminosos de guerra de Batista. Che se transformou no promotor supremo, aquele que tomava a decisão final sobre o destino dos homens. E, pela revolução, não se furtou desta incumbência.
Em Janeiro de 1960 o arquiteto Nicolás Quintana teve um encontro marcante com Che – já um prócere da revolução. “Ele me disse: ‘Olhe, as revoluções são feias, porém necessárias, e parte desse processo revolucionário é a injustiça a serviço da justiça futura’”, recordou Quintana. “Jamais conseguirei esquecer essa frase. Repliquei que isso era a Utopia de Thomas Moore. Disse que nós tínhamos ficado na merda por causa dessa história durante muito tempo, por acreditarmos que conseguiríamos alguma coisa, não agora, mas no futuro.
Che ficou olhando para mim por um tempo e falou: ‘Bem. Você não acredita no futuro da revolução.’ Eu lhe disse que não acreditava em nada que fosse baseado na injustiça."
Che então lhe perguntou: “Mesmo que a injustiça seja salutar?”
Ao que Quintana retrucou: “Não creio que, para os que morrem, você possa falar em injustiça salutar.”
A resposta de Che foi imediata: “Você tem que deixar Cuba. Tem três opções: vai embora de Cuba e não há problema nenhum comigo, ou trinta anos [na prisão] no futuro próximo, ou o pelotão de fuzilamento.”
É fascinante perceber que por detrás desta frieza havia também um homem amoroso, ainda que este amor estivesse profundamente contaminado pela ideologia.
Em sua carta de despedida aos cubanos ao embarcar secretamente a Bolívia, Che diz: “Deixem-me dizer, correndo o risco de parecer ridículo, que o verdadeiro revolucionário é guiado por fortes sentimentos de amor. É impossível pensar em um revolucionário autêntico sem essa característica. Este é, talvez, um dos maiores dramas de um líder: ele precisa combinar um espírito apaixonado com uma mente fria, e tomar decisões dolorosas sem mexer um músculo. Nossos revolucionários de vanguarda precisam idealizar seu amor pelo povo, pelas causas mais sagradas, e torna-lo uno e indivisível. Eles não podem se rebaixar, com pequenas doses de afeto diário, aos lugares onde os homens comuns põem seu amor em prática”.
Em Che, a nossa dicotomia humana está presente, à flor da pele, escancarada. Eles estão ali, visíveis, o anjo ao lado do demônio.
“O que o levou a resolver operar em nosso país?”, perguntou o Coronel Andrés Selich ao seu prisioneiro, Che Guevara, em La Higuera, na Bolívia, sete anos depois do encontro com Quintana.
“O senhor não vê o estado em que vivem os camponeses?”, perguntou Che. “São quase como selvagens, vivendo em um estado de pobreza que deprime o coração, tendo apenas um aposento no qual dormem e comem, sem roupas para vestir, abandonados como animais (...).”
É terrível observar uma de suas últimas fotos, na qual Che aparece como uma fera selvagem subjugada, o rosto magro voltado sombriamente para baixo, os cabelos compridos emaranhados, os braços amarrados na frente do corpo, ao lado do agente cubano-norte americano Félix Rodriguez, da CIA, logo após a execução de Willy (Simeón Cuba Sarabia).
Seus últimos momentos, narrados por Anderson, são de uma força emocional estupenda e nos fazem conjecturar se no fim ele pensou em si mesmo como um homem, um indivíduo real em meio à coletividade subjetiva.
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Rodriguez levou Che de volta para dentro da escola e retomaram a conversa, mas foram interrompidos por mais disparos. Dessa vez o executado foi, ao que consta, Juan Pablo Chang, que fora capturado, ferido, e trazido com vida naquela manhã. A essa altura, os corpos de Aniceto e Pancho, que tinham sido abatidos na ravina, também estavam ali. “Che parou de falar”, recordou Rodriguez. “Não disse nada sobre os tiros, mas seu rosto espelhava tristeza e ele sacudiu a cabeça várias vezes, lentamente, de um lado para o outro. Talvez tenha sido nessa instante que se deu conta de que ele também estava condenado, embora eu não lhe tenha dito nada até pouco antes de uma da tarde”.
Rodriguez viu que não podia retardar mais e voltou para dentro da escola. Entrou na sala de Che e disse que estava triste, que fizera tudo que podia, mas as ordens tinham vindo do alto-comando boliviano. Ele não terminou a frase, mas Che entendeu. Seguindo Rodríguez, o rosto de Che ficou momentaneamente pálido, e ele disse: “É melhor assim (...). Eu nunca deveria ter sido capturado vivo”.
Rodriguez perguntou se ele tinha alguma mensagem para sua família, e Che lhe pediu para “dizer a Fidel que ele logo verá uma revolução triunfante na América (...) E diga à minha mulher que se case de novo e tente ser feliz”.
Diante disso, Rodríguez contou, ele deu um passo à frente para abraçar Che. “Foi um momento tremendamente emocionante para mim. Não o odiava mais. Sua hora da verdade tinha chegado e ele estava se portando como homem. Estava encarando sua morte com coragem e elegância.”
Pouco depois Che foi fuzilado pelo sargento Mario Terán, era uma e dez da tarde do dia 9 de outubro de 1967. Ele tinha 39 anos.

Crianças fora da escola

 



  
 
No mundo, 215 milhões de meninos e meninas trabalham para sobreviver ou complementar a renda de suas famílias
 
 
Frei Betto no BRASIL DE FATO
 
Os dados, divulgados pelo IBGE em fins de julho, são alarmantes: 3% do total de crianças brasileiras de 6 a 14 anos se encontram fora da escola, o que representa quase 1 milhão de excluídos dos bancos escolares. Se incluirmos o contingente de 4 e 5 anos e de 15 a 17, o percentual aumenta para 8%, ou seja, 3,8 milhões de crianças e adolescentes.
O Amazonas é o estado que apresenta maior número de crianças de 6 a 14 anos fora da escola – 8,8%. Ali, as distâncias e as dificuldades de transporte pesam no índice. Já Santa Catarina aparece na pesquisa como o estado onde há maior inclusão escolar. Apenas 2,2% daquela faixa etária estão fora da escola.
Nenhum estado do país conseguiu, até hoje, incluir todas as crianças de 6 a 14 anos na escola. A pesquisa do IBGE revela ainda que, dessas crianças desescolarizadas, 62% já frequentaram a escola por algum tempo, mas abandonaram os estudos.
As razões da evasão escolar precoce são muitas. As mais frequentes, porém, são a falta de interesse (falha pedagógica dos educadores), repetência, gravidez precoce e o imperativo de ingressar no mercado de trabalho para ajudar a família.
A desescolaridade provoca na criança e no adolescente baixa autoestima, tornando-os vulneráveis a propostas ilusórias de enriquecimento e consumismo fáceis através do tráfico de drogas e outras práticas criminosas.
O programa “Todos pela educação”, do qual participo, estabelece 5 metas até 2022, data do bicentenário da independência do Brasil: 1) 98% das crianças e jovens entre 4 e 17 anos devem estar matriculados e frequentando a escola; 2) 100% das crianças deverão apresentar as habilidades básicas de leitura e escrita até o final da 2a série ou 3o ano do ensino fundamental; 3) 70% ou mais dos alunos terão aprendido o que é essencial para a série que cursam; 4) 95% ou mais dos jovens brasileiros de 16 anos deverão ter completado o ensino fundamental e 90% ou mais de 19 anos deverão ter completado o ensino médio; 5) O investimento público em educação básica deverá ser de 5% ou mais do PIB.
São metas elementares e, no entanto, essenciais para qualificar as gerações futuras e permitir ao nosso país acesso ao desenvolvimento sustentável com justiça social. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT ), no mundo 215 milhões de meninos e meninas trabalham para sobreviver ou complementar a renda de suas famílias. Dessas crianças, metade está exposta a condições degradantes de trabalho, como escravidão, servidão por dívidas, exploração sexual com fins comerciais e atuação em conflitos armados.
O governo brasileiro já desenvolve intensa campanha contra a exploração sexual de crianças e o trabalho infantil. No entanto, é preciso aprimorar o combate a toda forma de violência contra crianças, em especial no âmbito familiar. Há que considerar também como violência à infância a extrema pobreza e determinados conteúdos do ciberespaço, pelo qual atuam os pedófilos e disseminadores de pornografia.
 
