quarta-feira, 7 de novembro de 2012

O que é o marxismo - parte III- Introdução ao materialismo histórico

 

Alan Woods e Rob Sewell no ESQUERDA MARXISTA
 
Quando se examina a história, esta não parece ser outra coisa além de uma grande massa de contradições. Os acontecimentos se perdem em um labirinto de revoluções, guerras, períodos de progresso e decadência. Os conflitos entre as classes sociais e entre nações se movem no caos do desenvolvimento social. Como é possível entender e explicar estes fatos, quando não parecem ter base racional alguma?

Desde o começo da humanidade, os seres humanos trataram de descobrir as leis que governam sua existência. As teorias que vão desde as explicações sobrenaturais até à liderança de “grandes homens” trataram, de uma forma ou de outra, em um momento ou em outro, de proporcionar estas explicações. Alguns chegam a acreditar que, na medida em que as pessoas atuam de forma independente umas das outras, as teorias do desenvolvimento humano são completamente inúteis!
Durante quase dois mil anos as ideias do livro do Gênese subjugaram o panorama da Europa Ocidental. Os que trataram de enfrentar estes conceitos foram rotulados como discípulos do diabo. Só nos últimos tempos, a concepção “herética” da história, a evolução, foi aceita de maneira geral, embora de forma unilateral. Para a classe capitalista e seus funcionários nas universidades, escolas e lugares de ensino, a história tem que ser ensinada de forma acadêmica e tendenciosa, sem nenhuma relevância para o presente. Continuam vendendo o mito segundo o qual as classes e a propriedade privada sempre existiram, em uma tentativa de justificar a “eterna” natureza da exploração capitalista e a anarquia econômica inerente à mesma. Volumes e mais volumes foram escritos por destacados acadêmicos e professores com a finalidade de refutar os escritos do marxismo e, sobretudo, sua concepção materialista da História.
Os marxistas dão enorme importância ao estudo da história, não por seu estudo em si, mas com a finalidade de estudar as grandes lições que contém. Sem esta compreensão da evolução dos acontecimentos, não é possível prever as perspectivas futuras. Lênin, por exemplo, preparou o Partido Bolchevique para a Revolução de Outubro de 1917 mediante uma análise minuciosa da experiência da Comuna de Paris e dos acontecimentos de 1905 e fevereiro de 1917 na Rússia.
É precisamente neste sentido que estudamos e aprendemos da história. O marxismo é a ciência das perspectivas, utilizando o método materialista dialético para desentranhar os complexos processos do desenvolvimento histórico.
A filosofia marxista analisa as coisas não como entidades estáticas, mas em seu movimento e desenvolvimento vivo. Os fatos históricos são examinados como processos. A evolução, contudo, não representa simplesmente o movimento do inferior ao superior. A vida e a sociedade se desenvolvem de maneira contraditória, através de “espirais que não constituem uma linha reta; um desenvolvimento mediante saltos, catástrofes e revoluções, rupturas na continuidade, a transformação da quantidade em qualidade, impulsos internos para o desenvolvimento, causados pela contradição e o conflito entre as diversas forças e tendências” (Lênin) [1].
Engels expressou a dialética como:
“A grande ideia fundamental de que o mundo não se compõe de um conjunto de objetos prontos e acabados, mas representa em si um conjunto de processos no qual as coisas que parecem imutáveis, da mesma forma que suas imagens mentais em nosso cérebro, isto é, os conceitos, se acham sujeitas à contínua mudança, a um processo de nascimento e morte” (Engels, O Anti-Dühring, citado por Lênin em Karl Marx).
Este método também é materialista em sua perspectiva. As ideias, teorias, programas de partidos etc., não caem do céu, e sim refletem o mundo material e os interesses materiais. Como Marx explicou, “o modo de produção da vida material condiciona os processos da vida social, política e intelectual em geral. Não é a consciência do homem que determina seu ser e sim ao contrário, é o ser social que determina sua consciência” [2].
Usando este método, Marx pôde assinalar “o caminho para um estudo global e multilateral do processo de aparecimento, desenvolvimento e decadência das formações econômico-sociais, examinando o conjunto de todas as tendências contraditórias e reduzindo-as às condições, perfeitamente determináveis, de vida e de produção das diferentes classes da sociedade, eliminando o subjetivismo e a arbitrariedade na eleição das diversas ideias ‘dominantes’ ou na interpretação delas, e pondo a descoberto as raízes de todas as ideias sem exceção e das diversas tendências que se manifestam no estado das forças produtivas materiais. Os homens fazem sua própria história. Mas o que determina os motivos destes homens, e precisamente das massas humanas? O que provoca o choque de ideias e as aspirações contraditórias? Que representa o conjunto de todos estes choques que se produzem na massa inteira das sociedades humanas? Quais são as condições objetivas de produção da vida material que criam a base de toda a atividade histórica dos homens? Qual é a lei que rege o desenvolvimento destas condições? Marx concentrou sua atenção em tudo isto e traçou o caminho para estudar cientificamente a história como um processo único, regido por leis, em toda sua imensa diversidade e com seu caráter contraditório” (Lênin, Karl Marx – breve esboço biográfico, com uma exposição do marxismo).
 
O comunismo primitivo
 
Os primeiros humanos evoluíram há uns três milhões de anos a partir de uma espécie de símio altamente evoluído. Pouco a pouco, os “humanos” primitivos se afastaram dos bosques em direção às planícies, uma transição que foi acompanhada por uma melhora na flexibilidade e destreza da mão, tornando-se a postura do corpo mais ereta. Enquanto que outros animais dispunham de diferentes órgãos para proteger-se e defender-se (para cortar ou escavar, a pele para proteger-se do frio...), os humanos não contavam com nada semelhante. Para sobreviver, tiveram que desenvolver seus únicos recursos: suas mãos e seu cérebro.
Através da experiência e erro, os seres humanos aprenderam diversas técnicas, que se transmitiram de uma geração à outra. A comunicação por meio da fala se converteu em uma necessidade vital. Como explica Engels, “o domínio da natureza começou com o desenvolvimento da mão, com o trabalho, ampliando-se o horizonte do homem em cada novo avanço”. Os homens e as mulheres eram animais sociais forçados a se unir e a cooperar para poder sobreviver. Diferentemente do restante do reino animal, eles desenvolveram a capacidade de generalizar e pensar de maneira abstrata. O trabalho se inicia com a fabricação de ferramentas com as quais os humanos mudam seu entorno para satisfazer suas necessidades.
“Os animais somente usam a natureza exterior” – escreve Engels – “modificando-a pelo mero fato de sua presença nela; por seu lado, o homem modifica a natureza e a obriga assim a servir-lhe,  ele a domina. E esta é, em última instância, a diferença essencial que existe entre o homem e os demais animais, diferença que, mais uma vez, vem a ser efeito do trabalho” (Engels, O papel do trabalho na transformação do macaco em homem).
Os seres humanos eram animais muito pouco comuns, com formas econômicas muito simples, a vagar em grupos em busca de alimentos. Esta vida nômade se achava completamente dominada pela coleta de alimentos. Os arqueólogos denominam este período como Paleolítico. Lewis Henry Morgan, um antropólogo precursor, chamou a este período de Selvageria, durante o qual, e por muitos milhares de anos, a propriedade privada não existia. Tudo o que se recolhia ou produzia era considerado como propriedade comum.
Entre 10.000 e 12.000 anos atrás, surgiu um novo período, superior, conhecido como Neolítico ou Barbárie [3]. Em vez de continuar vagando em busca de comida, foram realizados avanços na agricultura e na criação de gado. Os homens e as mulheres puderam se estabelecer em local determinado e, como resultado, novas ferramentas apareceram para ajudar nos novos trabalhos, criando-se uma economia de produção de alimentos. As tribos e comunidades estáveis surgiram nesse momento. Mesmo na atualidade, por diversas razões, muitas tribos da África, do Pacífico Sul e da América do Sul continuam existindo em condições de Barbárie.
Contudo, com o aparecimento do assentamento permanente, não surgiram moradias privadas; pelo contrário, eram construídas moradias grandes e de uso comum. Neste período, a família privada ainda não existia e as crianças pertenciam à tribo inteira.
Na etapa do comunismo primitivo (a Selvageria e a Barbárie sendo sua etapa inferior e superior, respectivamente), não há propriedade privada e não existem classes, elites privilegiadas, polícia ou aparatos especiais de coerção (o Estado). As próprias tribos encontravam-se divididas em unidades sociais chamadas clãs ou gens. Estes, de fato, eram grupos familiares extensos que traçavam sua descendência somente pela linha feminina. Isto é o que se denomina de sociedade matriarcal. Como poderia ser de outro modo, dado que era impossível identificar o verdadeiro pai de uma criança? Estava proibido que um homem coabitasse com uma mulher de seu próprio clã ou gens, com o que as tribos se compunham de uma coalizão de clãs. Em certos momentos, uma forma de matrimônio por grupos existiu entre os próprios clãs.
Esta forma de sociedade sem classes era de caráter extremamente democrático. Todos participavam em assembleias gerais para decidir as questões importantes na medida em que estas se colocavam e seus chefes e oficiais eram eleitos para fins específicos. Como assinalou Engels em seu livro, As Origens da família, da Propriedade Privada e do Estado:
“Admirável constituição esta da gens, com toda sua ingênua simplicidade! Sem soldados, gendarmes ou polícia, sem aristocracia, sem reis, governadores, prefeitos ou juízes, sem cárceres nem processos; tudo marcha com regularidade. Todas as querelas e todos os conflitos são resolvidos pela coletividade a que dizem respeito, a gens ou a tribo, ou as diversas gens entre si; só como último recurso, rara vez empregado, aparece a vingança, da qual não é mais que a forma civilizada nossa pena de morte, com todas as vantagens e todos os inconvenientes da civilização. Não se necessitava sequer de uma parte mínima do atual aparato administrativo, tão vasto e complicado, mesmo quando eram muito mais frequentes que em nossos dias os assuntos comuns, pois a economia doméstica é comum para uma série de famílias e é comunista; o solo é propriedade da tribo e os lares somente dispõem, em caráter temporário, de pequenas hortas. Os próprios interessados são os que resolvem as questões e na maioria dos casos um costume secular já regulou tudo. Não pode haver pobres ou necessitados: a família comunista e a gens conhecem suas obrigações para com os anciãos, os enfermos e os inválidos de guerra. Todos são iguais e livres, incluídas as mulheres. Não há escravos e, regra geral, tampouco ocorre a subjugação de tribos estranhas”.
O filisteu com sua visão estreita, e que considera a propriedade privada com um deus sagrado, mira estas sociedades com desprezo. Para as tribos, a propriedade privada era algo totalmente alheio. “Os índios” – explica o historiador Heckewelder – “creem que o Grande Espírito criou a terra e tudo o que ela contém para o bem comum da humanidade; que quando a encheu de animais para caça, o fez para o bem de todos e não de uns poucos. Tudo é dado em comum aos filhos dos homens. Tudo que vive na terra, tudo que cresce dela e tudo que se encontra nos rios e nas águas, foi dado em conjunto a todos e cada pessoa tem direito ao que lhe cabe”.
Com o desenvolvimento, a propriedade tribal comum ficou submetida a uma pressão crescente; com o aparecimento da família privada, casas particulares eram edificadas ao lado das moradias comunais. Com a passagem do tempo, a terra comum foi dividida para se converter em propriedade coletiva de cada família. A família matriarcal deu passo à forma patriarcal (dominada pelos homens), que se converteu em algo essencial para a manutenção da propriedade coletiva.
Esta “família”, contudo, era bastante diferente da de hoje. Como disse Paul Lafargue, “a família não se reduzia a sua última e mais simples expressão, como ocorre em nossos dias, quando se constitui tão somente de três elementos indispensáveis: o pai, a mãe e os filhos. Então, consistia no padre, como chefe reconhecido da família, a legítima esposa e suas concubinas, que viviam todas sob o mesmo teto; seus filhos, seus irmãos menores, com suas esposas e filhos, e suas irmãs solteiras: tal família estava composta por muitos membros”.
O crescimento da propriedade privada nas últimas etapas do comunismo primitivo é considerado pelos marxistas como elementos da nova sociedade dentro da velha. Com o tempo, a acumulação quantitativa destes novos elementos levou à ruptura qualitativa da velha sociedade.
Com o crescimento de novos meios de produção, particularmente na agricultura, surgiu a questão de quem devia possuí-los. A posse de ferramentas, armas, metais novos, mas, acima de tudo, dos meios de produção, permitia a uma família se elevar acima da penosa luta de vida ou morte com as forças da natureza. Logo, com o desenvolvimento posterior (o comércio se desenvolveu de início entre as diferentes comunidades) das forças produtivas, a desigualdade começou a aparecer na sociedade. Isto teve efeito profundo na Velha Ordem. Pela primeira vez, os homens e as mulheres foram capazes de produzir um excedente acima e mais além de suas próprias necessidades, dando lugar a um salto revolucionário à frente para a humanidade.
No passado, quanto explodia uma guerra entre duas tribos, era pouco rentável tomar cativos como escravos. Afinal de contas, um prisioneiro somente seria capaz de produzir alimentos suficientes para si mesmo. Não se produzia nenhum excedente. A única utilidade de um cativo, dada a escassez de alimentos, era como fonte de carne, sendo esta a base econômica do canibalismo.
Mas, uma vez que se produz um excedente, tornou-se economicamente viável manter um escravo e obrigá-lo a trabalhar para seu amo. O excedente obtido a partir de um número crescente de escravos era apropriado pela nova classe de donos de escravos. Mas, como controlar os escravos e obrigá-los a trabalhar? As tribos antigas não tinham polícia ou meios de coerção algum. Cada indivíduo era livre, ademais de ser guerreiro.
A produção de um excedente rompeu as velhas formas da sociedade, permitindo a cristalização das classes sociais. A existência destas classes requeria um aparato de coerção para a submissão de uma classe por outra. Ricos e pobres, latifundiários e arrendatários, credores e devedores, todos fizeram sua entrada na sociedade. Os clãs que eram, em princípio, unidades sociais baseadas em relações de sangue, começaram a se desintegrar. Os ricos dos diferentes clãs tinham mais em comum entre si do que tinham em comum com os pobres de seu próprio clã.
 
