segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Reflexões brechtianas



Bertolt Brecht Bertolt Brecht

Reflexões brechtianas


Bertolt Brecht, poeta e dramaturgo alemão, nasceu na cidade de Augsburg, na Baviera, em 1898, numa família de classe média -- seu pai era diretor de uma fábrica de papel. Em 1917, matricula-se na Universidade de Munique, para estudar Medicina, mas no ano seguinte é convocado pelo exército e atua como enfermeiro numa clínica militar em sua cidade natal.

Por Claudio Daniel
no vermelho


A Europa vive então a I Guerra Mundial, conflito entre as principais potências imperialistas, que resulta em 20 milhões de mortos. Em 1918, a Alemanha é vencida, e as forças aliadas impõem, no Tratado de Versalhes, uma série de compensações econômicas e territoriais ao país derrotado, que mergulha em profunda crise.

Brecht, que vivencia esses trágicos acontecimentos, logo se entusiasma pela Revolução Russa e torna-se marxista, ao mesmo tempo que se interessa pelo teatro, participando do cabaré político do comediante Karl Valentin, em Munique. Durante o curto período democrático da República de Weimar, na década de 1920, que antecedeu a ascensão do nazismo, Brecht realiza os seus primeiros trabalhos dramáticos, como as peças Baal (1918) e Tambores da noite (1922).

Nesse período surge uma nova geração de poetas, cineastas, músicos, arquitetos, fotógrafos e artistas visuais, interessados na renovação estética e na denúncia da realidade social, como Fritz Lang, diretor do filme Metrópolis, o poeta August Stramm, os pintores do grupo Der Blaue Reiter (O cavaleiro azul) e músicos como Paul Hindemith e Kurt Weill (este último, futuro parceiro de Brecht em canções de conteúdo político e social). Os artistas da vanguarda alemã afastavam-se dos modelos clássicos, românticos e realistas e criavam novas formas estéticas que retratassem a miséria social, a crise de valores espirituais, a incerteza quanto ao futuro e a fragmentação da sociedade, cada vez mais sacudida por conflitos entre a classe operária e a burguesia alemã -- cujo ponto máximo foi a tentativa de revolução socialista liderada por Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, em 1918.

Epitáfio, 1919


A Rosa Vermelha desapareceu

Para onde ela foi, é um mistério

Porque ao lado dos pobres combateu

Os ricos a expulsaram de seu império

(Tradução: Paulo César de Souza)

 
O estilo artístico que sobressai nessa época, especialmente no cinema, na poesia e no teatro é o Expressionismo, que incorpora a paisagem urbana, o mundo das máquinas e da indústria, a caricatura grotesca de tipos sociais e o humor negro, mesclados à herança das lendas medievais e do romantismo alemão, à temática sobrenatural, exótica ou perversa. O Expressionismo não é um espelho do real, mas uma deformação voluntária das formas (por exemplo, a geometria irregular dos cenários do filme O gabinete do dr. Caligari, de Robert Wiener), expressão subjetiva do artista, que observa o mundo com angústia e revolta. Frank Wedekind e Georg Buchner foram dois autores teatrais expressionistas que influenciaram a concepção artística de Brecht, assim como as peças populares da era vitoriana, o teatro chinês e os musicais de cabaré. Frederic Jameson aponta ainda ressonâncias de James Joyce, Eisenstein e do cubofuturismo russo na obra dramática do autor alemão, que desenvolveu uma nova forma de teatro, que integrava cenografia, montagem, poesia, narração, dança, música e a interpretação dos atores para envolver os sentidos e a inteligência do público (in Jameson, 1999: 110).


Comentando a peça Santa Joana dos Matadouros, Roberto Schwartz observa que “o ritmo da dicção é submetido ao andamento argumentativo, que tem musicalidade específica, a qual vai primar também sobre a musicalidade da palavra” (in Brecht: 2009,12). Anatol Rosenfeld, no posfácio que escreveu para a edição brasileira de Cruzada das crianças, observa: “O que Brecht exige é a transformação produtiva das formas, baseada no desenvolvimento do conteúdo social. Mas este desenvolvimento material, por sua vez, exige a transformação dos processos formais” (in Campos, 1997: 139). Conforme o estudioso brasileiro, “isto explica a pesquisa incansável de Brecht, no terreno da palavra, do estilo, do verso, do ritmo, da cena, do desempenho do ator, da estrutura de sua arte”.

A estratégia criativa de Brecht aproxima-se da concepção do poeta russo Vladimir Maiakovski, para quem “não existe arte revolucionária sem forma revolucionária”. Para os dois autores, comprometidos com a transformação estética e com a transformação do mundo, “a consciência social e a consciência estética se lhe afiguram inseparáveis” (idem).

Eu, que nada mais amo


Eu, que nada mais amo

Do que a insatisfação com o que se pode mudar

Nada mais detesto

Do que a profunda insatisfação com o que não pode ser mudado.

(Tradução: Paulo César de Souza)

 

Brecht não quer causar impacto emocional na platéia, mas levá-la a uma reflexão política, incentivando o seu espectador a tomar o partido dos oprimidos contra os opressores. É um teatro épico, revolucionário. Anatol Rosenfeld afirma: “Foi desde 1926 que Brecht começou a falar de ‘teatro épico’, depois de pôr de lado o termo ‘drama épico’, visto que o cunho narrativo da sua obra somente se completa no palco" (Rosenfeld, 1985, p. 146). O primeiro texto teórico de Brecht sobre o teatro épico aparece no prefácio à montagem de Ascensão e Queda da Cidade de Mahagonny, sátira política com texto de Brecht e música de Kurt Weill, encenada pela primeira vez em Leipzig, em 1930, e depois em Berlim, em 1931. Ao contrário do teatro dramático, fundamentado na Poética de Aristóteles, o teatro épico rompe com as noções lineares de tempo e espaço e deixa de lado a catarse, o envolvimento emocional do público, e a mimese, ou imitação fiel da realidade, que na opinião de Brecht deixariam o homem passivo em relação ao mundo. O drama épico, que deixa explícita a diferença entre a peça representada e o mundo, quer provocar uma reação intelectual no espectador, motivá-lo a questionar os valores e estruturas vigentes no mundo, que podem e devem ser transformadas.

Uma peça que se destaca na dramaturgia brechtiana é Santa Joana dos Matadouros (1929-31), cujo tema, segundo Roberto Schwartz, é “a crise do capitalismo, cujo ciclo de prosperidade, superprodução, desemprego, quebras e nova concentração do capital determina as estações do entrecho” (in Brecht: 2009, 9). Os personagens dessa obra insólita, continua o autor, são “a massa trabalhadora, empregada ou desempregada, os magnatas da indústria da carne, os especuladores e – disputando as consciências – os comunistas e uma variante do Exército da Salvação (os Boinas Pretas)”.

Brecht retrata a luta de classes e a situação miserável das camadas mais pobres da população sem cair numa estética de tipo naturalista, mais frequente nas peças de agitação política. Podemos observar, em sua técnica narrativa, uma semelhança com o cinema de Eisenstein, como o filme Encouraçado Potemkin, em que a montagem das cenas obedece a uma ordem associativa, metafórica, analógica, como acontece na estrutura do ideograma japonês. A este respeito, observa Haroldo de Campos: "A influência da técnica de composição sino-japonesa em Brecht é evidente, seja no seu teatro, que pode buscar uma linhagem na estrutura das peças nô, seja na sua poesia, especialmente na da última fase, de extremo despojamento e de arquitetura elíptica, à maneira do haicai da tradição nipônica" (Campos, 1997: 140).

A estrutura das peças de Brecht, ao romper com a linearidade de tempo e de espaço e adotar uma ordem analógica, produz um efeito anti-ilusionista. Conforme Walter Jens, no posfácio aos Poemas Escolhidos do autor alemão, citado por Campos, "este efeito se encontra especialmente em poemas escritos no exílio (...), no fim da década de 1930. Nessas composições lacônicas (Hollywood é um exemplo paradigmal), o poeta, trabalha preferencialmente com reduções, com rarefações e abreviaturas estilísticas, de uma tal audácia que o contexto omitido compensa a dimensão escrita do texto".

Hollywood


Toda manhã, para ganhar meu pão

Vou ao mercado, onde se compram mentiras.

Cheio de esperança

alinho-me entre os vendedores.

(Tradução: Haroldo de Campos)

 
O método poético adotado por Brecht nestas composições, continua Jens, consistiria em “enfileirar frases justapostas, entre as quais o leitor, para compreender o texto, deve inserir articulações”. Anatol Rosenfeld, analisando esse procedimento à luz do Verfremdungseffekt (“efeito de alienação”), típico do teatro brechtiano, acrescenta: “O choque alienador é suscitado pela omissão sarcástica de toda uma série de elos lógicos, fato que leva à confrontação de situações aparentemente desconexas e mesmo absurdas. Ao leitor assim provocado cabe a tarefa de restabelecer o nexo” (idem, 140-141). Um bom exemplo desta técnica é o poema O primeiro olhar pela janela de manhã, traduzido por Haroldo de Campos:


O primeiro olhar pela janela de manhã


O primeiro olhar pela janela de manhã.

O velho livro redescoberto.

Rostos entusiasmados.

Neve, o câmbio das estações.

O jornal.

O cão.

A dialética.

Duchas, nadar.

Música antiga.

Sapatos cômodos.

Compreender.

Música nova.

Escrever, plantar.

Viajar, cantar.

Ser cordial.

Haroldo de Campos, no livro O Arco-Íris Branco, apresenta um interessante ensaio – O duplo compromisso de Bertolt Brecht – acompanhado de várias traduções da poesia do autor alemão, com ênfase nas peças mais elípticas, enigmáticas e lacunares, como estas, de nítidas ressonâncias da poética chinesa e japonesa:

Epitáfio


Escapei aos tigres

Nutri os percevejos

Fui devorado

Pela mediocridade


A máscara do mal


Na minha parede, a máscara de madeira

de um demônio maligno, japonesa –

ouro e laca.

Compassivo, observo

as túmidas veias frontais, denunciando

o esforço de ser maligno.


Sobre um leão chinês de rais de chá


Os maus temem tuas garras.

Os bons alegram-se com teu garbo.

O mesmo

quero ouvir

de meus versos.

Claro – esta é uma das facetas da obra poética de Brecht, que é bastante variada na temática e na arquitetura estilística, embora seja menos conhecida e estudada do que o conjunto de suas peças para o teatro. Otto Maria Carpeaux, no livro A literatura alemã, declara: “Muitos o consideram como o maior dramaturgo do século XX. Enquanto isso, fala-se muito menos de sua poesia lírica que, sendo dificilmente traduzível, pouco se conhece no estrangeiro. É, porém, necessário salientar que Brecht foi antes de tudo um grande poeta (...). É um dos poetas mais tipicamente alemães da literatura alemã”. (Carpeaux: 1994: 285)

Willi Bolle considera que “Bertolt Brecht trouxe para a poesia urbana a proposta de uma nova sensibilidade, caracterizada por um olhar sóbrio sobre o cotidiano. Seus poemas falam do ritual de se lavar, da leitura do jornal ao fazer o chá, do pequeno aparelho de rádio, do dinheiro, do desemprego, do registro das ‘palavras que gritam aos outros’. A poesia de Brecht é política no sentido próprio da palavra: propõe elucidar as leis da convivência entre os homens na ‘polis’, a metrópole contemporânea, que já não é cidade-mãe, mas praça mercantil ‘onde se negocia o ser humano’.” (in Brecht, 2001). A lírica brechtiana também aborda temas como a natureza, a fuga, o exílio, a morte, o amor, o Oriente, mas, como adverte Willi Bolle, “há uma decidida ruptura com os moldes românticos. (...) O que o poeta diz do amor? ‘Do amor cuidei displicente’ – ao contrário do que pode sugerir este verso, que representa um papel, não uma confissão, Brecht dedicou muita atenção ao amor. Certamente mais do que os editores alemães, que retardaram a publicação dos poemas eróticos e os separaram do resto da obra”.

Canto de uma amada


1. Eu sei amada: agora me caem os cabelos, nessa vida dissoluta, e eu tenho que deitar nas pedras. Vocês me vêem bebendo as cachaças mais baratas, e eu ando nu no vento.


