segunda-feira, 4 de março de 2013

Entrevistas históricas: Eleanor Roosevelt entrevista Nikita Kruschev

(Kruschev, Eleanor e a intérprete)


Eleanor Roosevelt (1884-1962) foi uma primeira-dama e tanto. Durante o mandato do marido Franklin (1882-1945) era tão independente que se sentia à vontade para emitir opiniões contrárias às do presidente, e as publicava em jornais e revistas. Mulher à frente de seu tempo –há evidências inclusive de que era homossexual–, Eleanor se tornaria ao longo dos anos, mesmo após enviuvar, uma figura de referência na América. De 1936 até sua morte assinou uma coluna reproduzida em diversos jornais americanos. Definitivamente, não era para decoração.
Em junho de 1957, Eleanor denunciou que a Secretaria de Estado norte-americana lhe havia negado a autorização para viajar à China e entrevistar alguns líderes comunistas. Mas em outubro ela conseguiria ir à União Soviética, onde obteve um furo de reportagem: entrevistou durante três horas o líder do Partido Comunista, Nikita Kruschev (1894-1971), para o extinto jornal New York World-Telegram. A globetrotter Eleanor estava para completar 73 anos. Kruschev, o homem que sucedeu Stalin, era dez anos mais novo e estava de férias em Ialta, no mar Negro, quando concordou em falar.
A conversa entre o líder soviético e a ex-primeira-dama é fascinante e elucidativa. Primeiro por expor, sem disfarces, o comportamento norte-americano em relação ao comunismo, seu pânico quase infantil de que ele pudesse se espalhar pelo mundo. E também por mostrar a gênese dos conflitos que duram até hoje no Oriente Médio. Quem armou qual país? Eis aí onde tudo começou. Vejam os conflitos na Síria atualmente: quem são os maiores envolvidos na suposta tentativa de promover a paz? Estados Unidos e Rússia. Nada é por acaso.
Eleanor tenta colocar Nikita contra a parede, mas Kruschev faz o mesmo. Por vezes é ela quem se esquiva da pergunta, por vezes é ele quem foge. Ninguém se dobra, exatamente como seus países, em plena Guerra Fria. Dois anos mais tarde, Nikita Kruschev visitaria os Estados Unidos e seria sua vez de ser recebido por Eleanor Roosevelt. Ficaram amigos? Nem tanto, mas souberam se sentar para conversar, embora discordassem nos mínimos aspectos. Em um artigo, Eleanor contou ter achado o líder soviético “extremamente articulado” e, como pessoa, “alguém difícil de não se gostar”. Ao final, tomaram café e comeram frutas, doces e bolos oferecidos pela mulher de Kruschev, Nina.
Com todos os problemas da União Soviética, a entrevista deixa patente a falta que faz um líder de superpotência capaz de questionar de igual para igual o poderio norte-americano. Quem desempenha papel semelhante hoje no mundo é Hugo Chávez e seus colegas bolivarianos na América do Sul, mas os países que governam não têm o peso que a União Soviética tinha. Kruschev, porém, errou em sua previsão de que era o destino histórico do comunismo se espalhar pelo mundo…
A entrevista foi publicada em quatro artigos. No último deles, também muito interessante, Eleanor aborda especificamente a questão dos judeus soviéticos. Há estudiosos que apontam uma ascendência judaica nos Roosevelt, que eram primos.
***
3 October 1957
NEW YORK—A melhor maneira de começar esta série de artigos sobre a União Soviética é deixando Nikita S. Kruschev, líder do Partido Comunista, falar por si próprio. Pediram para submeter minhas questões antes da entrevista, mas o sr. Kruschev não as tinha diante de si quando apareci. E ele respondeu todas as perguntas, apesar de estar falando de forma completamente espontânea.
O primeiro artigo irá abordar somente uma parte das respostas gravadas e, como eu as tenho em russo, só posso dar a vocês a tradução como a recebi de minha intérprete, a sra. Anna Larova, que me contou que tinha traduzido para o meu marido em Ialta.
Abri a entrevista pedindo a ela para dizer ao sr. Kruschev o quanto eu tinha apreciado que tivesse reservado tempo para me ver durante suas férias, e acrescentei que gostei e achei muito interessante minha viagem por seu país. O sr. Kruschev respondeu: “Políticos nunca deixam obrigações políticas de lado”.
Aqui estão minhas perguntas e suas respostas:
ROOSEVELT: Vim à URSS como enviada dos jornais onde escrevo e para juntar toda a informação que possa para as palestras que darei no próximo ano, mas espero que, estando aqui, possa obter um maior entendimento e clareza a respeito de algumas questões que algumas pessoas em meu país não podem entender sobre o que ouvem da URSS.
KRUSCHEV: Aprecio sua vinda e quero falar sobre o presidente Roosevelt. Nós o respeitamos e recordamos suas atividades, porque ele foi o primeiro presidente a estabelecer relações diplomáticas entre os EUA e a URSS. O presidente Roosevelt compreendeu perfeitamente bem a necessidade de haver relações entre nossos países.
Ele foi um grande homem, um homem capaz, que entendeu os interesses de seu próprio país e da União Soviética. Nós tínhamos uma causa comum contra Hitler e nós gostamos muito que Franklin Roosevelt entendesse este desafio, um desafio comum aos dois países. Estou muito feliz por receber a senhora em nossa terra e por ter essa conversa.
ROOSEVELT: Sr. Kruschev, posso fazer as questões que lhe submeti? Então, se o senhor tiver alguma pergunta, faça-a, eu ficarei feliz de respondê-las. E talvez possamos ter depois uma conversa informal, não para citação direta.
KRUSCHEV: Sim, sra. Roosevelt, claro.
ROOSEVELT: Em casa as pessoas diriam “como a União Soviética espera que nós nos desarmemos sem inspeção quando ela nos forçou a refazer nosso exército depois da Segunda Guerra Mundial? Reduzimos nosso exército de 12 milhões para 1 milhão de homens”. Esta poderia ser uma das primeiras questões, senhor.
KRUSCHEV: Acho, sra. Roosevelt, que temos diferentes pontos de vista sobre essa questão armamentista. Nós não concordamos com sua concepção. Consideramos que a desmobilização dos exércitos aconteceu na União Soviética e nos Estados Unidos.
A senhora menciona que vocês tinham 12 milhões de homens armados, mas, em seu país, homens e mulheres estavam todos mobilizados. Em nosso país, morreu aproximadamente o número de pessoas que compunham seu exército, quase o mesmo número de pessoas. Sra. Roosevelt, não quero ofendê-la, mas se a senhora compara as perdas de seu país à nossa, suas perdas se igualam a apenas uma grande campanha, a um grande ataque dos alemães.
A senhora sabe da terrível destruição e ruína que tivemos, nossa mineração, nossa metalurgia. Perdemos nossas cidades. É por isso que nosso país estava tão impaciente em estabelecer a paz, em firmar a paz. Nenhum país desejou isso tão impacientemente quanto nós.
Quando falamos em desmobilização, apenas alguns círculos em seu país o querem. Outros pensam e acreditam que a nação soviética deveria perecer como estado socialista, esperam que pereçamos, que morramos.
ROOSEVELT: Não consigo entender isso. O sr. quer dizer que acha que nós pensamos, ou pelo menos alguns círculos, que todos os países socialistas deveriam acabar?
KRUSCHEV: Exatamente. Mas estas esperanças falharam e vocês podem ver agora que nosso estado socialista foi refeito sobre as ruínas, restabeleceu sua economia e tornou-se inclusive mais poderoso.
ROOSEVELT: Entendo, sr. Kruschev, mas os soviéticos tiveram uma proporção muito maior de homens armados na guerra do que nós tínhamos na época.
(Dr. David Gurewitsch, que viajava pela Rússia comigo, estava fazendo a gravação da conversa, e ao mesmo tempo ouvindo para se certificar de que as traduções estivessem corretas, já que ele conhecia a Rússia e tinha autorização para fotografar. Então interrompeu para dizer: “não somente a proporção, mas em números absolutos era muito maior –6 milhões de soldados soviéticos”).
KRUSCHEV: Dr. Gurewitsch, o senhor sabe perfeitamente o número de seus homens armados, mas não fique tão seguro a respeito dos nossos homens armados. O senhor não sabe. (Virando-se para a sra. Roosevelt) Não refuto que nosso exército fosse maior que o seu. Nós abordamos essa questão de uma maneira tranquila, calma. Então isso pode ser analisado de um jeito razoável e fácil de compreender.
Pegue um mapa e olhe a localização ou situação geográfica de nosso país. Isto é um território colossal. Sra. Roosevelt, se a senhora pega a Alemanha ou a França, pequenos países que mantêm seus exércitos para defendê-los tanto a Leste quanto a Oeste, é fácil. Eles podem ter um exército pequeno. Mas se nós mantemos nossos exércitos no Leste, dificilmente ele chegará ao Oeste, entende, porque nosso território é vasto demais. Ou o exército que está no Norte não tem como ser usado no Sul.
Então, para estar certo de nossa segurança, precisamos de um exército grande, o que não é fácil para nós. Quando as pessoas falam sobre fronteiras, falam em 3 mil quilômetros, o que é a distância entre os continentes. Mas se nós movemos nosso exército do Leste para o Oeste, isso significa 3 mil quilômetros.
ROOSEVELT: Entendo tudo isso, claro, mas o senhor não tem nada a temer vindo do Norte. Em Ialta, a derrota da Alemanha foi aceita, e eu entendo que o senhor não queira que a Alemanha se reerga como uma potência militar e que queira um grupo de países neutros entre o seu e a Alemanha. Entendo que estes países sejam livres mas que precisem estar próximos à União Soviética, já que a URSS está pensando em sua proteção.
Hoje, certamente, Grã-Bretanha, França e Alemanha não são uma ameaça militar. Eu não digo que não podem se tornar, mas não são atualmente. Estão somente em base defensiva. Então acho que se pode discutir muito calmamente como um país como a União Soviética pode estar segura –desejo e necessidade que entendo perfeitamente–, e ainda assim não ter um exército ofensivo, porque isso assusta o resto do mundo.
KRUSCHEV: O que posso lhe dizer, sra. Roosevelt? No momento em que aumentamos nossos exércitos, significa que tememos um ao outro. As tropas russas, antes da revolução, nunca se aproximaram da Grã-Bretanha e nunca invadiram a América. Até mesmo nos velhos tempos elas nunca foram aos EUA, mas as tropas americanas vieram ao Leste, as tropas japonesas estiveram em nosso Extremo Oriente, em Vladivostok, as tropas francesas em nossa cidade de Odesssa, e é por isso que temos um exército. Suas tropas se aproximam de nosso território, não as nossas ao seu.
Nunca fomos ao México ou ao Canadá, mas suas tropas foram lá, então é por isso que temos um exército em caso de perigo. Até que as tropas se retirem da Europa e as bases militares sejam liquidadas, é certo que o desarmamento não acontecerá.
ROOSEVELT: O tipo de armamento de hoje é que é importante mudar. Isto não era usado nos velhos tempos. Nós estamos reduzindo nosso exército, mas o que importa atualmente são as armas atômicas, e é por isso que acho que a ênfase terá que ser em como podemos chegar a um acordo.
(A arrogância americana, estrelando Richard Nixon, então vice-presidente, com Kruschev em 1959. Foto: Elliot Erwitt)
4 October 1957
CINCINNATI—Em um esforço para descobrir se Nikita S. Kruschev, líder do PC da URSS, acha que o mundo comunista pode algum dia viver em paz com seus democráticos vizinhos, coloquei questões a respeito em nossa recente entrevista gravada em Ialta.
Continuando de ontem:
Sr. Kruschev, gostaria de prosseguir e perguntar minha próxima questão.
Não suspeitamos da URSS à primeira vista, lutamos na guerra juntos. Meu marido, e acho que também o presidente Truman, tinham uma esperança real de que pudéssemos chegar a um entendimento.
Agora, sentimos nos EUA que alguns dos acordos feitos em Ialta não foram seguidos estritamente pela URSS, e a desconfiança começou a crescer. Lamento dizer que esta desconfiança é parcialmente causada pelo pouco intercâmbio entre nosso países.
Temos que fazer alguma coisa de ambos os lados para recuperar a confiança, então gostaríamos –mesmo que o senhor ache que nossa proposta de algum tipo de inspeção seja impraticável, já que nenhum lado necessita esconder o que está produzindo– ainda assim gostaríamos de sentir algum esforço por algum tipo de acordo, mesmo que nenhum de nós ache esse acordo inteiramente adequado.
Nosso povo gostaria de sentir que há mais boa vontade por parte dos soviéticos de considerar a proposta, que não é propriamente nossa, mas do Ocidente.
KRUSCHEV: Sobre o acordo de Ialta, temos diferentes pontos de vista sobre quem o rompeu. Não concordamos com a política dos EUA de que eles querem libertar a Europa e os países do Leste do socialismo. Eles não somente anunciaram, como deram dinheiro para isso. Criaram estações de rádio e fazem propaganda.
Eles nos culpam de ser os responsáveis pela (antiga) Tchecoslováquia ter estabelecido um regime socialista. Mas todos sabem que quando a revolução aconteceu na Tchecoslováquia, nem um só soldado russo estava em seu território.
A senhora sabe, sra. Roosevelt, o que aconteceu na Grécia –o desejo do povo foi destruído por tanques ingleses. Quando o próprio sr. Churchill atravessou o país em um tanque, o desejo do povo foi destruído. Após as tropas inglesas irem embora, vieram as tropas americanas.
ROOSEVELT: O senhor se importa se eu disser que nós acreditávamos que não era o desejo do povo? Nós acreditávamos que a maioria do povo queria o rei de volta e não queria os socialistas. Veja, esta é a diferença entre nós.
Então eu gostaria de ir para minha terceira questão, que é: o governo da União Soviética ainda acredita que o mundo se tornará comunista? Ou acredita que os dois sistemas podem coexistir em paz, porque este é o xis da questão?
O senhor diz que nós tentamos impedir estas nações de se tornarem socialistas, mas é porque acreditamos que a União Soviética deseja se estender pelo mundo, não somente pelo uso de soldados mas por meio de outros agentes, que nossa desconfiança cresceu.
KRUSCHEV: Também sou um agente?
ROOSEVELT: Pelo que sei, deve ter sido. Mas o que se acredita em nosso país é que vocês escalaram agentes com esse objetivo.
KRUSCHEV: Mas quem escalou?
ROOSEVELT: Acredita-se que há um esforço constante –vamos dizer sugestão– às pessoas de que o mundo se tornará assim. Agora, nós não acreditamos que o mundo será assim. Nós acreditamos em nosso jeito e vocês em seu jeito.
KRUSCHEV: Por isso colocamos nossos agentes –agentes das filosofias diferentes– nas Nações Unidas.
(Os bons camaradas: Fidel e Kruschev em 1960. Foto: Marty Lederhandler)
ROOSEVELT: Podemos viver no mesmo mundo sem tentar destruir um ao outro, e, portanto, ameaçando um ao outro? Ou vamos continuar nessa constante ameaça de guerra porque ambos pensamos que o outro está tentando promover somente a sua filosofia para o mundo inteiro?
KRUSCHEV: Duas questões, sra. Roosevelt, duas questões. A primeira é sobre duas filosofias que poderiam conviver em paz. Sem dúvida, sra. Roosevelt, nós precisamos viver em paz, nós precisamos viver, nós precisamos. (Dr. David Gurewitsch interrompe: não somente precisamos viver em paz, mas nós queremos viver em paz e nós nos esforçamos para viver em paz nos EUA).
ROOSEVELT: Concordo.
KRUSCHEV: Nós também queremos ter, veja, alguma coisa em comum em nossa atividade econômica, em nossa vida cultural.
ROOSEVELT: Sua filosofia sozinha pode se espalhar pelo mundo porque esse é o lema, no topo de seu jornal, por exemplo?
KRUSCHEV: Sim, temos um lema: “proletários de todo o mundo, uni-vos”. Não foi minha idéia. Nós diferimos sobre nossos assuntos externos. Nunca me escondi destas questões.
A frase que, estou seguro, disse ao Columbia Broadcasting System foi: o comunismo vencerá no mundo inteiro. Isso é baseado cientificamente nos escritos de Marx, Engels e Lenin. Seu povo nos EUA é culto, então sabe que todo tipo de mudança ocorre na economia e que as relações entre as nações mudam –feudalismo, capitalismo e então socialismo. E o estágio mais elevado será o comunismo. Isso é bem conhecido, é o sentido da história.
Quando um estado muda sua ordem, é problema do povo. Nós somos contrários a tentativas militares de introduzir o comunismo ou o socialismo em qualquer país, assim como somos contrários à sua interferência em restabelecer o capitalismo em nosso país através de intervenção militar. É por isso que insistimos na coexistência e colaboração.
ROOSEVELT: Eu poderia concordar que mudanças ocorrem no mundo. Poderia concordar que nenhuma ação militar deveria impedir essas mudanças. Diria inclusive que é essencial que não haja interferência de nosso país em países comunistas, a não ser por meio de intercâmbio e observação pacíficos.
Mas o mesmo vale para os países socialistas. Se há uma movimentação para impor ideias comunistas, fica difícil viver em uma atmosfera pacífica.
KRUSCHEV: Nós falamos sobre interferência, sra. Roosevelt, e a senhora sabe o que seu Departamento de Estado faz nesta esfera. Deixe o Sr. Dulles (então secretário de Estado, John Foster Dulles tinha uma postura fortemente anti-comunista) informar o que o Sr. Henderson (o diplomata Loy Henderson, sub-secretário de Estado) tinha em vista quando visitou a Turquia e o resto dos países do Extremo Oriente. O sr. Henderson tinha uma missão bem suja.
ROOSEVELT: Acho que a situação de todo o Oriente Próximo esteve bem ruim, mas nós pensamos que a União Soviética começou isso quando deixou que armas da Tchecoslováquia fossem para o Cairo. Hoje sabemos que eram soviéticas ou de aliados as armas usadas pelos egípcios.
O senhor sabe que durante longo tempo os egípcios vêm dizendo a Israel que iriam empurrá-los até o mar. Israel foi aceito como país pelas Nações Unidas. É um Estado que poderia ajudar, por possuir avançada tecnologia, a melhorar as condições de vida em todo Oriente Próximo se estas nações pudessem todas sentar juntas para uma discussão pacífica.
Mas agora vocês estão armando a Síria para preservar o que chamam de “neutralidade síria”.