A sociedade escravista
 
Apesar de todos os horrores que a acompanharam, o surgimento da sociedade de classes foi enormemente progressista face ao posterior desenvolvimento da sociedade. Pela primeira vez, desde que os humanos evoluíram a partir dos símios, uma parte da sociedade pôde se libertar do trabalho de procurar seus meios de existência. Os que ficaram libertos do trabalho agora podiam dedicar seu tempo à ciência, filosofia e cultura. A sociedade de classes trouxe consigo sacerdotes, empregados, funcionários e artesãos especializados.
A justificativa histórica e a função da nova classe governante era desenvolver as forças produtivas e levar a sociedade à frente. Foi nesta etapa que a civilização surgiu pela primeira vez.
Criavam-se agora instituições especiais para proteger os interesses da classe dominante. Grupos especiais de homens armados, com seus cárceres, tribunais, verdugos etc., assim como novas leis, eram necessários para proteger a propriedade privada dos donos de escravos. O Estado e seus apêndices entraram em vigor e a liberdade e a igualdade do sistema gentílico caiu em ruínas, desenvolvendo-se novas ideias e costumes para justificar a nova ordem econômica e social.
No século sétimo antes de Cristo, a aristocracia tribal da Grécia se havia convertido em classe dirigente de latifundiários escravistas acomodados. Segundo o filósofo grego Aristóteles, a maioria da população da Ática então havia sido escravizada. 
Com o crescimento das cidades-estados, o aumento da divisão do trabalho se acelerou muito. Não somente entre a cidade e o campo, mas entre os ramos do comércio e das finanças, comerciantes e usurários; surgiram novos ofícios junto a um crescente grupo de artistas que atendia aos gostos e à cultura da classe alta.
A necessidade de cada vez mais escravos, da parte das cidades-estados, resultou em guerras contínuas. Na guerra dos romanos contra a Macedônia em 169 antes de Cristo, 70 cidades tão somente em Épiro foram saqueadas e 150 mil dentre seus habitantes foram vendidos como escravos. A economia escravista era muito desperdiçadora e necessitava, para sobreviver, de um abastecimento contínuo de escravos para substituir aos que haviam sido feridos ou os que morriam.
Como a reprodução natural entre os escravos era muito lenta, devido à natureza de sua condição, portanto, o único método real para a reposição do contingente era mediante a conquista.
Apesar de o escravo ser muito menos produtivo que o camponês livre na lavra da terra, o baixo custo de sua manutenção fez com que a escravidão fosse mais rentável. A ruína dos camponeses livres levou muitos deles a fugir para a cidade, onde constituíam o lumpenproletariado desclassificado das sociedades escravistas. Este último passou a depender da caridade das classes altas, que também lhe proporcionava jogos circenses para diversão.
Foi neste período que surgiu o movimento revolucionário cristão. Tratava-se, em suas origens, de um grupo de seitas comunistas primitivas que sentiam um profundo ódio aos conquistadores romanos e seus lacaios ricos, e que ganhou muito apoio entre os pobres e os oprimidos. Estes revolucionários cristãos primitivos estavam preparados para utilizar meios violentos para derrubar as classes altas e alcançar “O Reino dos Céus na Terra”. Por esta razão, foram acossados pelas autoridades e executados sem piedade por traição ao Imperador. Mais tarde, o cristianismo foi elevado à posição de religião do Estado, depois de ter sido purgado de seu ódio de classe. A classe dominante o utilizou como uma arma para enganar e apaziguar as classes baixas para que aceitassem seu destino terreno, alentando suas ilusões em uma vida melhor depois da morte.
A extravagância, arrogância e ociosidade dos proprietários de escravos cresceram em paralelo às mais-valias que extraiam da exploração dos escravos.
Como as guerras eram cada vez mais necessárias para aumentar a população de escravos mediante a conquista, o Império Romano acabou indo além de suas possibilidades. As guerras não podem ser feitas sem soldados e os melhores soldados eram os camponeses. Foram desaparecendo rapidamente e tiveram que ser substituídos por mercenários estrangeiros altamente remunerados. A era dos “escravos baratos” logo chegou ao final, iniciando-se com ela o declínio dos impérios escravistas.
Apesar das diversas rebeliões de escravos – sendo a mais famosa delas a que foi dirigida por Espartacus – os escravos não chegaram a se converter em classe revolucionária que pudesse levar a sociedade a frente.
Como assinalou Marx, a luta de classes terminaria “sempre com a transformação revolucionária de toda a sociedade ou com o naufrágio das classes em pugna”. Karl Kautsky, o marxista alemão, explicou que “as grandes migrações, a invasão do Império Romano por multidões de germanos selvagens, não significaram a destruição prematura de uma elevada e florescente cultura, mas somente marcaram o final de uma civilização agonizante e a formação da base para um novo auge da civilização”.
As poderosas civilizações escravistas haviam produzido um salto à frente enorme para a sociedade. Não é possível não se impressionar com os logros culturais do antigo Egito e Babilônia. Os gregos e os romanos desenvolveram o conhecimento científico a altos níveis. Herón de Alexandria, filósofo e matemático, havia descoberto os princípios básicos da máquina a vapor. As contribuições de Arquimedes, Pitágoras e Euclides elevaram a matemática à etapa em que o início da engenharia mecânica se tornou possível. Contudo, a sociedade escravista havia alcançado seus limites e a decadência interna, assim como fatores externos, haveria de levá-la à destruição.
 