2. Mas houve um tempo, amada, em que era puro.


3. Eu tinha um mulher mais forte que eu, como o capim é mais forte que o touro: ele se levanta de novo.


4. Ela via que eu era mau, e me amou.


5. Ela não perguntava para onde ia o caminho que era seu. e talvez ele fosse para baixo. Ao me dar o seu corpo, ela disse: Isso é tudo. E seu corpo se tornou meu corpo.


6. Agora ela não está mais em lugar nenhum, desapareceu como nuvem após a chuva, ela caiu, pois este era seu caminho.


7. Mas a noite, às vezes, quando me vêem bebendo, vejo o rosto dela, pálido no vento, forte, voltado para mim, e me inclino no vento.

(Tradução: Paulo César de Souza).

 
Brecht escreveu versos durante a vida toda. Seu primeiro livro de poemas, publicado em 1925, foi Hauspostille, título de difícil tradução, que remete aos breviários, ou livros de devoção, que os protestantes costumavam ler em casa (recordemos que a mãe de Brecht era luterana devota). Esta obra, como ressalva Carpeaux, “é evidentemente o contrário de um livro de devoção. São baladas em estilo popular sobre crimes célebres da época, sendo invariavelmente os criminosos elogiados e a Justiça e a moral burguesa vilipendiadas. (...) Essa poesia de cabaré engagé é, como disse um crítico católico, o ‘breviário do diabo’. Mas não é poesia revolucionária, apesar de todos os ataques às convenções religiosas, apesar de todos os ataques às convenções religiosas e políticas. É a expressão de um niilismo total” (Carpeaux, 1994: 285-286).


Um poema que se destaca no livro de estreia de Brecht é A infanticida Marie Farrar, que vamos ler agora, na tradução de Paulo César de Souza:

1


Marie Farrar, nascida em abril, menor

De idade, raquítica, sem sinais, órfã

Até agora sem antecedentes, afirma

Ter matado uma criança, da seguinte maneira:

Diz que, com dois meses de gravidez

Visitou uma mulher num subsolo

E recebeu, para abortar, uma injeção

Que em nada adiantou, embora doesse.

Os senhores, por favor, não fiquem indignados.

Pois todos nós precisamos de ajuda, coitados.


2


Ela porém, diz, não deixou de pagar

O combinado, e passou a usar uma cinta

E bebeu álcool, colocou pimenta dentro

Mas só fez vomitar e expelir

Sua barriga aumentava a olhos vistos

E também doía, por exemplo, ao lavar pratos.

E ela mesma, diz, ainda não terminara de crescer.

Rezava à Virgem Maria, a esperança não perdia.

Os senhores, por favor, não fiquem indignados

Pois todos nós precisamos de ajuda, coitados.


3


Mas as rezas foram de pouca ajuda, ao que parece.

Havia pedido muito. Com o corpo já maior

Desmaiava na Missa. Várias vezes suou

Suor frio, ajoelhada diante do altar.

Mas manteve seu estado em segredo

Até a hora do nascimento.

Havia dado certo, pois ninguém acreditava

Que ela, tão pouco atraente, caísse em tentação.

Mas os senhores, por favor, não fiquem indignados

Pois todos nós precisamos de ajuda, coitados.


4


Nesse dia, diz ela, de manhã cedo

Ao lavar a escada, sentiu como se

Lhe arranhassem as entranhas. Estremeceu.

Conseguiu no entanto esconder a dor.

Durante o dia, pendurando a roupa lavada

Quebrou a cabeça pensando: percebeu angustiada

Que iria dar à luz, sentindo então

O coração pesado. Era tarde quando se retirou.

Mas os senhores, por favor, não fiquem indignados

Pois todos nós precisamos de ajuda, coitados.


5


Mas foi chamada ainda uma vez, após se deitar:

Havia caído mais neve, ela teve que limpar.

Isso até a meia-noite. Foi um dia longo.

Somente de madrugada ela foi parir em paz.

E teve, como diz, um filho homem.

Um filho como tantos outros filhos.

Uma mãe como as outras ela não era, porém

E não podemos desprezá-la por isso.

Mas os senhores, por favor, não fiquem indignados.

Pois todos nós precisamos de ajuda, coitados.


6


Vamos deixá-la então acabar

De contar o que aconteceu ao filho

(Diz que nada deseja esconder)

Para que se veja como sou eu, como é você.

Havia acabado de se deitar, diz, quando

Sentiu náuseas. Sozinha

Sem saber o que viria

Com esforço calou seus gritos.

E os senhores, por favor, não fiquem indignados

Pois todos precisamos de ajuda, coitados.


7


Com as últimas forças, diz ela

Pois seu quarto estava muito frio

Arrastou-se até o sanitário, e lá (já não

sabe quando) deu à luz sem cerimônia

Lá pelo nascer do sol. Agora, diz ela

Estava inteiramente perturbada, e já com o corpo

Meio enrijecido, mal podia segurar a criança

Porque caía neve naquele sanitário dos serventes.

Os senhores, por favor, não fiquem indignados

Pois todos nós precisamos de ajuda, coitados.


8


Então, entre o quarto e o sanitário — diz que

Até então não havia acontecido — a criança começou

A chorar, o que a irritou tanto, diz, que

Com ambos os punhos, cegamente, sem parar

Bateu nela até que se calasse, diz ela.

Levou em seguida o corpo da criança

Para sua cama, pelo resto da noite

E de manhã escondeu-o na lavanderia.

Os senhores, por favor, não fiquem indignados

Pois todos nós precisamos de ajuda, coitados.


9


Marie Farrar, nascida em abril

Falecida na prisão de Meissen

Mãe solteira, condenada, pode lhes mostrar

A fragilidade de toda criatura. Vocês

Que dão à luz entre lençóis limpos

E chamam de “abençoada” sua gravidez

Não amaldiçoem os fracos e rejeitados, pois

Se o seu pecado foi grave, o sofrimento é grande.

Por isso lhes peço que não fiquem indignados

Pois todos nós precisamos de ajuda, coitados.

 
Este poema tem notável semelhança formal com a Balada dos Enforcados, de François Villon, também composta em estrofes de dez versos – mas, ao contrário do autor francês, que compôs o seu poema em notáveis decassílabos, Brecht preferiu o verso livre, em ritmo de balada. A principal chave para a leitura intertextual está nos dois versos finais que se repetem a cada estrofe, ou com ligeiras modificações, em ambos os poemas. Brecht: “Por isso lhes peço que não fiquem indignados / Pois todos nós precisamos de ajuda, coitados”. Villon: “Que de nossa aflição ninguém se ria, / Mas suplicai a Deus por todos nós”.


O refrão, que no caso do poeta francês remete à compaixão universal ensinada pelo cristianismo, no caso de Brecht indica a solidariedade com os miseráveis, vítimas de um sistema econômico e social injusto, que condena, hipocritamente, o crime de Marie Farrar, ao mesmo tempo que fecha os olhos à situação que a levou a cometer o infanticídio. A inversão de papeis nas peças e poemas de Brecht, em que o criminoso ou proscrito por vezes assume a posição de herói, recorda também a lenda criada em torno de Villon, que teria sido, conforme alguns relatos, bêbado, ladrão e assassino – portanto um pária, à margem das normas da sociedade medieval.

No conhecido poema A lenda da puta Evelyn Roe, Brecht retoma o tema da mulher oprimida, na figura de uma beata -- possível referência à Santa Maria Egipcíaca, também abordada por Cecília Meireles e Manuel Bandeira -- que oferece seu corpo ao capitão de um navio, em troca da passagem com destino à Terra Santa. A protagonista do poema -- um dos mais fortes do poeta alemão, do ponto de vista da construção dramática e expressão emocional -- falece, porém, no meio da viagem, e sua alma é recusada por Deus e pelo Diabo, que não a desejam em seus reinos etéreos:

Quando enfim chegou ao Paraíso

São Pedro o portão trancou

Deus disse: “Não vou acolher no céu

A puta Evelyn Roe”.

Também quando ao Inferno ela chegou

A porta na cara levou

E o diabo gritou: “Não quero aqui

A beata Evelyn Roe”.

(Tradução: Tatiana Berlinky / Maria Alice Vergueiro / Catherine Hirsch)

Os heróis de Brecht, em seu teatro e em sua poesia, são sempre os excluídos, os malditos, sejam eles operários, camponeses, prostitutas, bêbados, vagabundos, todos aqueles que, nos quatro cantos do globo, eram colocados sob suspeita pela sociedade capitalista, e que – acreditava o poeta – um dia iriam se levantar contra a opressão, hipótese que se tornou crível a partir da derrota e fuga dos exércitos nazistas da Europa Oriental e do surgimento das repúblicas de democracia popular, lideradas pelos comunistas. Brecht acreditou com sinceridade no modelo do chamado socialismo real, e foi um cidadão orgulhoso da República Democrática Alemã até a sua morte, em 1956.

A proximidade entre a poesia de Brecht e as baladas tradicionais já foi observada por Otto Maria Carpeaux, para quem o verso do autor alemão tem o feitio “de canção popular e da balada popular, é deliberadamente primitivo”, sendo moderno “apenas pelo uso da linguagem dos jornais e da vida cotidiana”. O prosaísmo de Brecht, segundo Carpeaux, “é herança da ‘objetividade nova’. Mas o milagre é esse: que esses versos primitivos e essa linguagem prosaica fazem profunda impressão poética, às vezes até sentimental; e gravam-se na memória como se os tivéssemos conhecido desde sempre” (Carpeaux: 1994, 286).

A Nova Objetividade foi um movimento artístico alemão surgido na década de 1920 como reação ao Expressionismo -- recusava a expressão mais subjetiva e colocava em primeiro plano a denúncia social, a crítica mordaz à burguesia e à guerra. Trata-se portanto de uma arte de forte acento realista que recusava as inclinações abstratas defendidas pelo grupo Die Brücke [A Ponte]. O termo foi criado em 1923 por Gustav Hartlaub, que publicou um artigo nos jornais manifestando a intenção de realizar uma exposição com o título Nova Objetividade, que ocorreu dois anos depois no Kunsthalle de Munique e deu nome à nova tendência figurativa da arte alemã das primeiras décadas do século XX. O movimento sofreu forte perseguição dos nazistas e deixou de existir em meados de 1930. Um poema de Brecht que representa bem a dicção realista é a conhecida peça Perguntas de um trabalhador que lê, publicado no livro Svendborger Gedichte (Poesias de Svenborg), escrito quando Brecht estava exilado da Alemanha nazista:

Quem construiu a Tebas de sete portas?

Nos livros estão nomes de reis.

Arrastaram eles os blocos de pedra?

E a Babilônia, várias vezes destruída

Quem a reconstruiu tantas vezes?

Em que casas da Lima dourada moravam os construtores?

Para onde foram os pedreiros, na noite em que a Muralha da China ficou pronta?

A grande Roma esta cheia de arcos do triunfo.

Quem os ergueu?

Sobre quem triunfaram os Césares?

A decantada Bizâncio tinha somente palácios para os seus habitantes?

Mesmo na lendária Atlântida, os que se afogavam gritaram por seus escravos na noite em que o mar a tragou.

O jovem Alexandre conquistou a Índia.

Sozinho?

César bateu os gauleses.

Não levava sequer um cozinheiro?

Filipe da Espanha chorou, quando sua Armada naufragou.

Ninguém mais chorou?

Frederico II venceu a Guerra dos Sete Anos.

Quem venceu alem dele?

Cada pagina uma vitória.

Quem cozinhava o banquete?

A cada dez anos um grande Homem.

Quem pagava a conta?

Tantas histórias.

Tantas questões.

(Tradução: Paulo César de Souza).

 
Notável, nesta reunião de poemas de Brecht, a fusão entre o eu lírico, o eu social e o rigoroso artesanato de linguagem, que se manifesta em versos de alta precisão e objetividade, como na conhecida peça


Lista de Preferências de Orge


Alegrias, as desmedidas.

Dores, as não curtidas.

Casos, os inconcebíveis;

Conselhos, os inexequíveis.


Meninas, as veras.

Mulheres, insinceras.


Orgasmos, os múltiplos.

Ódios, os mútuos.


Domicílios, os temporários.

Adeuses, os bem sumários.


Artes, as não rentáveis.

Professores, os enterráveis.


Prazeres, os transparentes.

Projetos, os contingentes.