Outro dia li no jornal que nós demos 117 milhões de dólares a Israel e que lhe dissemos para ocupar a zona desmilitarizada entre a Síria e Israel. Nós podemos ter dado o dinheiro, mas nunca dissemos para eles que ocupassem a zona. Estou segura disso.
Acredito que esta situação poderia ter sido infinitamente melhorada há muito tempo por ambos, soviéticos e nós. Por causa do fluxo de armas para o Egito e a Síria, agora sentimos que, quando outros países árabes pedem armas, nós temos de ajudá-los.
Meu sentimento é de que se nenhum de nós tivesse dado armas, mas ajudado a melhorar as condições de vida das pessoas, estaríamos fazendo algo útil. Hoje o que há é nada mais que uma corrida para ver qual de nós pode estar no prato de cima desta balança do poder militar.
(Kruschev foi fácil. A sogra de Eleanor, Sara, é que era osso duro de roer)
5 October 1957
CINCINNATI—Questionei Nikita S. Kruschev, líder do Partido Comunista da União Soviética, em minha entrevista com ele em Ialta, sobre a posição soviética no Oriente Próximo e ele acusou os Estados Unidos de vender primeiro armas a países nesta área. Aqui está a continuação da entrevista:
ROOSEVELT: Não podemos chegar a uma reconsideração de nossa inteira atitude no Oriente Médio?
KRUSCHEV: Sra. Roosevelt, a senhora não sabe das propostas que foram feitas pela União Soviética, de que nenhum país poderia vender armas a qualquer país do Oriente Próximo. Os EUA recusaram.
(Dr. David Gurewitsch, interrompendo: Recusamos somente após as armas já terem sido enviadas ao Egito e à Síria pela União Soviética. O equilíbrio já havia sido destruído.)
KRUSCHEV: O senhor é o chefe dos suprimentos militares, Dr. Gurewitsch? Não considero que o senhor conheça a situação exata.
ROOSEVELT: Não acho que nenhum de nós conheça a situação exata, mas isto poderia, de qualquer maneira, ser levado à conferência de desarmamento ou às Nações Unidas.
KRUSCHEV: Pergunto à senhora: Quem começou primeiro a vender armas para estes países? Nós ou vocês? O que me diz do Paquistão?
ROOSEVELT: Acho que foram vocês. O Paquistão não está no Oriente Próximo. É bem mais longe.
(Dr. Gurewitsch, interrompendo: A questão era: quem vendeu armas primeiro?)
ROOSEVELT: Eu diria que nós acreditamos que a União Soviética começou primeiro a vender armas a outros países. Acho que a única coisa que se pode fazer agora é levar a questão às Nações Unidas e tentar algum acordo
KRUSCHEV: A senhora não respondeu minha questão. Vocês não gostam de comunistas e eu não tenho nada contra isso, porque pode ser que eu não ame pessoas que estão em outros sistemas. Mas as pessoas precisam ser honestas. Por isso faço essa pergunta: quem vendeu primeiro armas a outros países e não só vendeu, mas entregou gratuitamente? Quem foi o primeiro?
Tenho muito respeito pela senhora e aprecio as atividades de seu grande marido, Franklin Roosevelt, mas o mundo inteiro sabe que os EUA começaram primeiro a fornecer armas, então eu esperava francamente ter uma conversa honesta. Do contrário não estaremos seguros sobre a interpretação desta conversa.
ROOSEVELT: Estamos falando do Plano Marshall?
KRUSCHEV: Não importa se é o Marshall ou qualquer outro plano. Eu sei que os EUA armaram todos os nossos inimigos.
ROOSEVELT: A ênfase do plano Marshall era no desenvolvimento econômico dos países.
KRUSCHEV: Armas são ajuda econômica?
ROOSEVELT: Concordo que muitos países no Ocidente receberam armas, e vejo agora que a União Soviética sente que foram fornecidas contra seu país. Mas nós, nos EUA, diríamos que tínhamos chegado a um ponto em que começamos a sentir que a União Soviética possuía intenções militares contra o Ocidente.
KRUSCHEV: Para que as armas foram fornecidas? Nós nunca as usamos na hora do chá.
ROOSEVELT: Acho que nossa primeira suspeita surgiu na época do “Bloqueio de Berlim”, quando os soviéticos pareciam estar tentando nos expulsar de lá (entre junho de 1948 e maio de 1949, suprimentos foram entregues via aérea em Berlim Ocidental, já que os soviéticos bloquearam o acesso rodoviário, ferroviário e hidroviário à cidade). Garanto ao senhor que nós cometemos erros, mas acho que vocês também. Estando aqui, me dei conta de que seu povo não quer a guerra.
KRUSCHEV: Se a senhora diz que o povo não quer a guerra, quem quer, seus representantes?
ROOSEVELT: O governo, talvez, já que faz coisas, em ambos os lados, que acreditam ser em defesa do povo. Isto acontece em seu país e provavelmente no nosso.
KRUSCHEV: Isto acontece no seu país.
ROOSEVELT: Se é assim, também no seu.
KRUSCHEV: Não no meu, definitivamente.
ROOSEVELT: Ah, acontece. Governos são muito parecidos.
KRUSCHEV: Existem sinais. Há lógica; existe o histórico, então precisamos checar. Que tropas se aproximaram da fronteira? Os soviéticos se aproximaram da fronteira americana? Foram os americanos que se aproximaram da fronteira soviética. Sim, eles estão lá.
ROOSEVELT: Nós não tentamos entrar na União Soviética.
KRUSCHEV: Tentaram.
ROOSEVELT: Não tentamos. Mas isso poderia ser tomado somente como uma atitude defensiva se tivéssemos alguma forma de coexistência amigável. Não podemos continuar nos armando de ambos os lados. Poderíamos trabalhar por um maior intercâmbio de pessoas em todos os níveis para conseguir um maior entendimento?
KRUSCHEV: Estou surpreso, sra. Roosevelt. Talvez a senhora não esteja muito bem informada sobre a situação. Nós nunca nos recusamos. Nós sempre permitimos que as pessoas viessem aqui, mas vocês nunca deram vistos a nossos cidadãos.
ROOSEVELT: Nós nem sempre permitimos que comunistas venham aos EUA nem vocês sempre permitem que pessoas deixem seu país, mesmo que conseguíssemos vistos para eles.
KRUSCHEV: Conte-nos sobre alguém que não fosse autorizado a entrar aqui.
ROOSEVELT: Não estou dizendo que vocês não permitem que pessoas venham a URSS, mas vocês levam muito tempo para garantir seus vistos.
Do seu lado, vocês não querem aceitar nossas impressões digitais. E nós não vemos nenhum problema em tomar impressões digitais. O que nos preocupa é a dificuldade das pessoas que querem deixar a União Soviética, até mesmo para visitas.
KRUSCHEV: Nós autorizamos todo mundo a vir aqui, não importa o quanto ele desgoste da União Soviética, para ver como é. Não temos medo.
ROOSEVELT: Eu poderia resumir o sentimento do povo dos EUA dizendo que o que os soviéticos fizeram em Berlim originaram nossas desconfianças. Coréia do Norte, Vietnã do Norte, Egito e Síria se somaram a elas. Os mal-entendidos cresceram e há medo em ambos os lados. Temos que fazer algo para criar confiança. Uma coisa que pode ser feita é um intercâmbio maior de pessoas.
KRUSCHEV: Concordo totalmente, Sra. Roosevelt.
(Eleanor recebe Kruschev na biblioteca Franklin D. Roosevelt em 1959)
ROOSEVELT: O senhor tem alguma sugestão ou alguma pergunta para mim?
KRUSCHEV: Nós colocamos várias vezes nossas propostas. Mas os EUA estão acostumados a ditar, a ordenar, então falam somente sobre as condições que irão aceitar. Quero esclarecer em termos de palavras e ações. Onde estão as tropas e de quem são as tropas?
ROOSEVELT: Se pudéssemos parar de pensar por um momento sobre armas atômicas, ainda assim teríamos na URSS um exército de prontidão tão grande que poderia mover-se rapidamente pela Europa, e isso faz os europeus ficarem temerosos se não possuem nenhuma defesa.
KRUSCHEV: Houve um tempo em que na Alemanha, na Inglaterra e na França não havia nenhum exército americano e nosso exército era muito maior, mas nós não fizemos nada. Não somos estúpidos ao ponto de fazer truques. Nunca tentamos nada contra estes países.
ROOSEVELT: Quando você lê um jornal na União Soviética, vê muito poucas notícias sobre o estrangeiro. Todas as menções sobre os EUA são sobre alguma coisa ruim que aconteceu lá. Por exemplo, as únicas notícias que vi foi o que ocorreu em Little Rock, Arkansas, sobre integração (racial) nas escolas, mas este problema afeta 7 de 48 estados.
KRUSCHEV: Mas estes sete Estados são os EUA da América.
ROOSEVELT: Somente uma parte pequena.
KRUSCHEV: Nós temos também repúblicas pequenas. Elas integram a URSS e são iguais em direitos.
ROOSEVELT: Nós não temos controle central, então nossos Estados possuem direitos específicos.
KRUSCHEV: Em nosso país, cada república tem seus próprios direitos. Elas são independentes. Mas vamos voltar à questão que a sra. falou: vocês dizem alguma coisa boa sobre a URSS em seus jornais?
ROOSEVELT: Acho que tem melhorado, e não há toda essa vilanização que encontro nos jornais aqui. Mas gostaria de dizer que não sinto antagonismo conosco entre o povo. Eles são muito afetuosos e receptivos.
ROOSEVELT: Vocês estão ansiosos por um maior intercâmbio econômico?
KRUSCHEV: Sim, estamos. Não porque necessitamos, mas porque o intercâmbio econômico é a melhor maneira de intensificar as relações. Vocês não querem ter relações comerciais com nosso país porque não querem nos dar segredos militares. Mas não importa, porque nós temos armas atômicas. Não vamos comprar armas de vocês, mas ficaríamos contentes de fazer negócios.
(Aqui Dr. Gurewitsch interrompeu e disse: O que mais pode ser feito para melhorar nossas relações?)
ROOSEVELT: É o que estou mais ansiosa para descobrir.
KRUSCHEV: Diga a verdade para o povo dos EUA. Diga a verdade sobre o governo soviético e sobre nosso país. Vocês odeiam comunistas.
ROOSEVELT: Eu não odeio os comunistas enquanto povo. O que acontece é que acredito que, através de uma democracia livre, se desenvolve um povo mais independente e forte e se dá a eles a oportunidade de conquistar mais. É uma opinião pessoal e posso entender bem a crença socialista, mas isso não significa que eu queira ver esta crença espalhada utilizando métodos de propaganda que não são sempre abertos e legítimos –por métodos ocultos.
Estou bastante aberta a que ambos possamos fazer o possível para provar, no futuro, que do nosso jeito é melhor. Mas sinto que temos de achar um método para conseguir relações mais amigáveis ou isto acabará numa guerra que nenhum de nós quer.
(Dr. GUREWITSCH, interrompendo: O senhor acabou de dizer: “Nós amamos a paz mas estamos convencidos de que o comunismo irá se espalhar pelo mundo.” Como isto será feito pacificamente? Ou o senhor reconhece que uma ideia oposta tem alguma chance ou simplesmente borra a oportunidade de coexistência. O senhor precisa aceitar que as duas coisas podem   continuar, ainda que não cheguem jamais a um ponto comum.)
KRUSCHEV: Muitas pessoas acreditam que o comunismo é melhor que o sistema que existe hoje.
(Dr. GUREWITSCH de novo: Não há uma contradição no que o senhor está dizendo? Conversamos sobre coexistência e no mesmo minuto o senhor diz que está convencido de que o comunismo se espalhará pelo mundo. Vocês não estão fazendo todo o possível para acelerar este processo?)
KRUSCHEV: Oh, não, não há contradição. O que eu disse sobre o comunismo se espalhar é como falar sobre as leis da natureza. Estou firmemente convencido de que é o curso natural da história e não tem nada que ver conosco convivendo pacificamente juntos e parando de tentar destruir-nos um ao outro.
ROOSEVELT: Ambos sabemos, então, que as bombas são perigosas e que podem aniquilar o mundo.
KRUSCHEV: Somos a favor do desarmamento completo. Não necessitamos armas se vocês aceitarem nossa existência e pararem de interferir onde querem.
ROOSEVELT: Nós também somos pelo desarmamento, mas é preciso que haja alguma inspeção internacional.
KRUSCHEV: Nós aceitamos a inspeção, mas primeiro tem que haver confiança e depois inspeção. O sr. Dulles quer inspeção sem confiança.
ROOSEVELT: Acho que a confiança e a inspeção tem que vir juntas. Precisamos começar e gradualmente ampliar nossos planos.
KRUSCHEV: Ótimo. Só gradualmente isso pode acontecer.
ROOSEVELT: O senhor concordaria com uma inspeção limitada se nós começássemos?
KRUSCHEV: Mas eu concordei. É o que propusemos, inspeção em portos, rodovias, estradas, aeroportos, e tem que ser uma inspeção entre nações. Mas em resposta a sua proposta, o Sr. Dulles fez um pronunciamento que soou tão forte como se tivesse fazendo propaganda da bomba atômica, tentando fazer disto algo palatável. Ele fala de uma bomba limpa, como se fosse possível algo assim. Guerra é uma coisa suja.
Mas vocês recusam nossa sugestão. Vocês insistem neste negócio dos aviões e em olhar nossas fábricas. Vocês sabem que estes foguetes fizeram a situação mais aterrorizante. Agora podemos destruir países em poucos minutos. Quantas bombas são necessárias para destruir a Alemanha Ocidental? Quantas para destruir a França? A Inglaterra? Somente umas poucas. Nós temos agora a bomba H e foguetes. Não precisamos nem mesmo enviar nenhum bombardeiro.
ROOSEVELT: E logo pequenos países terão bombas atômicas.
KRUSCHEV: Por que não? As pesquisas continuam, eles estão aprendendo. Temos que estar juntos para que não ocorra a guerra. Precisamos assinar algum acordo agora.
ROOSEVELT: Seu povo certamente quer paz, e posso assegurar que o nosso também.
KRUSCHEV: A senhora acha que nós, o governo, queremos a guerra?
ROOSEVELT: Não são as pessoas que fazem as guerras, mas os governos. E então persuadem as pessoas que são por uma boa causa, para sua própria defesa. Estes argumentos podem ser feitos tanto por nosso governo como pelo seu.
KRUSCHEV: Certo. Podemos dizer que tivemos uma conversa amigável?
ROOSEVELT: Podemos dizer que tivemos uma conversa amigável, mas divergimos.
KRUSCHEV: Bem, não atiramos um no outro.
Isto foi realmente o fim do que posso transmitir a vocês em termos de citações. Houve, porém, uma discussão muito interessante sobre um tema de grande interesse, porque é sobre o Oriente Próximo. Então dedicarei minha próxima coluna a esta parte da conversa, apesar de não citar as palavras exatas do Sr. Kruschev.
(NOTA DO EDITOR: Como a Sra. Roosevelt está sendo pressionada continuamente a revelar informações sobre sua entrevista com Nikita S. Kruschev e não quer fazê-lo antes de que apareça em sua coluna, o resto da entrevista está aqui. Por isso está maior do que usualmente.)
(O célebre aperto de mão com Kennedy em Viena, em 1961…
…mas pelo visto ele gostou mais de Jackie)
8 October 1957
DETROIT—Uma das questões que submeti ao sr. Kruschev após a gravação ter terminado era sobre sua atitude a respeito da situação do Oriente Próximo e o tratamento dos judeus na União Soviética, como também sobre alguns de seus pronunciamentos sobre o Estado de Israel.
O sr. Kruschev pareceu muito ansioso para nos fazer entender que um comunista não poderia ser um anti-semita. Comunismo é o oposto a todo tipo de discriminação por raça ou religião e se um membro do partido se revelasse um anti-semita, ninguém o cumprimentaria. Se Karl Marx era judeu, como poderíamos acreditar que algum comunista poderia ser anti-semita? Seu próprio filho, que foi morto na guerra, ele nos disse, era casado com uma judia. Na União Soviética, continuou, os judeus recebem todas as oportunidades para se educar e assegurar posições na vida. Ele então disse que os soviéticos votaram a favor da criação do Estado de Israel, mas no momento acham que Israel deveria mudar sua política e ser menos agressivo.
Sugeri que o fato de a União Soviética ter dado armas para a Síria seja uma das razões para que Israel se sinta inseguro e por isso se mostre agressivo. Ele se inflamou e disse que existem 80 milhões de árabes e 1 milhão de israelenses, então se Israel continuar sua política será destruído. Quem atacou o Egito?, ele perguntou. Não foram a Grã-Bretanha, a França e Israel?
Respondi que tínhamos de separar a atitude de Israel da francesa e da britânica. Israel ouvira durante um ano dos egípcios que quando eles estivessem completamente armados pelos soviéticos iriam empurrar os israelenses até o oceano. Então a ação de Israel foi de auto-defesa, porque não podiam esperar até que o ataque contra eles estivesse pronto. Prova disso foi que, no deserto do Sinai, os israelenses encontraram mais de 50 milhões de dólares em material militar que tinha sido fornecido pelos soviéticos ou por seus aliados.
O sr. Kruschev se esquivou desta. Quando adicionei que acho que ele está equivocado ao dizer que Israel era agressivo, porque necessita paz mais que qualquer outro lugar no mundo para fortalecer seu país, ele se virou para mim e disse: “Os EUA estão fornecendo armas a Israel”. Aqui o dr. Gurewitsch interrompeu e disse: “Mas você lembra que os EUA votaram com vocês na questão de Suez?”
O sr. Kruschev respondeu que lembrava muito bem, mas que era evidente que os EUA queriam ficar bem com os dois lados. Eles não queriam perder os árabes por causa do petróleo, e os árabes entenderam isso muito bem. Então virou-se para mim para dizer quão estúpida ele achava a ideia de que existia anti-semitismo na União Soviética. Eu não sabia que havia muitos judeus em altas patentes no exército soviético, incluindo um general judeu, e que havia um judeu enterrado dentro dos muros do Kremlin?
Pensei que poderia adotar suas táticas de ataque nesse momento, e disse: “De qualquer maneira, senhor, é muito difícil para qualquer judeu deixar a União Soviética se ele desejar se estabelecer em Israel ou até mesmo visitar o país”.
“Eu sei”, respondeu o sr. Kruschev sem hesitar; “mas chegará o tempo em que qualquer um que queira ir poderá fazê-lo”.
Eu disse então que achava que a União Soviética poderia ajudar se estivessem querendo trabalhar ao lado dos Estados Unidos para conseguir um entendimento entre Israel e os países árabes. Israel estava dispostoa sentar com os representantes árabes e tentar resolver suas dificuldades, mas os árabes sempre se recusaram.
O sr. Kruschev respondeu que sabia muito bem que os árabes cometiam erros; mas nós precisamos lembrar que a União Soviética agia por uma classe, não por um Estado. Israel consiste em todos os tipos de classes; os soviéticos podiam agir pelos socialistas em Israel, não pelo Estado! (Presumo que quando o sr. Kruschev falou em “socialistas”, quis dizer comunistas.)
(Eleanor e os direitos do homem)