Frei Betto é escritor, autor do romance Minas do ouro (Rocco), entre outros livros.

sábado, 20 de outubro de 2012

80 anos – A linhagem sagrada de Andrei Tarkovsky

 


Andrei Tarkovsky (1932-1986): apenas sete filmes lhe garantiram um lugar central na história do cinema | Foto: Divulgação
Publicado na Revista Continente
 
Andrei Tarkovsky entrou para a história do cinema com apenas sete longas-metragens, cinco deles feitos na União Soviética e os outros dois na Itália e na Suécia, na década de 1980, já no exílio. Seu legado, entretanto, não é exclusivamente cinematográfico. Seguindo uma tradição russa de artistas que são também teóricos da arte – entre o final do século 19 e o começo do século 20, Tolstoi escrevera seu polêmico ensaio O que é a arte?, Kandinsky, o livro Do espiritual na arte, e Malevitch, junto com o poeta Maiakovsky, o Manifesto Suprematista –, Tarkovsky escreveu (“por falta de coisa melhor a fazer”, como ele dizia) um dos mais influentes e poderosos escritos teóricos sobre o cinema: o livro Esculpir o tempo.
Tarkovsky – cujo pai, Arseni, era poeta – nasceu num pequeno vilarejo a cerca de 350 quilômetros de Moscou, em abril do ano de 1932. A família com esse nome surgiu há aproximadamente sete séculos, e, até meados do século 19, o Principado Tarkovsky existiu na região do Cáucaso – sua linhagem espiritual, contudo, parece ser muito mais antiga do que a genealógica.
O apuro visual de A infância de Ivan (1962) | Foto: Divulgação
Depois de realizar o seu primeiro longa-metragem, A infância de Ivan (1962), que ganhou o Leão de Ouro no Festival de Veneza, concorrendo com diretores como Kubrick, Godard e Pasolini, Tarkovsky partiu para um ambicioso projeto: retratar uma figura central da cultura e da ortodoxia russa, Andrei Rublev, pintor de ícones do século 15. A falta de informações existentes sobre a vida de Rublev, em vez de uma dificuldade, foi uma grande oportunidade para o seu gênio criador. O resultado foi um filme de 3 horas e 20 minutos, em preto e branco, com exceção da cena final, colorida, em que surgem os ícones dourados pintados por Rublev.
O épico Andrei Rublev: obra-prima absoluta | Foto: Divulgação
Ao fazer um épico sobre o pintor de ícones medieval, que incorpora uma tradição pictórica que vem desde Bizâncio, Tarkovsky não se liga a uma tradição de arte religiosa de inspiração cristã? O fato é que ele viveu num contexto político em que esses temas religiosos, se não proibidos, eram mal vistos pelas autoridades soviéticas, que então seguiam a cartilha marxista-leninista. Rublev, contudo, era uma símbolo internacional da arte russa, e o quinto centenário do seu nascimento ajudou Tarkovsky a aprovar ideológica e financeiramente o seu projeto.
Depois de pronto, entretanto, o filme foi apresentado ao presidente soviético Leonid Brejnev e, em seguida, censurado, sob alegação de passar uma imagem negativa da história da Rússia. Apesar da censura, o diretor do Festival de Cannes já havia visto a película e, junto à direção do Festival de Veneza, ameaçou não incluir mais nenhum filme soviético, caso Rublev não fosse permitido. O filme não só participou em Cannes como ganhou o prêmio da crítica internacional, o que possibilitou a sua exibição em todo o mundo.
O interesse de Tarkovsky na história residiu no profundo paradoxo entre a obra de Rublev, reconhecida universalmente pela serenidade e harmonia, e o contexto social em que ele viveu, de guerras sangrentas, fome e morte – tudo que foi retratado no filme e que desagradou as autoridades soviéticas. Terá Tarkovsky, homem de interesses metafísico-religiosos, vivendo em plena Guerra Fria na União Soviética, se identificado com a situação paradoxal de Rublev? A questão é mais ampla do que essa. Parece haver uma afinidade estética entre ele e o pintor medieval, e, mais do que estética, uma afinidade espiritual entre a sua arte imagética e a tradição iconográfica.
“Se eu usar cores muito marcantes o filme se caracterizará por elas” | Foto: Divulgação
Ídolo e ícone
No livro O ícone – Uma escola do olhar, Jean-Yves Leloup faz uma distinção entre ídolo e ícone. O primeiro seria qualquer forma de representação religiosa que prende o olhar em si mesmo, pelas formas, cores ou movimentos que chamam a atenção, provocando emoções. O ícone, ao contrário, não tem movimento nem profundidade, as cores e formas obedecem a padrões tradicionais. Nele, a transcendência é o fator essencial, a intenção é mostrar o “Invisível no visível, Presença na aparência”. Mas como relacionar uma arte tão antiga como a iconografia com uma tão nova como o cinema? Tarkovsky criticava tanto o modelo de criação cinematográfica que coloca a emoção como objetivo primordial, a saber, o modelo hollywoodiano de cinema comercial, como o modelo que coloca o intelecto no centro dessa atividade – os chamados filmes de arte.
Ele se mostrou profundamente decepcionado, por exemplo, com o que viu nos festivais de Cannes dos quais participou, de diretores como Fellini, Polanski, etc. Podemos dizer que o cinema que Tarkovsky rechaça seria como o ídolo de que fala Leloup? Para ele, “um artista sem fé é como um pintor que houvesse nascido cego”: a “função” do seu cinema é, portanto, essencialmente espiritual. Ele se recusava a usar cores vivas nos seus filmes (“Se eu usar cores muito marcantes o filme se caracterizará por elas”), repelia a expressividade excessiva dos atores (o recém falecido Erland Josephson, ator preferido de Bergman, afirmou certa vez, em entrevista, a imensa dificuldade em interpretar como Tarkovsky queria: sem emoção, de modo que o espectador pudesse livremente interpretar o que estivesse vendo). Além disso, ele dispensava o uso da música como muleta para produzir efeitos pré-definidos e, o que foi motivo da sua principal divergência com Eisenstein, negava os excessos da montagem.
Enfim, Tarkovsky buscava a pureza, podemos dizer até infantil, do olhar cinematográfico, que aspira a um hieróglifo da verdade – o mesmo poderia ser dito do ícone e sua tradição, com os quais Tarkovsky, desde muito cedo, teve contato em seu país natal. As semelhanças são profundas e podem indicar uma ancestralidade espiritual, coisa estranha a uma arte nova como o cinema, mas que é muito rica para a compreensão do fenômeno artístico como um fenômeno que transcende o tempo e o espaço.
1 Josias Teófilo, jornalista, é mestrando em Filosofia pela Universidade de Brasília com o tema A cumplicidade espiritual: o papel social do artista segundo Andrei Tarkovsky no filme Andrei Rublev.
Foto: Divulgação