A ascensão do feudalismo
 
“Os últimos séculos do Império romano decadente e sua conquista pelos próprios bárbaros destruíram uma grande quantidade de forças produtivas: a agricultura se viu prostrada, a indústria feneceu por falta de mercados, o comércio esmoreceu ou se viu violentamente interrompido e a população rural e urbana decresceu” (Marx, A ideologia alemã).
Durante séculos, as massas bárbaras invadiram a Europa: os godos, os germanos e os hunos, pelo leste; os escandinavos, pelo norte e oeste; e os árabes pelo sul. Em sua conquista de territórios, saquearam as cidades e se estabeleceram no campo, onde empregando uma agricultura primitiva.
Estas comunidades elegiam aos chefes de suas aldeias. Contudo, com a passagem do tempo, os chefes foram sendo eleitos sempre no seio de uma mesma família, o que acabou por se converter em um direito hereditário. O chefe da família privilegiada se converteu no chefe natural, por nascimento, sem que fosse já necessário recorrer à formalidade da eleição. Os povos estavam em guerra constante com seus vizinhos e as terras conquistadas eram repartidas outorgando-se a maior parte ao chefe. Assim, ele se converteu no maior proprietário e no homem mais poderoso da comunidade. Em caso de conflito, o chefe garantiria a proteção das pessoas que tinha sob sua responsabilidade, enquanto estas, por seu lado, tinham a obrigação de lhe prestar o serviço militar. Estes camponeses também podiam evitar o serviço militar mediante o pagamento de algum tributo.
A autoridade destes senhores da aldeia se espalhou ao campo do seu entorno. O senhor “deve justiça, ajuda e proteção aos seus vassalos, e estes devem fidelidade e homenagem ao seu senhor” (Paul Lafargue, Origem e evolução da propriedade). As guerras e as conquistas serviram para cristalizar estas relações feudais. Os senhores e barões, junto aos seus homens armados, formaram uma nova hierarquia social, sustentada pelo trabalho de seus vassalos.
Como explicou Lafargue: “Tão logo ficou constituída a autoridade da nobreza feudal, ela se converteu, por sua vez, em fonte de problemas para o país de cuja defesa devia se encarregar. Os barões, para ampliar suas terras e espalhar o seu domínio, livraram uma guerra constante entre si, interrompida por tréguas ocasionais devido à necessidade de lavrar a terra (...). O vencido, quando não se via completamente sem posses ou executado, convertia-se em vassalo do vencedor, que se apoderava de uma parte de suas terras e de seus vassalos. Os barões menores desapareceram em proveito dos grandes, convertendo-se estes últimos em grandes feudatários, que estabeleceram cortes ducais às quais os senhores submetidos à vassalagem deviam comparecer” (Paul Lafargue, Origem e evolução da propriedade).
Ao amadurecer as relações feudais, a maioria das terras de cultivo na Europa foi dividida em áreas conhecidas como feudos ou senhorios, cada um dos quais possuía seu próprio senhor e funcionários cuja tarefa era a de administrar a fazenda. A terra cultivável era dividida em duas partes: em torno de um terço da mesma pertencia ao senhor, enquanto que o restante era dividido entre seus vassalos. Os pastos e prados eram usados como terra comum, que era, de fato, uma sobrevivência da época do comunismo primitivo. A agricultura faria grandes avanços com a introdução do sistema de rotação trienal. Contudo, a parte da terra que pertencia aos vassalos foi dividida em parcelas separadas, espalhadas pelos campos, o que significou uma perda de produtividade muito grande.
A estrutura social que se desenvolveu sob o feudalismo deu lugar a novas classes e grupos. O marco social se assemelhava a uma estrutura piramidal, encabeçada pelo rei, a aristocracia e o clero. Debaixo deles estavam os barões privilegiados: duques, condes e cavalheiros. Nos escalões mais baixos da ordem social se encontravam os homens livres, os servos e os escravos.
À diferença de hoje, onde a maior parte da riqueza é criada em fábricas, a terra proporcionava, então, quase todas as necessidades sociais. Assim a terra se converteu na posse mais importante do sistema feudal. E, quanto mais terra alguém possuísse, mas poder adquiria. A classe dominante governava através de seu monopólio de fato da terra, à qual os servos permaneciam atados. Em teoria, o rei possuía toda a terra, mas, na realidade, as áreas e domínios eram concedidos aos duques que, por sua vez, os arrendavam aos condes, que tinham muitos vassalos aos quais concediam o arrendamento de parcelas de terras menores. Todos tinham que prestar serviços aos seus superiores, proporcionando-lhes homens armados, garantindo-lhes o pagamento da renda etc.
Diferentemente do escravo que nada possuía o servo era o arrendatário do senhor. Diferentemente do escravo, o servo tinha um interesse pessoal em sua parcela de terra. Ele tinha mais direitos que o escravo: não podia ser vendido (nem sua família), o que lhe proporcionava certa segurança, embora o grau de servidão e obrigações variasse. Em troca desta terra e de seus “direitos”, o servo se via obrigado a trabalhar para o senhor durante certos dias da semana, sem cobrar nenhum soldo. Outros serviços lhe eram exigidos em caso de colheita, e quando o senhor necessitava de ajuda. As necessidades dos senhores vinham em primeiro lugar. O servo não podia abandonar o feudo e necessitava da permissão do senhor se seus filhos pretendiam se casar fora de seu feudo. Gravava-se com impostos a herança de um servo e as mulheres herdeiras da terra tinham que obter a permissão de seu senhor.
A nova organização da sociedade baseada na propriedade da terra deu lugar a um maior desenvolvimento das forças produtivas. A mais-valia criada pelo trabalho do servo era apropriada pela classe dominante aristocrática e eclesiástica.
Nas palavras do historiador Meilly: “É uma verdade econômica que a produtividade aumenta na proporção em que a constituição de uma sociedade mais livre garante aos trabalhadores uma parte muito maior e mais segura do produto de seu trabalho. Em outras palavras: as formas sociais mais livres têm efeito direto no estímulo da produção”.
Junto à cristalização das novas classes, surgiram novas formas do aparato estatal com a finalidade de preservar as formas feudais de propriedade. A nova moral e a ideologia que surgiram destas formas constituíram a argamassa das relações sociais que foram estabelecidas. A Igreja, que se tornou mais e mais poderosa, proporcionou os fundamentos espirituais da nova ordem e, com seus Papas, se tornou mais poderosa que o rei ou o imperador. As terras da Igreja tinham uma extensão entre um terço e a metade das terras da cristandade. O dízimo que se recolha alcançava uns 10% de todas as receitas e bens etc.
Em geral, o Estado feudal se manteve débil e descentralizado até a ascensão das monarquias absolutas do século XVI. Como resultado, contínuas guerras senhoriais sacudiram as províncias periféricas, onde os barões predadores foram construindo seu poder e prestígio, pondo em risco a posição do monarca central. A luta do monarca central para submeter a estas regiões é uma característica da época. A derrota final destes senhores provinciais, com suas constantes lutas e guerras, permitiu que o comércio se desenvolvesse a um nível superior.
O comércio existia em nível baixo porque a terra produzia praticamente tudo. Tratava-se de uma economia “natural” orientada à autossuficiência. Contudo, com o início das cruzadas, surgiram novas necessidades, e os mercadores que supriam estas necessidades começaram a estabelecer grandes feiras comerciais na França, Bélgica, Inglaterra, Alemanha e Itália. Estas feiras periódicas desempenhavam um papel essencial no crescimento do comércio europeu, e ajudaram a estabelecer uma poderosa classe de ricos comerciantes. As relações baseadas no dinheiro começaram a erodir a camisa de força da sociedade feudal.
Concomitantemente ao desenvolvimento do comércio se deu o crescimento das cidades. A classe de comerciantes que surgiu nas cidades se chocou com as normas tradicionais e com as restrições do feudalismo. A Igreja, por exemplo, considerava a prática da usura como um pecado, ameaçando com a excomunhão aos que a promoviam.
Em seu excelente livro, Os bens terrenais do homem, Leo Huberman esclarece o enigma do conflito: “A atmosfera do feudalismo era de reclusão, enquanto que toda a atmosfera da atividade comercial na cidade era uma atmosfera de liberdade. A terra da cidade pertencia aos senhores feudais, bispos, nobres e reis. Estes senhores feudais, de início, consideraram sua terra na cidade da mesma forma que consideravam suas outras terras. Todas estas formas (rendas feudais, impostos, serviços) eram de caráter feudal, baseadas na propriedade da terra. E todas estas formas haviam mudado no que se referiam às cidades. Os regulamentos feudais e a justiça feudal estavam fixados pelos costumes e eram difíceis de alterar. Contudo, o comércio é, por sua própria natureza, algo ativo, mutante e impaciente ante os obstáculos. Não podia ser encaixado no rígido marco feudal”.
Portanto, as velhas relações foram questionadas e mudadas. As cidades começaram a exigir sua liberdade e independência, e pouco a pouco lhes foram concedidas Cartas Cidadãs, algumas de comum acordo, outras, pela força [4].
O próprio comércio começou a dar lugar a novas formas de riqueza. Já não era a terra a única fonte de poder e privilégio, visto que o dinheiro adquirido no comércio adquiria importância muito maior. Nas cidades, nasceu uma oligarquia comerciante rica, que controlava e regulava a produção em pequena escala individual, através do sistema gremial. Com a nova divisão do trabalho, os grêmios de artesãos se estabeleceram, incluindo em seu seio aos mestres de ofício, seus oficiais e aprendizes. Como mais e mais riquezas se criavam através da produção, os mestres de ofício gremiais (empregadores de mão de obra) entraram em conflito com seus oficiais (trabalhadores). No século XV, chegaram a se formar sindicatos de oficiais para proteger seus interesses.
A introdução da economia monetária (que somente tinha caráter muito limitado na sociedade escravista) lentamente socavou a base do sistema feudal. Suas leis e costumes foram modificados para corresponder ao novo desenvolvimento. Com a fuga dos servos para as cidades, visando melhorar sua sorte, os valores monetários começaram a transcender as velhas relações e a renda feudal começa a ser substituída pela propriedade arrendada.
O impacto da Peste Negra, na segunda metade do século XIV, acelerou o processo. Os historiadores estimaram que entre 30 e 50% da população da Inglaterra, Alemanha, dos Países Baixos e da França morreram em consequência da epidemia. Isto, por sua vez, deu lugar à escassez crônica de mão de obra, o que obrigou a muitos latifundiários a introduzir o trabalho assalariado para superar suas dificuldades.
 