Não há dúvida que os soviéticos estão tentando integrar os judeus completamente. Inclusive estão orgulhosos do fato de permitirem a várias repúblicas manter suas próprias culturas, sua própria arte e linguagem. Mas os judeus na União Soviética não estão numa república à parte; eles estão espalhados em diferentes cidades. Acho que os soviéticos sentiram que poderiam fazer bom uso dos cérebros dessas pessoas, mas eles os querem como comunistas, não como um povo com uma cultura diversa e talvez com outra crença política. É por isso que não existe um teatro judeu na União Soviética. Eles permitem que atendam à sinagoga, assim como permitem que as pessoas vão às igrejas ortodoxas ou batistas. Cada uma destas religiões pode manter um certo número de rabinos ou ministros. Mas não há uma escola judaica para crianças, já que eles querem que os judeus frequentem escolas soviéticas comuns.
É bem verdade que os judeus ocupam altos postos nos ministérios entre doutores, professores, cientistas, etc. Mas a cultura judaica certamente não é encorajada, e estou segura de que um número significativo de judeus ficaria feliz de obter permissão para visitar Israel por algum tempo. Teremos que esperar para saber quando a promessa do Sr. Kruschev de que “o tempo virá” será cumprida (isso só acontece a partir de 1969, quando os judeus soviéticos passam a ter direito à emigração. Já era presidente da URSS Leonid Brejnev, que substituiu Kruschev).

domingo, 3 de março de 2013

Cebes denuncia: Pacote de estímulo a planos privados de saúde é mais um golpe no SUS


do Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (Cebes), via e-mail

O Sistema Único de Saúde — SUS — tem sofrido sucessivas derrotas, sendo uma das mais emblemáticas e dolorosas a indigesta aprovação da Emenda Constitucional-29 sem a destinação dos necessários 10% da Receita para a saúde.
No dia 27/02/2013 a Folha de São Paulo 1/1-Cotidiano (FSP) publicou matéria intitulada “União quer ampliar acesso a Planos de Saúde”, segundo a qual a Presidenta Dilma estaria negociando com as grandes empresas do setor privado da saúde (Qualicorp, Bradesco e Amil) medidas de redução de impostos, ampliação de financiamento para infraestrutura hospitalar e solução para as dívidas das Santas Casas. Segundo o jornal, o objetivo seria o de facilitar o acesso das pessoas aos planos privados de saúde com o compromisso de elevar o padrão de atendimento, anunciando que setores do governo celebram esse pacote como uma nova marca para a saúde.
A notícia de um “pacote  com medidas de estímulo” às empresas de planos e seguros do setor privado da saúde é mais um golpe no SUS, além de ser uma medida inconstitucional. A Constituição Federal de 1988 Art. 199 § 2º afirma que “É vedada a destinação de recursos públicos para auxílios ou subvenções às instituições privadas com fins lucrativos”. Os planos e seguros de saúde são empresas que, por sua própria natureza, visam o lucro acima de tudo, independente de jogar com a saúde e a vida das pessoas. Constituem-se em um poderoso e lucrativo setor sem compromissos com indicadores de saúde e sem controle social.
Quem precisa urgente de “estímulo” é o SUS, que contrário do que prevê a Constituição, está se tornando complementar às instituições privadas na prestação de serviços, sobretudo na atenção medica especializada e hospitalar. O atual governo pode passar para a história como um dos responsáveis pela extinção da possibilidade e viabilidade do SUS como um sistema público universal  que deve oferecer atenção integral.
O CEBES, diante da notícia veiculada manifesta profunda preocupação com a hipótese que esta noticia seja de fato configurada como estratégia de governo e, tal como todo o movimento sanitário, encontra-se em alerta máximo contra essa iniciativa que compromete irreversivelmente o Sistema Único de Saúde como projeto de saúde para a sociedade brasileira.
É preciso lembrar o Governo de que a ampliação da oferta de planos de saúde para a classe media constitui um atentado ao direito à saúde e um retrocesso na consolidação do SUS como sistema universal, integral e de qualidade, além de representar uma perversa extorsão para a população que paga barato, mas tem plano com cobertura de atendimento restrita que não dá conta das necessidades de saúde das pessoas. É falacioso e desonesto atribuir mérito da desoneração do SUS a esta estratégia da expansão da oferta de planos privados.
O Movimento Sanitário integrado por intelectuais, pesquisadores, estudantes, gestores, profissionais de saúde, movimentos sociais de usuários do SUS e ativistas, vem reclamando por mais recursos orçamentários para o SUS por constatar a precariedade da assistência oferecida fruto, dentre outras causas secundarias, do baixo investimento publico no setor saúde.
Nosso objetivo é consolidar o SUS constitucional que a população brasileira conquistou onde saúde é um direito universal e um dever do Estado. Por isso nossa posição é radicalmente contraria à expansão do mercado privado da saúde que se apresenta hoje financeirizado  e comprometido eticamente com os interesses do capital, sem nenhuma responsabilidade sanitária. Da mesma forma seremos implacáveis na defesa de que seja cessada a sangria das transferências de recursos públicos para o setor privado, especialmente com a compra de serviços, em detrimento de ampliar a oferta de serviços públicos.
O Brasil precisa de um projeto estratégico de fortalecimento e consolidação do SUS, a noticia veiculada pela FSP leva à constatação de que, de forma deliberada ou não, prevalece sobre a saúde uma visão fiscalista, em que o fomento do mercado de planos aparece como solução “pragmática” para desonerar as contas públicas compondo o ideário de setores economicistas da atual coalizão governamental.
Em termos concretos, como desdobramento desse cenário político-ideológico, o subfinanciamento do SUS e a captura da ANS revelam uma opção pelo crescimento e pela autorregulação do mercado de planos de saúde, valorando positivamente o subsistema privado e a estratificação de clientela. Um desvio, ou melhor, um erro estratégico que fere de morte o artigo 196 da Constituição.
O elevadíssimo custo dos  sistemas privados de saúde em países capitalistas que não contam com sistema públicos universais integrais como   é o caso americano, tem induzido uma ampliação da intervenção governamental. Essa experiência deveria ser exemplar na defesa e fortalecimento do sistema publico brasileiro. Ao contrário, no Brasil, após a extinção da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF) – uma vitória da oposição em fins de 2007 – observa-se no interior do governo Dilma, um franco interesse em ampliar os incentivos governamentais para o setor privado, apesar deste já contar com subsídios escandalosos.
Em razão das atuais circunstâncias históricas, o CEBES não acredita nem aposta que as relações mercantis do setor saúde poderão ser extintas por decreto e, nessa perspectiva dirigimos nossa mobilização para que as eleições presidenciais de 2014 constituam um momento oportuno para reagregar o bloco histórico identificado com os direitos sociais, com o SUS universal e com uma reforma sanitária que tenha como norte a solidariedade e os direitos sociais como referencia civilizatória.

O neoimperialismo na África

Do redecastorphoto
África e AFRICOM: “Neoimperialismo e a arrogância da ignorância”
Franklin C. Spinney*, Counterpunch
Africa and AFRICOM: “Neo-Imperialism and the Arrogance of Ignorance”
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Muitos norte-americanos não veem o quão profundamente os EUA estão-se envolvendo militarmente no turbilhão de conflitos que varrem a África Saariana e Subsaariana. O caos está mapeado a seguir:

Embora relatos recentes tendam a concentrar-se na tentativa dos franceses para expulsar para fora do Mali a Al Qaeda no Maghreb Islâmico [Al Qaeda in Islamic Maghreb (AQIM) – esforço que pode já se estar convertendo em complexa guerra de guerrilhas, a operação francesa não passa de versão, em pleno século 21, de disputa, à maneira do século 19, pelos recursos da África. É política que, do ponto de vista dos EUA, relaciona-se, bem provavelmente, ao “pivô em direção à China”, dado o crescimento do mercado e a presença chinesa na África no campo da ajuda humanitária. Juntos, a disputa feroz e o “pivô” bastarão para desencadear no Pentágono um movimento de sequestro, no curto prazo, de todos os conflitos, com a correspondente cascata de dinheiro antevista no longo prazo.
Ano passado, Craig Whitlock do Washington Post ofereceu um mosaico do envolvimento dos EUA na África e publicou uma série de excelentes reportagens. O mapa a seguir apresentado:


é uma espécie de resumo das matérias de Whitlock (e outros), com informes para serem distribuídos às populações muçulmanas na África Central. Considerem-se as distâncias envolvidas nesse enxame de bases (os pontos vermelhos): só a distância entre as bases distribuídas no eixo noroeste-sudoeste no continente africano é maior que a distância entre New York e Los Angeles. Considerem-se as diferenças étnicas e tribais entre Burkina Faso e Quênia, para nem falar das diferenças internas, dentro desses países. E lembrem que praticamente todo o norte da África, do Marrocos ao Egito, é mais de 90% muçulmano.
Por mais que a correlação entre populações muçulmanas e as atividades de intervenção norte-americana nesse mosaico de diferenças culturais sugira um leque de diferentes mensagens para diferentes públicos, só uma generalização é absolutamente garantida, dada a história recente das intervenções norte-americanas: a presença continuada e o envolvimento crescente do Comando dos EUA na África, AFRICOM, só fará inflamar cada vez mais o relacionamento dos EUA com o Islã militante e, talvez, também com número imensamente maior de islamistas moderados.
Mas consideremos outras possibilidades, para que a loucura se generalize. Por exemplo: considerado o resultado da recente aventura líbia, os islamistas de mentalidade conspiracionista do norte da África (e – porque não? –, também muitos moderados), com queda para ler tendências no formato das nuvens, bem poderão interpretar a corrente de bases do AFRICOM na África Subsaariana como os tijolos iniciais de um covil gigante, que lá estará para acomodar uma nova geração de neocolonialistas europeus, que atacarão do norte, obedecendo à doutrina do presidente Obama que manda “liderar pela retaguarda”. Claro, dadas as distâncias envolvidas e a porosidade que aquelas distâncias implicam, tais divagações de mentes paranóicas não passam de tolices, de um ponto de vista militar.
Mas, se se considera a trilha de mentiras assassinas que os EUA deixaram no Iraque; de incompetência, no Afeganistão; e de arrogante indiferença à sorte dos palestinos, que os EUA comprovaram, ao construir processos de paz que só facilitaram o crescimento de colônias israelenses ilegais, num roubo continuado de terras, por Israel, que se arrasta já por 40 anos, esse tipo de caracterização será moída no moinho da propaganda, como reles fulminações de mentes paranoicas. E, lembre: você é paranoico, mas, nem por isso, os EUA deixarão de sair, armados até os dentes, para acabar com você.
Outro sentido da natureza metastática do envolvimento dos EUA na África pode ser inferido da carregada, terrorista-cêntrica, embora cuidadosamente construída verborragia das “respostas preparadas” que o general de exército David M. Rodriguez entregou à Comissão dos Serviços Armados do Senado, como material de apoio ao que disse, dia 12/2/2013, ao ser confirmado como novo comandante do Comando dos EUA na África, AFRICOM. Convido os leitores a, pelo menos, passar os olhos naquele documento revelador.
As “ameaças” terroristas na África Subsaariana, evidentemente tão tentadoras para os neoimperialistas do AFRICOM, não existem isoladamente. Todas são intimamente conectadas à insatisfação étnico/tribal na África – tema ao qual Rodriguez alude, mas que absolutamente não analisa; nem o general nem seus “sabatinadores” senatoriais, naquele jogo cuidadosamente coreografado de perguntas e respostas.
Muitas dessas tensões, por exemplo, são, em parte, legado das fronteiras artificiais criadas pelos intervencionistas europeus no século 19. Aqueles intervencionistas deliberadamente traçaram fronteiras para misturar grupos étnicos, tribais e religiosos; assim contavam facilitar as políticas coloniais de “dividir para governar”. Os colonialistas do século 19 seguidamente exacerbaram deliberadamente as animosidades locais, impondo grupos minoritários em posições política e economicamente vantajosas, o que fazia crescer as ondas de descontentamento e revide. Stálin, aliás, usou a mesma estratégia nos anos 1920s e 1930s para controlar as repúblicas soviéticas muçulmanas, na região antes conhecida como Turquestão, na Ásia Central. Na URSS, o posicionamento dessas fronteiras artificiais entre aqueles novos “-stões” era amplamente conhecido como “pílulas de veneno” de Stálin.
A crise dos reféns na usina de gás no leste da Argélia, em janeiro passado, ilustra algumas dessas complexidades de profundas raízes culturais que sempre há nesses conflitos. Akbar Ahmed escreveu sobre isso, em mais um de uma série de ensaios fascinantes publicados por Al-jazeera. Essa série de matérias – que considero muito importantes – baseiam-se nas pesquisas para seu novo livro, no prelo, The Thistle and the Drone: How America’s War on Terror Became a War on Tribal Islam [O cacto/cardo e o drone: como a Guerra ao Terror, dos EUA, converteu-se em guerra contra o Islã tribal], a ser publicado em março, nos EUA, pela Brookings Institution Press.
O embaixador Akbar Ahmed é ex-alto comissário do Paquistão no Reino Unido, e ocupa agora a cátedra, apropriadamente batizada Cátedra Ibn Khaldun de Estudos Islâmicos da American University em Washington, D.C.. Considerado um dos pais da moderna historiografia e das ciências sociais, Ibn Khaldum é um dos especialistas mais influentes, no campo da historiografia, na natureza espontânea do tribalismo e de seu papel na construção da coesão social. O núcleo duro do trabalho do professor Ahmed acompanha essa inspiração. Visa a explicar porque a insatisfação espalha-se tão amplamente em todo o antigo mundo colonial, e como, parcialmente, tem raízes numa complexa história da opressão de grupos étnicos e em rivalidades tribais, em toda aquela região. Assim se criou uma teia de tensões entre os fracos governos centrais dos países ex-colônias e os grupos e tribos minoritários que os cercam.
Ahmed diz que essas tensões foram exacerbadas pela resposta militar que os EUA deram ao 11/9. Explica por que as intervenções militares pelos EUA e outras potências europeias ex-coloniais só farão crescer a tensão que já existe entre os governos centrais daqueles países e os grupos oprimidos.
Dentre outras coisa, Ahmed, talvez inadvertidamente, constrói uma crítica devastadora ao fracasso dos EUA, que não souberam respeitar os critérios de qualquer grande estratégia sensível, na reação ao 11/9. Ao confundir um crime horrendo, com ato de guerra, e declarar guerra global ao terror, sem final previsto; e ao conduzir aquela guerra nos termos de uma grande estratégica classicamente falhada, que assumia que “quem não está conosco está contra nós”, os EUA não apenas criaram inimigos que se multiplicam mais depressa do que seria possível matá-los; também, ao fazê-lo, os EUA, sem avaliar qualquer consequência, exacerbaram conflitos locais altamente voláteis, incrivelmente complexos, de raízes locais profundíssimas; assim, os EUA contribuíram para desestabilizar porções gigantescas da Ásia e da África.
Sem avaliar consequências? É dizer pouco. Considere, leitor, o seguinte: muitos leitores, aqui, já ouviram falar de AQIM e, provavelmente, também dos tuaregues. Mas quantos algum dia ouviram falar dos berberes cabila e de sua história na Argélia? (Eu, nunca.) Pois, como ensina o professor Ahmed, os berberes cabila são os fundadores da AQIM – fundação que tem raízes profundas nos seus padecimentos históricos. Assim sendo, a AQIM é mais do que simples “desdobramento” da al-Qaeda.
Nada disso aparece nas respostas do general Rodriguez, apesar de fazer repetidas referências à AQIM e à Argélia. Tampouco se aprenderão essas coisas daqueles senadores, ou de suas perguntas.
Pode-se confirmar pessoalmente, em casa.
Faça uma pesquisa de palavras no pacote de perguntas e respostas do general Rodriguez: ninguém jamais encontrará ali nem vestígios da complexa história que Ahmed explica em seu ensaio para Aljazeera,“The Kabyle Berbers, AQIM, and the search for peace in Algeria” [Os berberes cabila, AQIM e a busca de paz na Argélia]. (Tente, por exemplo, encontrar as palavras AQIM, Kabyle, Berber, history, Tuareg, tribe, tribal conflict, culture, etc. ou use a própria imaginação).
Além de perceber o muito que não se discutiu, observe também como o contexto centrado em ameaças que cerca todas as palavras sempre salta à vista. Compare a esterilidade de tudo que Rodriguez diz e a riqueza da análise de Ahmed. E tire suas próprias conclusões. E lembre: “AQIM” é apenas um dos verbetes, no portfólio de ameaças com que o AFRICOM trabalha. E o quanto nós não sabemos, sobre os outros verbetes?
Como Robert Asprey mostrou em seu clássico War in the Shadows [Guerra nas sombras], em que estuda 2000 anos da história das guerras de guerrilha, o erro mais frequente, sempre cometido por quem pretenda intervir, vindo de fora, numa guerra de guerrilha, é sucumbir à tentação de deixar que a “arrogância da ignorância” modele seus esforços militares e políticos.
Apesar de a arrogância da ignorância já afirmada e reafirmada no Vietnã, no Afeganistão, no Iraque e na Líbia... já começa a parecer que a conclusão intemporal de Asprey será mais uma vez reafirmada na África.

PT apóia lei popular para regular mídia

Por Rodrigo Vianna, no blog Escrevinhador:

Dilma mandou dizer que o governo não levará adiante o debate sobre a necessária regulação da mídia no Brasil. As prioridades dela são outras: retomar o crescimento, convencer os velhos rentistas de que a redução dos juros é definitiva e que, portanto, é preciso tirar o dinheiro do banco e investir.