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Para aonde vai a “Democracia Socialista”? Final

 


Andreas Maia no ESQUERDA MARXISTA
 
A DS, o Estado e a Revolução
 
Chegamos na última parte de nossa polêmica com a DS, a mais importante¸ dedicada ao Estado capitalista. A discussão sobre o papel do Estado capitalista sempre esteve presente na polêmica entre todos os defensores da estratégia reformista e os revolucionários marxistas. Os dirigentes da DS conhecem bem esta discussão, pois ela sempre esteve presente em todos os grandes debates ocorridos no movimento operário brasileiro, e em particular, dentro da luta interna no PT. Desde o 5º ENPT, em 1987, que consagrou o reformismo das Frentes Populares, até o recente 4º Congresso que ratificou a política do governo Dilma Roussef, o fio condutor de toda a discussão entre as tendências do partido, no fundo, estava a questão do papel do Estado.
Vejamos o que a DS diz hoje sobre o Estado:
“Uma tradição do socialismo democrático deve ser capaz de superar estes limites teóricos e históricos da social-democracia a partir da perspectiva de construção de um novo Estado, baseado no autogoverno e no planejamento democrático, que conduza a uma afirmação inédita dos direitos dos trabalhadores e a um planejamento púbico democrático, capaz de se projetar continentalmente e internacionalmente em torno de um programa de mudanças da ordem capitalista”. E continua:
“A construção de um Estado da Solidariedade, Feminista, Multiétnico, a partir dos valores do socialismo democrático, é possível e viável historicamente pela conquista do governo por parte de uma coalizão liderada por um partido do socialismo democrático por longo período em uma dinâmica crescente de revolução democrática e, pelo caráter semi-periférico do país que já construiu elementos públicos importantes de formação de um Estado do Bem-Estar social, apresentando um quadro crescente de formalização da mão-de-obra e de cobertura previdenciária. A possibilidade de que o Brasil viva um novo ciclo sustentado, inclusivo e distributivo, de crescimento significa exatamente a criação de uma massa crescente de excedentes que podem e devem ser reinvestidos em políticas sociais de caráter universalizante, conformando uma macro-economia dinâmica do setor público na área de bens e serviços fundamentais”.
Que Estado é esse da “Solidariedade, Feminista, Multiétnico” e do “Bem Estar Social”? Qual o caráter de classe deste Estado? Que coalizão é essa “liderada pelo partido do socialismo democrático” que vai construir esse novo Estado? A linguagem ambígua e rebuscada do texto serve para ocultar a verdadeira natureza da proposta. Um militante da DS para entender a política dos seus chefes vai ter que fazer uma enorme ginástica intelectual. Vamos tentar entender. A DS afirma em suas teses que não está na ordem do dia a abolição do capitalismo, pois “o país não tem cultura” para isso. Portanto estamos falando do Estado capitalista, mas isso eles não dizem. Falam do Estado da “Solidariedade, Feminista, Multiétnico”  que vai gerar o “Estado de Bem Estar Social”. Se nesta proposta consiste em preservar as relações de propriedade existentes, então a DS acabou de inventar o capitalismo de “Bem Estar Social” e um Estado burguês “solidário, feminista e multiétnico”, pois é disto que eles estão falando só que usam expressões sofisticadas e rebuscadas para deliberadamente  ocultar o fato de que o único poder que eles reconhecem é o poder da burguesia.
Isto é tão verdadeiro que a “coalizão liderada por um partido do socialismo democrático” que vai implementar “uma dinâmica crescente de revolução democrática” é a coalizão que existe, com a base aliada, com os partidos burgueses, com Sarney, Collor, Michel Temer e Sergio Cabral & Cia. Pois até agora são esses os aliados do PT no governo, e não os sindicatos, a CUT, as organizações populares. Pois do contrário, a DS deveria exigir que o PT rompa com os ministros capitalistas, com os partidos burgueses. Mas isso ela não faz. A resposta para esta atitude vem adiante:
“A possibilidade de que o Brasil viva um novo ciclo sustentado, inclusivo e distributivo, de crescimento significa exatamente a criação de uma massa crescente de excedentes que podem e devem ser reinvestidos em políticas sociais de caráter universalizante, conformando uma macro-economia dinâmica do setor público na área de bens e serviços fundamentais”.
Não podia ser mais claro. Trata-se aqui de expandir o capitalismo, o agro negócio, as commodities, o poder dos monopólios multinacionais, a especulação financeira, as privatizações, a devastação ambiental, o regime social de exploração da classe trabalhadora, e gerar com isso, quem sabe, um “excedente” para as compensações sociais. Ou seja, as migalhas que caem da mesa dos capitalistas, empresários e banqueiros e que vão desaparecer como fumaça na hora em que capitalismo entra em crise. E tudo isso em nome de uma república fictícia chamada de “Solidariedade Feminista Multiétnica” e de uma via para um socialismo a ser comemorada nos dias festas. Dessa forma, esse “novo Estado” refundado, com um caráter tão nobre e democrático, não passa do velho aparato burocrático militar do Estado capitalista, que se mascara na política oficial do “governo para todos”. A função dos reformistas no governo consiste em mascarar a natureza do Estado através das políticas de colaboração de classes, que no fundo, consistem em enganar a classe trabalhadora e sabotar a sua força reivindicativa.
Mas fazemos questão de desmascarar estes oportunistas mostrando o que o marxismo revolucionário entende pela natureza do Estado capitalista. Vamos retomar aqui alguns conceitos clássicos do marxismo.
O Estado é produto de contradições de classe inconciliáveis. Segundo o marxismo revolucionário, o Estado é um organismo de dominação de classe, um organismo de opressão de uma classe por outra; é a criação de uma “ordem” que legaliza e fortalece esta opressão diminuindo o conflito de classes.
Lênin deixa bem claro a natureza do estado que os reformistas fazem questão de ocultar:
“Mas perde-se de vista ou se oculta o seguinte fato: se o Estado nasce do fato de que as contradições de classe são inconciliáveis, se ele é um poder colocado acima da sociedade e que se torna cada vez mais estranho a ela, está claro que a libertação da classe oprimida é impossível, não sómente sem uma revolução violenta, mas também sem a supressão do aparelho do poder do Estado que foi criado pela classe dominante e no qual está materializado este caráter estranho.” (Lênin, O Estado e a Revolução).
Aí está de forma clara e cristalina o verdadeiro conceito marxista acerca do Estado burguês. Esse aparelho burocrático do Estado capitalista “cada vez mais estranho à sociedade” é um instrumento de dominação da burguesia sobre o proletariado e a todas as massas oprimidas. É um instrumento de opressão que pode e deve ser destruído por meio de uma revolução e não por reformas graduais como dizem os reformistas. O esqueleto do aparelho de estado burguês deve ser destruído osso por osso. Por se recusarem a romper com a burguesia, expulsando-a do poder, os reformistas podem ter o governo mas não o poder. É por isso que a política reformista sempre fracassa, não faz reforma alguma e aplica duramente todas as políticas preconizadas pela burguesia.