O surgimento da monarquia absoluta
 
O Estado nacional tal e como o conhecemos hoje em dia nem sempre existiu. A lealdade das pessoas, então, não pertencia à nação, mas ao senhor, à cidade, à localidade ou ao grêmio. As pessoas não se consideravam a si mesmas como franceses, ingleses etc., mas como pertencentes a um povoado ou cidade. Cada cristão era membro da Igreja Católica Romana que, por sua vez, governava sobre a cristandade e, portanto, representava o maior poder de todos.
Com o crescimento da riqueza nas cidades, uma classe capitalista começou a surgir, exigindo condições adequadas para o desenvolvimento sem travas do comércio. Queria ordem e segurança. A luta pela independência das cidades de seus senhores feudais, as contínuas lutas entre os barões locais, a rapinagem que se seguiu, tudo isto criou a necessidade de uma autoridade central, de um Estado nacional.
O conflito entre o monarca central e os grandes barões (uma luta entre dois setores da classe dominante) terminou com a vitória do rei, com o apoio dos mercadores e da classe média, que proporcionaram o dinheiro para levantar os exércitos que o rei necessitava. O surgimento do Estado nacional, junto com a monarquia centralizada, marcou o início de um grande avanço econômico. Em troca do apoio da classe média, o monarca concedeu monopólios e privilégios a setores de tal classe, dando lugar, na etapa seguinte, ao choque entre o monarca nacional e os interesses internacionais da Igreja.
O final do século XV viu o início das Viagens de Descobrimento. Homens como Colombo e Vasco da Fama foram financiados por ricos mercadores para buscar novas áreas de exploração e para “difundir a palavra de Deus”. Foram criadas sociedades comerciais para promover o financiamento de uma maior exploração, para a rapina e a obtenção de lucros.
Com os enormes lucros obtidos das viagens, muitos mercadores e financistas se converteram nos verdadeiros centros do poder e da riqueza. Nobres, aristocratas e monarcas se converteram em devedores dos mercadores ricos. Uma família de banqueiros, os Fugger, foi mesmo capaz de decidir quem ia ser o Imperador do Sacro Império Romano!
Os novos desenvolvimentos econômicos foram dando lugar a uma formação capitalista. A base da economia feudal havia começado a se desintegrar com o crescimento do poder e da riqueza da burguesia em ascensão. Os novos valores, ideias, filosofias e moral evoluíram a partir das novas relações sociais, enquanto a velha classe dominante resistia teimosamente às mudanças.
Marx explicou isto: “Ao chegar a uma determinada fase de desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes, ou, o que não é mais que a expressão jurídica disto, com as relações de propriedade dentro das quais se desenvolveram até ali. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações se convertem em suas travas. E se abre assim uma época de revolução social”. Continuando, Marx acrescenta: “Nenhuma formação social desaparece antes que se desenvolvam todas as forças produtivas que cabem dentro dela, e jamais aparecem novas e mais altas relações de produção antes que as condições materiais para sua existência tenham amadurecido no seio da própria sociedade antiga” (Marx, Prólogo à Contribuição à Crítica da Economia Política).
A velha sociedade já se vira afetada durante o período anterior. Provavelmente um dos maiores desafios para a velha ordem fosse o ataque contra o catolicismo. Neste período, a Igreja era muito mais que uma simples instituição religiosa. Ela era o principal baluarte da ordem social estabelecida. Além de ser uma poderosa latifundiária, que recolhia o dízimo de todo o mundo, a Igreja tinha seus tribunais e privilégios especiais, controlava a educação e modelava o ponto de vista político e moral das pessoas. Como disse em certa ocasião Carlos I [de Castela e Aragão]: “Em tempos de paz, as pessoas são mais governadas pelo púlpito que pela espada”. A Igreja censurava livros e utilizava a ameaça da excomunhão contra os dissidentes. Costuma-se dizer que este foi um período muito religioso, mas isto é um grande exagero da parte dos historiadores. Em vez de as pessoas viverem realmente de acordo com os preceitos da Bíblia, a religião era utilizada para justificar a velha ordem. Tudo, incluindo o pensamento político, era expresso em termos religiosos. Aqueles que desejavam socavar o sistema tiveram que primeiro desafiar o monopólio do catolicismo.
No início do século XVI, as próprias monarquias absolutas entraram em conflito com a Igreja católica. A Reforma protestante, introduzida por Lutero, proporcionou as armas na luta contra o poder papal. Na Inglaterra, Henrique VIII rompeu com o catolicismo, roubando as riquezas dos monastérios que foram dilapidadas em custosas guerras europeias e irlandesas.
 
A revolução capitalista
 
O puritanismo da variedade calvinista resultava adequado à moralidade da classe média em ascensão na cidade e no campo, com sua ênfase na independência e no êxito pessoal. A classe média estava agora preparada para ascender com rapidez depois de se adaptar à inflação galopante do período 1540-1640, em que os preços subiram mais de quatro vezes, e entrava cada vez mais em conflito com a velha classe dominante.
Na Inglaterra, a luta entre a nova burguesia e a velha ordem se deu sob a forma de uma guerra civil. O New Model Army (Novo Exército Modelo) de Oliver Cromwell levou a classe média à luta armada contra o rei e a velha ordem. Em 1649, o rei foi decapitado e se proclamou uma república capitalista. Cromwell, baseando-se no apoio do exército, se converteu em líder de uma ditadura militar bonapartista. Os elementos democráticos de esquerda e seus defensores (os Niveladores e os Cavadores, Levellers e Diggers, em inglês), que ameaçavam os direitos capitalistas de propriedade, foram esmagados sem piedade. A partir daí, o regime passou a se apoiar numa base social limitada – as forças armadas. O regime capitalista, nestas circunstâncias de crise se reduziu, à maneira bonapartista, ao poder de um só homem [5].
As estruturas feudais foram desmanteladas, junto com a Câmara dos Lordes e a monarquia. A velha classe dominante tinha sido derrotada e as classes baixas mantidas à distância. A luta dos parlamentares contra o rei foi descrita pelos historiadores, e mesmo por alguns contemporâneos, como uma luta contra a tirania e a favor da liberdade religiosa. Contudo, como Marx comentou: “da mesma forma que não podemos julgar um indivíduo pelo que ele pensa de si mesmo, tampouco podemos julgar estas épocas de revolução por sua consciência, e sim, pelo contrário, há que se explicar esta consciência pelas contradições da vida material, pelo conflito existente entre as forças produtivas sociais e as relações de produção” (Marx, Prólogo à Contribuição à Crítica da Economia Política).
O revolucionário russo Leon Trotsky assinalou em uma ocasião: “As revoluções historicamente sempre foram seguidas por contrarrevoluções. As contrarrevoluções sempre fizeram a sociedade retroceder, mas nunca tão longe para chegar ao ponto inicial da revolução” (Trotsky, Teses sobre revolução e contrarrevolução).
Assim ocorreu em 1660 e 1689, quando a grande burguesia se apressou a chegar a um compromisso com os elementos “burgueses” da aristocracia [britânica]. A monarquia e a Câmara dos Lordes foram restauradas, embora desde então nunca pudessem voltar a desempenhar o mesmo papel de seus predecessores; pelo contrário, converteram-se em parte integrante do Estado capitalista. Os proprietários burgueses se preocuparam com seu futuro e com manter as classes baixas em seu lugar, com seu poder sob cuidadoso controle.
Cem anos mais tarde, a revolução capitalista francesa se realizou até o final sem nenhum tipo de compromisso. A Revolução Francesa, da mesma forma que sua homóloga inglesa, foi iniciada com uma divisão no seio da classe dominante. O rei e seus ministros enfrentaram o Parlamento (que representava a nobreza, o alto clero, a camarilha da corte etc.) em torno de um plano para evitar a bancarrota do Estado. Os protestos do Parlamento contra a tirania do governo tomaram um caminho imprevisto, desembocando em distúrbios nas ruas dos povoados e cidades, trazendo à superfície o descontentamento latente das classes médias e baixa contra o regime. “A revolta da nobreza era – explica George Rudé – talvez mais uma preliminar que uma revolução, o que, mediante a associação das classes média e baixa em uma ação comum contra o rei e a aristocracia, foi único na Europa contemporânea”. Apesar das tentativas de reforma a partir de cima, estas não foram suficientes para evitar uma revolução vinda de baixo.
Da mesma forma que em todas as revoluções populares, as massas irromperam no cenário da história. Os elementos mais abnegados saíram à luz e empurraram a revolução para a esquerda. De 1789 a 1793, o antigo regime feudal e a aristocracia foram completamente varridos. À cabeça do novo regime se colocou a classe média revolucionária, os Jacobinos, que eram apoiados e empurrados pelas massas plebeias formadas por assalariados e pequenos artesãos. Uma virada à direita se produziu em 1794 ao chegar o Governo do Diretório ao poder. Isto, por sua vez, deu passagem a uma nova contrarrevolução política, o que levou ao poder o regime de “lei e ordem” de Napoleão Bonaparte. Contudo, a Velha Ordem se havia rompido e os novos direitos de propriedade burguesa se mantiveram intactos. A mudança no poder político não foi acompanhada por uma mudança social regressiva, isto é, não trouxe consigo o retorno à ordem feudal, mas foi uma mudança política provocada pelas lutas entre diferentes setores da própria classe capitalista.
 
O triunfo do capitalismo
 
As grandes revoluções burguesas abriram o caminho para o capitalismo. As mudanças no campo asseguraram o crescimento da agricultura capitalista, onde os velhos feudos tinham sido divididos e distribuídos aos camponeses. Na Inglaterra, a conversão de uma parte da aristocracia antes da revolução preparou o caminho para a ruína do próprio campesinato. Agora, os governos, em vez de agirem como freio ao comércio e à indústria, passaram a defender sua causa.
Através do roubo, do saque e da concorrência, os meios de produção foram concentrados em cada vez menos mãos. A ruína dos camponeses proporcionou uma reserva de força de trabalho nos povoados e cidades. A estrutura de classes se tornou mais simples: de um lado, estavam os capitalistas e, do outro, os proletários sem posses. Tudo o que estes trabalhadores possuíam era sua capacidade para trabalhar. A única forma como podiam sobreviver era vendendo sua força de trabalho aos capitalistas em troca de salários. No processo de produção, o proletariado produz mais valor do que recebe na forma de salário –  a mais-valia, e esta é expropriada pelos capitalistas. Em sua busca de lucros, em meio à concorrência de seus rivais, o capitalista se vê obrigado a introduzir novos métodos de produção. Desta forma, o capitalismo historicamente desempenhou um papel progressista, revolucionando continuamente as forças produtivas.
Sua exportação de mercadorias e logo de capital conduz a classe capitalista à criação de “um mundo a sua imagem e semelhança”. As forças produtivas, a técnica e a ciência pouco a pouco superaram o Estado nacional que as protegia.
 