Trata-se de um erro de Dilma. Ela não percebe que parte da dificuldade para destravar o debate econômico (dominado por colunistas/”consultores”/comentaristas ligados a bancos e ao conservadorismo) passa justamente pela Comunicação – hoje, controlada por poucos, dominada pelo BV (bônus de veiculação, espécie de propina que agências de publicidade recebem para concentrar anúncios em poucos meios de comunicação) e por meia dúzia de famílias, num esquema oligárquico e concentrador de verbas e de verbo. Concentra-se dinheiro e opinião.

Esse debate avança na Argentina, Venezuela, Equador, Bolívia… É uma questão de tempo que avance mais também no Brasil. Aliás, lentamente, vem avançando. Lembremos… Dez anos atrás, meia dúzia de professores e especialistas denunciavam sozinhos a falta de Democracia na mídia (Brizola era voz isolada, entre os políticos, a criticar o monopólio/oligopólio midiático brasileiro).

De cinco anos pra cá, o debate invadiu os blogs, as redes sociais… E agora ganha apoio dos movimentos sociais e partidos políticos. O PT acaba de aprovar uma resolução conclamando o governo a rever sua posição, e declarando apoio a “um Projeto de Lei de Iniciativa Popular para um novo marco regulatório das comunicações, proposto pelo Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), pela CUT e outras entidades”.

A CUT decidiu priorizar esse debate, participando ativamente do FNDC. A CTB e outras centrais sindicais também dão apoio. O MST, os movimentos de moradia, as associações de combate ao racismo, as uniões de mulheres, os sindicatos e associações mais combativos… Todos já se deram conta: esse debate é central no Brasil.

Desde o governo Lula, esperava-se que o comando do processo viria do poder Executivo – como aconteceu no Equador, Venezuela, Argentina… Lula ensaiou um movimento nessa direção. Logo abortado. Dilma recuou ainda mais. Derrota?

Em termos. O fato é que, se o governo não avança, os movimentos sociais vão partir pra rua. Prepara-se o projeto de lei, de Iniciativa Popular, que receberá milhares (milhões?) de assinaturas antes de ser levado ao Congresso. Ou seja: no Brasil, a Ley de Medios não virá dos gabinetes. Mas das ruas. Teremos força para fazer o Congresso aprovar depois?

Não será tarefa fácil. Mas é essa a batalha que se trava agora. Jornais e famílias que controlam os meios de comunicação estão preocupados. Manchete da Folha nesse sábado era: “PT pede campanha por controle da mídia“.

Mentira. Jornais e famílias querem dar a impressão de que o conteúdo do que a mídia publica seria “censurado”. Eles, que censuram e retaliam blogs com ações judiciais, querem ser os donos da liberdade de expressão no Brasil.

Humildemente, aliás, sugiro o “slogan” para a campanha de coleta de assinaturas ao projeto de Lei de Iniciativa Popular: “Liberdade de Expressão não tem dono.”

O debate é justamente esse: o Brasil precisa de regras para evitar a ”propriedade cruzada” (numa cidade, a mesma família controla jornal, TV, internet, rádio… pode isso, numa Democracia?), precisa desconcentrar verbas e verbo, tornando a Comunicação mais democrática. No mundo capitalista “avançado”, há leis para isso. Para evitar a concentração. Os sinhozinhos da mídia no Brasil não querem esse debate. Dilma gostaria de evitá-lo, para não causar “marola”. Mas ele virá.

A seguir, a resolução do PT, na íntegra…

*****

RESOLUÇÃO DO DIRETÓRIO NACIONAL DO PT

O Diretório Nacional do PT, reunido em Fortaleza nos dias 1 e 2/3/2013, levando em consideração:

1. A decisão do governo federal de adiar a implantação de um novo marco regulatório das comunicações, anunciada em 20 de fevereiro pelo Ministério das Comunicações;

2. A isenção fiscal, no montante de R$ 60 bilhões, concedida às empresas de telecomunicações, no contexto do novo Plano Nacional de Banda Larga;

3. A necessidade de que as deliberações democraticamente aprovadas pela Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), convocada e organizada pelo governo federal e realizada em Brasília em 2009 — em especial aquelas que determinam a reforma do marco regulatório das comunicações, mudanças no regime de concessões de rádio e TV,adequação da produção e difusão de conteúdos às normas da Constituição Federal, e anistia às rádios comunitárias — sejam implementadas pela União;

4. Por fim, mas não menos importante, que o oligopólio que controla o sistema de mídia no Brasil é um dos mais fortes obstáculos, nos dias de hoje, à transformação da realidade do nosso país.

RESOLVE:

I. Conclamar o governo a reconsiderar a atitude do Ministério das Comunicações, dando início à reforma do marco regulatório das comunicações, bem como a abrir diálogo com os movimentos sociais e grupos da sociedade civil que lutam para democratizar as mídias no país;

II. No mesmo sentido, conclamar o governo a rever o pacote de isenções concedido às empresas de telecomunicações, a reiniciar o processo de recuperação da Telebrás; e a manter a neutralidade da Internet (igualdade de acesso, ameaçada por grandes interesses comerciais);

II. Apoiar a iniciativa de um Projeto de Lei de Iniciativa Popular para um novo marco regulatório das comunicações, proposto pelo Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), pela CUT e outras entidades, conclamando a militância do Partido dos Trabalhadores a se juntar decididamente a essa campanha;

III. Convocar a Conferência Nacional Extraordinária de Comunicação do PT, a ser realizada ainda em 2013, com o tema “Democratizar a Mídia e ampliar a liberdade de expressão, para Democratizar o Brasil”.

Fortaleza/CE, 01 de março e 2013.

Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores

sábado, 2 de março de 2013

Primavera árabe: ‘Há que se passar pela experiência do islamismo no poder’


Nesta entrevista ao ‘Le Monde’, o destacado analista libanês Gilbert Achcar comenta as dificuldades dos governos islâmicos que subiram ao poder no mundo árabe. Além disso, diz que a Turquia não é uma referência para esses países, pois lá o AKP turco se reconciliou com o laicismo, tornando-se a versão islâmica da democracia cristã europeia.

Personagem desta entrevista, Gilbert Achcar é professor na School of Oriental and African Studies (SOAS) de Londres e um dos mais respeitados analistas do mundo árabe contemporâneo. Nasceu em 1951 e deixou o Líbano em 1983.

Ensinou na Universidade de París VIII e no Centro Marc-Bloch de Berlim. O seu compromisso com as esquerdas e movimento pró-palestina nunca o impediu de dirigir um olhar severo sobre as ditaduras nacionalistas árabes. É autor de “Le peuple veut une exploration radicale du soulèvement arabe”, editora Actes Sud.

Como qualificar o que aconteceu no mundo árabe, desde 2011?
 
Escolhi a palavra “levante” como título para o meu livro. Mas, na introdução falo de um processo revolucionário a longo prazo. O que estava claro desde o princípio é que estávamos muito no início de uma explosão, e o que se pode prever com certeza é que será de longa duração.

Emmanuel Todd deu uma explicação demográfica do fenômeno. Você inclina-se mais para uma explicação marxista.
 
A fase durante a qual o mundo árabe se distinguia por uma demografia galopante acabou há vinte anos. Comecei com a análise da situação em vésperas da explosão, em 2010. Constata-se um bloqueio do desenvolvimento que contrasta com o resto do mundo; inclusivamente com a África subsariana. A expressão mais espetacular desse bloqueio é uma taxa de desemprego recorde, particularmente entre os jovens. Além disso, há uma modalidade específica do capitalismo na região: em diferentes níveis, todos os Estados são rentistas. A outra caraterística é um patrimonialismo no qual o clã dominante se apropria do Estado até ao ponto de o transmitir de forma hereditária.

As revoluções árabes traduziram-se em liberalizações políticas, mas não em grandes mudanças sociais. Por quê?
 
No Egito e na Tunísia, só foi quebrada a ponta do icebergue; quer dizer, os déspotas e o seu grupo próximo. Por outro lado, nesses dois países, o “Estado profundo”, a administração, os aparelhos de segurança, não mudaram. Neste momento, só na revolução Líbia se deu uma mudança radical: hoje, já não há Estado; já não há exército. Nesse país, o descalabro social foi mais profundo, porque o reduzido espaço privado que existia era ocupado pela família Gadafi.

No Ocidente estranhou-se o triunfo dos islamitas nas eleições, quando não foram eles a lançar essas revoluções…
 
As expectativas do Ocidente, esse romanticismo em volta da “primavera” e o “jasmim”, todo esse vocabulário orientalista, baseavam-se num desconhecimento da situação. Era evidente que os integristas iam apanhar as castanhas do fogo porque, desde finais dos anos 70, impuseram-se como uma força hegemónica no protesto popular. Encheram o vazio deixado pelo fracasso do nacionalismo árabe. Por outro lado, a principal razão pela qual os governos ocidentais apoiavam os despotismos árabes era o receio dos integristas. Crer que essa situação iria ser varrida pelos acontecimentos, era tomar os desejos por realidades. Com o apoio financeiro do Golfo e o apoio televisivo da Al Jazeera, não se podia esperar outra coisa que vitórias eleitorais integristas. O que é chamativo é que essas vitórias não tenham sido esmagadoras. No Eipto, desde as legislativas ao referendo sobre a Constituição, passando pelas presidenciais, estamos a ver a velocidade a que se desmorona o voto integrista. Na Tunísia, Ennahda consegue 40% numas eleições em que participaram metade das pessoas inscritas. E, na Líbia, a Irmandade Mulçumana local foi derrotada.

Surpeendem-lhe as atuais dificuldades dos islamistas no poder?
 
Em primeiro lugar, há que dizer que o regresso aos despotismos não é algo exequível. Há que passar pela experiência do islamismo no poder. As correntes integristas construíram-se como forças de oposição com um slogan simplista: o islão é a solução. É algo completamente oco, mas funcionava num contexto de miséria e de injustiça no qual se podia vender essa ilusão. Os islamistas são traficantes do ópio do povo. Desde o momento em que estão no poder, isso já não é possível. São incapazes de resolver os problemas das pessoas. Chegaram aos postos de comando em condições que ninguém inveja e não têm nenhum programa econômico.

Pode-se confiar neles no momento de organizar escrutínios que os poderão expulsar do poder?
 
Esse é o argumento clássico: uma pessoa, um voto, mas uma só vez. Salvo que cheguem ao poder em posição de força. O povo aprendeu a “querer” sair à rua. Jamais um dirigente, na história do Egito, foi tratado com tanto desprezo pelo seu povo como atualmente Morsi…

Pode-se copiar o modelo turco para o mundo árabe?
 
Não, na Turquia não é a Irmandade Mulçumana que dirige o país, mas uma cisão modernista que se reconciliou com o princípio do laicismo. O AKP turco é a versão islâmica da democracia cristã europeia. A Irmandade Mulçumana não é isso. É uma organização integrista que milita pela Sharia e para quem a palavra laicismo é uma injúria. No terreno econômico, não tem nada a ver: o AKP encarna um capitalismo de pequenos industriais, enquanto a Irmandade Mulçumana participa numa economia rentista, fundada no lucro a curto prazo.

Pode descrever a influência do Qatar nestas revoluções?
 
É um enigma. Alguns dirigentes colecionam carros ou armas; o Emir do Qatar, por seu lado, joga na política externa. Apresentou-se como comprador da Irmandade Mulçumana da mesma forma que compraria uma equipe de futebol. Um homem que jogou um papel fundamental nesta nova aliança (que faz recordar a que houve entre Mohamed ben Abdel Wahab e a dinastia dos Saud no século XVIII) é o sheik Qaradhawi, chefe espiritual dos Irmandade Mulçumana, instalado desde há muito no Qatar, e que tem grande influência na Al Jazeera. Tudo isso acontece num país em que o Emir não tolera qualquer oposição.

Como explicar a complacência dos Estados Unidos para com a Irmandade Mulçumana?
 
É algo que começou sob a administração Bush. Para os neoconservadores, o despotismo nacionalista produziu o terrorismo e, portanto, havia que derrubar déspotas como Saddam Hussein para poder estender a democracia. Condoleezza Rice quis retomar a aliança com a Irmandade Mulçumana, que se deu nos anos 50 e 60. Mas a vitória do Hamas nas eleições palestinianas bloqueou o processo. A administração Obama, que herdou uma situação catastrófica no Médio Oriente, mostrou uma atitude indecisa e prudente. Quando tudo estalou, optou por tentar dar a impressão de acompanhar o movimento. A obsessão de Washington na região é a estabilidade e o petróleo. E a tradução desta obsessão, é a procura de aliados que disponham de uma base popular.

Por que é que a intervenção da OTAN foi possível na Líbia e não na Síria?
 
A Síria encontra-se perante um risco de caos tipo Líbia, mas num contexto regional bastante mais perigoso. Está também o apoio da Rússia e do Irão. Desde o começo, a OTAN disse que não queria intervir. A questão não é “porque é que o Ocidente não intervém na Síria?”, mas “porque é que impede a entrega de armas à rebelião?”. A razão profunda é o medo do movimento popular na Síria. E o resultado é que a situação está a apodrecer. O regime sírio acabará por cair, mas a que preço? A miopia dos governos ocidentais é alucinante: com o pretexto de não reproduzir os erros cometidos no Iraque, quer dizer, o desmantelamento do estado baasista, fazem algo pior. Hoje, os sírios estão persuadidos de que o Ocidente deixa que o seu país se auto-destrua para proteger Israel.

A esquerda anti-imperialista vê um complô americano nestas revoluções…
 
Se, por oportunismo, as insurreições populares são apoiadas por potências imperialistas, não justifica que apoiemos as ditaduras. A teoria do complô americano é grotesca. Basta ver o aperto de Washington. É claro que, depois de quarenta anos de totalitarismo, o que chega é o caos, mas, como diria Locke, prefiro o caos ao despotismo, porque no caos tenho uma opção.