O Estado é um comitê para melhor gerir os negócios da burguesia. Os reformistas dentro da classe operária fazem de tudo para mistificar o papel do Estado, um “Estado para todos”, onde seria possível introduzir reformas sociais no sentido de melhorar as condições de vida da classe trabalhadora. Na realidade não conseguem. O Estado capitalista é um instrumento de dominação de classe e portanto tem como meta regular a economia capitalista favorecendo a expansão dos negócios da burguesia. Qualquer que seja a politica econômica adotada, o Estado capitalista não vai contra os interesses da classe dominante. Conforme vimos acima, quando o Estado faz o contrário, sob pressão das massas – que obriga os dirigentes operários reformistas a introduzirem medidas sociais que prejudicam os capitalistas – estes deixam de investir gerando uma crise econômica e política generalizada. Foi o que acontecu no Chile durante a Unidade Popular em 1973 e que agora acontece na Venezuela. Sabendo disso, os reformistas acabam fazendo o papel de facilitadores da economia capitalista ao invés de defenderem as reivindicações dos trabalhadores. É o que faz o PT nos governos Lula-Dilma. Governam para os capitalistas. Quer melhor exemplo disso qe o propagado PAC (Programa de Aceleração de Crescimento) cujo objetivo é aplicar no país a política do “quanto mais capitalismo melhor”? O problema é que a economia capitalista entra em crises periódicas, decorrentes do fato de que as forças produtivas da sociedade estão contidas dentro dos marcos estreitos da apropriação privada dos meios de produção e dentro dos limites dos Estados nacionais. A Grécia hoje é um bom exemplo disso onde a crise econômica deslocou os reformistas, o partido socialista, PASOK, que a despeito da maioria da população, insistiram em aplicar no país as medidas draconianas e anti-populares preconizadas pela Comunidade Européia. O que acontece hoje na Grécia é uma projeção do que pode acontecer com o PT no Brasil.
Reduzido a sua forma mais pura, o Estado é um destacamento de elementos armados para defesa da propriedade privada. Esta é uma das características do Estado burguês que conhecemos muito bem. Desde 1964 o Brasil foi governado por uma ditadura militar, por quase duas décadas, oriunda de um golpe que derrubou o governo reformista burguês de João Goulart que tinha perdido o controle sobre os movimentos de massa da classe operária. A ditadura militar criou as condições de uma brutal repressão sobre o proletariado e as suas organizações o que permitiu uma expansão dos negócios do capitalismo no Brasil durante um longo período, chamado na época de “milagre brasileiro”, tendo como base uma superexploração dos trabalhadores e uma integração crescente da economia brasileira com o capital estrangeiro. Mas a ditadura não resistiu ao impetuoso movimento operário grevista de massa que eclodiu a partir de 1978. O capitalismo gerou a sua própria negação. Hoje os reformistas esquecem este fato e alegam que agora as instituições militares e policiais do Estado são “democráticos”. Mas não são. Continuam, mesmo sob a fachada do “estado democrático”, a cumprirem o papel de destacamento armado da burguesia a serviço da preservação da propriedade privada. Na verdade, os reformistas do governo, é que são reféns deste aparato burocrático policial-militar que se eleva por cima da sociedade. Está aí para demonstrar esta verdade o acordo do governo Dilma com a cúpula das Forças Armadas para garantir a impunibilidade dos militares envolvidos com as torturas e assassinatos durante a ditadura. Está aí para demonstrar esta verdade os constantes assassinatos de trabalhadores no campo praticados por forças policais e para-policiais. Está aí para demonstrar também a brutal repressão policial sobre a ocupação do Pinheirinho, em São José dos Campos, para garantir a reintegração de posse de um terreno abandonado em favor de uma mega especulador da Bolsa, o sr. Naji Nahas, sem que o governo reformista nada pudesse fazer. A lista de exemplos é infinita mas destacamos que, até mesmo a nossa tendência, a Esquerda Marxista, vem sendo alvo de uma tentativa de criminalização por parte do “Estado de direito democrático” por estar a frente do movimento das fábricas ocupadas, que foram falidas e abandonadas pelos seus proprietários, defendendo as reivindicações dos operários, em defesa do emprego e do trabalho.
O velho Engels, em fins do século XIX, um pouco antes de morrer, escreveu uma introdução polêmica do livro de Marx, “As lutas de classes na França”. Nesta introdução Engles sublinhava a mudança que estava ocorrendo nas forças policais e militares dos Estados capitalistas que cada vez mais se profissionalizavam e que tornava inviável o assalto a cidadela capitalista por forças revolucionárias limitadas, Muitos enxergaram neste texto que o coração e a mente do velho tinham amolecido e que o velho companheiro de Marx tinha se transformado em um reformista vulgar. Mas pelo contrário, Engels reafirmava que o aparato policial militar da burguesia só poderia ser destruído, e é disto oque Engels falava, a não ser por uma grande e massiva ação da maioria do proletariado. Foi por esta razão que os guerrilheiros no Brasil foram massacrados e os operários do ABC paulista em 1978-79, ao estimularem uma onde de greves em escala nacional, conseguiram botar a ditadura abaixo.
O Estado capitalista é um aparato burocrático, que se eleva por cima da sociedade, com a finalidade de exercer a dominação de classe, ou seja, a ditadura da burguesia, mesmo sob a forma de uma “república democrática”. Aí está a verdadeira natureza do Estado burguês. Ele é uma ditadura da burguesia. Não importa a forma de governo – fascista, bonapartista ou república democrática – pois é a burguesia, como classe possuidora dos meios de produção, quem “dita” as leis. A ditadura da burguesia é uma ditadura de uma minoria sobre a grande maioria da população. Não adianta mistificar o papel do Estado como faz o PT ao dizer que existe “para todos”. Ou como quer fazer crer a DS em dizer que luta pela “refundação do Estado”. No fundo, defendem a ditadura da burguesia contra a maioria do povo brasileiro. Este é o sentido reacionário, em toda a linha, da política reformista da DS, que acompanha a política de colaboração de classes praticada pela direção do PT, em comum acordo com os governos Lula-Dilma.
Os marxistas revolucionários não defendem a “refundação” do Estado, Mesmo quando defendemos as reivindicações democráticas ou quando chamamos a convocação de uma Assembleia Constituinte, o fazemos, não em nome da defesa da república burguesa “democrática” (a ditadura velada da burguesia) mas sim em nome da defesa das reivindicações dos trabalhadores com o o claro objetivo de destruir, derrubar tijolo por tijolo, do edifício burocrático militar do poder de Estado da burguesia. Nós defendemos a formação de um governo dos trabalhadores como forma de governo de transição na direção da “abolição da ordem existente” (Marx).
Em outras palavras, a tarefa central de um governo dos trabalhadores consiste em não só atender as reivindicações dos trabalhadores da cidade e do campo, mas sobretudo em destruir o Estado burgues, seu aparato burocrático, suas instituições corruptas e o exercito e a polícia permanentes, substituindo por um Estado Comuna, uma República de Conselhos, constituída por delegados eleitos e revogáveis, onde a maioria da população, as grandes massas de trabalhadores possam “ditar” as leis. Este regime, de transição ao socialismo, um processo oque só pode ocorrer em escala internacional, nos chamamos de ditadura do proletariado. Este regime o proletariado “expulsa a burguesia do poder” (Gramsci), dita as leis e a política, governa para a maioria e garante as mais amplas liberdades democráticas, estabelecendo um governo muito mais democrático do que a mais democrática das repúblicas burguesas pode realizar historicamente.
 
