sábado, 25 de janeiro de 2014

‘Amistad’: O navio negreiro, porão do liberalismo


‘Amistad’: O navio negreiro, porão do liberalismo



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‘Amistad’: O navio negreiro, porão do liberalismo

Flávio Ricardo Vassoler*no GELEDES

O navio negreiro singra através do Atlântico. Em seu porão, os cativos mal conseguem se esgueirar. A fome e as correntes os paralisam. Em meados do século XIX, a Inglaterra, polícia dos mares, havia decretado a proibição do tráfico de escravos. A mãe da Revolução Industrial queria o implemento do livre comércio e do trabalho assalariado para que suas manufaturas pudessem colonizar o mundo de um modo menos bárbaro – os feitores dão lugar aos industriais e financistas. Só faltou avisar aos ingleses que seu vastíssimo império colonial, ao longo de cujo horizonte o sol não se punha, tamanha a sua extensão de oeste a leste do planeta, não poderia participar dos primórdios do liberalismo em pé de igualdade com os gentlemen de Londres. Mas se, como quer Adam Smith, a mão invisível conduz as relações de mercado a um bom termo de equilíbrio, a vista grossa permite que o livre comércio seja forjado sobre o dorso cativo da África. 

A ironia, ou pior, o cinismo que movimenta a história humana batiza o navio negreiro com o fraterno nome de ‘Amistad’ (1997), filme dirigido por Steven Spielberg. Os escravos, a quem a ideologia reacionária chama de passivos e resignados, se rebelam no porão infecto. Sangue europeu começa a jorrar. Logo os espanhóis que comandam o barco viram reféns. Os cativos libertos por seu próprio destemor querem voltar para casa. Mas eles não conhecem as técnicas náuticas e precisam confiar nos antigos algozes para que o navio retorne. Ora, os espanhóis dolosos conduzem o Amistad rumo aos Estados Unidos escravocratas. A rebelião negra logo será julgada por magistrados brancos. 

As queixas e contradições se sobrepõem. A rainha da Espanha sentencia que os escravos lhe pertencem. Os comandantes espanhóis dizem que os cativos haviam nascido em Cuba, colônia espanhola, e que, por isso, “nós não estamos exercendo a prática ilegal do tráfico negreiro. Assim, os escravos nos pertencem”. Os marinheiros norte-americanos, por sua vez, declaram que foram eles que identificaram o barco – “navio negreiro, sem dúvida” – e que, por isso, “somos os novos proprietários da mercadoria humana”. Os mais interessados na questão não podem se pronunciar. Os escravos assistem ainda uma vez acorrentados à deliberação alheia de seu próprio destino. 

O contexto histórico em que a disputa judicial se dá não poderia ser mais explosivo. O judiciário se vê premido pelas demandas do executivo, uma vez que o presidente procura manobrar a questão para evitar um recrudescimento das rivalidades entre o norte industrial e o sul escravista. O espectro da guerra civil ameaça cindir os Estados Unidos. 

− Mas esses negros devem ser punidos, eles chacinaram os brancos que os conduziam para Cuba, onde está a justiça neste país?! – berra o promotor que bem poderia iniciar um abaixo-assinado (extra)oficial para a formação da futura Klu Klux Klan. 

Além do ódio pelos sequestradores que lhes transformaram de homens livres em escravos, que mais teria insuflado o ímpeto de vingança dos cativos contra seus algozes? 

A armada inglesa, polícia dos mares, prendia os traficantes de escravos Atlântico afora. Quando os espanhóis se deram conta de que as tropas da rainha Vitória se acercavam do navio, um velho expediente foi utilizado para que o fardo humano transportado pelo Amistad não ultrapassasse os limites legais para o enquadramento da carga como um contingente de escravos. Entre os 100 africanos, 50 são escolhidos – seleção eugênica que aguilhoa sobretudo mulheres e crianças, os menos aptos para o trabalho na lavoura. (Os nazistas, parentes não tão distantes dos escravocratas, herdariam dos ancestrais o ímpeto pela seleção natural historicamente configurada.) Os 50 mais fortes devem se postar como plateia para aprender in loco a pedagogia do pelourinho. Os escolhidos são acorrentados uns aos outros. Uma rede repleta de pedras pesadíssimas puxará o comboio humano oceano abaixo. Quando o algoz espanhol abre um compartimento do convés e arremessa a rede repleta de pedra contra o mar, um a um os escravos são afogados. (Enquanto os fazendeiros sulistas dormem o sono dos justos e contam carneirinhos tão brancos quanto o algodão colhido por seus escravos, os africanos sobreviventes contam, uma a uma, as 50 ovelhas negras afogadas como bodes expiatórios.) Reiteremos, agora, a acusação (aos berros) do promotor de justiça: 

− Esses negros devem ser punidos, eles chacinaram os brancos que os conduziam para Cuba, onde está a justiça neste país?! 