* Tradução: António José André, do Esquerda.net

A China de ontem, hoje e amanhã segundo o Nobel de Literatura Mo Yan

Diario do Centro do Mundo
Os países escandinavos são objeto de admiração e de esperança para ele.

Mo Yan
Mo Yan

A entrevista abaixo, com o Nobel de Literatura Mo Yan, foi publicada, originalmente, na revista alemã Der Spiegel. O Diário recomenda vivamente sua leitura, e nota que  Mo Yan vê nos países escandinavos uma espécie de utopia realizada.

Sr. Mo, seu pseudônimo, Mo Yan, significa literalmente: “Não fale”. Você parece levá-la muito a sério, e pouco fala em público, especialmente para jornalistas. Por que isso?

Mo: Porque não gosto de dar declarações políticas. Sou um escritor rápido. Quando eu falo em público, imediatamente me pergunto se me fiz claro. Mas meus pontos de vista políticos são bem claros. Basta ler meus livros.

O seu primeiro livro a ser traduzido para o alemão depois do Prêmio Nobel de Literatura se chama “Sapo” e trata da política de um filho só na China, algo que afeta a vida de mais de um bilhão de pessoas. Qual é a sua opinião pessoal sobre esta política?

Mo: Como pai, sempre senti que todos devem ter quantas crianças quiserem. Como integrante do Partido Comunista, no entanto, tive que obedecer à regra que se aplica a todos os funcionários: uma criança, não mais. A questão populacional da China não é fácil de ser resolvida. Tenho certeza de apenas uma coisa: ninguém deve ser impedido de ter um filho por meio da violência.

Exatamente isso, no entanto, acontece em “Sapo”. Qual foi a inspiração para este livro? Era sua opinião pessoal sobre a política? Foi uma determinada cena, uma figura, um diálogo?

Mo: Era a história épica da vida de uma tia minha que trabalhou por décadas como ginecologista e presenciou coisas indizíveis. Senti um impulso interior para escrever isso.
A doutora Wan, personagem principal do romance, é uma figura complicada, monstruosa, assombrada por seus próprios atos. Como sua tia reagiu ao livro?

Mo: Ela não o leu. Eu disse explicitamente a ela que não lesse, porque ela poderia ficar com raiva de mim. Claro, nem tudo o que acontece em “Sapo” é baseado na história de minha tia – que na verdade tem quatro filhos. Adicionei experiência de outros médicos e coisas que eu mesmo vi.

Coisas indizíveis acontecem em muitos de seus romances. Em “Balados do Aalho”, por exemplo, uma mulher grávida, já em trabalho de parto, se enforca. Ainda assim, “Sapo” parece ser o seu livro mais tenso. É por isso que demorou tanto tempo para escrever?

Mo: Levei a idéia para este livro comigo por um longo tempo, mas, em seguida, escrevi de forma relativamente rápida. Você está certo, eu me sentia pesado quando escrevi o romance. Vejo-o como uma obra de auto-crítica.

Em que sentido? Você não tem nenhuma responsabilidade pessoal pela violência e os abortos forçados descritos em seu livro.

Mo: A China passou por uma tremenda mudança nas últimas décadas, e a maioria de nós nos consideramos vítimas. Poucas pessoas se perguntam: “Será que eu também feri os outros?” “Sapo” lida com essa questão, com essa possibilidade. Eu, por exemplo, tinha apenas 11 anos de idade em meus tempos de escola primária, mas me juntei aos guardas vermelhos e tomei parte nas crítica públicas do meu professor. Eu tinha inveja das conquistas, dos talentos de outras pessoas, de sua sorte. Mais tarde, eu mesmo pedi a minha esposa para fazer um aborto por causa do nosso futuro. Sou culpado.
Ai Wei Wwi não gosta de Mo Yan e é correspondido
Ai Wei Wwi não gosta de Mo Yan e é correspondido
Seus livros pintam um quadro sombrio da China moderna. Não parece haver nenhum progresso nos valores e na sociedade. O país parece não estar indo a lugar nenhum.

Mo:  Sou diferente do típico escritor chinês a este respeito. Os romances na China costumam ter um final feliz. A maioria dos meus romances termina tragicamente. Mas ainda assim há em meus livros  esperança, dignidade e poder.

Alguns de seus livros lidos parecem filmes. Você evita mergulhar muito profundamente na psiquê de seus personagens. Por que, por exemplo, a doutora Wan segue os princípios do partido tão estritamente, apesar de estar claramente consciente de suas falhas?

Mo: Isto é fruto da experiência espiritual da minha geração. Algumas pessoas perceberam que a Revolução Cultural foi um erro, mas  também perceberam que o governo fez as correções necessárias.

O que você pensa sobre isso? Afinal, você foi forçado a interromper a sua educação durante a Revolução Cultural. E, no entanto, você ainda é membro do partido.

Mo: O Partido Comunista da China tem mais de 80 milhões de membros, e eu sou um deles. Entrei para o partido em 1979, quando estava no exército. Percebi que a Revolução Cultural foi o erro de líderes específicos, e não do partido.

Em seus livros, você critica duramente funcionários do partido, mas suas declarações políticas, como a que você acabou de fazer, são leves. Como explicar essa contradição?

Mo: Não há contradição com a minha opinião política quando critico funcionários do partido em meus livros. Tenho dito repetidamente que estou escrevendo em nome do povo, e não do partido. Detesto os funcionários corruptos.

Quando o escritor chinês Liao Yiwu foi premiado na Alemanha no ano passado, ele criticou você como um “escritor do Estado”, e disse que você não mantém distância suficiente diante do governo.

Mo: Li o discurso que ele proferiu na cerimônia de premiação. No discurso, ele demandou a divisão do Estado chinês. Eu absolutamente não posso concordar com esta posição. Acho que o povo de Sichuan (a província de onde Liao é) não concordaria em se separar da China. Não posso nem imaginar que ele próprio queira aquilo, no fundo de seu coração. Sei que ele me inveja por este prêmio e eu entendo isso. Mas a sua crítica é injustificada.

Outro dos argumentos de seus críticos é que você contribuiu para um livro comemorativo do infame discurso de Mao Zedong de 1942 – um discurso no qual ele estabeleceu os limites dentro dos quais os escritores chineses teriam que escrever a partir de então.

Mo: Esse discurso é um documento histórico que tem sua racionalidade, mas também os seus limites. Quando eu e minha geração de escritores começamos, ampliamos estes limites passo a passo. Quem realmente ler meu trabalho a partir desse período não pode afirmar que eu era acrítico.

Mas por que você contribuiu com esse projeto?

Mo: Honestamente, foi um projeto comercial. O editor de uma editora, um velho amigo meu, veio com a idéia. Ele tinha convencido cerca de 100 escritores antes e, quando participamos juntos de uma conferência, ele andava com um livro e uma caneta. Ele me pediu que escrevesse à mão, ali mesmo, alguma coisa sobre o discurso de Mao. Eu era vaidoso o suficiente para ter a oportunidade de mostrar minha caligrafia.

Num romance seu, um dos protagonistas inadvertidamente deixa cair uma imagem de Mao em uma latrina. Em seu livro autobiográfico “Mudança”, você conta que usava pequenas estatuetas de Mao para afastar os ratos em seu dormitório. Por que você escreve tão ousadamente em seus livros e é tão cuidadoso em seus comentários pessoais?

Mo: Você acha que eu sou cuidadoso em minhas observações pessoais? Se fosse assim, então eu não teria concordado com esta entrevista. Eu sou um escritor, não um ator. E quando eu escrevi essas cenas, eu não acho que estava quebrando um tabu. Apenas deixei claro que Mao era um homem e não um deus, que assim seja. Quando eu era criança, achava que ele era deus.
Copenhague: a Escandinávia é admirada pelo Nobel
Copenhague: a Escandinávia é admirada pelo Nobel

Hoje você é o vice-presidente da Associação de Escritores da China. Pode-se ter este título na China sem estar perto do governo?

Mo: Este é um título honorífico sobre o qual ninguém reclamou antes de eu ser premiado com o Nobel. Há pessoas que pensam que o Nobel só deve ir para as pessoas que se opõem ao governo. É isso mesmo? O Prêmio Nobel de literatura é para a literatura ou para outra coisa?

Mas há pessoas neste país que são perseguidas, mesmo presas pelo que escrevem. Você não sente a obrigação de usar o seu prêmio, fama e reputação para falar em nome dos colegas perseguidos?

Abertamente expresso a esperança de que Liu Xiaobo, Nobel da Paz de 2010, recupere sua liberdade o mais breve possível. Manifestei isso várias vezes, e sempre sou criticado. Sou forçado a falar de novo e de novo sobre o mesmo assunto.

 Outro dos seus críticos é Ai Weiwei, um artista particularmente bem conhecido na Alemanha.

Mo: O que ele tem a dizer sobre mim?
Ele também o acusa de estar fechado com o Estado. Ele diz que você está distante da realidade e não pode representar a China atual.

Mo: Que intelectual pode reivindicar representar a China? Eu certamente não reivindico isso. Ai Weiwei reivindica? Aqueles que realmente representam a China estão limpando a sujeira e pavimentando as estradas com as próprias mãos.

Você mantém uma visão utópica do comunismo. No entanto, seus livros mostram passo a passo que esta utopia não se torna realidade. Não seria hora de abandonar esta utopia completamente?

Mo: O que Marx escreveu no “O Manifesto Comunista” era de grande beleza. No entanto, é muito duro fazer esse sonho realidade. Mas olho para os países escandinavos com admiração e me pergunto: será que estas sociedades tão avançadas seriam possíveis sem Marx? Nós costumávamos dizer que na China de uma maneira o marxismo salvou o capitalismo. Porque aqueles que mais se beneficiaram de sua ideologia parecem ser as sociedades do Ocidente. Nós, chineses, russos e europeus orientais, parecemos ter entendido mal o marxismo.
 
Sr. Mo, obrigado por esta entrevista.

sexta-feira, 1 de março de 2013


Frente ao Fórum Social Mundial de Túnis. Indignação e altermundialismo: duas décadas de resistências globais