Conclusão: A DS e a política dos três macaquinhos
 
Abordamos nas duas partes deste texto sobre a tendencia Democracia Socialista o seu curso regressivo, que passou da defesa da IV Internacional de 30 anos atrás para a posição reacionária de hoje, expressa no apoio ilimitado à política de colaboração de classes da direção do PT e na participação nos governos Lula-Dilma que aplicam descaradamente a política da burguesia e do grande capital. Denunciamos a farsa da “revolução democrática” como uma forma de “revolução permanente” tentando utilizar o legado de Trotsky e do programa da IV Internacional para justificar uma política completamente oportunista de defesa do Estado capitalista. Igualmente denunciamos a ursupação indevida do pensamente de Antonio Gramsci com o objetivo de, em nome de formar “blocos históricos para conquista da hegemonia”, legitimar a aliança do PT com os partidos burgueses. Mas esta política de duplicidade, de falar uma coisa e fazer outra começa a ter o seu prazo de validade vencido.
A crise economica internacional do sistema capitalista aperta a economia brasileira que por sua vez impele o governo Dilma a agir em benefício dos patrões e dos capitalistas, o que implica em criar as condições para aumentar a taxa de exploração da mais valia sobre o proletariado. Ataques contra as greves (como na greve dos servidores públicos federais), decretos para implementar os fura-greves, processos judiciais e criminalização dos movimentos populares. Ao mesmo tempo amplia os benefícios do dinheiro público para financiar o capital privado (investimentos do BNDES) em detrimento de investimentos sociais e promove uma nova escalada das privatizações. A fúria anti-operária e anti-popular do governo Dilma é uma evidencia de que no fim do maravilhoso arco-íris da economia brasileira, propagado pelo Palácio do Planalto, não existe nenhum pote de ouro. A crise do capitalismo é mundial mesmo que afetando os países de diferentes maneiras e ritmos. Assim como a exacerbação da luta de classes, decorrente do esgotamento do regime capitalista, é também um fenômeno mundial.
Nesse contexto, não há nada que o governo brasileiro possa fazar para viabilizar a paz social preconizada pela demagogia do reformismo “lulista” Para se credenciar perante o patronato o governo Dilma vai atacar cada vez mais forte o movimento operário organizado. O resultado vai ser a intensificação das lutas de classes. O que pode levar, pela primeira vez em trinta anos, a um deslocamento político do PT enquanto a principal representação da classe operária no Brasil.
A DS está selando o seu destino ao futuro incerto que ameaça o PT. Agarrada às instituições do Estado burguês como marisco na pedra, a DS aplica a política dos três macaquinhos: não vê, não escuta e não fala. Como seus dirigentes, Raul Pont, Juarez Guimarães, Arlete Sampaio e outros, vão explicar para seus militantes sindicais a política do governo, do qual fazem parte, de ataque contra a luta dos trabalhadores, como no caso da greve dos servidores federais? Como eles vão explicar o crescimento das privatizações (estradas e ferrovias por ex.) para os seus militantes se nas suas teses aprovadas em congresso dizem defender o contrário? Como a “ecológica” e “multietnica” DS vai se explicar diante da construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte e da recente instrução 303 promulgada pelo Advogado Geral da União que permite o governo construir em terras indígenas sem dar satisfação alguma? Como é que fica a “feminista” DS diante da posição do governo brasileiro contrário a introdução do direito ao aborto na resolução final da Rio+20?
Ao que tudo indica os seus dirigentes vão continuar se fingindo de mortos. Parecem aqueles soldados que desertaram da guerra e foram se esconder no meio do campo de batalha. Mas a base de militantes nem pode e nem deve aceitar esta política. As rupturas podem ocorrer mais cedo ou mais tarde, como aconteceu recentemente no Congresso da CUT com delegados da DS do nordeste. Todo militante sincero e honesto, que acredita na emancipação dos trabalhadores e na alternativa socialista deve ser perguntar: para onde está indo a DS?
O único caminho é a ruptura com a política da burguesia, é a defesa da ruptura do PT com a coligação com os partidos burgueses. O único caminho consiste na defesa de um governo de frente única de todas as organizações operárias constituindo um governo socialista dos trabalhadores que expulse a burguesia do poder e atenda as reivindicações das massas. Pois do contrário, significa acompanhar o trágico destino da DS, o de marchar em direção à lata de lixo da História.