Inimigos, os delicados.

Amigos, os estouvados.


Cores, o rubro.

Meses, outubro


Elementos, os Fogos

Divindades, o Logos.


Vidas, as espontâneas.

Mortes, as instantâneas.

(Tradução: Paulo César de Souza)

O poema, construído na forma de dísticos rimados, recorda o estilo coloquial-satírico do poeta francês Jules Laforgue (que aliás viveu na Alemanha, onde foi leitor da imperatriz), em especial o da série de litanias da lua, como na peça que apresentamos a seguir:

Litanias dos Quartos

Crescentes da Lua


Lua sublime,

Nos ilumine!


É o medalhão

De Endimião,


Astro de argila

Que tudo exila,


Caixão milenar

De Salambô lunar,


Cais etéreo

Do alto mistério,


Madona e miss,

Diana-Artemis,


Santa vigia

De nossa orgia,


Jetaturá

Do bacará,

Dama tão pálida

Em nossa praça,


Vago perfume

De vaga-lume,


Rosácea calma

Do último salmo,


Olho-de-gata

Que nos resgata,


Seja o auxílio

A nosso delírio!


Seja o edredão

Do Grande Perdão!

(Tradução: Claudio Daniel).

A intertextualidade é um recurso frequente em Brecht – como vimos em seus diálogos com Villon e Laforgue – e assinalam, mais do que a exibição narcísica da referência erudita, uma tomada de posição, uma filiação poética, junto à estirpe dos poetas malditos, sarcásticos, questionadores das normas vigentes na poesia e na sociedade. O diálogo com Laforgue nos parece bastante natural, sobretudo se recordarmos o comentário feito por Mário Faustino sobre o poeta francês: "Jules Laforgue (1860-87): mais um jovem de gênio (Rimbaud, Corbière...) a explodir na língua francesa para desmoralização de uma rotina ética e estética e para preparar o terreno de um novo mundo (ainda hoje por vir). O processo que deu origem a Laforgue: decadência do mundo capitalista, miséria existencial do homem do fin-de-siècle, falácias e panaceias burguesas (Amor etc.) e a linhagem Heine-Baudelaire-Rimbaud-Corbière" (Faustino, 2004: 184). Curioso observar que nesta breve nota crítica -- mas concentrada e densa, como toda a obra crítica de Faustino -- o autor faz um paralelo entre o francês Laforgue e o alemão Heinrich Heine, seu possível precursor na objetividade, precisão e ironia. Os dois poetas -- assim como Brecht -- limparam a linguagem poética de adornos e ornamentos decadentistas, colocando em primeiro plano os substantivos, as coisas. Heine é, sem dúvida, um dos precursores de Brecht na língua alemã, inclusive no campo político, se pensarmos em poemas como Os tecelões da Silésia, de 1844, e de seu posicionamento político, de claro perfil socialista, embora sem estar filiado a nenhum dos partidos operários de sua época.

Na poesia política de Brecht, herdeira da lírica inconformista de Heine, predominam quatro temas: o da natureza predatória do capitalismo -- especialmente da especulação financeira --, o elogio da revolução socialista, a denúncia do nazismo e o testemunho dos horrores da II Guerra Mundial. Brecht abandonou a Alemanha logo após ascensão de Hitler, em 1933, e viveu no exílio em diversos países europeus até 1941, partindo depois para os Estados Unidos, onde vive até 1947. Sua produção ao longo dos anos 1930-1940 é fortemente marcada pelos acontecimentos internacionais, assim como ocorreu na obra de Carlos Drummond de Andrade, sobretudo no livro Rosa do Povo, com.o qual também poderíamos traçar um curioso paralelo:

Em verdade temos medo.

Nascemos escuro.

As existências são poucas:

Carteiro, ditador, soldado.

Nosso destino, incompleto.

(Versos iniciais de O medo, de Carlos Drummond de Andrade)

e:

Um estrangeiro, voltando de uma viagem ao Terceiro Reich

Ao ser perguntado quem realmente governava lá, respondeu:

O medo.


(Versos iniciais do poema Os medos do regime)

(Tradução: Paulo César de Souza).

 
A poesia de Brecht, como a de Drummond, nesse período, é uma poesia de resistência e combate, em que o eu lírico não se oculta, mas está presente em sua angústia, em suas dúvidas, em sua fragmentação (que é também a fragmentação do mundo), e ainda no júbilo epifânico que traduz a esperança utópica, em flashes como este:


Orgulho


Quando o soldado americano me contou

Que as alemãs filhas de burgueses

Vendiam-se por tabaco, e as filhas de pequeno-burgueses por chocolate

As esfomeadas trabalhadoras escravas russas, porém, não se vendiam

Senti orgulho.

Testemunha dos trágicos acontecimentos da era nacional-socialista, Brecht relata em seus poemas, como se fossem pequenas crônicas ou notas de um historiador, eventos como a queima pública de livros de autores incômodos ao regime, os métodos de intimidação das tropas de assalto, a resistência dos operários alemães nas fábricas, a experiência do exílio de poetas e intelectuais e ainda os conflitos psicológicos de uma nação dominada pelo medo. A crônica política de Brecht, porém, não se resume à narrativa de fatos históricos, aos moldes de um jornalismo poético, orientado pelo espírito militante e pela leitura do materialismo histórico e dialético do pensamento marxista. O poeta, consciente do valor estético do artesanato linguístico e do caráter atemporal da tragédia humana, incorpora em poemas políticos elementos da fábula, da parábola, da alegoria, mistura diferentes referências históricas e repertórios culturais, numa miscigenação universalista, quase barroca. No poema Canção de Salomão, de linguagem coloquial e humor provocativo, os protagonistas são o personagem bíblico que dá título ao poema, a rainha egípcia Cleópatra, Júlio César e o próprio poeta alemão, condenados pelo desejo excessivo de poder, de prazer e de saber:

O indiscreto Brecht quis saber

Escutem suas canções

Como os ricos têm poder

De acumular tantos milhões

Pobre no exílio foi parar

Brecht xereta

Bisbilhoteiro

E com o tempo a correr

Enfim o mundo percebeu

Fuçar demais foi a sua perdição

Melhor viver na discrição...

(Fragmento traduzido por Luiz Roberto Galizia).

O tema do exílio é recorrente no autor, que viveu longe da Alemanha entre 1933 e 1949, quando fixa-se na República Democrática Alemã. No poema A emigração dos poetas, Brecht faz um interessante paralelo entre a sua experiência de fugitivo e a de outros poetas que admirava, usando novamente o procedimento de recorte e montagem de elementos de diferentes épocas, culturas e países:

Homero não tinha morada

E Dante teve que deixar a sua.

Li-Po e Tu-Fu andaram por guerras civis

Que tragaram 30 milhões de pessoas

Eurípedes foi ameaçado com processos

E Shakespeare, moribundo, foi impedido de falar.

Não apenas a Musa, também a polícia

Visitou François Villon.

Conhecido como “o Amado”

Lucrécio foi para o exílio

Também Heine, e assim também

Brecht, que buscou refúgio

Sob o teto de palha dinamarquês.

(Tradução: Paulo César de Souza).

Neste poema, encontramos autores já citados no presente ensaio como precursores da poética brechtiana, entre eles Villon, Heine e os chineses Li-Po e Tu-Fu. A presença chinesa é evidente não apenas nas peças mais breves e concisas traduzidas e comentadas por Haroldo de Campos, em que se destacam a justaposição de imagens e estrofes à maneira do ideograma, mas ainda nas traduções criativas que o autor de A boa alma de Se-Tzuan realizou de versos clássicos de Po Chu-yi, Ts’ao Sung e de autores anônimos do cânone tradicional do Império do Meio, não raro escolhendo os poemas por seu viés crítico e temática atemporal. Neste sentido, as traduções de Brecht podem ser comparadas às personae de Ezra Pound, que também vestia a máscara dramática de autores da Antiguidade, da Idade Média ou do Renascimento para manifestar o seu desconforto com o desconcerto do mundo. Assim, por exemplo, nesta breve peça recriada pelo autor alemão:

Um protesto no sexto ano de Chien Fu

Os rios e morros da planície

Transformais em vosso campo de batalha.

Como, pensais, o povo que aqui vive

Poderá se abastecer de “madeira e feno”?

Poupai-me por favor vosso palavreado

De nomeações e títulos.

A reputação de um único general

Significa: dez mil cadáveres


Ts’ao Sung (870-920)

(Tradução: Paulo César de Souza)

Reler Brecht é uma experiência rica e de extrema atualidade, que nos faz pensar sobre os aspectos éticos e estéticos da criação literária e, não menos importante, sobre a escolha que o artista tem a liberdade de fazer entre a cooptação pela cultura de mercado e o compromisso com a construção de uma nova realidade.

Bibliografia:

Brecht, Bertolt. A Santa Joana dos matadouros. Tradução: Roberto Schwartz. São Paulo: Cosacnaif, 2009.

Brecht, Bertolt. Poemas 1913-1956. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: editora 34, 2001.

Campos, Haroldo de. O arco-íris branco. Rio de Janeiro: Imago, 1997.

Carpeaux, Otto Maria. A literatura alemã. São Paulo: Nova Alexandria, 1994.

Faustino, Mário. Artesanatos de poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

Jameson, Frederic. Método Brecht. São Paulo: Vozes, 1999.

Peixoto, Fernando. Brecht vida e obra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974. 2ª. edição.

Rosenfeld, Anatol. O teatro épico. SP: Editora Perspectiva, 1985.

(*) Claudio Daniel é poeta, curador de Literatura do Centro Cultural São Paulo, colunista da CULT e editor de Zunái, Revista de Poesia e Debates (www.revistazunai.com).

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

A espionagem nas cercanias do palácio

A espionagem nas cercanias do palácio

Por Leandro Fortes, na revista CartaCapital:via BLOG DO MIRO

Nesta semana, o debate a respeito da espionagem foi retomado, com reportagens que mostram como a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) realizou operações de contra-espionagem em território brasileiro. Entre os diversos alvos estavam, segundo apurou a Folha de S.Paulo, salas alugadas pela embaixada dos Estados Unidos em Brasília. Em agosto de 2013, CartaCapital publicou a reportagem abaixo, na qual revela que algumas instalações usadas pela Embaixada americana em Brasília continuam ativas. Confira a íntegra:


Desde a terça-feira 6 um grupo de assessores brasileiros liderados pelo Ministério das Comunicações está em Washington para ouvir as explicações do Departamento de Estado americano sobre as denúncias de espionagem contra o País. É um lance para a plateia. Nas principais instâncias de inteligência do governo federal e, portanto, no Palácio do Planalto, desde sempre se sabe, ou se deveria saber, da movimentação de espiões dos Estados Unidos no território nacional sob proteção da Embaixada em Brasília.

Manter agentes de inteligência em representações diplomáticas não chega a ser uma novidade. Quase todos os países possuem alguma estrutura desse gênero. O problema é que os norte-americanos vão além, operam com uma liberdade incomum e extrapolam os limites da soberania. Segundo os documentos vazados pelo ex-funcionário da CIA Edward Snowden, até 2002 Tio Sam valia-se de 16 instalações em território nacional para atividades de “inteligência”. CartaCapital apurou que ao menos parte dessa rede ainda continua ativa. E pior: está instalada em Brasília, no coração do poder político do País.

A série de documentos secretos e reservados do governo federal obtidos pela revista, vários deles encaminhados a assessores diretos da presidenta Dilma Rousseff, relata o funcionamento de ao menos seis endereços em Brasília utilizados pela Embaixada dos EUA como centros de operação e análise de inteligência. São quatro imóveis no Lago Sul, área tradicionalmente residencial da cidade, um no Setor de Indústria e Abastecimento e outro no Setor de Autarquias Sul, região central da capital, a pouco mais de 1 quilômetro do prédio dessa embaixada. Os imóveis, casas e salas comerciais, cobrem com frequências de rádio toda a extensão do Plano Piloto de Brasília, a partir de antenas de radiocomunicação e telefonia exclusivas autorizadas pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), que tem um representante na missão enviada pelo governo aos Estados Unidos. A outorga para o uso “limitado-privado” foi concedida à Embaixada dos EUA no fim do primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso, em 1997, e tem validade até 20 de julho de 2019. Ao todo, abrange 841 licenças de frequências de rádio para uso exclusivo dos americanos em solo brasileiro.