Sergio Ferrari
Colaborador de Adital na Suiça. Colaboração E-CHANGER

Tradução: ADITAL

Foto: Sergio Ferrari
Quando o jovem desempregado tunesino Mohamed Bouazizi se imolou publicamente no dia 17 de dezembro de 2010, não imaginava que sua raiva individual explodiria rapidamente em indignação quase universal. Reconvertido em quitandeiro e farto do acosso oficial que o impedia de trabalhar livremente com sua carreta, a denúncia de Bouazizi detonou em poucos dias mobilizações massivas em seu país. Rapidamente, sua indignação e a de sua terra ultrapassaram as fronteiras regionais e continentais.
O protesto tunesino, que, finalmente, derrubou do poder Bem Ali, estendeu-se ao Egito e a outros países da região, promovendo mudanças significativas em tempos historicamente curtos. Dessa maneira, a assim chamada "primavera árabe” começava a socavar as bases de monarquias duras ou democracias desgastadas mediante relevantes mudanças internas.
Separada apenas pelo Mar Mediterrâneo, a revolta da África nor-sahariana não tardou em acerca margens para transformar-se em indignação europeia.
No dia 15 de maio de 2011, detonou, em Madri, um processo de mobilizações cidadãs massivas que se estenderam por toda a Espanha e se reproduziram em centenas de cidades em mais de quarenta países do mundo. Como resultado de uma marcha multitudinária autoconvocada através da Internet pela coalizão Democracia Real Já, os manifestantes ibéricos decidiram ocupar a Plaza del Sol, convertendo-a, durante semanas, em seu próprio acampamento urbano.
A ocupação, método de luta recorrente empregado por muitos movimentos sociais no mundo inteiro para defender suas reivindicações mais sentidas, como a reforma agrária dos "sem terra”, ou a habitação popular dos "sem teto” brasileiros, deslocava-se ao coração da União Europeia. Estava sendo inaugurada uma massiva modalidade de protesto cidadão, Centenas de praças e parques adquiriram o formato dos conhecidos plásticos negros e das carpas improvisadas dos acampamentos do Sul.
A exclusão social, cada vez mais intensa e dramática; o desemprego crescente, especialmente entre os jovens; as políticas férreas de recortes ao Estado social e o desgaste crônico das democracias tradicionais apareciam como causas comuns da mobilização massificada no Velho Mundo.
Em um marco global caracterizado pelo aprofundamento de uma crise preocupante durante os últimos cinco, em 2010 e 2011 a explosão da "bolha imobiliária” provocou a piora dramática da situação de dezenas de milhares de famílias endividadas em vários países do continente.
Na Espanha, por exemplo, milhares de famílias logo perderam suas casas em um processo que replicava como calcomania uma realidade traumática que já estava causando estragos nos Estados Unidos. Essa crise hipotecária acontecia paralelamente a um brutal aumento do desemprego que em 2012 atingiu, na Espanha, níveis nunca antes conhecidos próximos aos 25% da população economicamente ativa e quase o dobro entre a juventude.
Crises similares, diagnósticos semelhantes, reivindicações comuns... Em meados de setembro de 2011, um grupo de manifestantes também autoconvocado ocupou o Zuccotti Park, em Wall Street, no centro financeiro estadunidense, todo um símbolo do sistema hegemônico em âmbito mundial.
O movimento dos "Ocupa Wall Street” estendeu-se imediatamente até a Plaza de la Libertad, em Washington, a escassos metros da Casa Branca, e a mais de mil cidades por todos os Estados Unidos; sem dúvida, uma das mobilizações cidadãs mais importantes da história contemporânea desse país.
O movimento "Ocupa” estadunidense estende-se como um "espaço aberto e horizontal” contra o capitalismo neoliberal, ao que define em um de seus primeiros comunicados como "um polvo gigante que, como um vampiro, com seus tentáculos, se adere ao rosto da humanidade, chupando-o sem piedade com suas ventosas qualquer coisa que cheire a dinheiro”. Sua consigna central –"somos o 99%; eles, só 1%”- enfatiza sua aberta confrontação com o poder financeiro e com a corrupção política e situa no próprio centro do debate nacional o tema da desigualdade econômica e a crescente polarização social.
A democracia direta, baseada em decisões tomadas coletivamente; a distribuição orgânica de papeis com diferentes comitês e grupos de trabalho claramente estruturados no interior do movimento (imprensa, logística, formação, entre outras); uma liderança horizontal e partilhada e sem nomes próprios e a ação direta, não violenta, constituem os pilares conceituais dos "Ocupa”.
Em poucas semanas, o movimento conseguiu romper o bloqueio midiático e político que tentava sufocá-lo e isolá-lo; monopolizou os refletores, mesmo os da força policial e conseguiu situar-se no centro da agenda política nacional. O próprio Partido Democrata teve que posicionar-se frente a "Ocupa Wall Street” e às suas reivindicações.
O movimento "Ocupa” experimentou rapidamente sua própria globalização "planetária”, protagonizando jornadas como as do 15 de outubro de 2011, com mobilizações em 951 cidades de 82 países praticamente de todos os continentes.
De Chiapas ao iglu resistente em Davos
No final de janeiro de 2012, em pleno inverno glaciar europeu. A uma centena de metros do centro de convenções da cidade suíça de Davos, e protegido militarmente como uma fortaleza, realizava-se o Fórum Econômico Mundial. Uma centena de ativistas do movimento "Ocupa” instalou no coração de Davos um iglu de resistência construído com neve alpina e adornado apenas por uns cartazes e umas bandeiras pretas e vermelhas.
Esse iglu foi a expressão simbólica desse novo processo de resistência cidadã ante um dos eventos do poder econômico internacional. Trata-se de uma resistência que parece não conhecer fronteiras e que aposta, segundo seus princípios, em globalizar a solidariedade e a denúncia do modelo neoliberal, que hoje passa por uma de suas crises mais profundas.
Quase 18 anos antes desse iglu "ocupa”, no dia 1º de janeiro de 1994, o movimento zapatista havia aparecido "do nada” para ocupar San Cristóbal de las Casas e outras cinco cabeceiras do sulista e esquecido Chiapas. Os zapatistas denunciavam o Tratado de Livre Comércio (TLC) que nesse dia estava sendo acordado entre os Estados Unidos, o Canadá e o México. Com essa demonstração, os zapatistas, entre outras coisas, estavam questionando radicalmente um tipo de mecanismo jurídico internacional que as potências do Norte haviam começado a impor a muitas nações do Sul em nome de sua estratégia de capitalismo globalizado. Alçavam uma voz profética para globalizar a esperança.
"Não morrera a flor da palavra. Poderá morrer o rosto oculto de quem a nomeia hoje; porém, a palavra que veio desde o fundo da história e da terra já não poderá ser arrancada pela soberba do poder... Teto, terra, trabalho, pão, saúde, educação, independência, democracia, liberdade, justiça e paz. Essas foram nossas bandeiras na madrugada de 1994. Essas foram nossas demandas na larga noite dos 500 anos. Essas são, hoje, nossas exigências”, enfatizava o Manifesto Zapatista.
Quase duas décadas mais tarde, traços conceituais e metodológicos vitais do zapatismo, como sua reivindicação da participação dos "de baixo”, da democracia direta e da crise ao poder institucionalizado estão se reatualizando, tácita ou abertamente, na prática dos indignados e ocupas do século XXI. E também suas cores.
Indignação e outro mundo possível
Entre aqueles históricos acontecimentos e seus ecos recentes, durante a primeira década do século atual nasce e se fortalece o pensamento altermundialista à luz dos Fóruns Sociais Mundiais, que começaram em Porto Alegre, em 2001. Esses encontros sem fronteiras lançaram o desafio de uma mudança de paradigma, de sistema. Mediante a mobilização ativa, autoconvocada, horizontal, sem protagonismos pessoais, dedicaram-se a fortalecer as redes mundiais de uma comunidade solidária para a construção de "Outro Mundo Possível”.
Esse Outro Mundo Possível, para os altermundialistas, é e será o resultado de uma concepção renovada da participação política; a aposta em uma nova forma de democracia inclusive para todos e com todos; o chamado à participação cidadã ativa; a crítica frontal contra o capitalismo e suas devastadoras consequências sociais e ambientais; o protagonismo coletivo, especialmente o dos mais relegados; a perda do medo e a intensificação da participação popular; a visão ampla de construir inovando, sem esquemas rígidos nem exclusões ideologizantes; a reivindicação da memória histórica frente ao esquecimento do poder...
Trata-se de conceitos e práticas que coincidem com muitas das consignas-reivindicações do zapatismo e do altermundialismo, bem como das mobilizações cidadãs de 2010-2011 nos países árabes como as protagonizadas pelos indignados ou pelo movimento "ocupa”.
"Nossa ira contra a injustiça continua intacta. Não, essa ameaça não desapareceu por completo. Convoquemos uma verdadeira insurreição pacífica contra os meios de comunicação de massas que não proponham como horizonte para nossa juventude outras coisas que não sejam o consumo em massa, o desprezo aos mais débeis e à cultura, a amnésia generalizada e a competição excessiva de todos contra todos”, enfatiza Stéphanne Hessel, em sua "¡Indignaos!”, publicação que se converteu rapidamente em referência conceitual do movimento.
Essa proclama convoca à mobilização da sociedade solidária para construir um novo rumo que vá contra o poder de banqueiros e dos grandes empresários, bem como contra a corrupção dos políticos de uma democracia excludente.
"Nós, os desempregados, os mal remunerados, os subcontratados, os precários, os jovens… queremos uma mudança e um futuro digno. Estamos fartos de reformas antissociais; de que nos deixem sem trabalho; de que os bancos, que provocaram a crise, subam nossas hipotecas ou nos despejem; de que nos imponham leis que limitam nossa liberdade em benefício dos poderosos. Acusamos aos poderes políticos e econômicos de nossa precária situação e exigimos uma mudança de rumo”, protestam os indignados, em uma de suas declarações de imprensa, no início do movimento.
Hoje, a humanidade é testemunha de quase duas décadas (1994-2012) de lutas cidadãs renovadas, novos atores e formas inovadoras de entender e de fazer política. As diversas experiências empíricas enriquecem conceitualmente a busca planetária de opções sistêmicas no econômico, no social e no ecológico.
Fica pendente concretizar ditas alternativas: encher de conteúdo o "Outro Mundo Possível”; amassar aqui e agora "um mundo onde caibam muitos mundos”; transformar a indignação de estado (de ânimo) em ação transformadora. O ano de 2013 será, sem dúvida, outro momento importante desse caminhar coletivo. E a próxima edição do FSM que se realizará entre 26 e 30 de março em Túnis aposta, particularmente, em integrar de maneira muito mais férrea indignação e altermundialismo. Desafio que pode significar um passo adiante na capacidade de convocação-mobilização da sociedade civil planetária e sua busca de alternativas; retomando, ao mesmo tempo, três fontes de contribuição significativas: o capital acumulado nos países árabes nesses últimos dois anos. O reforço da mobilização social-sindical na Europa, como o expressara a greve continental do passado 14 de novembro de 2012. E a experiência enriquecida dos múltiplos processos progressistas – com suas novas formas democráticas de participação cidadã na América Latina.

[*Sergio Ferrari, em colaboração com a Agenda Latino-americana; E-CHANGER (ONG de cooperação solidária ativa); FEDEVACO (Federação de Vaud de Cooperação) y FGC (Federação Genebrina de Cooperação)].

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Revelado elo entre escravidão e riqueza de ingleses

Pesquisa disponibiliza documentos inéditos com valores e nomes de donos de escravos que foram beneficiados com indenizações públicas após a abolição.

A reportagem é de Maurício Hashizume e publicada pela agência Repórter Brasil.

Além do retorno financeiro obtido pelo próprio negócio da escravidão transatlântica (que funcionava de modo bastante similar ao de uma bolsa de valores dos dias de hoje), “investidores” privados da venda de pessoas ainda foram recompensados com grandiosas indenizações do governo inglês quando da abolição legal.

Dados tornados públicos a partir desta quarta-feira (27/02) em um arquivo na internet disponível para consulta revelam que quantias equivalentes a bilhões de libras esterlinas foram transferidas dos cofres públicos para “empreendedores” escravagistas, ou seja, muitas das fortunas de hoje estão diretamente ligadas à abolição da escravidão.

Pelos cálculos dos responsáveis pela pesquisa – centralizada na University College, de Londres –, nada menos que um quinto da riqueza dos britânicos da Era Vitoriana guardava relação com a escravidão. Entre os beneficiados, encontram-se, por exemplo, parentes do atual primeiro-ministro inglês, David Cameron, do Partido Conservador, assim como familiares do escritor George Orwell.

“Ao focalizar os proprietários de escravos, o nosso objetivo não é ‘nomear para envergonhar’ ['naming and shaming', na expressão em inglês]. Buscamos desfazer o esquecimento: a ‘re-relembrar’, como diz Toni Morrison, reconhecer as formas pelas quais os frutos da escravidão fazem parte da nossa história coletiva – incorporado em nosso país, nas casas de nossas cidades, nas instituições filantrópicas, nas coleções de arte , nos bancos comerciais e nas pessoas jurídicas, nas estradas de ferro, e nas formas que continuamos a pensar sobre raça”, explica Catherine Hall, pesquisadora-chefe da iniciativa, em artigo publicado no diário inglês The Guardian. “Proprietários de escravos estavam ativamente envolvidos na reconfiguração de corrida após a escravidão, popularizando novas legitimações para a desigualdade que permanecem parte do legado do passado colonial da Grã-Bretanha”, emenda.

O arquivo reúne 46 mil pedidos de “indenização” encaminhados por ex-donos de escravos ao governo britânico. São registros detalhados que, conforme descreve Catherine, “foram mantidos longe de todos aqueles que reivindicavam compensações” e que tinham sido sistematicamente estudados antes. Segundo ela, os documentos consistem em uma “nova luz” para se entender “como o negócio da escravidão contribuiu de forma significativa para a Grã-Bretanha tornar-se a primeira nação industrial”. O esforço de pesquisa vai de encontro, segundo a historiadora, ao desejo de homens e mulheres que almejavam que suas identidades como proprietários de escravos fossem esquecidas.

A exposição das entranhas políticas, econômicas e culturais da escravidão antiga se dá no mesmo contexto em que se fortalece um movimento nos países do Caribe (com Barbados à frente) que reivindica, junto aos governos das nações colonizadoras, formas de compensação pelos profundos danos causados pela exploração do comércio transatlântico de vidas humanas ao conjunto de ex-colonizados. Para a responsável pela pesquisa, o trabalho, que dá contornos mais palpáveis à dívida da “moderna” Grã-Bretanha com a escravidão “antiga”, tem o objetivo de contribuir “para uma compreensão mais rica e mais honesta das histórias conectadas do império”.


Marcação a ferro, prática recorrente nas antigas formas de escravidão (Foto: Reprodução)

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Franz Kafka e a Segunda-feira


Ao contrário do que dizem os apologistas do fim da História, a luta de classes não se calou. No entanto, diante da assepsia publicitária por que passam os discursos contestatórios, a lógica poética de Kafka nos leva a pensar a contrapelo de nós mesmos: se o movimento da contradição histórica não for estancado e reconfigurado, continuaremos a figurar como coadjuvantes da cadeia alimentar que nos coage à frieza, à brutalidade e ao cinismo do entrechoque entre gato e rato, de modo que a "Pequena Fábula" possa receber um título mais adequado aos tempos atuais: "segunda-feira". O artigo é de Flávio Ricardo Vassoler.


No início do século XX, Franz Kafka escreveu uma

Pequena Fábula (*)

“‘Ah’, disse o rato, ‘o mundo torna-se cada dia mais estreito. A princípio era tão vasto que me dava medo, eu continuava correndo e me sentia feliz com o fato de que finalmente via à distância, à direita e à esquerda, as paredes, mas essas longas paredes convergem tão depressa uma para a outra, que já estou no último quarto e lá no canto fica a ratoeira para a qual eu corro’. – ‘Você só precisa mudar de direção’, disse o gato e devorou-o”.

Muitas teses e antíteses já entraram em entrechoque para tentar determinar o sentido cabal que daria conta da labiríntica fábula em questão. Assim, ora a vastidão inicial do mundo estaria relacionada ao Jardim do Éden, a utopia mítica, ora ela diria respeito aos primórdios das revoluções, em que a euforia coletiva pela nova miríade de oportunidades daria vazão a um perigoso caos político que logo precisaria de restrições para não se transformar em completa balbúrdia. As paredes que acabam por despontar à direita e à esquerda seriam, então, o sinal da Queda dos homens – a perda da liberdade original pela expulsão do Éden idílico – e/ou a chegada de um ditador que, com pulso firme, colocaria ordem na desordem, uma vez que não poderia haver vácuo no poder. Religiosos e políticos fariam um breve armistício, no entanto, diante da fraqueza original do homem – o rato trêmulo – que demandaria a tutela infalível de Deus e/ou do Guia Genial dos Povos – eis a onisciência e a onipresença do gato. (Iconoclastas tanto da tradição quanto do poder, os anarquistas de plantão discordariam de ambos os lados e diriam ser necessário pôr abaixo o labirinto; se tal fato acontecesse – dizem os religiosos e políticos que apenas por ora voltam a concordar –, o bebê seria jogado fora junto com a água do banho, já não haveria motivo para discordâncias, já não haveria nem mesmo a fábula de Kafka, “nós não teríamos o que fazer, ficaríamos todos desempregados, e vocês, anarquistas, já não teriam o que destruir”.)