O imperialismo
 
O período de 1870 a 1900 deu lugar à divisão do mundo entre as principais potências. Em 1870, uma décima parte da África havia sido repartida; em 1900, as nove décimas partes do “continente negro” já estavam nas mãos da Grã-Bretanha, França ou de um dos impérios europeus. Em 1914, este processo de partição do mundo havia concluído e o capitalismo havia entrado em sua fase superior, o imperialismo. Enormes trustes e monopólios haviam surgido da fase anterior de concorrência. “O Estado estava cada vez mais fundido com os monopólios e instituições financeiras e agia cada vez mais em seu interesse. A produção nesta época é acompanhada pela exportação do próprio capital” (Lênin, O imperialismo, fase superior do capitalismo).
A fase imperialista trouxe consigo a ameaça de uma guerra mundial, por meio da luta por novos mercados etc. Devido à repartição do mundo e ao tremendo crescimento da produção, os mercados agora somente podiam ser obtidos mediante uma nova repartição do mundo, e isto conduzia inevitavelmente ao conflito em escala mundial. A guerra mundial assinalava as contradições entre a propriedade privada dos meios de produção, por um lado, e o Estado nacional, por outro. Mas, diferentemente das sociedades anteriores, o capitalismo proporcionou os pré-requisitos materiais para a nova ordem socialista, que pode garantir a abundância para todos.
O proletariado é a única classe revolucionária consistente capaz de levar a Revolução Socialista até o seu final. Isto deriva de sua posição particular na produção social. A classe trabalhadora se disciplina nas fábricas e se vê obrigada a cooperar entre si no processo produtivo. Organiza-se em grandes sindicatos e logo em seu próprio partido independente. O marxismo, em oposição a todas as outras teorias, proporciona à classe trabalhadora uma ideologia clara e tarefas concretas em sua missão de derrubar o capitalismo. O Partido Bolchevique, liderado por Lênin e Trotsky, proporcionou um modelo vivo disto aos trabalhadores do mundo.
O campesinato e as classes médias são incapazes de desempenhar um papel dirigente, devido a sua posição social. O campesinato está disperso no campo e não tem uma concepção real de unidade ou de internacionalismo. Estas camadas médias da sociedade acompanham ou à burguesia ou ao proletariado.
Os camponeses foram, de fato, a ferramenta clássica do bonapartismo – um regime baseado nas forças armadas que se equilibra entre as classes. Na época do imperialismo e da decadência do capitalismo monopolista, se a classe trabalhadora não logra ganhar as camadas médias para a bandeira do socialismo, estas cairão nos braços da reação.
 
A lei do desenvolvimento desigual e combinado
 
De sistema social progressista, o capitalismo se converteu em uma trava para a produção e para o desenvolvimento da humanidade. Marx acreditava que o proletariado chegaria ao poder primeiro nos países capitalistas avançados: Grã-Bretanha, Alemanha e França. Contudo, com o surgimento do imperialismo, o capitalismo, nas palavras de Lênin “se rompeu pelo elo mais fraco”, a atrasada Rússia.
A sociedade não se desenvolve em linha reta, e sim conforme a Lei do Desenvolvimento Desigual e Combinado. O crescimento em escala mundial com as novas mudanças produtivas se mistura desigualmente com as velhas ideias e formas de produção dos diferentes sistemas sociais pretéritos. O atraso da Rússia semifeudal foi complementado com as mais modernas técnicas de produção nas cidades, devido à enorme quantidade de capital estrangeiro proveniente da França e da Grã-Bretanha. Apareceu um novo proletariado industrial, que aceitou as ideias mais avançadas da classe trabalhadora: o marxismo.
Em muitos países subdesenvolvidos, as feridas infectadas da necessária reforma agrária, a autocracia, a opressão nacional e o estancamento econômico, deram lugar a um enorme descontentamento. As tarefas da revolução democrático-burguesa, que teriam sentado as bases para o desenvolvimento capitalista, somente se realizaram parcialmente ou não se realizaram em absoluto.
Nesses países, a classe capitalista local entrou em cena demasiado tarde para poder desempenhar um papel similar ao de suas homólogas dos séculos XVII e XVIII. Da mesma forma que na Rússia antes de 1917, são demasiado débeis e se acham atados por milhares de fios – através de vínculos de matrimônio, de dívidas... – aos latifundiários e aos imperialistas. Ambos passam a compartilhar um ódio comum em relação ao proletariado emergente. A classe capitalista nacional prefere se aferrar à velha ordem em vez de apelar às classes subalternas para realizar a revolução antifeudal.
A única classe capaz de levar a cabo a revolução é o proletariado mediante a união em torno de si dos setores mais pobres do campesinato. Uma vez que a classe trabalhadora chegue ao poder, como em outubro de 1917, torna-se capaz de dar a terra aos camponeses, de expulsar os imperialistas e de unificar o país. Contudo, o proletariado não se deterá nestas medidas, e logo passará a realizar as tarefas socialistas: a nacionalização das indústrias básicas, da terra e das instituições financeiras.
A Revolução Russa foi o maior acontecimento de toda a história humana. Pela primeira vez a classe trabalhadora tomou o poder, varreu os capitalistas, os latifundiários e bandidos e organizou um “estado democrático dos trabalhadores”. Ia ser o início da revolução socialista internacional, confirmando plenamente a teoria da Revolução Permanente [6].
Por desgraça, a traição à revolução socialista na Alemanha e em outros países conduziu ao isolamento da revolução em um país atrasado e devastado. A destruição da guerra, o analfabetismo em massa, a guerra civil, o esgotamento, supuseram tremendas travas para a classe trabalhadora débil, contribuindo para a degeneração da revolução. Estas foram as condições objetivas que alentaram o crescimento da burocracia no Estado, nos sindicatos e no Partido. Stalin chegou ao poder nas costas desta nova casta burocrática. O indivíduo na história não representa a si mesmo, mas aos interesses de um grupo, casta ou classe na sociedade.
O estalinismo e sua monstruosa ditadura não surgiram do Partido Bolchevique nem da revolução socialista, mas do isolamento e do atraso material da Rússia. Destruiu a democracia operária com a finalidade de preservar seus próprios privilégios e poder.
O regime estalinista, não obstante, se baseava nas novas formas de propriedade da indústria nacionalizada e planificada. Os soviets (conselhos de trabalhadores) e a democracia operária foram esmagados pela contrarrevolução política estalinista. Somente uma nova revolução política da classe operária russa poderia haver restaurado a democracia operária que existia na época de Lênin e Trotsky. Isto não significaria um retorno ao capitalismo, mas o fim da elite burocrática privilegiada, mediante a participação das próprias massas na gestão da sociedade e do Estado.
 
A transformação socialista
 
A transformação socialista marca o início de uma nova e superior forma de sociedade, desativando as travas do desenvolvimento das forças produtivas. Os obstáculos da propriedade privada e do Estado nacional são varridos, o que permite, mediante a propriedade socializada, planificar a economia no interesse da maioria.
A revolução socialista não pode se limitar a um só país, mas põe a revolução mundial na ordem do dia. A economia mundial e a divisão mundial do trabalho, criados pelo capitalismo, exigem uma solução internacional. A criação dos Estados Unidos Socialistas da Europa prepararia o terreno para uma Federação Socialista Mundial e para a planificação internacional da produção. Isto, por sua vez, serviria de base para a “produção planificada e harmoniosa dos bens para a satisfação das necessidades humanas”.
Uma das primeiras tarefas da classe trabalhadora vitoriosa seria a destruição da velha máquina do Estado. Em todas as sociedades de classe, o Estado foi estabelecido como “um órgão de dominação de classe, um órgão de opressão de uma classe por outra”. Isto coloca a questão de se saber se a classe trabalhadora necessita de um Estado. Os anarquistas respondem que não. Mas eles não entendem que algum tipo de poder é requerido para manter à distância os antigos latifundiários, banqueiros e capitalistas. O proletariado, portanto, tem que construir um novo tipo de Estado que represente seus interesses. Em um Estado dos trabalhadores, a maioria da população tem que manter sob controle uma pequena minoria de ex-capitalistas e, portanto, o enorme aparato burocrático do passado já não é necessário. Esta “ditadura do proletariado” ou democracia operária, como Trotsky preferia designá-la, supera em muito as mais altas formas da democracia burguesa.
A democracia burguesa foi definida por Marx como um sistema em que “os oprimidos são autorizados a decidir uma vez a cada vários anos que mandatários da classe opressora vão representá-los e esmagá-los no Parlamento”. Todos podem dizer o que quiserem, desde que sejam os conselhos de administração dos monopólios os que decidam o que realmente se vai fazer.
O novo Estado dos trabalhadores ampliaria a democracia da política à esfera econômica mediante a nacionalização dos grandes monopólios. Novos órgãos de poder, como os sovíetes na Rússia, baseados no povo em armas, constituiriam “uma corporação de trabalho, executiva e legislativa ao mesmo tempo”. A burocracia seria substituída pela participação das massas no funcionamento do Estado e da sociedade. Com a finalidade de prevenir o crescimento da burocracia, o proletariado de Paris em 1871 e o da Rússia em 1917 introduziram as seguintes medidas:
1.    Eleições livres com revogabilidade de todos os funcionários.
2.    Nenhum funcionário pode receber um salário mais alto que um operário qualificado.
3.    Nenhum exército permanente, mas o povo em armas.
4.    Gradualmente, todas as tarefas de administração do Estado serão realizadas por todos de forma rotativa.
Com a redução da jornada de trabalho, as massas adquirem a oportunidade de se envolverem nos assuntos do Estado e obterem a chave da cultura, da ciência e da arte. Porque, como disse Engels uma vez, se a arte, a ciência e o governo continuam sendo do domínio exclusivo de uma minoria, esta usará e abusará de sua posição em seu próprio interesse, como tem sido o caso nos países estalinistas.
O Estado apareceu historicamente com o surgimento da sociedade de classes. Dessa forma, desde o seu início, o Estado operário começa a se extinguir, à medida que as classes se dissolvem na sociedade. Esta é a razão porque Engels caracterizou o Estado proletário como um “semi-Estado”.
“Sob o socialismo revivem inevitavelmente muitas coisas da democracia ‘primitiva’, pois pela primeira vez na história das sociedades civilizadas, a massa da população se eleva para intervir por conta própria não apenas em votações e em eleições, mas também no trabalho diário da administração. Sob o socialismo, todos intervirão por turnos na direção e se habituarão rapidamente a que ninguém dirija” (Lênin, O Estado e a Revolução).
Nesta primeira etapa da sociedade comunista, como Marx chamava ao socialismo, vemos uma sociedade que “acaba de sair precisamente da sociedade capitalista e que, portanto, apresenta ainda em todos os seus aspectos, no econômico, no moral e no intelectual, o selo da velha sociedade de cujas entranhas procede” (Marx, Crítica do Programa de Gotha).
 