Na sala comercial número 209 do Bloco H da QI 9, no Lago Sul, funcionava a principal divisão de segurança das embaixadas e consulados dos Estados Unidos, responsável pela movimentação de diversos equipamentos de comunicação. Lá, o Regional Security Office (RSO) funcionou por oito anos até se mudar, no fim do ano passado, para a sala 411 de um movimentado edifício de lojas e escritórios no Setor de Autarquias Sul. No local, tanto os funcionários da portaria como a vizinhança do corredor estranham a movimentação constante de servidores da Embaixada, quase sempre no turno da manhã. Muitos costumam passar a noite no escritório.

A Embaixada dos EUA mantém ainda um conjugado de salas comerciais de números 311 e 312 no Conjunto 12-A do Setor de Mansões Dom Bosco, também no Lago Sul. Na sala 311, segundo os relatórios encaminhados ao Palácio do Planalto, funciona o escritório da Drug Enforcement Administration, a DEA, órgão do Departamento de Justiça dos Estados Unidos encarregado da repressão e controle de drogas. Como se verá mais adiante, a DEA tem uma longa história no Brasil. Nos anos FHC, financiava atividades da Polícia Federal e, em troca, tinha carta branca para atuar em território nacional, conforme denunciou uma série de reportagens de CartaCapital entre 1999 e 2004.

Na sala 312 fica um contingente do Information Program Center (IPC), responsável pela comunicação de rádio e telefonia da Embaixada norte-americana, principalmente na área de inteligência. As duas salas são fortemente gradeadas e permanentemente refrigeradas. Aparentemente, funciona como uma estação de rádio que opera em diversas frequências, a partir das licenças concedidas pela Anatel.

O maior imóvel alugado pela Embaixada americana é uma chácara na QI 5 do Lago Sul. No terreno vigiado por câmeras e guaritas foram construídos alojamentos para fuzileiros navais e é um dos endereços com licença de funcionamento de radiofrequência da Anatel. Em outro terreno menor, ocupado por uma casa no Conjunto 2 da QL 16 do Lago Sul, os americanos montaram aparentemente um bunker rodeado de câmeras de segurança e com uma guarita de vidros espelhados. No galpão do SIA, em uma zona afastada do Plano Piloto, a antiga movimentação de funcionários e furgões da Embaixada americana foi interrompida no início do ano. O imóvel foi esvaziado e, atualmente, há apenas uma placa de “aluga-se” na entrada.

Segundo documentos publicados pelo jornal O Globo, outra unidade de espionagem funcionou em Brasília, até 2002, controlada pela Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos (NSA, em inglês), em conjunto com a CIA. Era parte da rede de 16 bases das agências de inteligência dos EUA que coletavam informações em todo o País, a partir de satélites de outros países. Embora o Brasil não tenha satélites próprios (o único foi repassado à Embratel na privatização de 1997), o governo mantém alugados oito desses. Os satélites estão estacionados sobre a Linha do Equador e, por isso, colhem muitas e importantes informações sobre a Amazônia, região de grande interesse estratégico e alvo de cobiça internacional. Outros documentos, datados de 2010, dão conta da possibilidade de os EUA terem grampeado escritórios da Embaixada do Brasil em Washington e da missão brasileira nas Nações Unidas, em Nova York. Outros papéis vazados à mídia nacional revelam que o então presidente Lula foi monitorado durante a tentativa de fechar um acordo com o Irã em 2009.

CartaCapital entrou em contato com a Embaixada dos Estados Unidos na sexta-feira 2 para saber qual a utilidade dos seis imóveis apontados como bases de espionagem em relatórios internos do governo federal. Todas as informações, inclusive os endereços das casas e salas comerciais, foram encaminhadas à assessoria de comunicação da Embaixada via e-mail, mas nenhuma resposta foi enviada até o fechamento desta edição.

As informações sobre o megaesquema de espionagem dos Estados Unidos começaram a se tornar públicas a partir de 6 de junho, quando o jornal britânico The Guardian iniciou a publicação de uma sequência de reportagens do jornalista Glenn Greenwald baseadas nos documentos vazados por Snowden. Soube-se assim que a NSA não cuidava apenas da segurança interna, mas estendia seus tentáculos a países aliados, inclusive o Brasil. A partir de bases espalhadas planeta afora e de uma rede de satélites, os Estados Unidos montaram um sistema monstruoso de monitoramento de e-mails e ligações telefônicas com a cooperação de empresas de telecomunicações e de gigantes da internet, entre eles o Google e o Facebook. Os espiões americanos desenvolveram um programa chamado PRISM, dedicado ao monitoramento em tempo real da circulação de informações na rede mundial de computadores, em tese para prevenir ataques terroristas.



Snowden trabalhava para a CIA e para a NSA em cargos ligados ao manejo e acompanhamento de dados em sistemas secretos de informação. Antes de iniciar os primeiros vazamentos em Hong Kong e fugir para a Rússia, ocupava o posto de analista de infraestrutura na Booz Allen & Hamilton, contratada pela NSA supostamente para prestar serviços de consultoria estratégica. Sob essa fachada, a Booz Allen conseguiu contratos com setores públicos de vários países, entre eles o Brasil, durante o mandato de FHC. Aqui, a consultoria participou oficialmente da formulação dos programas Brasil em Ação e Avança Brasil, que nunca saíram do papel, além de ter auxiliado nas privatizações promovidas pelos tucanos na década de 1990 e na reestruturação do sistema financeiro nacional.

Ao longo dos oito anos da era fernandina, portanto, a principal prestadora de serviço da CIA no esquema de espionagem mundial não só foi contratada pelo governo brasileiro como teve acesso a dados privilegiados das ações administrativas do País e a informações completas de toda a movimentação financeira nacional. Isso incluía livre trânsito pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Um dos projetos em conjunto entre Brasília e a Bozz Allen, pago com dinheiro nacional, foi batizado de Brasiliana e traçou os “Eixos Nacionais de Integração e Desenvolvimento”.

Apesar dessas relações carnais, como diria o argentino Carlos Menem, FHC veio a público, logo após os vazamentos, negar qualquer conhecimento a respeito da espionagem dos EUA. A respeito, o ex-presidente construiu uma daquelas frases consideradas brilhantes por seus admiradores: “Nunca soube de espionagem da CIA em meu governo, mesmo porque só poderia saber se ela fosse feita com o conhecimento do próprio governo, o que não foi o caso”. Em seguida, sugeriu à presidenta Dilma Rousseff tomar uma atitude. “Cabe ao governo brasileiro, apurada a denúncia, protestar formalmente pela invasão de soberania e impedir que a violação de direitos ocorra.”

FHC talvez tenha sofrido um lapso de memória. Ele mal iniciava seu segundo mandato quando CartaCapital publicou reportagens sobre a influência dos serviços de inteligência dos Estados Unidos na Polícia Federal. A DEA e a CIA financiavam atividades da PF: pagavam agentes, davam treinamento, pagavam hotéis, aluguéis de carros e até de imóveis utilizados pela força federal. Em troca, circulavam livremente pelo Brasil. Em uma reportagem de maio de 1999, Bob Fernandes, então redator-chefe desta revista, menciona os imóveis utilizados pela CIA de Norte a Sul do País. Eram 15, número bem próximo dos 16 revelados pelos documentos vazados por Snowden. No mesmo mês e ano, Fernandes registrou a seguinte declaração de James Derham, chefe da missão diplomática dos EUA, a respeito do teor da atuação norte-americana em território nacional. Derham não deixa margem para dúvidas: “O dinheiro é nosso, as regras são nossas”. A partir do governo Lula, o acordo deixou de funcionar, Tio Sam diminuiu a abrangência de suas atividades, mas, como denunciou Snowden e como comprovam os documentos oficiais do governo brasileiro, as atividades de espionagem não cessaram.

O envio de representantes do Brasil a Washington foi decidido durante uma reunião em 27 de julho entre Dilma Rousseff, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, e o chanceler Antonio Patriota. A ideia inicial era convidar autoridades americanas para virem ao Brasil, mas Patriota convenceu a presidenta de que o melhor era enviar um grupo à capital dos EUA. Segundo o chanceler, uma missão brasileira provocará mais impacto na comunidade internacional, principalmente entre os aliados europeus atingidos pela bisbilhotagem do império. É pouco provável, no entanto, que a visita a Washington renda mais do que uma explicação formal sobre o expediente denunciado por Snowden.

Há um mês, em um telefonema para Dilma, o vice-presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, deu poucas e mal formuladas explicações sobre o monitoramento e a espionagem de cidadãos e instituições brasileiras pela NSA. Lamentou a repercussão negativa do caso e fez o convite para a missão de Brasília visitar seu país.
Publicamente, o presidente Barack Obama argumentou tratar-se apenas de um programa de defesa da segurança interna, sem riscos à privacidade alheia. “Ninguém está ouvindo suas conversas”, declarou. Segundo o general Keith Alexander, chefe da NSA, o programa PRISM tem evitado dezenas de ataques terroristas aos EUA e criticou Snowden por danificar de modo “significante” e “irreversível” a segurança da nação.

A crise pegou o Palácio do Planalto de surpresa, em parte por culpa da estrutura herdada, primeiro por Lula, depois por Dilma, do Sistema Brasileiro de Inteligência, o Sisbin. O órgão central desse sistema, a Agência Brasileira de Inteligência, deveria cuidar de informar diretamente a Presidência da República sobre a movimentação de espiões estrangeiros no País. A Abin não tem, porém, acesso direto ao Planalto desde o governo FHC, quando foi criado o Gabinete de Segurança Institucional, estrutura militarizada comandada desde sua instalação, em 1999, por oficiais do Exército. O atual chefe do GSI é o general José Elito, ex-comandante das tropas brasileiras no Haiti.

A crise tem origem justamente na relação entre a Abin e o GSI, órgão que se transformou numa barreira para as relações entre a agência e a Presidência da República, e fez da agência uma instituição secundária, impedida de cumprir sua missão legal, a de assessorar o Planalto. Mais do que um filtro das informações produzidas pelos agentes secretos brasileiros, o GSI criou um problema de interação da Abin com a sociedade. Uma das primeiras medidas do general Elito ao assumir a função de ministro-chefe foi acabar com a área de comunicação social da agência, seção prevista no estatuto interno do órgão. Na prática, isso criou uma espécie de censura interna e impediu o atual diretor-geral da agência, Wilson Trezza, de estabelecer qualquer tipo de ligação com a mídia. Até notas oficiais são barradas. Por esse motivo, Trezza não atendeu aos pedidos de entrevista de CartaCapital. Sugeriu que a demanda fosse encaminhada ao GSI.

A revista enviou perguntas ao GSI. Obteve a seguinte resposta: até a conclusão dos trabalhos da missão brasileira enviada a Washington, o gabinete considera “não ser oportuna a realização da entrevista”.
A missão brasileira precede a visita de Dilma aos Estados Unidos em outubro. Em setores ligados ao governo cresce a sensação de que os americanos agem para fazer valer seus interesses, especialmente na ainda indefinida licitação dos caças. As Forças Armadas anunciaram poucos dias atrás a intenção de aposentar os Mirage a partir do fim deste ano. A compra de novos aviões de defesa foi adiada inúmeras vezes durante a administração de Lula, apesar de um acordo prévio fechado com os franceses.

Os caças F-18 são superiores às aeronaves concorrentes, mas os EUA têm restrições para a transferência de tecnologia, item até agora considerado fundamental pelo governo brasileiro no processo de compra. Não se sabe se Dilma manterá as diretrizes do antecessor ou mudará os critérios de escolha. Washington nutre esperanças de alterar a perspectiva de Brasília. Resta saber se as recentes revelações da espionagem de Tio Sam vão atrapalhar o lobby americano.

terça-feira, 29 de outubro de 2013

O que Marx e Keynes tem a dizer a 2014

O que Marx e Keynes tem a dizer a 2014

Quem considera indiferente a vitória de Dilma Rousseff, Eduardo Campos ou Aécio Neves em 2014 deve abrir os olhos à experiência da história.

por: Saul Leblon

Um congresso sobre marxismo numa Europa devastada pela recessão e o desemprego, fruto da austeridade pró-mercados, seria a última pauta do mundo para a grande mídia conservadora.