Quando a senzala incinera a casa grande e transforma o Mississippi em chamas, apenas ocorre a devolução da nota promissória que sequer foi entregue àqueles condenados a trabalhar gratuita e compulsoriamente. 

Mas eis que o liberalismo dos fundadores dos Estados Unidos da América agora se expressa na figura do ilustre John Quincy Adams, sexto presidente dos Estados Unidos e filho do também presidente John Adams. Adams Jr. vem à tona como advogado de defesa dos cativos da Amistad espanhola. Em suas mãos, há um artigo de um político sulista que procura legitimar a escravidão. O ex-presidente dos EUA, como Sócrates, narra a cadeia de argumentos contrários antes de refutá-la cabalmente: 

− Diz o sulista em questão que a escravidão não é contrária à natureza humana, pois para onde quer que olhemos, seja para a história mundana, seja para os textos bíblicos, encontraremos exemplos que atestam que sempre houve subordinação entre os homens – líderes e liderados, senhores e escravos. Hierarquia. Assim, a escravidão não é pecaminosa ou má, mas a corroboração da tradição histórica, sua mais coerente expressão. 

John Quincy Adams, rematado orador, cala as palavras por um sutil lapso de tempo para que os jurados e os espectadores se preparem para – e anseiem por – sua contraposição:

− No entanto, o político sulista agora não mais em questão, mas em xeque, não consegue explicar por que os homens só fazem se rebelar quando se veem privados de sua propriedade mais natural, qual seja, a liberdade. Do contrário, não haveria choro, ranger de dentes, fúria e revolta diante dos feitores. Os homens aceitariam o quinhão do cativeiro de bom grado. Mas a experiência – o mesmo transcurso histórico advogado pelo sulista escravocrata – me autoriza a dizer que o homem vem da liberdade e para ela sempre propende. Tudo o mais é fruto da tirania e do arbítrio que pretende transformar a lógica de uns poucos no cárcere de quase todos. 

Hollywood e suas pesquisas de mercado – essenciais para transformar filmes em demandas artísticas que ratifiquem em termos de bilheteria os investimentos milionários – gostam da grandiloquência que leva o público às lágrimas. A realidade ficcional realiza a justiça para que a realidade histórica permaneça e se reproduza tal como está. Que dizer sobre o liberalismo de John Quincy Adams quando sabemos que o ex-presidente foi um dos principais idealizadores da Doutrina Monroe? Assim falou o presidente James Monroe: “Julgarmos propícia esta ocasião para afirmar, como um princípio que afeta os direitos e os interesses dos Estados Unidos, que os continentes americanos, em virtude da condição livre e independente que adquiriram e conservam, não podem mais ser considerados, no futuro, como suscetíveis de colonização por nenhuma potência européia”. O México, a América Central e a América do Sul bem sabem que a polícia do continente deixou de ser europeia para se tornar estanunidense. A América para os americanos – do norte. Mas, a despeito do entretenimento administrado de Hollywood, o liberalismo abolicionista foi o primeiro aríete para a luta pelos direitos civis nos EUA sobretudo após a Segunda Guerra Mundial. O judeu Steven Spielberg bem sabe que a lógica do navio negreiro escreveu o prefácio histórico para as câmaras de gás de Auschwitz, Dachau e Treblinka. Nesse sentido, ‘Amistad’ não nos traz apenas a cínica contiguidade entre a amizade e a escravidão, mas insufla ar redivivo para pensarmos, narrativamente, sobre feridas históricas que nossos tempos ainda não conseguiram cicatrizar. 


*Flávio Ricardo Vassoler é escritor e professor universitário. Mestre e doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, é autor de O Evangelho segundo Talião (Editora nVersos) e organizador de Dostoiévski e Bergman: o niilismo da modernidade (Editora Intermeios). Periodicamente, atualiza o Subsolo das Memórias, www.subsolodasmemorias.blogspot.com, página em que posta fragmentos de seus textos literários e fotonarrativas de suas viagens pelo mundo. 