Apesar de que a exploração do homem pelo homem tenha terminado, a produção ainda não terá
chegado a um nível suficientemente alto para erradicar completamente a desigualdade ou as diferenças de classe. As pessoas ainda terão que seguir o princípio segundo o qual “Quem não trabalha não come”. O Estado, apesar de seu caráter transitório, continuará sendo o guardião da desigualdade.
 
A sociedade sem classes
 
Entretanto, dando grandes passos a frente na produção baseada na ciência mais avançada e na planificação consciente, a humanidade entrará nos domínios superiores de uma verdadeira sociedade. As classes e o Estado terão desaparecido completamente, ao se adotar o lema: “De cada um segundo sua capacidade a cada um segundo suas necessidades”. As contradições entre a cidade e o campo e entre o trabalho intelectual e o trabalho manual desaparecerão graças a uma revolução ainda mais profunda das forças produtivas.
Nas palavras de Lênin, “o estreito horizonte do direito burguês”, que obriga as pessoas a calcular com a crueldade de um “Shylock” [*] se outra pessoa trabalhou meia hora a mais que outra ou se uma pessoa está recebendo um salário menor que outro – este estreito horizonte ficará para trás. Então, a sociedade já não necessitará, ao distribuir os produtos, regular a quantidade a ser recebida por cada um, e sim que cada um poderá tomar livremente o que lhe falte, conforme suas necessidades.
“A natureza bárbara da sociedade de classes haverá desaparecido de uma vez por todas. A pré-história da humanidade estará concluída. As forças produtivas construídas ao longo de milhares de anos de dominação de classe estabelecem agora as bases para a sociedade sem classes, onde o Estado e a divisão social do trabalho se tornam supérfluos. A humanidade fixa agora para si a tarefa da conquista da natureza e abre o caminho às maravilhas da ciência e da tecnologia”. Nas palavras de Engels, “o governo das pessoas é substituído pela administração das coisas”.
E, como assinalou Trotsky: “Uma vez que tenha acabado com as forças anárquicas de sua própria sociedade, o homem se porá a trabalhar sobre si mesmo, nas retortas do químico [7]. Pela primeira vez a humanidade se considerará a si mesma como matéria-prima e, no melhor dos casos, como um produto semiacabado físico e psíquico. O socialismo suporá um salto do reino da necessidade ao reino da liberdade também no sentido de que o homem de hoje, com todas as suas contradições e sua falta de harmonia, abrirá o caminho a uma raça mais feliz” (Leon Trotsky, O que foi a Revolução Russa) [8].
 
[*] Shylock: personagem central da obra de Shakespeare, O mercador de Veneza, que representa o estereótipo do usurário avarento (Nota do Tradutor).
 
Notas do Editor do original em inglês:
 
[1] Karl Marx (Lênin), artigo escrito por Lênin em 1913 para o Dicionário Granat.
[2] Marx, Prólogo da Contribuição à Crítica da economia política.
[3] Utilizando a nomenclatura de Morgan e outros antropólogos antigos.
[4] Carta Puebla, Carta da População, Privilégios da População (em latim, chartae populationis), é a denominação do documento pelo qual os reis cristãos e senhores (laicos e eclesiásticos) outorgavam uma série de privilégios a populações com o fim de obter interesses econômicos ou estratégicos determinados.
[5] Bonapartismo é o termo que o marxismo usa desde o golpe de Luís Napoleão Bonaparte (sobrinho de Napoleão) na França de 1851. Marx utiliza este termo para se referir a um exemplo histórico concreto, dele contemporâneo, que analisa em seu livro O 18 Brumário de Luis Bonaparte. Com este termo, o marxismo se referiu posteriormente a governos de tipo ditatorial que, equilibrando-se entre as classes em determinadas circunstâncias em que estas entram em pugna que não se resolve, em essência, protegiam os interesses da burguesia, como no caso mencionado. Posteriormente, este mesmo termo se converteu em uma categoria utilizada pelo marxismo para identificar outros processos históricos similares, anteriores ou posteriores ao que o próprio Marx descreveu referindo-se a Luis Bonaparte.
[6] Resultado e Perspectivas e assimilada na prática por Lênin nas Teses de Abril de 1917, que mudou as teses do Partido Bolchevique de cara à necessidade de se preparar para a tomada do poder durante a Revolução Russa de 1917.
[7] Retorta: proveta de gargalo longo para operações químicas.
[8] Conferência pronunciada por Trotsky em 27 de novembro de 1932, em Copenhague.
 
Tradução: Fabiano Alberto 

terça-feira, 6 de novembro de 2012

CQC e o humorismo reacionário

 



Por Paulo Nogueira, no blog Diário do Centro do Mundo:
O Brasil, conforme constatou agudamente um leitor do Diário, tem uma esquisitice humorística: os comediantes são reacionários. Não vou entrar no fato de que são essencialmente sem graça. Me atenho apenas ao conservadorismo. Comediantes, como artistas em geral, costumam, em todo o mundo, ser progressistas. Eles quase sempre têm uma forte consciência social que os leva a criticar situações de grande desigualdade e a ser antiestablishment.

Os comediantes brasileiros fogem da regra, e esta é uma das razões pelas quais são tão sem graça. Marcelo Madureira é um caso extremo de conservadorismo petrificado e completo alinhamento com o chamado “1%”. Marcelo Tas é outro caso. De Londres, não o acompanhei, mas ao passar algumas semanas no Brasil, agora, pude ver – sem sequer assistir a um episódio de seu programa – o quanto ele é mentalmente velho.

O que o CQC fez a Genoíno em nome da piada oscila entre o patético, o ridículo e o grotesco. Não me refiro apenas ao episódio em si de explorar o drama de Genoíno. Também a sequência foi pavorosa. Vi no YouTube Tas ter uma disenteria verbal ao falar de Genoíno. Corajosamente, aspas, chamou-o repetidas vezes, aos gritos, de “mequetrefe”.

Não sou petista.

Jamais votei uma única vez em Genoíno.

Mas Tas tem condições morais — e conhecimento, pura e simplesmente — para julgar e condenar Genoíno? Várias vezes ele diz que Genoíno foi condenado pela justiça. E daí? Quem acredita na infabilidade da justiça brasileira acredita em tudo, como disse Wellington.

O que me levou a procurar Tas no YouTube foi uma mensagem pessoal que recebi de Ana Carvalho. Ela estava no local em que houve a confusão entre o humorista Oscar Filho e amigos de Genoíno. Ana acabou sendo citada num texto que OF escreveu, e ficou tão indignada que decidiu escrever sua versão dos fatos numa carta aberta que ela, cerimoniosamente, me pediu que lesse. Li. Primeiro, ela esclarece: ao contrário do que OF escreveu, ela não é militante do PT. Estava apenas votando, com a família, no lugar do tumulto, e tentou ajudar a serenar os ânimos, como boa samaritana.

Ana relata o que ouviu, na refrega, do produtor do CQC e de Genoíno. Do produtor, berros que diziam que os “mensaleiros filhos da puta” iam ser punidos: em vez de um minuto, o programa falaria horas do caso. De Genoíno, ela ouviu: “Calma, calma, sem bater, sem bater”. Mas quem publicaria o que ela ouviu? Essa pergunta Ana fez a si mesma, e é um pequeno retrato da maneira distorcida com que a grande mídia trata assuntos de política no Brasil. A resposta é: ninguém. Nem Folha e nem Estadão e nem Veja e nem Globo publicariam o relato de Ana – embora ela fosse testemunha privilegiada da confusão.

Há formas e formas de violência. O que o pessoal do CQC fez foi uma violência mental, uma tortura. Não faz muito tempo, o mundo soube que presos nos Estados Unidos tinham sido torturados com sessões de música ininterrupta da série Vila Sésamo. Vinte e quatro horas, sete dias por semana. (O autor ficou perplexo com o uso dado a sua canções tão inocentes.)

O que o CQC fez tem um nome: tortura moral. Humor não é isso. Citei, em outro artigo, os repórteres do Pânico que invadiram o funeral de Amy Winehouse para fazer piada. Tivessem sido pilhados, terminariam na cadeia – e teriam formidável dificuldade para convencer a justiça londrina de que a liberdade de expressão, aspas, os autorizava a fazer o que fizeram.

Humor sem graça, como o feito no Brasil, é um horror. Mas consegue ficar ainda pior quando à falta de espírito se junta um reacionarismo patológico, uma completa desconexão com o povo brasileiro, e este é o caso de Marcelo Tas e seu CQC.

domingo, 4 de novembro de 2012

Filósofo Peter Singer: “Furacão Sandy não foi um evento ‘natural’.

 



Entrevista com Peter Singer, filósofo australiano, Professor de Bioética da Universidade Princeton, autor de diversos livros sobre ética, direitos dos animais, ecologia e sustentabilidade.
 