Esse é um dos motivos pelos quais é importante existir pluralismo informativo (ademais de condições estruturais e econômicas para que ele possa ser exercido).

Carta Maior decidiu cobrir o II Congresso Karl Marx, em Lisboa,  por considerar que o Brasil vive uma transição de ciclo de desenvolvimento  fortemente condicionada pelas determinações internacionais. E pelas escolhas históricas embutidas nesse divisor.

As condicionalidades precisam ser entendidas para que possam ser afrontadas ou ao menos mitigadas –e isso passa pela compreensão que a  análise marxista propicia sobre a natureza da  crise atual.

A maior crise do capitalismo desde 1929 marmoriza o debate sobre o  passo seguinte do desenvolvimento brasileiro  mais do que desconfiam, ou gostariam de admitir,  os protagonistas reconhecidos e pretensos  da disputa de 2014.

É com esses  olhos que devem ser lidos os vários despachos enviados pela correspondente em Lisboa, Cristina Portella.

Não se trata de transpor as condições europeias para a singularidade de nossa equação de desenvolvimento.

Mas o que aqui se apregoa como sendo um ‘novo’ caminho para o Brasil, como alardeiam os presidenciáveis Campos, Marina , Aécio, seus colunistas e o dispositivo emissor que os ancora, encontra preocupantes pontos de identidade com as políticas de ajuste que jogaram a Europa no moedor de carne analisado no II Congresso Karl Marx.

Da entrevista feita por Cristina com o economista português Francisco Louçã, por exemplo,  do Bloco de Esquerda, ou da conversa carregada de angústia com o filósofo grego Stathis Kouvelakis, dirigente do Syriza, a Coligação da Esquerda Radical (leia nesta pág), avultam advertências implícitas às receitas de arrocho redentor (contração expansiva, diz-se elegantemente) embutidas no discurso do conservadorismo brasileiro.

Seria essa a alternativa  ao que se acusa de  ‘intervencionismo de baixo crescimento’ do governo Dilma.

Um aumento brutal da exploração social. Nisso consiste o ajuste a mercado das economias europeias, achatadas em endividamento e déficits fiscais vitaminados pela própria mecânica do arrocho em curso.

“O  que a burguesia europeia pretende é a estabilidade de um regime que permita assegurar esse aumento da extração da mais-valia”, diz Louçã na entrevista a Carta Maior. “ A redução da taxa de lucro é respondida pela afirmação das políticas liberais (...) o aumento da dívida (pública)  e o aumento da exploração. E a dívida é uma forma de exploração, porque é uma garantia do valor dos salários que é pago no futuro sobre a forma de impostos”, diz Louçã.

As consequências políticas da supremacia da lógica financeira sobre os interesses da sociedade  são devastadoras, explica o dirigente do Syriza,  Stathis Kouvelakis.

Na Grécia, reduzida a um laboratório de ponta do arrocho neoliberal, todo o antigo sistema político se dissolveu na convulsão mercadista.

“Um pouco da forma como o velho sistema político boliviano ou venezuelano desapareceram depois do choque das reformas neoliberais”, diz ele.

A receita só se viabiliza, na verdade, com a concomitante desintegração do próprio aparelho de Estado, uma vez que se trata de erradicar a dimensão pública da economia.

A singularidade terminal do caso grego, segundo Kouvelakis, é que essa liquefação não se restringiu à esfera social e dos serviços. Sua virulência atingiu o próprio núcleo duro do Estado. “Incluindo o aparelho repressivo, o próprio Exército, que também foi atingido pela contração da atividade e os cortes orçamentais”, explica.

“Há uma atmosfera geral de que a autoridade do Estado já não se sustenta, e isto cria situações absolutamente explosivas na Grécia. E muito contraditórias’, desabafa  o dirigente do Syriza na entrevista a Carta Maior.

“Há uma radicalização política tanto na esquerda quanto na direita, e a ascensão pela primeira vez, no contexto da Europa ocidental, de um movimento fascista, com apoio real em certos setores da sociedade, e também com a capacidade de infiltrar-se em certos setores do Estado, e até da polícia, como vimos recentemente”.

A derrota do Syriza nas eleições de 2012, mesmo sendo por pequena margem de votos, teve um efeito desmobilizador dramático  na Grécia, facilitando a sangria conservadora.

Quem considera indiferente no Brasil a vitória de Dilma, Campos ou  Aécio deve abrir os olhos à experiência da história.

 ‘Os tempos são muito duros, porque foram implementadas as mesmas políticas, a sociedade está ainda mais traumatizada do que há um ano e meio, os fascistas tornaram-se a terceira força política;  existe uma corrida entre as alternativas progressistas, como a do Syriza, ou soluções extremamente perigosas e autoritárias, como as defendidas não só pelos fascistas, mas também por todo um setor do Estado e das forças políticas dominantes’, adverte Kouvelakis.

A tragédia grega exacerba uma marca do nosso tempo.

A mesma que perambula dissimuladamente como virtude no discurso conservador brasileiro. Às vezes fantasiada da leveza verde.

 Esse é um tempo em que a saúde dos mercados e a deriva da sociedade e do seu desenvolvimento  não são  realidades contraditórias.

Antes, exprimem uma racionalidade impossível de se combater sem uma intervenção política que enquadre os mercados e instrumentalize o Estado para agir nessa direção.

Sintomas dessa dualidade funcional podem ser pinçados nesse momento na Espanha, por exemplo.

A austeridade  jogou 26% da força de trabalho na rua (seis milhões de pessoas), mas os banqueiros saúdam ‘a recuperação’.
 
Despejos atingiram milhares de famílias espanholas, enquanto 750  mil imóveis novos encontram-se encalhados  e mais 500 mil inconclusos.

Segundo o jornal ‘El país’, especialistas discutem a conveniência de se demolir uma parte dessa ‘sobra’.

Para recuperar os preços do mercado imobiliário.

O absurdo foi implementado  nos EUA e na Irlanda. Com bons resultados, dizem os analistas de negócios.

O que parece ser exceção é a norma.

Corporações saudáveis, nações devastadas. Populações acuadas, ambientes asfixiados pela desigualdade, a violência e o desalento.

O que importa reter, das lições ecoadas no II Congresso Karl Marx,  é a tendência mais geral de um capitalismo que, deixado à própria sorte, mais que nunca vai operar em condições de baixa demanda efetiva e elevado desemprego.

Ou não será exatamente isso, deixa-lo à vontade para funcionar assim, o que tem pregado a agenda conservadora  no Brasil?

Duas em cada três manchetes do jornalismo econômico que a ecoa manifestam  irritação com o pleno emprego, com o fomento ‘desenvolvimentista do BNDES’, com as exigências de índice de nacionalidade nas encomendas do pré-sal, com a fórmula ‘inflacionária’ de reajuste do salário mínimo, com a baixa alocação de superávit fiscal aos rentistas   e a ‘gastança’ dos programas sociais.

Comandar socialmente o investimento, puxando-o pelas rédeas do Estado, como se inclina a fazer o governo, desde 2008, sem dúvida é uma dos antídotos ao arrocho que devasta a Europa e alguns querem trazer  ao Brasil.

Mas ser keynesiano em tempos de capital monopolista e desordem neoliberal tem um preço que o governo brasileiro hesita em pagar.

O keynesianismo em si  tornou-se  uma teoria desprovida de  conteúdo histórico.
A democracia precisa avançar sobre a supremacia dos mercados para abrir espaço de coerência à macroeconomia necessária ao fomento da  produção e da justiça social em nosso tempo.

Em outras palavras, o desenvolvimento que afronta a coagulação histórica do capital requer um projeto social  que o conduza.

Logo, um protagonista coletivo que o lidere.

Essa defasagem da democracia brasileira explica, em boa medida, o difícil parto do passo seguinte da história nesse momento.

Esgotada a fase alegre dos consensos, como é o caso, e o será cada vez mais, uma sugestão ao governo é de que aproveite a boa fase atual e se articule.

A disputa de 2014 pode ser uma oportunidade para recuperar o tempo perdido nesse quesito incontornável: erguer pontes de compromissos e políticas que harmonizem a democracia política com as tarefas sociais e econômicas de um novo ciclo de desenvolvimento.

A ver.

domingo, 27 de outubro de 2013

Filme sobre Yuriy Gagárin ganha legendas em português

CINEMA: Filme sobre Yuriy Gagárin ganha legendas em português

Por Cristiano Alves


"Gagarin, perviy v kosmose" revela um dos maiores feitos da humanidade, seu primeiro voo espacial

Há 52 anos atrás o cosmonauta soviético Yuriy Gagárin concluía um feito almejado pela humanidade há mais de 2000 anos, isto é, a chegada até o espaço. Gagárin era a prova viva de que era possível um ser humano manter-se consciente sem a presença da gravidade terrestre, avistando o nosso planeta Terra do espaço. Sua realização também demonstrava que um país governado por trabalhadores poderia chegar a um nível tecnológico superior ao dos países capitalistas. A história do herói comunista, entretanto, nem sempre foi conhecida por todos.
O filme "Gagárin, perviy v kosmose"(Gagárin, o primeiro no espaço) foi produzido por Oleg Kapanets. A decisão de produzi-lo surgiu quando este, que então trabalhava nos Estados Unidos, percebeu um nível intenso de ignorância dos americanos acerca do primeiro homem no espaço, segundo ele "fora da Rússia, pelo menos nos Estados Unidos, acredita-se que o primeiro homem enviado ao espaço foi um cidadão norte-americano. É muito triste as pessoas não saberem a verdade e, por isso, o nosso grande objetivo é restabelecer a verdade histórica, fazendo justiça e prestando as devidas homenagens a Yuri Gagarin, o autêntico pioneiro dos voos espaciais.”1
O filme sobre Gagárin levou mais de cinco anos para ficar pronto, tendo sido lançado no Dia do Cosmonauta, comemorado na Rússia no dia 12 de abril. Segundo Oleg Kapanets,  “a autorização concedida pela viúva e pelas filhas de Yuri Gagarin foi muito importante para nós, até porque, antes elas haviam vetado diversas outras propostas de realização de filmes sobre Yuri Gagarin. Discutimos com elas todo o roteiro e alguns fragmentos que havíamos filmado previamente. A família de Yuri Gagarin não queria nada de especial. A viúva e as filhas nos pediram apenas para não deturparmos os fatos e revelarmos a verdade sobre aquele voo. Toda a equipe de filmagens tinha o mesmo objetivo: ao invés de um ícone, queríamos mostrar um ser humano que sabia sonhar, pensar e amar. Assim, pode-se ver no filme um Yuri Gagarin rodeado de amigos e, ao mesmo tempo, como um verdadeiro vencedor.”2
O então major Gagárin e a Rainha Elizabeth II no Reino Unido, onde recebeu honrarias, inclusive de sindicatos de operários que visitou. Ele fez questão de cumprimentar, sob chuva, a multidão
O papel de Gagárin é representado por diferentes atores, uma vez que são retratados diferentes momentos de sua vida, inclusive os tenebrosos dias em que viveu em território ocupado pelos nazistas, tendo alguns de seus irmãos raptados pelo fascismo alemão. Durante a maior parte do filme, entretanto, ele é retratado pelo ator russo Yaroslav Jalnin, escolhido por sua semelhança com Yuriy Gagárin, a despeito de ser 4 polegadas mais alto que ele. Jalnin e outros atores do filme passaram pelos mesmos testes do programa espacial, inclusive a Centrífuga, onde Jalnin suportou apenas 4G, contra os 10G ao qual eram submetidos os cosmonautas.
Jalnin, em entrevista ao jornal Izvestiya, conta que foi escolhido em parte por causa de sua forma de ser, que lembrava a idiossincrasia do herói comunista. De fato, Yuriy Gagárin, como demonstrado em vários vídeos documentados, era um homem carismático, sorria constantemente, tinha um grande apreço por todos os povos e etnias, tendo inclusive estado no Brasil, onde recebeu do então presidente Jânio Quadros a mais alta honraria do país, a Ordem do Cruzeiro do Sul, e entregando ao presidente brasileiro uma mensagem de Nikita Hruschov; atos que enfureceram o público conservador do Brasil, o que seria ainda mais intensificado, semanas depois, com a entrega da mesma honraria a Ernesto Che Guevara, outro comunista igualmente famoso e carismático. A visita de Gagárin a São Paulo despertou uma grande mobilização popular para receber o herói soviético, lá ele provou a comida típica brasileira, o café brasileiro. Também visitou a cidade de Brasília, da qual teve boa impressão, mencionando que "pareceu ter chegado a outro planeta", por causa de sua arquitetura, projetada também por um comunista, o saudoso arquiteto Oscar Niemeyer. 