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Justiça arquiva processo e bar para público gay é liberado em Porto Alegre

 


Ramiro Furquim/Sul21
 
Rachel Duarte no SUL21
 
Uma luta de dois anos contra a discriminação a um estabelecimento para o lazer de homossexuais em Porto Alegre parece ter chegado ao fim nesta terça-feira (16). O bar Passefica, no bairro Cidade Baixa, foi absolvido de processo judicial movido pelo ex-síndico do prédio e acolhido pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul. Na ação, os argumentos eram de que o local ultrapassava os limites estabelecidos por lei municipal para funcionamento, além de suposto desrespeito a normas de civilidade e convivência. Devidamente adequada à Lei do Silêncio, a proprietária do bar provou que não estava irregular e acusou o autor da ação de motivação homofóbica.
O ingresso da ação ocorreu ainda em 2011, quando a empresária Jucele Azzolin passava por desentendimentos com o síndico Ricardo Han Brum sobre a utilização das mesas na calçada do bar. Segundo ele, os frequentadores cometiam excesso no barulho. “A Rua da República é um local tradicional da noite de Porto Alegre, onde já é uma cultura o uso de mesas na rua. Eu sou homossexual, meus clientes também. É um bar para o público LGBT e o que está por trás disso é preconceito e discriminação com o meu estabelecimento”, disse.
Depois de muitas audiências e ameaças do ex-síndico, além de notificações da Prefeitura de Porto Alegre, o Passefica hoje funciona com mesas na calçada da rua. Porém, além do ganho de causa para o uso do recuo da calçada, o bar sofria outras acusações, como exceder o horário de funcionamento dos bares da Cidade Baixa e causar mau cheiro no local. “Nós estamos sempre orientando os clientes quanto a estas normas e nunca tivemos problemas de desordem. Tenho testemunhas de moradores inclusive”, alegou Jucele.
Algumas testemunhas acompanharam a audiência pública desta terça (16) na 18º Vara Criminal do MP-RS, entre elas a cliente Graciela Carpio. “Eu presenciei uma batida da Brigada Militar, atendendo a pedido de algum denunciante, completamente abusiva e descabida. Ainda não era meia noite (horário de funcionamento dos bares da Cidade Baixa) e eles entraram dizendo que estava uma baderna. Só existiam oito pessoas no bar, que inclusive foram embora depois daquilo”, conta. Graciela optou em ficar no bar naquele dia e conversou com os policiais. “Eles disseram que realmente não havia nada errado e pediram desculpas. Ao saírem, no bar ao lado tinha uma festa muito agitada na calçada e eles não fizeram nada. Esta intervenção foi apenas no Passefica, que já é um local estigmatizado para as autoridades”, afirma.
Vereador Pedro Ruas acredita que caso Passefica inspira luta contra homofobia./Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
A tese da perseguição por motivação preconceituosa com o local LGBT também é acolhida pelos advogados de defesa da empresária. “Todas as adequações à lei foram feitas. Nenhum descumprimento foi verificado no período em que o processo vigorou. O fiscal do MP vistoriou e comprovou a normalidade do bar. Porque a insistência na ação? Preconceito”, fala o vereador Pedro Ruas (PSOL), um dos advogados da defesa do Passefica.
No histórico de ações que envolvem a motivação homofóbica justificada pela dona do bar estão também autuações da Secretaria Municipal de Indústria, Comércio e Serviço. Parte da ação, o ex-secretário Valter Nagelstein não compareceu à audiência. Dois funcionários da pasta o representaram.
“Estas medidas excessivas no regramento dos bares fazem parte de um antigo processo de ‘higienização da cidade’. Os locais que são considerados pontos de encontro de pessoas marginalizadas tem exigências muito mais rigorosas do que os demais. É um estímulo ao fechamento destes locais. As instituições, para não admitir que fecham bares, vão exigindo uma série de obstáculos para o seu funcionamento. Foi o que aconteceu com os bares do bairro Bom Fim que foram fechados para reforma de três meses e tem seis anos que não abriram mais”, recorda a companheira de Jucele, Karen D´Ávila.
O promotor da ação, Luciano Brasil, reconheceu a adequação do bar Passefica às exigências da lei e o esforço de Jucele em manter o bar em funcionamento. Ele fez questão de destacar que o órgão “é estranho ao histórico de perseguição ao bar”. “Não sabíamos do extrato que vinha por trás desta ação, por isso a acolhemos. Vimos que não há irregularidades, portanto, não teria razões para dar continuidade ao processo”, disse.
Audiência pública encerra processo contra bar Passefica./ Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Por sua vez, o síndico e autor da ação, Ricardo Brum, aceitou o acordo e pediu desculpas a qualquer inconveniente ou prejuízo causado ao bar. “Não queria que isto tivesse ido tão adiante. Mas a multa e os questionamentos judiciais atendem à necessidade de tranquilidade no local, que também é residencial. Eu não sou homofóbico. Convivia com as antigas inquilinas, que também eram homossexuais. Minha religião não permite discriminação”, falou, explicando que é espírita.
O juiz João Ricardo dos Santos Costa declarou arquivado o processo devido a constatação do MP-RS de o bar estar dentro das exigências legais e em concordância com a Lei do Silêncio que vigora em Porto Alegre. “Mas é importante nós reconhecermos a existência de preconceito na nossa sociedade. É algo velado que se evidencia nas relações comerciais e institucionais, mas existe. Não podemos negar. Enquanto existir preconceito, não existirá a plena democracia”, argumentou. Para o juiz, a atuação dos movimentos LGBT na visibilidade dos direitos homossexuais é fundamental para enfrentar problemas sociais. “É só assim que poderemos transformar a nossa sociedade”, disse.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Boas razões para a presidente Dilma não ter ido à SIP

 