“Em primeiro lugar, deixe-me dizer que o furacão Sandy não foi um evento ‘natural’.” Com essas palavras, surpreendentes na boca de um filósofo da ciência, o australiano Peter Singer começa a entrevista que você lê a seguir. Professor de bioética da Universidade Princeton – pesquisador e ambientalista incansável na denúncia dos riscos do aquecimento global e na defesa dos direitos dos animais -, Singer espanta-se tanto diante dos que creem em um Deus onipotente e intervencionista a zelar pela vida dos homens quanto dos que relutam em acreditar nos dados científicos que atestam os efeitos nefastos da ação humana sobre o clima da Terra.
Com o número de mortos em decorrência do Sandy aproximando-se da centena na sexta-feira e a campanha presidencial virtualmente paralisada nos Estados Unidos diante da tragédia, pelo menos um sintomático efeito político se fez sentir: o prefeito de Nova York, Michael Bloomberg, um independente que já esteve afinado com os republicanos, declarou apoio à reeleição de Barack Obama. Alarmado com a magnitude da destruição na cidade, Bloomberg tomou partido na celeuma sobre o tema ambiental, que divide democratas, defensores do investimento em energias verdes, dos “negacionistas” republicanos, que refutam a ideia de que o aquecimento global seja causado pela ação do homem.
Para Peter Singer, chegamos ao ponto em que não basta intensificar preparativos para emergências de grandes proporções em nossas metrópoles. Será preciso tomar uma atitude radical em relação às emissões de gases do efeito estufa, nas formas de geração de energia e em nossos próprios padrões de consumo – antes que seja tarde demais. “Tempestades extremas como essa”, diz o professor, “evidenciam nossa ingenuidade ao imaginarmos que o conhecimento científico é suficiente para nos proteger delas.”
As imagens do furacão Sandy sobre Manhattan lembram muito os filmes de catástrofe em Hollywood, que atraem multidões aos cinemas. Qual é o efeito desses grandes eventos naturais sobre a autoestima e a imaginação do homem atual?
Em primeiro lugar, deixe-me dizer que não devemos admitir que o furacão Sandy foi um evento “natural”. Cientistas que pesquisam mudanças climáticas induzidas pela atividade humana já haviam previsto que eventos climáticos extremos iriam se tornar mais comuns. Por sua intensidade e força, é praticamente certo que o furacão esteja conectado aos danos que causamos ao meio ambiente. No que se refere ao clima, assim como às plantas, animais e tudo o que chamamos de “ambiente natural”, não existe mais “natureza” neste planeta: estamos vivendo numa era em que a atividade humana afeta tudo, em todas as partes do mundo. Dito isso, tempestades extremas como essa, e também terremotos e tsunamis, evidenciam nossa ingenuidade ao imaginarmos que nosso conhecimento científico é suficiente para nos proteger deles. Às vezes podemos prever esses eventos, o que evidentemente nos ajuda a salvar muitas vidas, mas ainda assim eles mostram quão pífios podem ser nossos melhores esforços para enfrentá-los.
Então eles abalam, além de cidades, as nossas crenças?
Exato. Esse é um fator curiosamente ignorado muitas vezes. Em 1755, após um terremoto e um tsunami devastarem Lisboa, matando dezenas de milhares de pessoas, filósofos iluministas questionaram como o mundo poderia ter sido criado por um ser onipotente, onisciente e benevolente. Este não pode ser o melhor dos mundos, disse Voltaire por meio de seu personagem Cândido. Concordo com ele e me intriga o fato de cristãos tradicionais testemunharem semelhantes calamidades – com milhares de mortos, incluindo crianças, com sofrimento generalizado – e continuarem a crer em um deus com semelhantes atributos.
Mesmo com as previsões dos cientistas e com as precauções tomadas pelas autoridades americanas, a usina nuclear de New Jersey entrou em ‘estado de alerta’ devido à tempestade. Por mais que nos preparemos para tais eventos, chegaremos a estar seguros?
A energia nuclear é uma atividade inerentemente perigosa, e desastres como o tsunami que atingiu a planta nuclear de Fukushima deixaram isso bastante claro. Tanto que países como a Alemanha já acordaram para a necessidade de abandoná-la. Mesmo quando as probabilidades de algo dar errado são extremamente baixas, se isso acontece as consequências podem ser um desastre de proporções inéditas – e podem tornar uma extensa região inabitável por séculos. Claro que a energia nuclear não contribui para o aquecimento global e é, compreensivelmente, uma alternativa atraente aos olhos de muitos. Mas há outras opções mais seguras que o nuclear ou as termoelétricas a carvão, como a energia solar, eólica e hidrelétrica, com eficiência razoável e menor produção de lixo.
O sr. afirma que o Sandy não pode ser chamado de evento ‘natural’, mas alguns cientistas têm dito que, embora intenso, ele não foi tão diferente de outros furacões ou ciclones.
Sandy poderia ser chamado de “normal” no contexto de um fenômeno que ocorresse uma vez a cada cem anos. O problema é que esses “desastres naturais” têm tido frequência cada vez maior, de um a cada década. Seria difícil dizer, diante de um único furacão, que ele é resultado do aquecimento global. Mas no atual cenário de furacões, enchentes e secas cada vez mais frequentes no mundo, eu não chamaria o Sandy, de forma alguma, de “fenômeno natural”.
Ou seja, a partir de agora as pessoas terão que desenvolver uma certa ‘consciência de sobrevivência’ para enfrentar desastres cada vez mais comuns?
Prefiro dizer que as pessoas – e os governos – terão de levar realmente a sério as mudanças climáticas. Nós temos de reduzir as emissões de gases antes que a situação se torne ainda pior. Mas enquanto isso não acontece as pessoas podem se preparar para perdas e desastres cada vez mais frequentes nas grandes cidades.
Quanto os urbanistas de hoje estão preparados para enfrentar essa situação?
O planejamento urbano começa a centrar foco na antecipação de emergências, mas é muito difícil estar preparado para ocorrências de tão grandes proporções. Na construção do novo World Trade Center em Nova York, por exemplo, a polícia solicitou que a base do edifício fosse forte o bastante para resistir a uma grande explosão. Só que esse é apenas um tipo de emergência possível. Existe, como se pôde perceber agora na cidade, muito pouca proteção para barrar as inundações. Mesmo as instalações de energia elétrica nova-iorquinas não estão protegidas: enquanto falamos aqui, a parte baixa de Manhattan continua às escuras, e pode levar dias até que a energia seja religada.
A campanha presidencial americana parou por causa do furacão. Grandes tragédias, como o furacão Katrina em 2005, sempre afetaram a política, mas de início parece haver um acordo tácito para enfrentá-las. Por quê?
Num primeiro momento, há a sensação de que todos devem se unir e trabalhar juntos para reduzir os danos. Mas é um sentimento que não dura muito. O Katrina, no fim, foi devastador para a administração Bush, principalmente porque a Fema (Federal Emergency Management Authority, agência governamental responsável pela prevenção de catástrofes) fez um trabalho péssimo – e ficou revelado que Bush havia nomeado um amigo político sem experiência no assunto para a chefia da agência. Agora, tanto as agências meteorológicas quanto a Fema fizeram um trabalho muito melhor do que no caso Katrina.
Aparentemente, Obama e Romney têm visões distintas sobre a importância da Fema.
De fato. E espero que os apoiadores do presidente Obama deixem bem claro que Mitt Romney disse, no ano passado, que pretendia extinguir a Fema e atribuir suas funções aos Estados. Depois do furacão Sandy ele já mudou o discurso, não quer mais abolir a Fema… O que prova que diz qualquer coisa para ser eleito. Há uma clara diferença entre os dois candidatos nesse assunto. Depois de Bush ter diminuído o status da Fema, Obama felizmente o recuperou. Mas os republicanos insistem na ideologia de reduzir o poder do governo federal, mesmo quando é óbvio ser impossível para as autoridades individuais dos Estados lidarem com um problema como o do furacão Sandy, que afeta vários deles.
Segunda-feira, quando as estatísticas americanas registravam menos de uma dezena de mortos, 52 pessoas já haviam morrido por causa do Sandy no Haiti. Nessas grandes tragédias as vidas das populações mais pobres contam menos?
É fato que populações pobres, distantes dos centros internacionais de mídia, recebem muito menos atenção. É um problema que sempre vimos e estamos vendo de novo agora. E vale ainda notar que pessoas mortas em furacões, terremotos, tsunamis e ataques terroristas ganham muito mais atenção do que as que perdem a vida por razões relacionadas à pobreza, à falta de saneamento, água potável ou atendimento médico. De acordo com a Unicef, as mortes de 8 milhões de crianças a cada ano em decorrência de fatores como esses poderiam ser evitadas. Isso é mais do que 20 mil óbitos por dia – tragédia muito maior que a do furacão Sandy, seja no Haiti, seja nos EUA. Uma tragédia cotidiana, que não rende imagens cinematográficas na TV; simplesmente não é noticiada.
Essa semana, uma corte italiana condenou por homicídio culposo sete sismólogos que não previram um terremoto que matou 300 pessoas em 2009. O que achou do caso?
Um absurdo e uma ameaça à pesquisa científica. Como podemos incentivar que pesquisadores deixem as universidades para prestar serviço em áreas de significância pública se os ameaçamos de prisão quando algo dá errado? Não está claro sequer se esses cientistas cometeram algum engano nesse caso – eles podem ter agido com base nas evidências que eram disponíveis. Podiam ter feito melhor? Como saber? E, ainda que tivessem cometido um equívoco genuíno, jamais se justificaria condená-los por homicídio culposo!
O que já aprendemos sobre a prevenção de grandes tragédias naturais?
Que não se pode esperar proteção completa diante de terremotos ou eventos climáticos extremos. Mas certamente podemos construir edifícios mais sólidos, erguer barragens anti-inundação e proteger os equipamentos de infraestrutura essenciais ao funcionamento das cidades. Organizações como a Geohazards International, por exemplo, têm sido pioneiras no desenvolvimento de projetos como o de parques altos em cidades costeiras, sujeitas a tsunamis, que podem acolher a população tão logo ocorra um alerta de terremoto oceânico. O problema, obviamente, é que tudo isso custa dinheiro, e quando os riscos de que determinado evento ocorra são pequenos, tendemos a não querer gastar com isso.
Como lidar com o potencial de destruição da natureza quando precisamos desesperadamente preservá-la da destruição humana?
O melhor que podemos fazer a ambos, a natureza e nós, é reduzir as emissões de gases do efeito estufa. Nesse sentido, não podemos ignorar que um dos fatores de maior geração desses gases é a produção de carne – especialmente a bovina, pois as vacas produzem metano, que contribui 72 vezes mais para o aquecimento global que o dióxido de carbono. Sem uma mudança efetiva em nossos padrões de consumo, não vamos conseguir desacelerar a mudança climática que torna cada vez mais frequentes desastres como o furacão Sandy.
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Com informações do Jornal O Estado de São Paulo.