Diante do labirinto polissêmico de Kafka, que arremessa as interpretações contrárias e contrariadas em um turbilhão infindável de contradições, uma máxima de Oscar Wilde parece dar o tom para a contenda fabular entre Tom e Jerry. “Quando os críticos discordam entre si, o artista concorda consigo mesmo” (**).

E se ao invés de perguntarmos o que a pequena fábula quis dizer, passarmos a interrogar como ela o fez? Se voltarmos nossas atenções para a forma kafkiana de estruturação e movimentação dos conflitos, talvez cheguemos à conclusão de que a dinâmica da História está inconclusa; de que a desigualdade entre gato e rato permanece, de modo a conferir atualidade à dialética entre liberdade e autoritarismo; de que o sentido está não no conteúdo unívoco que a fábula possa conter, mas na forma polissêmica que norteia e desnorteia as mais diversas interpretações e cuja dinâmica prolonga as contradições sem reconciliar os conflitos que a História ainda não resolveu. A meu ver, a atualidade de Kafka reside na plasticidade da moldura de seu labirinto, cujas galerias comportam os entrechoques das mais diversas teses e antíteses. Analisemos, então, o modo pelo qual a forma distópica, em estreito diálogo com as contradições históricas, transforma os discursos utópicos em antecâmaras do labirinto, ao fim do qual a saída não passa de uma nova entrada. Senão, vejamos.

Em primeiro lugar, é preciso salientar o caráter fabular da breve estória kafkiana. Animais com características humanas vivenciam experiências e procuram torná-las inteligíveis para si próprios – e para os leitores. Animais sociais que somos, nós não vivemos em meio à natureza sem a mediação das transformações históricas. Assim, o processo de identificação entre o leitor humano e as personagens animais apresenta, desde o princípio, um sentido trágico e cínico para a fábula: como a humanidade ainda não conseguiu superar as contradições de um capitalismo voraz que arremessa seus súditos em relações de competição contínua e autofágica, a personificação dos animais e a animalização das pessoas medem a distância histórica entre a utopia não realizada e a distopia de nosso cotidiano. Ademais, a cadeia alimentar que coage os animais – mas que não deveria coagir os animais racionais – estabelece uma hierarquia inequívoca entre gato e rato: predador e presa. Quando entreveem essa assimetria, muitos leitores associam imediatamente a figura do gato ao poder, enquanto o rato representaria o povo secularmente acossado. Tal leitura não leva em consideração a lógica impessoal do poder que subjaz à construção kafkiana.

O século XX, século kafkiano, demonstrou que a revolução bem pode degringolar em contrarrevolução. O líder fascista Benito Mussolini certa vez afirmou que, após a revolução, resta o problema dos revolucionários. Seria possível exercer contínuas autocríticas sem municiar os opositores que almejam o poder? Mas sem o exercício contínuo da crítica e da autocrítica, como garantir que o poder e os poderosos não demandarão a autocracia? Ora, os primórdios da revolução pareciam ter transformado o mundo em mera imagem e representação, tudo parecia possível. Trótski certa vez profetizou que, em meio à sociedade transformada pelo socialismo, o nível médio dos cidadãos seria comparável a Marx e a Aristóteles. Antes que conservadores onipresentes riam do revolucionário russo, é preciso levar em consideração o profundo otimismo histórico que embasava tal colocação. A revolução prometia romper os aguilhões que impediam o desenvolvimento humano. Artistas russos chegaram a declinar da autoria de suas obras. “Não fomos nós que as criamos, a história falou através de nós, o proletariado é o grande autor”. Mas os interrogatórios vindouros da polícia política de Stálin acabariam com o otimismo da autoria coletiva. “Vamos, confesse!” O patíbulo e o degredo na Sibéria como testemunhas oculares.

A esquerda tende a se endireitar quando toma as rédeas do poder. A direita não sabe bem o que fazer com o bastão da oposição, mas precisa minimamente contestar se quiser sobreviver em sua mais nova e insólita posição. A História nos ensina que a lógica do poder tende a subverter e a inverter as prerrogativas do líder, grupo e partido que ocupam o trono.

Nesse sentido, gato e rato são menos papéis demarcados e unívocos do que funções dinâmicas a serem ocupadas ora por um ator, ora por outro. Se os esquerdistas não estudarmos as lições de Kafka, estaremos fadados a vestir ainda uma vez a fantasia do gato para colocarmos os trajes de rato naqueles que a revolução obrigou a ceder as velhas vestes de felino. Assim, campos de concentração siberianos, os Gulags de Stálin, revoluções culturais que queimaram livros e paredões não conseguiram romper a lógica taliônica do poder que os revolucionários outrora afirmavam utilizar apenas momentaneamente enquanto o capitalismo não era superado por completo. (Quando os porões da Estação da Luz ficavam superlotados, os torturadores do DOPS paulistano não tinham quaisquer escrúpulos em voltar a dar aulas prática de lógica do poder àqueles que ousavam não delatar os camaradas que ainda não haviam sido presos.)

Ao voltarmos ainda uma vez para a Pequena Fábula, descobrimos que, a princípio, o rato se lamenta pela crescente estreiteza do mundo. O rato, animal combalido em face do gato vindouro, parece demandar maior liberdade. (Se a estória parasse por aqui, os anarquistas iriam a Praga a fim de convidar Franz Kafka para o congresso literário de maio de 1968.) Mas a frase seguinte – a antítese em face da tese que a primeira frase apresenta – narra um ratinho temerário em relação à vastidão inicial do mundo. Podemos deduzir, então, que havia uma imensidão anterior à contínua estreiteza do mundo com a qual o rato se depararia posteriormente. Como decidir qual a posição efetiva do rato? Ele teme as múltiplas possibilidades de um mundo vasto, mas ao mesmo tempo se lamenta por conta do contínuo emparedamento a que o mundo transformado o coage. Enquanto os críticos partidários quiserem atribuir um conteúdo unívoco à trajetória do rato, não será possível ver que a lógica poética de Kafka, ao mimetizar os movimentos contraditórios da História, arremessa o roedor ora à direita, ora à esquerda, ora como sujeito de suas demandas, ora como súdito de seu medo, de modo que a leitura que opte por um único sentido acaba resolvendo artisticamente um conflito que, no terreno da luta de classes, ainda não foi superado. Assim, a despeito da boa intenção inicial que não sabe agir sem tachar amigos e inimigos, camaradas e inimigos do Estado, companheiros e opositores, a tentativa de arregimentar Kafka em um partido ou tendência únicos dilui a enorme atualidade de sua forte crítica social que está presente na dinâmica de sua estória, na lógica poética de sua fábula. O problema para a crítica partidária é que a crítica social kafkiana não resolve as contradições que a História só faz prolongar, e então ela se mostra impessoal e sem muita utilidade para aqueles que só cumprirão os desígnios do poder sem romper com a sua lógica histórica que delineia e define as fronteiras das ações políticas.

O advérbio finalmente, na segunda frase da fábula, traz um certo alento ao pobre ratinho que, enfim, vê as paredes de Deus, do Pai, do pai, do partido, da empresa, do casamento, do clube etc. do etc. lhe darem novamente um mínimo de segurança. Para aqueles que não estamos acostumados a viver segundo o ritmo incerto da liberdade socialmente construída, as contradições históricas sussurram que tende a haver uma grande contiguidade entre o medo de caminhar com as próprias pernas e a entrega da própria autonomia a terceiros para que a incerteza pessoal seja permutada pela tutela alheia. (Se o labirinto de Kafka tivesse os contornos de uma catedral, o ratinho comeria a hóstia e se confessaria com o padre “por séculos e séculos, amém”.) Mas, novamente, Kafka dá dinamismo ao movimento da contradição, já que o ratinho passa a sentir que, agora, “essas longas paredes convergem tão depressa uma para a outra”. Vale a pena retomarmos o fio da meada: primeiro o rato é altivo, pois reclama da estreiteza do mundo – rato revolucionário; depois o ratinho sente medo pela vastidão inicial e se alivia com o fato de que, à distância, à direita e à esquerda, as paredes, isto é, os limites, passam a se delinear – ratinho reacionário; agora, ele volta a se contrapor ao movimento do labirinto, uma vez que as paredes que se estreitam cada vez mais passam a coagi-lo. Além de sugerir que há uma contiguidade entre os extremos, como se a liberdade total e a coação totalitária trouxessem temores e tremores parelhos, a pequena fábula de Kafka nos leva ao “último quarto”, em cujo canto fica a ratoeira para a qual o rato se encaminha.

Abstraiamos o conteúdo da micronarrativa e tentemos desenhar o trajeto patibular de Mickey Mouse. O descampado idílico do Gênesis não tem fronteiras. O olhar do roedor não consegue abraçar o horizonte. (E, se pensarmos bem, será que conseguimos imaginar a noção do infinito sem que, no limite, coloquemos algum tipo de delimitação – uma cerca – para nos dar guarida?) De repente, o rato marcha – começa a correr de medo, a bem dizer – e as paredes convergem, à direita e à esquerda. Ora, salvo engano – e o poder bem gosta de nos ludibriar –, estamos cada vez mais diante de um funil, a metade de um losango, em cujo extremo desponta a ratoeira. Ora, o ratinho revolucionário e reacionário é provido de razão, só que o cérebro roedor precisa das proteínas do queijo para continuar a pensar, a questionar – e a temer. Mas – e o fluido das contradições kafkianas sempre desliza ao sabor de conjunções adversativas –, se as paredes convergem unidirecionalmente, basta ao rato dar meia-volta – a História fardada diria: “volver!” – para que as paredes antes convergentes passem a divergir e a se distanciar. O mundo voltará a ficar vasto, o Éden será então recuperado, mas e quanto ao medo, o irmão mais novo do pecado original? A Pequena Fábula de Kafka seria uma estória sem fim, já que a retomada da vastidão levaria o rato novamente à fuga para o extremo oposto em que está a ratoeira, e, ao se deparar com o beco sem saída, ele sentiria a nostalgia do paraíso perdido do qual fugiria ainda uma vez para logo em seguida voltar a buscá-lo – “por séculos e séculos, amém”.

Mas eis que a criatividade de Kafka acompanha as contradições irresolutas da História e faz surgir na estória uma nova personagem, o bichano que esta análise já havia anunciado. Leiamos o conselho que o gato, possível autor de best-sellers de autoajuda, tem a dar ao roedor – e aos leitores:

– Você só precisa mudar de direção.

Por um lado, se o rato seguir o conselho do gato, logo encontrará a diluição de seus temores e tremores no suco gástrico do estômago felino. Por outro, se o rato degustar o queijo gorgonzola que o magnetiza sobre a ratoeira, já não haverá mais choro e ranger de dentes. Que fazer?

Neste momento, o leitor me permitirá a heresia de apontar um certo anacronismo na Pequena Fábula kafkiana. O escritor tcheco complementou a colocação do gato com o seguinte arremate: “disse o gato e devorou-o”. Será que, no atual contexto histórico, seria preciso dizer que o gato devorou o rato? Onde estão as efetivas contestações? Onde está a revolução? Quando uma rede de fast food árabe utilizou, há alguns anos, o mote revolução nos preços para os preços revolucionários de suas esfihas abertas, cujos anúncios eram apresentados com a boina de Che Guevara, entrevi o labirinto histórico em que estamos encurralados. O discurso potencialmente emancipatório é cooptado como um lucrativo slogan de mercado. Ao contrário do que diziam os revolucionários de maio de 68, o capitalismo tardio sentencia que a revolução será televisionada.

O arremate de Kafka mostrou-se profético diante do espectro nazista que, nas primeiras décadas do século XX, já rondava a Europa. Hoje, no entanto, o carrasco parece ter sido introjetado, não sabemos muito bem onde está o poder – quem, ou pior, o que ele é. Mas ele nos acorda cotidianamente às 5h – ou às 8h, para o privilégio dos paulistanos que moram dentro do perímetro central circundado pelas marginais. Se retirarmos a última parte da frase que conclui a Pequena Fábula, levaremos às últimas consequências o labirinto kafkiano. Afinal, após o conselho do gato, o que é que o rato vai fazer? Fugirá do gato e correrá para o patíbulo da ratoeira? Tapeará a fome e renegará a ratoeira apenas para correr em direção ao corredor polonês da garganta do gato? Ou será que, diante deste novo fim não finalizado, desta nova resolução irresoluta que propomos, o rato não lançará mão de um dos últimos redutos que (ainda) não foram totalmente cooptados pelo poder – a imaginação? Por mais exígua e improvável que a escapatória se apresente, um final que pressuponha maior abertura daria continuidade à contradição da estória e da História: a possibilidade de fuga caminharia lado a lado com o prolongamento sádico da tortura do ratinho.

Ao contrário do que dizem os apologistas do fim da História, a luta de classes não se calou. No entanto, diante da assepsia publicitária por que passam os discursos contestatórios, a lógica poética de Kafka nos leva a pensar a contrapelo de nós mesmos: se o movimento da contradição histórica não for estancado e reconfigurado, continuaremos a figurar como coadjuvantes da cadeia alimentar que nos coage à frieza, à brutalidade e ao cinismo do entrechoque entre gato e rato, de modo que a Pequena Fábula possa receber um novo título mais condigno com o prosaísmo (supostamente) despolitizado dos tempos atuais: Segunda-feira.

(*) In Narrativas do Espólio, tradução de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 138.

(**) Aforismos ou mensagens eternas, tradução de Duda Machado. São Paulo: Landy Editora, 2006, p. 69.

Flávio Ricardo Vassoler é mestre e doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP e escritor. Seu primeiro livro, O Evangelho segundo Talião (Editora nVersos), será publicado em abril. Periodicamente, atualiza o Subsolo das Memórias, www.subsolodasmemorias.blogspot.com, página em que posta fragmentos de seus textos literários e fotonarrativas de suas viagens pelo mundo.