O dirigente do Grupo Estado, Júlio César Mesquita, não escondeu sua frustração. Diante da cadeira vazia na cerimônia de abertura da 68ª Assembleia da Sociedade Interamericana de Imprensa, comparou a atitude da atual presidente a de seus antecessores, Ernesto Geisel e Fernando Collor, nos dois convescotes da agremiação anteriormente por aqui realizados.
A comparação pode ser estapafúrdia, mas o rancor tem sua razão de ser. As famílias que controlam os meios de comunicação na região, sem aliados importantes além dos Estados Unidos, ambicionavam aval implícito de Dilma Rousseff para sua ofensiva contra políticas de democratização e regulação levadas a cabo por diversos governos progressistas.
Apesar de sua administração manter intactos os privilégios dos monopólios de imprensa, a presidente pode ter sido eloquente ao dar silencioso bolo no evento dos marajás da informação. Como não foram tornados públicos os motivos dessa decisão, é natural que provoquem especulações. Uma abordagem possível remete à trajetória da associação. A SIP, afinal, congrega a fatia mais ativa e influente das elites continentais, com expressiva folha de serviços prestados às ditaduras.
Fundada nos EUA em 1946, a entidade teve papel fundamental durante a Guerra Fria. Empenhou-se com afinco a etiquetar como “antidemocráticos” os governos latino-americanos que não se alinhavam com a Casa Branca. Constituiu-se em peça decisiva do clima psicológico que antecedeu levantes militares no continente entre os anos 60 e 80.
Entre seus membros mais proeminentes, por exemplo, está o diário chileno El Mercurio, comprometido até a medula com a derrubada do presidente constitucional Salvador Allende, em 1973, e a ditadura do general Augusto Pinochet. Outros grupos filiados são os argentinos La Nación e El Clarín, apoiadores de primeira hora do sanguinário golpe de 1976.
              A lista é longa. O vetusto matutino da família Mesquita, O Estado de S.Paulo, também foi adepto estridente das fileiras anticonstitucionais, clamando e aplaudindo, em 1964, complô contra o presidente João Goulart. Mas não foi atitude solitária: outras empresas brasileiras de comunicação, igualmente inscritas na SIP, seguiram a mesma trilha.
Seus feitos, porém, não fazem parte apenas da história. Estes veículos, mais recentemente, apoiaram o golpe contra o presidente Hugo Chávez (2002), a derrocada do hondurenho Manuel Zelaya (2009) e o afastamento ilegal do paraguaio Fernando Lugo (2012). Funcionam, a bem da verdade, como uma aliança intercontinental do conservadorismo.
Às vésperas das eleições de 2010, em julho, o então presidente da SIP, Alejandro Aguirre, afirmou que Lula “não poderia ser chamado de democrata” e o incluiu entre os líderes que “se beneficiam de eleições livres para destruir as instituições democráticas”. Seu objetivo era evidente: como porta-voz dos barões da mídia, queria colaborar no esforço de guerra contra a condução de Dilma Rousseff, pelo sufrágio popular, ao Palácio do Planalto.
A SIP, no entanto, vai além de movimentos pontuais, ainda que constantes, para a desestabilização das experiências de esquerda. Trata-se de um laboratório para estratégias de terceirização política dos Estados nacionais, na qual as corporações privadas de imprensa ditam a agenda, articulam-se com esferas do poder público e se consolidam como partidos orgânicos da oligarquia.
Diante deste inventário de símbolos e realizações, fez bem a presidente ao se recusar a emprestar o prestígio de seu mandato e a honradez de sua biografia. Ainda mais em um momento no qual sócios nacionais da associação animam julgamento de exceção contra dirigentes históricos de seu partido e integrantes de proa do governo Lula.
Oxalá esse gesto possa dar início a uma batalha firme pela democratização da imprensa e a adoção de marco regulatório que rompa com o feudalismo midiático.
Breno Altman é diretor do site Opera Mundi e da revista Samuel

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

"Pode deixar que eu cuido disso": a infantilização do voto

A “despolitização” induz a maioria das pessoas a perceber as eleições como o único meio de fazer política. Essa contração foi acompanhada por um deslocamento: as eleições “acontecem” na TV e no rádio. Lá chegando, incorporaram-se a um dispositivo que, além do conteúdo conservador, transforma tudo em entretenimento
por Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida no LE MONDE BRASIL