O retrocesso no ensino superior

   

Por Assis Ribeiro
Do Le Monde Diplomatique
 
Incrível retrocesso na educação superior
 
O que explica a primazia do ensino superior privado no país? Esse processo advém da ditadura civil-militar, que fez da privatização um projeto dominante, utilizando-a até mesmo para estancar pressões sociais dos “excedentes” no vestibular (aprovados, mas sem garantia de vaga) e da força do movimento estudantil na época
por César Augusto Minto, Lalo Watanabe Minto
A educação brasileira está organizada em dois níveis: básica e superior. Por razões de espaço, destacamos aqui o segundo nível. O país adota formalmente um modelo de universidade que realiza ensino, pesquisa e extensão de forma indissociada. As universidades públicas produzem, quantitativa e qualitativamente, o que há de mais avançado em todas as áreas de conhecimento, contribuindo para o desenvolvimento científico, tecnológico e cultural do país e para a promoção do bem-estar de seu povo.
Contudo, esse modelo convive com a existência de inúmeras instituições de ensino superior (IES) que não se caracterizam como universidades: particulares, comunitárias, confessionais e filantrópicas.1 Em geral, com exceção das IES públicas (sobretudo federais e estaduais, pois as municipais se assemelham às privadas), as demais não realizam pesquisas, grande parte delas oferece ensino de qualidade questionável e a quase totalidade visa exclusivamente ao lucro. De 1999 a 2009, as matrículas de graduação presencial públicas cresceram 62%; as particulares, 345%; e as privadas sem fins lucrativos diminuíram 2%; as matrículas em IES não universitárias passaram de 31,7% para 46,9% do total, sendo 80,9% nas particulares.2
O quadro esboçado é preocupante, mais ainda se considerarmos que, há muito, setores sociais conservadores têm defendido a “flexibilização” da indissociabilidade ensino-pesquisa-extensão, sob duas alegações: 1) a diversidade do povo brasileiro, que supostamente demandaria a variedade de modelos; e 2) nem toda formação precisa da pesquisa, curiosamente a função que viabiliza a construção de conhecimento e a mais cara das três.3 A partir do governo Collor, essa visão ganhou statusde “oficial”, ao mesmo tempo que se interrompeu uma salutar tendência a avanços sociais iniciada com a Constituição Federal de 1988.
O que explica a primazia do ensino superior privado no país? Esse processo advém da ditadura civil-militar, que fez da privatização um projeto dominante, utilizando-a até mesmo para estancar pressões sociais dos “excedentes” no vestibular (aprovados, mas sem garantia de vaga) e da força do movimento estudantil na época. Desde então, fortaleceu-se uma concepção tecnicista de ensino superior que reforçou a separação entre ensino de elite (em parte das IES públicas e das privadas mais tradicionais) e ensino de massa, privado, para atendimento de demandas emergentes, sobretudo da classe média e de setores da classe trabalhadora.
Anos depois, a opção política pela resposta privatista às necessidades de expansão do ensino superior resultou no agravamento das desigualdades do setor. Tendo, de um lado, uma universidade pública de qualidade reconhecida, mas restrita a poucos, e, de outro, uma porção de IES privadas de qualidade duvidosa, esse ensino tornou-se sempre mais desigual, afetando em especial as áreas efetivamente menos valorizadas, entre as quais se destaca a da formação de professores.
Um novo impulso à privatização ocorreu a partir dos anos 1990, no bojo da reestruturação capitalista global, e materializou-se por meio da doutrina de reforma do Estado.4 Tendo a privatização, a terceirização e a publicização como meios e a administração pública gerencial como fim, a reforma do Estado realizou algumas inversões conceituais importantes, entre elas a substituição de direito por serviço. Essa doutrina aponta claramente para a mercantilização.
As diretrizes da reforma passaram a ser positivadas em leis a partir da Emenda Constitucional n. 19, de 1998, reforçando o caminho da mercantilização dos direitos sociais. Terceirização é a “execução indireta de serviços públicos, mediada por contratos submetidos a licitações supostamente isentas, do que deriva o ingresso de trabalhadores sub-remunerados em atribuições públicas sem o devido concurso”.5 Já a publicização implica a transferência dos serviços sociais e científicos então prestados pelo Estado para o setor público não estatal; vale dizer, promove a indistinção entre estatal e privado/mercantil à medida que desconsidera os meios e objetivos específicos do processo educativo, ressaltando apenas seus resultados quantitativos.6
Explicitamente assumida ou não, a reforma atinge corações e mentes outrora insuspeitos, e passa a orientar também as políticas para o ensino superior. Nesse caso, a empreitada foi energizada pela insuficiência crônica de recursos que resultou, por exemplo, em um grande desequilíbrio entre candidatos e vagas no setor público. Além da privatização propriamente dita, a legislação em vigor permite que IES ditas sem fins lucrativos recebam recursos estatais na forma de: a) subvenção social; b) auxílio; c) contribuição; d) convênio; e) termo de parceria; f) imunidade de impostos; g) imunidade de contribuições sociais; h) isenção; i) incentivo fiscal ao doador; j) voluntariado.7
A partir de meados da década de 2000, o governo federal passou a viabilizar duas formas principais de expansão do ensino superior:
a) estatal, via ampliação de vagas e criação de novas IES por meio do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni, 2007), que condiciona os recursos ao atendimento de metas nos cursos de graduação presenciais: dezoito estudantes por docente e taxa de conclusão média de 90%, entre outras. Ocorre que a relação 18/1 não se coaduna com o modelo da indissociabilidade ensino-pesquisa-extensão, e não se tem notícia de que a taxa citada seja atingida, nem sequer nas melhores universidades mundo afora;
b)privada, via criação do Programa Universidade para Todos (ProUni, 2004-2005), que utiliza recursos públicos para comprar vagas “ociosas” de IES privadas, incluindo as com fins lucrativos. Ademais, registre-se o uso indiscriminado do ensino a distância, sobretudo na formação inicial e de docentes.
Projetos desse tipo fragilizam ainda mais as condições de funcionamento das instituições. Por um lado, corroboram a tendência de separação entre IES de ensino e IES de pesquisa, assim como acirram as divisões entre as áreas de conhecimento, sobretudo pela disputa por recursos. Por outro lado, distanciam o país da construção de um efetivo sistema nacional de educação (menos desigual e mais orgânico e adequado às necessidades regionais). Também pioram as condições de trabalho dos servidores e de estudo dos alunos, ao passo que se reduzem os espaços para contestação institucional, uma vez que boa parte das IES públicas mantém estruturas oligárquicas e anacrônicas, algumas com eleição indireta de dirigentes (reitores e diretores) e composição de órgãos colegiados sem ampla representação dos envolvidos (a USP, por exemplo). Nas particulares, a situação é dramática: em 2009, 53% dos docentes eram horistas, enquanto 25,5% atuavam em tempo parcial.
Soma-se a isso o recrudescimento do autoritarismo. Em nome de garantir um ambiente propício à perenização de muitas funções privadas às quais as universidades públicas foram sendo submetidas (fundações, convênios com empresas, contratos de terceirização, cursos pagos etc.), a onda repressiva se espalha e, de certo modo, se naturaliza. As formas de controle de movimentos organizados, vozes dissonantes e contestadoras, ocultam os fundamentos reais dos problemas educacionais, buscando “resolvê-los” com medidas duras. Não raro, conflitos políticos tornam-se casos de criminalização judicial, para não dizer do reavivamento de práticas ditatoriais: espionagem, incursões policiais e crescente militarização do espaço físico dos campi (cancelas, catracas, câmeras de vigilância),8 criando uma tendência torpe de as universidades se parecerem cada vez mais com presídios do que com locais de produção e disseminação de conhecimento.
Diante da atual tendência de mercantilização – agravada pela entrada das IES particulares nas Bolsas de Valores e por práticas como os fundos privados de captação de recursos (endowments) nas IES públicas – e de sufocamento dos conflitos nas universidades, o ensino superior que está sendo construído corresponde aos anseios da sociedade?
Para que cumpram um papel emancipador, é preciso propiciar condições às IES: recursos adequados, pessoal bem formado, autonomia. Indivíduos com formação crítica podem tornar-se protagonistas de sua própria história, individual e coletiva. A pesquisa precisa ser patrocinada e não pode ser submetida a retornos rápidos, encurtamento dos prazos de formação na pós-graduação, enxugamento curricular, interesses próprios do mercado e do tempoda lucratividade das empresas.
Numa era em que o saber se torna cada vez mais fluido e fragmentário em todas as áreas, formar profissionais capazes de formular perguntas e respostas originais, antes de ser uma demanda do mundo em que se vive, é uma necessidade da sociedade que se almeja construir. Conhecimentos apenas adaptados a ritmos e forças do mundo atual não bastam. É preciso abrir portas para o futuro.
A recente greve dos servidores federais na área da educação pode ser tomada como exemplo: 1) de descaso governamental, que permite a situação chegar a limites intoleráveis (sua proposta desestrutura a carreira, descaracteriza o regime de trabalho de dedicação exclusiva, fere a autonomia universitária e sinaliza a retirada de direitos expressos em legislação anterior);9 e 2) de resistência dos trabalhadores organizados em contraposição a situações adversas, o que demonstra a possibilidade de construir as alternativas necessárias.
É urgente reverter o retrocesso na educação superior! 
César Augusto Minto
Professor da Faculdade de Educação da USP e vice-presidente da Associação dos Docentes da USP
Lalo Watanabe Minto
Professor da Faculdade de Filosofia e Ciências da Unesp, campus de Marília. 
Ilustração: Daniel Kondo
1 Ver Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (LDB), art. 20, incisos I a IV.
2 A Sinopse estatística da educação superior 2010 (Inep) não traz dados que permitam diferenciar as IES privadas.
3 Atende-se, assim, aos “critérios do mercado”, em duplo sentido: a flexibilização da formação resulta em mão de obra precarizada e com custo rebaixado, da mesma forma que permite a operação mais lucrativa das próprias IES privadas, as grandes responsáveis por esse tipo de formação.
4 Consulte os dezessete volumes dos Cadernos Mare da Reforma do Estado, Brasília, 1997-1998.
5 Rudi Cassel, “Terceirização no serviço público”, Valor Econômico, 18 jul. 2012, p.E2.
6 “Em síntese, a estratégia de publicização visa a aumentar a eficiência e a qualidade dos serviços, atendendo melhor o cidadão-cliente a um custo menor” (Cadernos Mare n.2, Brasília, 1998, p.12).
7 Sugerimos ver a “justificação” do Projeto de Lei n. 7.639, de 2010, da deputada Maria do Rosário (PT-RS) e outros. Trata das Instituições Comunitárias
de Educação Superior (Ices).
8 A maior parte também decorre de contratos (terceirizações) com a iniciativa privada.
9 Decreto n. 94.664, de 23 de julho de 1987 (PUCRCE). Aprova o Plano Único de Classificação e Retribuição de Cargos e Empregos de que trata a Lei n. 7.596, de 10 de abril de 1987.