Dois dos mais famosos comunistas dos anos 60, o já coronel Yuri Gagárin e Che Guevara

Gagárin era tão bem preparado quanto os demais cosmonautas, também era membro do partido como os demais, todavia o seu carisma foi fundamental para a sua escolha, fato abordado no filme. Sendo o povo soviético descrito no resto do mundo como um povo "sisudo", "muito sério" e o próprio socialismo apresentado de forma vilanesca como um sistema de "bárbaros malvados e barbudos", o sorriso de Yuriy Gagárin conquistava a todos que o cercavam, inclusive seus inimigos, fazendo dele a escolha perfeita para se tornar mais famoso comunista soviético de seu tempo.
O filme retrata também as relações entre Gagárin e seus companheiros do programa espacial, especialmente Guermán Titov, o segundo homem no espaço, e Grigoriy(Grisha) Nelyubov, procurando mostrar mais o homem em si, com suas alegrias e tristezas, do que o "herói". Também são retratados os riscos do programa espacial ao qual Gagárin se submeteu, pois hoje se sabe que não havia garantia de seu retorno à Terra e mesmo de que o Dispositivo do Motor de Parada(DMP) funcionaria para reintroduzi-lo ao planeta. A família de Gagárin, sua esposa e suas duas filhas, também é retratada. Importantes personagens da época também não são deixados de lado, dentre os quais Sergey Korolyov, os políticos(especialmente Hruschov e Mikoyan) que enxergavam no feito uma boa peça de propaganda política, Nikolay Kamanin, um dos primeiros a receber o título e a medalha de Herói da União Soviética, além dos construtores do foguete e outros cosmonautas que mais tarde se eternizariam. É feita uma referência ao "camarada Levitan", isto é, Yuriy Levitan, famoso radialista soviético de origem judia que anunciou alguns dos mais importantes eventos da URSS, dentre os quais o início da Grande Guerra e seu fim.

Gagarin(Yaroslav Jalnin) e o construtor chefe S. Korolyov(Mihail Filippov)

O personagem Sergey Korolyov, o construtor-geral do foguete de Gagárin, demonstra um diretor preocupado com todos os aspectos do programa, aspecto fundamental para que tudo desse certo e não houvesse perdas humanas.
O filme retrata o drama vivido pelas esposas dos cosmonautas, que acreditavam que o voo espacial seria morte certa, destino que vitimou Vladimir Komarov, o primeiro a ir duas vezes ao espaço
"Gagarin, o primeiro no espaço"(tradução optada pelo autor deste artigo) é, além de um filme biográfico, uma perfeita refutação da ideia de que "no socialismo não existe competitividade", retratando bem o espírito de "emulação socialista" existente no grupo de cosmonautas. A emulação socialista, como bem colocado por Lenin, era um princípio socialista que substituía a "concorrência" do capitalismo. Ao passo que na última há um forte estímulo ao progresso através da competitividade, mas apenas um é beneficiado, na emulação socialista premia-se o primeiro, mas todos são beneficiados. É estranho ao socialismo a ideia de um "relaxamento generalizado" no trabalho. O filme também refuta a ideia de que o Estado não pode trazer nada de bom em termos de tecnologia, de que socialismo é atraso ou que num país onde os trabalhadores detém o poder nada de bom pode ser efetuado. Ele demonstra uma grande conquista num país que investiu pesado em educação, saúde e tecnologia, que na época de Stalin avançou 100 anos em 10, saindo do arado para entrar na era espacial.

Thomas Statford, astronauta americano, Elena Gagarina(filha de Yuri Gagarin) e Alexei Leonov, num encontro em homenagem aos 50 anos do primeiro homem no espaço, em Moscou

O filme sobre o cosmonauta soviético reúne muitos elementos que fazem valer a pena assisti-lo, longe de ser uma mera biografia, "Gagárin, o primeiro no espaço" é um filme sobre o direito de ser o primeiro, de ser o escolhido, ele também faz jus ao feito do primeiro cosmonauta, geralmente relegado a uns três ou quatro verbetes em livros de história com nítidas inclinações pró-americanas. É um filme para todas as idades, seguindo os padrões soviéticos de "filme sem palavrão", sendo sua classificação etária em 6 anos, recomendado para fãs de filmes sobre o espaço, para quem quer história ou bons efeitos especiais, para comunistas, saudosistas da URSS ou simplesmente para grupos em treinamento, uma vez que expõe a importância da preparação psicológica para ser o primeiro e o fardo da ganância e da soberba. Um filme para todas as idades, para todos os tempos, sucesso de crítica, seguindo outros dois grandes sucessos sobre heróis soviéticos, Legenda nº 17, sobre um herói do hockey soviético, e Vysotskiy, sobre o famoso bardo e músico soviético.

O filme russo sobre Gagárin não foi o primeiro sobre as conquistas espaciais soviéticas, ainda em 1959, uma famosa comédia chamada "O homem do Sputnik", que tinha no seu elenco Jô Soares, baseado no romance "O inspetor-geral", de Nikolay Gógol, dramatizou uma suposta queda do primeiro satélite artificial humano no Brasil, dando início a um jogo de espionagem para recuperar o artefato.
As legendas do filme Yuri Gagárin foram traduzidas direto do russo para o português pelo autor de A Página Vermelha, Cristiano Alves. Disponíveis no site "Opensubtitles".3


Trailer(legendado):





1- http://www.diariodarussia.com.br/cultura/noticias/2013/04/15/lancado-na-russia-o-filme-gagarin-o-pioneiro-do-espaco/
2- ibid.
3- http://www.opensubtitles.org/en/subtitles/5231887/gagarin-pervyy-v-kosmose-pb


*Se você gostou das legendas, não deixe de doar para o nosso Paypal: apaginavermelha@gmail.com

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Classes e luta de classes: feudalismo


Por Wladimir Pomar*

O processo de transformação do escravismo em feudalismo ocorreu de forma generalizada na Ásia, Oriente Médio e Europa, mas não nas Américas, África e Oceania. Nestes continentes, pelo menos até o início do século 16, sobreviviam povos ainda nos estágios históricos anteriores, como o comunista primitivo, o patriarcal e o escravista.
As civilizações asteca, maia e inca já eram escravistas. Mas ao norte, no atual Estados Unidos e Canadá, viviam tribos organizadas segundo o sistema matrilinear comunitário. O mesmo ocorria entre as tribos que habitavam a Amazônia e o atual litoral brasileiro, inclusive entre aquelas que já praticavam a agricultura de coivara. Na África competiam tribos vivendo no comunismo primitivo, como os bosquímanos, com outras que haviam ingressado no escravismo, como os reinos de Abissínia, Darfur, Kaffa e Hausa. Na Oceania, os polinésios também viviam no sistema matrilinear.
As transições conflituosas do escravismo para o feudalismo, nas regiões do Oriente e do Ocidente em que ocorreram, transformaram um sem número de escravos e homens livres em servos da gleba, ao invés de servos diretos dos senhores fundiários. Isto é, ao contrário dos clientes ou servos do patriarcado, os servos feudais eram camponeses livres para produzir seus meios de vida, sendo proprietários de seus meios de produção, com exceção da terra. Porém, por pertencerem à gleba, não podiam migrar para outras terras. Por outro lado, formalmente, os senhores feudais também não podiam expulsá-los da terra a que pertenciam, mesmo em caso de venda da gleba a outro senhor feudal.
Muitos plebeus livres e escravos aproveitaram-se da situação conflituosa, que retirou parte do poder dos proprietários fundiários, para se transformarem em lavradores ou criadores livres, assim como em artesãos. Criou-se uma economia agrária que tinha os camponeses como base principal do processo produtivo, introduzindo uma transformação qualitativa no caráter da classe trabalhadora de então.
Ao contrário do período escravista, os trabalhadores deixaram de ser propriedade de homens livres. Em termos econômicos e sociais vingou a liberdade formal dos trabalhadores agrícolas e dos artesãos em relação aos senhores feudais. Eles conquistaram o direito de propriedade sobre seus meios de produção. Mas os camponeses servos eram subordinados não só à terra, mas também às várias obrigações que deviam observar diante dos proprietários ou concessionários feudais.
Essas obrigações incluíam a entrega de parcela de sua produção, no início em espécie, tanto ao senhor feudal quanto ao monarca. Incluíam, ainda, a corveia. Isto é, a prestação de trabalho gratuito nas terras ou benfeitorias do senhor feudal, ou a participação nas hostes armadas do feudo e/ou do monarca. Em várias regiões do mundo, como na Escócia, por exemplo, as obrigações também incluíam outros itens, como o direito de pernada, que constrangia as camponesas a se entregarem ao senhor na primeira noite de seu casamento. Os camponeses e os artesãos, por outro lado, eram proibidos de casar-se com pessoas alheias à sua classe social.
Na China, as guerras de transição do escravismo para o feudalismo levaram à constituição de uma monarquia feudal centralizada no século 2 antes de nossa era. Mas isso não impediu que revoluções, guerras e divisões monárquicas se sucedessem por séculos. Na Europa feudal, resultante dos conflitos promovidos pela decadência do Império Romano e pelas invasões bárbaras, por volta dos séculos 7 a 10 de nossa era, emergiu uma miríade de reinos feudais. Estes também viveram às turras por vários outros séculos, antes de alguns se unificarem nas nações atuais. Algo idêntico ocorreu na Índia, Japão, Ásia Central e Oriente Médio.
A consolidação do feudalismo, após o longo período de destruições causadas pelas guerras de transição do escravismo, foi acompanhada da recuperação da agricultura e do artesanato, do surgimento de novas técnicas, e do crescimento da população. O comércio voltou a ocupar um papel importante na destinação dos excedentes agrícolas e da produção artesanal. O Estado feudal tinha em seu ápice o rei ou monarca por desígnio divino, proprietário de todas as terras, ou apenas o maior proprietário fundiário. Sua corte era constituída pela nobreza, seja senhores de feudos cedidos pelo rei, seja de senhores proprietários de feudos menores.
Olhando-se com atenção, o feudalismo constituiu uma formação social e política conflituosa, não apenas em sua origem, mas também em seu desenvolvimento. Suas classes sociais, a nobreza, o campesinato, os artesãos e os comerciantes, mantinham relações extra-econômicas entre si, permeadas por contradições e conflitos constantes.
Os nobres viviam em constante pé de guerra com a realeza e entre si, seja para apropriar-se totalmente da riqueza gerada pelo campesinato e pelo artesanato, seja para dominar novos territórios, seja ainda para tornar-se o proprietário fundiário mais poderoso e dominar o Estado feudal. O campesinato, por sua vez, vivia em confronto com os senhores feudais, principalmente pela voracidade destes em apropriar-se das terras dos camponeses livres, de parcelas maiores da produção de camponeses servos, exigir mais corveias do que o que estava instituído nas obrigações, e praticar toda sorte de arbitrariedades. Também se chocava com os comerciantes em relação aos preços dos produtos agrícolas, que vendia a eles, e aos preços dos produtos artesanais, que comprava.
Os artesãos trabalhavam sob regras rígidas, vendo-se constantemente pressionados pelos senhores feudais e pela realeza, ao mesmo tempo em que procuravam explorar os camponeses. As atividades dos comerciantes, por outro lado, dependiam de licença real e do direito de passagem através dos feudos. Ou seja, pagavam tributos tanto ao rei quanto aos senhores feudais, numa intensidade que os transformou paulatinamente numa classe em revolta, embora explorassem os camponeses e artesãos o máximo possível.
Embora no feudalismo, como no patriarcado e no escravismo, a mobilidade social de uma classe para outra fosse extremamente difícil, isso não impediu que a luta de classes se desenvolvesse e criasse situações em que membros das classes consideradas inferiores ascendessem a classes consideradas superiores. Tanto no Oriente quanto no Ocidente, a necessidade do Estado e a luta de classes abriram brechas para tal ascensão política, social e econômica. Exemplo disso foi Liu Ban, um camponês livre que, no século 2 antes de nossa era, comandou a revolta vitoriosa contra a monarquia Qin e, após também derrotar seus aliados feudais, tornou-se o primeiro imperador da dinastia Han.
De qualquer modo, essa mobilidade pouco tinha a ver com as contradições que estavam sendo gestadas nas entranhas das próprias sociedades feudais e iriam modificar seu curso histórico, transformando as classes sociais existentes em novas classes e dando surgimento a novas formações sociais.
*Wladimir Pomar é analista político e escritor.