Processos de infantilização das campanhas eleitorais sempre ocorrem nas democracias de massa. No esforço para capturar os votos da maioria em sociedades em que o poder político e econômico é detido por uma minoria, algum tipo de manipulação é imprescindível. Referindo-se ao século XIX, quando surgiram as primeiras democracias eleitorais, Eric Hobsbawm observou as afinidades entre a era da democratização e a hipocrisia política.1
Estudiosos sofisticados não apenas teorizaram como justificaram esse processo, considerando-o um componente positivo de qualquer democracia possível. Foi o caso de Joseph Schumpeter, em seu clássico Capitalismo, socialismo e democracia,2 publicado em 1942 e hoje mais influente do que nunca. Para esse autor austríaco exilado nos Estados Unidos, é teoricamente incorreto e politicamente arriscado levar a sério a etimologia de democracia (poder do povo). O povo jamais teve ou terá o poder, que sempre foi e será das elites. Nesse sentido, a democracia se define como um conjunto de procedimentos que asseguram a concorrência entre elites organizadas em empresas políticas, ou seja, partidos, que concorrem pela preferência do consumidor político, isto é, o eleitor. Este, como qualquer consumidor, não é um exemplo de racionalidade ao fazer sua escolha. Daí algumas condições para que a democracia prospere, como, por exemplo, um debate político que não coloque questões estruturais em pauta. E que o eleitor deixe o eleito em paz. A este, e não àquele, o mandato pertence.
Essa concepção dita procedimental da democracia, ao traçar uma forte analogia entre a política e o mercado (idealizando este último), contribui para legitimar a superficialização do debate político, o alijamento da maior parte da população de questões mais sérias e a forte presença dos profissionais em propaganda eleitoral. É provável que o fantasma de Schumpeter ronde as atuais eleições brasileiras, especialmente no “horário político” da TV e nas matérias publicadas pela grande imprensa. Até porque, como se trata de pleitos municipais, é mais fácil a disseminação da ideia de que basta um bom gerente para que os principais “problemas” estejam em boas mãos.
Não exageremos nas simplificações. Para além da manipulação – e para que esta funcione em maior ou menor grau –, existem fortes determinações estruturais. É o caso da construção altamente ideologizada de uma comunidade de indivíduos-cidadãos livres e iguais, inclusive quanto ao acesso à informação política, em sociedades marcadas por ferozes relações de exploração e dominação. Uma propaganda do TSE que apresenta o eleitor como “patrão” expressa, de modo enviesado e um tanto confuso, essa construção. Não ficaria mais próximo da vida como ela é apresentar a maioria dos eleitores como “não patrões”?
Essa maioria não patronal é o grande alvo do “horário político”. A ela se dirigem os candidatos travestidos de super-heróis, prometendo, a cada quatro anos, resolver os “problemas” de moradia, assistência médico-hospitalar, creche, esgoto, água tratada, emprego, habitação etc. Só não explicam a origem de seus superpoderes ungidos de espírito público e amor ao próximo, bem como por que, historicamente, tudo isso desaparece assim que se encerra a estação de caça aos votos.
Na vida real, os “patrões” não costumam rasgar dinheiro. Não gastam seu precioso tempo assistindo ao show dos horários eleitorais em que um promete mudar aeroportos ou erguer aerotrens; outro afirma com a maior seriedade que eliminará congestionamentos de trânsito aproximando locais de trabalho e de moradia (e vice-versa); um terceiro garante que nomeará um ministério do nível de ministros (grito socorro?) e que os serviços públicos funcionarão porque ele aparecerá onde não o esperam (Jânio vem aí?).
Nenhum se refere a um aspecto importantíssimo para a aplicação de políticas, inclusive no plano municipal: nessa situação de crise capitalista que se aprofunda e de forte comprometimento das contas nacionais com o pagamento da dívida pública a boa parte dos grandes “patrões” (bancos, fundos de pensão, grandes empresas industriais brasileiras e transnacionais), é quase nula a capacidade do Estado, em seus distintos níveis, de colocar em prática políticas sérias, especialmente sociais. Poupa-se o eleitor desse assunto enfadonho, até porque – reza o saudável senso comum – crise capitalista não é assunto de prefeito ou vereador. Melhor destacar que é amigo da presidenta e do governador; que é administrador experiente e competente; que, assim como foi o maior ministro de tal área, será o maior prefeito. E que, ao contrário do adversário, não é amigo do Maluf.
É claro que existem diferenças políticas entre as candidaturas relevantes, aí se incluindo partidos cuja competitividade eleitoral é ínfima. E, mesmo em seus melhores momentos, as disputas eleitorais filtram e refratam os principais interesses das forças sociais. Mas um importante aspecto comum em uma cidade altamente politizada como São Paulo consiste no peso extraordinário que adquire a interpelação do eleitorado como essencialmente passivo. Lutas populares, nem pensar. Basta o voto (claro que em mim!) para mudar o destino da maioria daqueles a quem a propaganda eleitoral se dirige. Um grande autor, em sua fase juvenil, fez uma crítica mordaz desse duplo mundo, o “celestial”, onde, apagadas as diferenças, todos viram “cidadãos”; e o “terreno”, onde o homem é o lobo do homem.3 Nas grandes metrópoles brasileiras, essa dupla vida nos incomoda quando deparamos com homens e mulheres pobres, expostos ao sol inclemente deste inverno surreal, segurando cartazes de candidatos com os quais não têm nenhuma afinidade político-eleitoral, até porque isso é o que menos importa. Para quem paga, é tirar partido de mão de obra sobrante e, portanto, barata. Para quem segura o rojão, também tanto faz ser placa de empreendimento imobiliário ou de qualquer “político”. Melhor do que “compro ouro”. Para todos nós que passamos de carro, por que se indignar? No melhor dos casos, cumpriremos nosso dever cívico, depositando o voto na urna, e esperamos – quem sabe até cobrando – que as “autoridades” resolvam a situação dessa gente com as quais (situação e gente) nada temos a ver.
Exatamente devido aos impactos que produz no sentido de desorganizar a ação coletiva e autônoma dos dominados – inclusive no que se refere à produção e circulação de informações –, esse processo de “despolitização” não é politicamente neutro. Ao contrário, contribui, em São Paulo ou em São Luís, para a reprodução de um dos padrões de dominação e exploração mais predatórios do planeta.
Também cabe evitar a ideia igualmente simplista de que o esforço de manipulação opera sobre um terreno vazio e passivo (um espécie de folha de papel em branco) e sempre obtém os mesmos resultados. No fundamental, o que está em jogo é, em cada conjuntura, a maior ou menor capacidade de intervenção popular na vida política.
Essa capacidade sofreu drástica redução nos últimos anos. Partidos antes combativos passaram por fortes mutações, ao longo das quais obliteraram seus espaços de participação (inclusive debates internos). Políticas sociais importantes para, em caráter emergencial, melhorar as condições de vida de populações que estavam em extrema miséria tampouco ampliaram aquela capacidade. Ao contrário, reforçaram a percepção de que o governante é um pai (ou uma mãe), com especial carinho para com os mais desprotegidos. E, como vimos, no plano nacional, sem tempo para negociar com a totalidade dos professores das universidades federais envolvidos numa ação coletiva (uma greve) durante mais de cem dias; e, no estadual/municipal, o bárbaro massacre dos moradores do Pinheirinho, em São José dos Campos (SP), também organizados na luta política por direitos constitucionais elementares. Enquanto isso, o especulador não tem do que se queixar, e um candidato “do bem” se vangloria de, quando secretário estadual da Educação, jamais ter deparado com uma greve de professores.
Sorte dos trabalhadores e trabalhadoras que não se metem em confusão, até porque esse processo de despolitização segue pari passucom o de judicialização da vida política. Mas por que nos preocuparmos? Afinal, a essência da maioria dos candidatos pode se resumir no refrão de um deles: passa o tempo todo pensando nos pobres.
Com essa drástica redução da capacidade de ação popular coletiva, não é mais necessário, como foi em 1989, que um importante dirigente industrial, Mário Amato, alerte que, caso determinado candidato vencesse, 800 mil empresários abandonariam o Brasil; ou, no pleito seguinte, outro peso pesado dos industriais advertisse que a eleição do mesmo candidato seria o equivalente a uma bomba de hidrogênio despencar sobre este país abençoado por Deus. Na campanha eleitoral de 2002, o marqueteiro-mor do mesmo candidato, ao coordenar importantes figuras políticas na feitura de uma propaganda televisiva, disse para todos erguerem a mão em forma de L. “A mão direita ou a esquerda?”, perguntou alguém. “Como quiser”, respondeu o pragmático guru, “quem for de direita, com a direita; quem for de esquerda, com a esquerda.”4 Não por mera coincidência, assinou-se a “Carta aos brasileiros”; apesar de algumas rusgas passageiras, houve forte apoio empresarial; e o partido concluiu sua passagem para a idade da razão.
Os impactos “despolitizadores” sobre os processos induzem a grande maioria das classes populares a perceber as eleições como o único meio legítimo de fazer política. Essa contração foi acompanhada por um deslocamento: as eleições “acontecem” principalmente na televisão e no rádio (as chamadas redes sociais ainda engatinham nesse processo). Lá chegando, incorporaram-se a um dispositivo que, além do conteúdo abertamente conservador, transforma tudo em entretenimento. Em outros termos, o centro da atividade eleitoral mais visível se transfere para meios de comunicação tremendamente oligopolizados e que reproduzem, na imensa maioria das transmissões, (novelas, noticiários, propagandas) processos de infantilização. Lutas pelo aprofundamento da participação política no Brasil requerem democratizar e diversificar os meios de comunicação.
Quando Schumpeter escreveu seu célebre livro sobre democracia, o desfecho da Segunda Guerra Mundial, fortemente articulada a uma crise do capitalismo, ainda estava incerto e restavam poucas democracias liberais no planeta. Em um livro schumpeteriano bem mais simplista, A terceira onda, Samuel Huntington se congratulava, em 1993, pelo espraiamento desse regime por grande parte do planeta.5 Todavia, no atual contexto de profunda crise capitalista, tendem a aumentar os desencontros entre esse regime e a participação popular. Se Schumpeter e tantos outros negam a possibilidade do poder do povo, diversos estudiosos, como Slavoj Žižek,ao abordar uma questão bem mais específica, recorrem a uma expressão cada vez mais em voga para nos referirmos a essa reviravolta sinistra: a democracia se volta contra os povos.6
Diante dos riscos de que o modelo schumpeteriano de democracia chegue ao seu esgotamento no bojo da atual crise, é urgente inventar novas e profundas formas de efetiva participação popular na política.
Resta saber se isso é possível sem reinventar a sociedade.

Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida
é professor do Departamento de Política da PUC-SP


Ilustração: Daniel Kondo


 
1  E. Hobsbawm, A era dos impérios, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1988, p.130.
2  J. A. Schumpeter, Capitalismo, socialismo e democracia, Fundo de Cultura, Rio de Janeiro, 1961.
3  Karl Marx, A questão judaica,Boitempo, São Paulo, 2010.
4  A sequência aparece no documentário Entreatos,de João Moreira Salles.
5  Samuel Huntington,A terceira onda: a democratização no final do século XX, Ática, São Paulo, 1994.
6  Slavoj Žižek, “Democracy versus the people. A new account of Haiti’s recent history shows how the genuinely radical politics of Lavalas and its”, New Statesman, 14 ago. 2008.