Libertadores da América

Simón Rodríguez: plantador de uma nova América


“Professor é o que ensina a aprender e ajuda a compreender”
22/10/2013

Elaine Tavares

Findava o século 18 quando nesse continente dominado pela ocupação espanhola uma voz solitária propõe outra forma de educar as crianças, para além do simplesmente escrever o nome e soletrar algumas palavras. Era o jovem Simón Rodríguez, professor numa pequena escola da cidade de Caracas, Venezuela. Num documento que entra para a história, ele faz uma ácida crítica ao sistema educacional da época e expõe suas ideias. Segundo ele, o estado tinha de investir na formação de professores e a educação não podia mais ficar restrita aos jovens brancos bem nascidos. Era necessária uma educação popular capaz de formar meninos, meninas, negros e índios. Essa proposta, revolucionária para aquele então, o colocaria para fora da escola, mas começava aí a incrível trajetória desse educador sem igual na América Latina.

O começo
Simón Rodríguez nasce em Caracas no ano de 1771. Ele mesmo contava que fora um menino exposto, daqueles que são colocados nas portas dos conventos. Foi criado por Caetano e Rosália Rodríguez, embora sua educação estivesse a cargo do tio, que era sacerdote. Naqueles dias, a cidade de Caracas era um lugar aprazível, de grandes solares onde viviam os espanhóis e os criollos, servidos por escravos. Para essa sociedade, o trabalho era basicamente uma desonra e aos filhos da classe dominante se permitia unicamente a carreira militar além dos postos de mando da vida cotidiana. Havia apenas três estabelecimentos de educação na cidade: o convento dos Franciscanos, uma escola pública e a Universidade. Simón foi alfabetizado em casa, pelo tio, mas era um garoto aplicado e observador. Amava ler e devorou cada livro que encontrou na biblioteca do tio, que era bem servida. Na Caracas daqueles dias chegavam os franceses da ilustração (Montesquieu, Voltaire, Rousseau) e Simón os conhecia. Também tinha acesso aos escritos que chegavam dos Estados Unidos e acompanhou o processo de independência daquele país, bem como o da Revolução Francesa. Forjava-se nele o espírito da rebelião.
Em 1791, com apenas 20 anos, consegue o cargo de professor na escola pública e tem sob seu comando 114 alunos. Simón não tem experiência, mas observa que o ensino ministrado não tem um método e começa a matutar sobre essa deficiência. Amante de Rousseau, quer estabelecer outra relação com os alunos, mas fica prisioneiro das regras. Então, decide ensinar alguns dos alunos em sua própria casa, que gradativamente torna-se uma escola. A cidade olha curiosa para aquele garoto de aparência séria que dedica sua vida ao ensino. E é essa pequena “fama” que faz com que o tutor de Simón Bolívar peça ao educador que assuma a educação do garoto, então com nove anos. Começa aí a relação dos dois Simóns que mudará a face da colônia.
No começo Simón atende o garoto Bolívar na casa da família e passa a usar com ele as ideias de Rousseau. Uma educação ao ar livre, repleta de brincadeiras e exercícios físicos. O ensino das letras vai devagar. Com o passar do tempo, a família de Bolívar percebe que não há muito avanço e exige mais. Então, Simón propõe que o garoto fique na escola que mantém em sua casa, junto com os demais alunos. Já naqueles dias a escola de Simón era bem diferente. Recebia, além de filhos da aristocracia, crianças de famílias pobres, uma coisa praticamente inédita para a época. E lá se vai Bolívar estudar com negros e índios, além de dividir o quarto, coisa até então impensável para um herdeiro criollo. Há quem diga que foi aí que aquele que seria o “libertador” forjou seu amor pelas gentes da América. Mas, isso são especulações.
O certo é que Simón não se conformava em ver a educação das crianças colocada nas mãos de gente sem formação e sem método. Então se dispõe a registrar uma crítica avassaladora do sistema. Escreve o texto: “Reflexões sobre os defeitos que viciam a Escola de Primeiras Letras de Caracas e os meios para uma reforma por um novo estabelecimento”. Nele, o jovem professor arrasa com o sistema vigente, critica o fato de só ser oferecida educação às crianças brancas e aponta a necessidade de educar as crianças pobres, aos agricultores, aos artesãos. “O regime deve ser de igualdade”, diz. Mostra também que o sistema não se preocupa com a formação dos professores e insiste que esse deve ser o principal fator de mudança. Como proposta exige o aumento do número de escolas, capaz de atender todas as crianças em idade escolar, a formação de professores profissionais, salários dignos para os educadores, jornada de seis horas, móveis adequados para o ensino e finalizava exigindo que se tomasse a sério a escola de primeiras letras. “Uma escola até pode ser superficial, mas não inútil. O aluno não pode esquecer o que aprendeu. Há que ter cuidado e delicadeza para dar às crianças a primeira ideia de uma coisa”. Dizia isso porque havia a tradição de ensinarem até nas barbearias, enquanto afeitavam os clientes. Simón abominava isso. Defendia que como nessa idade a criança se distrai com qualquer coisa, era necessário um ambiente adequado e que o professor também prestasse atenção nas brincadeiras. “É necessário saber ler em todos os sentidos e dar a cada expressão o seu próprio valor”.
As reflexões de Simón não são bem vindas, nem na escola nem na administração. Ele se indigna e deixa o cargo, seguindo apenas com sua escola, em casa. Nesse meio tempo se engaja num movimento conspiratório pela independência que já existia em Caracas. O grupo é descoberto e Simón acaba fugindo para a Jamaica, visando escapar da justiça colonial. No dia do embarque recebe a visita de seu aluno, Bolívar, do qual se despede. Chegando à Jamaica Simón troca de nome, passa a chamar-se Samuel Robinson. Não quer nenhuma ligação com a vida antiga e jura nunca mais voltar à Venezuela. Pouco tempo depois vai para os estados Unidos onde fica por três anos trabalhando numa gráfica. Lá, ele aprende a editar e inventa uma nova forma de montar os textos, usando letras maiúsculas para destacar bem como criando manchetes.
Tem 30 anos (1801) quando embarca finalmente para a França. Lá abre escolas, ensina espanhol e inglês, lê como um louco e vai consolidando seu pensamento educativo. Três anos depois encontra, em Viena, seu antigo aluno, Bolívar, que passa a conviver com o mestre. Eles leem, estudam e viajam juntos. No ano de 1805 os dois seguem à pé até a Itália, aproveitando para discutir a realidade do mundo e da velha pátria colonizada. E é justamente no Monte Sacro que os dois fazem seu histórico juramento: libertar a pátria ou morrer. A partir daí, Bolívar retorna para a Venezuela, onde nos anos seguintes vai dar consequência a essa promessa. Simón segue no velho mundo criando escolas por todo o lugar onde passa: Itália, Alemanha, Prússia, Polônia e Rússia. O educador acompanha as façanhas de seu aluno na colônia e percebe que a vida por ali está prestes a sofrer uma grande transformação. Decide então, voltar para casa.

O retorno para a América
Simón tem 52 anos quando desembarca em Cartagena em 1823, disposto a dar todo o seu conhecimento para construir a Pátria Grande, liberta do jugo espanhol. Vinha honrar o juramento que fizera com Bolívar há quase 20 anos. As guerras de independência já estavam quase consolidadas. Bolívar era o grande libertador e comandava os destinos de toda a Gran Colômbia. Simón então viaja até Bogotá onde começa a pôr em prática a sua proposta pedagógica, amadurecida por longos anos de estudo e prática. Todos ali já sabem que ele é o grande mestre de Bolívar e todos os recursos são colocados à sua disposição para a criação da Casa de Indústria Pública, o que vem a ser o inovador método educativo de Simón. Nessa casa as crianças teriam ensino por tempo integral e além de estudarem as matérias clássicas aprenderiam também um ofício, aprendendo artes mecânicas. Seu foco eram as crianças mais pobres, que precisariam enfrentar o mundo que nascia com uma formação adequada. O educador entendia que o que estava nascendo era uma forma nova de ser nação e por conta disso era necessária também uma nova educação. “Formar o povo deve ser a única ocupação dos que se ligam a uma causa social”, dizia e, para ele, as novas repúblicas eram essa causa social.
Toda a sua linha de agir pedagógico já tinha sido eternizada num escrito chamado: “Sociedades Americanas”, que ele só conseguirá editar em 1828. Nele, Simón defendia que o aluno dessa nova forma de ser nação tinha de ser um sujeito pensante. “O que pensa, procede segundo sua consciência. O que não pensa, só imita”. Sua preocupação não era formar letrados e sim cidadãos, pessoas capazes de compreenderem seu espaço geográfico e político. Por isso insistia que em vez de papagaiar sobre os persas e os egípcios era necessário entender os índios. Simón queria tomar para si a tarefa de educar os jovens pobres que estavam pelas ruas, os abandonados, os ilegítimos, fazendo com eles se tornassem homens cientes de seus direitos na nova sociedade. “Deixemos a França e vejamos a América”, bradava. Sua proposta era de educação popular para que todos pudessem viver sem amos. “Na educação popular o filho do sapateiro se educa como o filho de um negociante. Ambos aprendem a faculdade do pensar. A instrução é para o espírito assim como o pão é para o corpo”. Simón tinha plena certeza de que se todos fossem instruídos, os ignorantes de então poderiam vira a ser conselheiros e os ladrões, companheiros de viagem. Certo de que a ignorância era a causa de todos os males, seu remédio era a educação. “A América é original, original hão de ser suas instituições e seus governos, e originais os meios de fundar um e outro. Ou inventamos ou erramos”.
Simón Rodriguez não podia conceber que a nova nação se erguesse sob bases antigas, sob imitações da Europa. Queria saídas originais e sabia que isso era possível. Queria homens e mulheres capazes de gerir sua própria história sem precisar de heróis ou mitos. Um homem que pensa é um homem livre, afirmava. E, para isso, era preciso investir tudo na formação de professores. Depois, com eles, criar as condições para que o ensino fosse um fazer-se compreender e não o velho estilo de trabalhar a memória. A proposta era formar homens úteis à República. Também insistia que era necessário educar e ensinar as mulheres “para que elas não se prostituíssem por necessidade, nem buscassem o casamento para garantir sobrevivência”. Toda a base de sua pedagogia era mesclar o ensino social, corporal e científico. “O fundamento do sistema republicano está na opinião do povo. Ninguém faz bem o que não sabe, então não se pode fazer uma república com gente ignorante”.
Seu conceito original de escola, a escola social, é o que ele tenta pôr em prática na Colômbia, mas não encontra eco. Ele queria formar pessoas que atendessem a uma autoridade social e não pessoal. Foi o precursor da Escola de Artes e Ofícios, da Universidade Popular. Na época, comandava a Colômbia aquele que viria a trair toda a proposta de Bolívar: Santander. E obviamente esse tipo de ensino não lhe era favorável.

De novo com Bolívar
Quando Simón finalmente encontra Bolívar, depois de mais de ano de sua chegada, decide que não é mais possível ficar na Colômbia e segue com seu antigo aluno rumo ao Peru. Bolívar quer que o velho mestre se incorpore ao esforço de construir a grande pátria americana e não mede esforços nem recursos para que ele consiga colocar em prática suas ideias educativas. Simón segue então para a cidade de Cuzco onde cria um colégio já dentro do seu padrão: para crianças pobres, com ensino de ciências, arte e trabalho. Para isso usa os espaços e o dinheiro das congregações religiosas, o que também já coloca uma boa parte do clero contra ele. Mas, como está com Bolíviar, tudo vai se fazendo conforme as regras ditadas por Simón. Em várias cidades peruanas surgem colégios desse tipo. Logo em seguida eles partem para a Bolívia aonde vão se encontrar com Sucre. Na cidade de La Paz Simón estrutura uma biblioteca e Bolívar decide nomear o professor para comandar todo o processo de Educação no nascente país. Assim, no ano de 1825, Simón é nomeado Diretor de Ensino e prepara um Plano Educativo para o governo de Sucre. Entendia ele que o primeiro dever de um governo é dar educação ao povo e, assim, monta uma proposta semelhante a que tinha tentado trabalhar na Colômbia: uma escola social. Para isso buscou recolher todos os órfãos que andavam vagando pelas ruas e os colocou em ambiente adequado para o ensino das artes, da ciência e do ofício. Também procurou acolher as meninas, as quais acreditava mereceriam também receber educação. Da mesma forma que no Peru, também usou propriedades da igreja.
Bolívar segue seu caminho e deixa Simón na Bolívia. Sem a proteção do libertador, Simón vai perdendo apoio no seu projeto. As autoridades locais, os padres e até mesmo Sucre não conseguem entender os métodos de caraquenho. É que ele insistia em proporcionar aos alunos aquilo que havia de melhor. Os melhores móveis, as melhores máquinas para o trabalho, os melhores professores. Tudo isso custava dinheiro e, no meio da guerra, os que estavam no comando acreditavam que havia coisas mais urgentes para investir. Seis meses depois de estar no cargo de Diretor Geral, ele sai de Chuquisaca e vai para Cochabamba criar mais uma escola. Aproveitando a ausência, o prefeito da cidade fecha a sua Escola Modelo que abrigava mais de 200 crianças. “Essa é uma escola para cholas e filhos de putas”, dizia o prefeito, e pregava a necessidade de ter uma escola apenas para “gente decente”. Intrigado com os padres que não queriam ver os bens da igreja sendo dispensados aos garotos pobres e aos índios, Simón vai sendo derrotado. Até mesmo Sucre o repreende pelo alto valor dos gastos e Simón se sente insultado. Então, renuncia ao cargo e sai da Bolívia. “Por querer ensinar mais do que todos sabem, não me entenderam, muitos me depreciaram, e alguns me ofenderam. Entretanto, para fazer republicanos é preciso gente nova”.
Derrotado na Bolívia ele volta ao Peru, vai para a cidade de Arequipa onde escreve seu livro “Sobre o Projeto Popular” que é a sistematização das experiências que ele havia dado início na Colômbia e na Bolívia. Ali orienta, mais uma vez, o ensino da ciência, das letras e de ofício, defende a educação das meninas, dos índios e dos pobres. “Todos devem ser bem alojados, bem vestidos e alimentados”. Sua proposta era de educação integral. Além disso, preocupava-se com a situação dos pais das crianças. Acreditava que era preciso garantir trabalho a eles, e socorro se fossem inválidos. “Há que formar homens úteis, dar-lhes terras e auxiliar nos seus negócios”. Não é sem razão que o método de Simón é visto como assustador pelos novos dirigentes criollos. Sua proposta educativa era também uma revolução social e econômica.

Educação colonizada
Naqueles dias em que a independência se consolidava não eram poucos os educadores europeus que vinham oferecer seus serviços a Bolívar e aos outros dirigentes das repúblicas. Um deles foi Lancaster. Seu método aparecia como muito mais interessante para os novos governadores porque era bem mais barato do que o de Simón. Lancaster propunha que os alunos mais adiantados fossem os professores dos menores, o que para Simón era uma vilania. Afinal, o pilar de sustentação do seu método era justamente a formação dos professores, a qualificação dos mesmos. “Instruir não é educar, nem instrução pode ser equivalente à educação, ainda que instruindo se eduque”, dizia, mostrando que aluno não podia educar aluno. Acreditava que na primeira escola as crianças, mais do que aprender a pintar as palavras, precisavam aprender a pensar e a raciocinar. E isso era tarefa para gente capacitada a educar. Simón trabalha com uma pedagogia prática: expõe como ensinar lógica, o idioma, o cálculo, a história, sempre por princípios e “como os princípios estão nas coisas, se ensinará a pensar”. Esse era seu mantra. “Ler não será estropear palavras para ganhar tempo, mas sim dar sentido aos conceitos. Assim, quem não entende o que está lendo, não deve ler”. E assim esgrimia sua crítica ao método lancasteriano. “O que pode ler aquele que não tem ideias?” Simón acreditava que ensinar mal era um crime que se cometia contra aqueles que deveriam ser os novos dirigentes na nova América.

Morre Bolívar
O ano de 1830 é particularmente triste para todo o continente sul-americano. A proposta de Bolívar de criar uma grande pátria, compostas por províncias interdependentes, fracassa. Traído pelos velhos companheiros, doente, Bolívar vê seu sonho desmoronar como um castelo de cartas. Certos de que a enfermidade vencerá o libertador, os novos dirigentes vão dando fim a qualquer rastro da Pátria Grande idealizada por ele. Sucre, que seria o braço direito do libertador e seu natural sucessor, é assassinado em uma emboscada. Pouco depois, Bolívar morre, abandonado e degredado. Para Simón, tudo aquilo também significaria a derrota de seu projeto de educação. Sem seu velho amigo e marcado como um dos homens de Bolívar, Simón terá seu caminho sistematicamente travado a partir daí.
Abandona Arequipa e segue para Lima, onde recomeça a dar aulas. Mas, não consegue avançar no seu método. As famílias “de bem” o chamam de louco e imoral, porque ele insiste em educar as meninas e os índios. Ainda assim, insiste na crítica à educação da época, escrevendo num jornal local: “Para ser uma república há que se investir em educação popular. Com homens já formados só se pode fazer o que se faz hoje: desacreditar a causa social”.
Simón permanece em Lima até o ano de 1834, quando completa 60 anos. Recebe o convite de um amigo para ir ao Chile ser reitor de um Colégio Provincial. Apesar de todos os ataques que sofre, ainda restam muitos seguidores de Bolívar, muitos homens dispostos a dar outra cara para as repúblicas nascentes e é aí que ele se ampara. Che ao Chile e prefere dirigir uma pequena escola, onde seu método pode vingar. Lá, ele ensina a partir de quatro quadros, que desenha na lousa. O primeiro era o fisionômico, no qual repassava as noções acerca das matérias e dos ofícios. O segundo era o fisiográfico, no qual repassava o conhecimento mais aprofundado sobre os temas. O terceiro era o fisiológico, no qual ensinava as ciências e o quarto era o econômico, no qual ensinava filosofia. Sua maneira de ensinar era expositiva. Não usava textos, apenas os quadros sinópticos, sempre apontando explicações que estivessem ao alcance dos alunos. “Encontrem vocês as suas ideias, para fixa-las e retê-las na memória. Procurem armazenar as ideias e se perguntem sobre o que fazer”.

Um homem sem raiz
Quando tudo parecia caminhar bem, alguma coisa acontecia e obrigava o velho educador a se mover. Era como se ele fosse predestinado a não encontrar guarida. Um ano depois de estar no Chile, um grande terremoto destrói a escola e faz com que Simón mude-se outra vez. Segue agora para Santiago onde abre uma escola e uma fábrica de velas, para dar aos alunos a possibilidade de aprender um ofício. Continua tentando imprimir uma educação transformadora, ainda acredita na possibilidade de um mundo novo. “A educação pública no século XIX pede muita filosofia. O interesse geral está chamando por uma reforma e a América está chamada pelas circunstâncias para empreendê-la. A América não deve imitar servilmente e sim ser original. Ideia, ideias, primeiro que letras”.
Naqueles dias, apesar de todos os infortúnios, Simón era muito procurado por educadores de todo o mundo. Vinha gente da Europa para conhecê-lo e aprender seu método. Mas, na América mesmo, sua voz era como pérolas aos porcos. Tanto que as escolas que criava acabam se fechando por falta de recursos. Não havia quem bancasse. E os que bancavam exigiam mudanças, queriam baixar os custos. Simón não aceitava. Foi o que se passou em Valparaíso, onde foi também obrigado a desistir da escola, embora seguisse com a fábrica de velas. Com sua fina ironia, dizia: “A liberdade me é mais querida que o bem estar. Vou continuar iluminando a América, sigo fazendo velas”.
A experiência chilena logo se desfaz e Simón volta para Lima onde permanece até o ano de 1843. Lá, aproveita o tempo para escrever seus livros. Tem 72 anos quando desde o Equador, um velho amigo o chama para ensinar na cidade de Latagunga. Atravessa os Andes no lombo de uma mula, mas não fica por lá muito tempo, em função da instabilidade política. O chamam da Venezuela, mas ele se nega a voltar. Segue então para a Colômbia outra vez. Apesar da idade, está forte e continua abrindo escolas por onde passa. Quando completa 80 anos de vida retorna para o Equador onde permanece por três anos ainda ensinando no Colégio São Vicente.
No final do ano de 1853 decide voltar para o Peru com o filho José e um amigo. Leva com ele tudo o que tem. Uma muda de roupa e duas caixas de livros. Sem recursos, eles decidem ir por mar, numa balsa. O mar encapelado, tempestades e eles se perdem. Quase naufragam. Acabam batendo numa pequena comunidade de pescadores. Simón está muito fraco e tem problemas de intestino. Os pescadores temem que seja doença contagiosa e expulsam os viajantes. O amigo vai até a aldeia, buscar ajuda junto ao padre. Explica quem é Simón, sua situação e o padre decide ajudar. Mas, depois, informado de quem era Simón, chamado de louco e imoral, não deixa que o velho venha para a aldeia. O confina numa propriedade fora do povoado. Simón vai definhando. Apenas uma caridosa mulher leva comida, apesar de ter sido proibida. Dois dias antes de morrer, manda chamar o padre. Ele vai, achando que o velho vai se confessar. Não o faz. Segundo o amigo, Camilo Gomez, ele apenas disserta uma arenga materialista e diz que a única religião que teve na vida foi o juramento que fez, junto com Bolívar, no Monte Sacro, de libertar a América. No dia seguinte, morreu. Foram 83 anos de caminhada pelo mundo, incompreendido, amaldiçoado. Mas nunca traiu seus princípios.

O legado
Simón foi, em tudo, um homem original. Casou-se cedo, teve um filho, mas não viveu para ser um pai de família tradicional. Seu destino era o de ser um plantador de escolas por todo o lugar onde passou. E não foram poucos. Saiu da Venezuela, por conspirador, e nunca mais voltou. Mas nunca deixou de mandar dinheiro para a esposa, apesar de nunca mais vê-la. Forjou seu pensamento acerca de educação na crítica sistemática e seu maior legado foi ter pensado a América desde a América. Não foi capaz de se oportunizar das novas possibilidades do mundo novo que se abria. Insistiu no seu método de ensinar a pensar os meninos, as meninas, os negros e os índios, a quem chamada de “os donos do país”. Queria formar gente capaz de ser sujeito de sua própria vida. “Dos brancos não espere nada. Mais vale entender os índios que a Ovídio”. Acreditava que a escola devia ser um lugar de acolhimento, com espaço para a educação e a brincadeira, tirando as crianças da rua. Queria seres pensantes: “Que aprendam as crianças a serem perguntadoras, para que pedindo o porquê se acostumem a obedecer a razão, não à autoridade como os limitados, nem aos costumes como os estúpidos”.
Simón também ensinava a partir da realidade local, da observação da realidade da criança. “Se ensinamos ciências exatas e de observação, os jovens aprenderão a apreciar o que pisam”. Ministrava uma educação social, não individual. Propunha-se a tirar o pobre da ignorância. “O homem não é ignorante porque é pobre, senão o contrário. Ensinem e terão quem saiba, eduquem, e terão quem faça. A América não deve imitar servilmente, deve ser original”.
Aquele que forjou Bolívar par a libertação tinha tanto amor pela educação que, apesar de toda a sisudez, foi capaz de produzir poesia. “Ler é ressuscitar ideias sepultadas no papel. Cada palavra é um epitáfio. Chamá-las à vida é uma espécie de milagre e, para fazê-lo, é necessário conhecer o espírito das palavras”. Tratado como louco ele ficou esquecido por longo tempo. Agora, tal qual as palavras que amava, ele também ressuscita, para assumir seu lugar no panteão dos grandes sábios dessa Abya Yala.
Simón Rodriguez, Samuel Robinson, presente!

Referências
Obras completas de Simón Rodríguez – Tomos I e II. Presidencia de la República. Venezuela, 1999

Elaine Tavares é jornalista.