Fonte: Carta Maior

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

A atualidade de uma marxista rebelde


A atualidade de uma marxista rebelde


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Como Rosa Luxemburgo, morta há 95 anos, ajuda a reinventar, em tempos de crise do capitalismo, o pensamento de Marx 
Entrevista de Isabel Loureiro | Imagem: Rolando Astarita
(Publicado originalmente em 19/3/13. Atualizado em 15/1/14)
Há cinco anos, surgiu e cresce, em paralelo a uma crise do capitalismo duradoura e de final imprevisível, um movimento intelectual surpreendente: a reabilitação das ideias de Karl Marx. O filósofo alemão, que muitos desprezaram após a queda do Muro de Berlim, está de volta. Seus livros são republicados em todo o mundo, com tiragens e repercussão expressivas. Não raro, sua importância e contemporaneidade são reconhecidas até mesmo por publicações conservadoras e por consultores ilustres das grandes finanças globais.
Num 15 de janeiro como hoje, era assassinada, em Berlim, uma pensadora e militante que se apaixonou pelo marxismo muito jovem, viveu intensamente sob sua influência e contribuiu para enriquecê-lo – mas foi esquecida, no século 20, tanto pelo socialismo soviético quanto pelas correntes hegemônicas entre a esquerda. Estamos falando de Rosa Luxemburgo.
Talvez esta polonesa judia, que se tornou líder da Revolução Alemã de 1918 (1 2 3) seja importante hoje exatamente pelos motivos que a fizeram maldita no passado. É o que pensa a filósofa Isabel Loureiro, principal estudiosa da obra de Rosa no Brasil, autora de diversos livros sobre a líder da Revolução Alemã de 1918 e organizadora de uma vasta coletânea sobre sua obra, em três volumes (1 2 3), 
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A primeira particularidade de Rosa, avalia Isabel, é ponto de vista extremamente sofisticado sobre Revolução, Reformas e Poder. Rosa enxergava a importância (e a beleza…) das revoluções — as mudanças inesperadas, os grandes movimentos da História em que as maiorias desafiam o automatismo enfadonho das relações sociais e viram a mesa. Mas via estes momentos como a abertura de um longo processo de mudanças, não como mera oportunidade para instalar novos grupos no poder de Estado.
Disso derivava seu grande empenho em construir formas avançadas de democracia. Para transformar a vida, pensava ela, as sociedades precisavam enxergá-la; deviam superar a alienação, a repetição quase inconsciente de relações consolidadas ao longo do tempo. Esta lenta conquista de autonomia exige, é claro, abertura ao debate, à crítica e à polêmica. Por isso, Rosa, embora aliada a Lênin na luta contra o amortecimento e burocratização do marxismo, no início do século 20, divergiu abertamente das tendências centralizadoras do revolucionário russo. Em consequência, “foi posta no índex dos partidos comunistas”, diz Isabel Loureiro.
Mas esta combinação de rebeldia contra o capitalismo e desejo de valorizar a autonomia não fará de Rosa uma autora a ser estudada com atenção especial em nossos dias? Sua obra não será, de certa forma, um convite a rever a obra de Marx e reinventar seus sentidos? Isabel pensa que sim. Na entrevista abaixo, ela, que dedicou um dos três volumes da coletânea de Rosa à correspondência trocada com amigos e amantes, frisa: “Pelas cartas, podemos acompanhar seu doloroso processo de amadurecimento, conflitos amorosos, desejo de ser feliz, suas reclamações de como a vida política era desumana, seu grande amor à natureza e suas reflexões sobre arte”.(A.M.)
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Isabel Loureiro: “Rosa tem uma concepção aberta do marxismo. Para ela, Marx não era uma Bíblia com verdades prontas e imutáveis, mas manancial que permite levar adiante trabalho de compreensão do mundo contemporâneo”
Pouco mais de um ano depois de lançar uma coletânea de três volumes sobre a obra de Rosa Luxemburgo, você organizou, em 2013, um seminário de três meses sobre o tema. Em que Rosa e sua visão particular do marxismo podem ajudar os novos movimentos que questionam o capitalismo no século 21?
Essa foi precisamente a pergunta que me fiz quando comecei a preparar o seminário. Por que, quase cem anos depois de seu assassinato, voltar a discutir as ideias de uma revolucionária marxista clássica, formada na cultura humanista europeia do século 19, cujo mundo desmoronou com a Primeira Guerra Mundial? A resposta não é evidente. Por que sua interpretação de Marx ainda hoje é atual? Para começar, Rosa tem uma concepção aberta do marxismo. No seu entender a teoria de Marx não era uma Bíblia com verdades prontas e imutáveis que os fieis tinham que seguir sem questionar, mas um manancial inesgotável que permite levar adiante o trabalho de compreensão do mundo contemporâneo.
Por isso mesmo, ela nunca hesitou em criticar as vacas sagradas do marxismo europeu, como Bernstein e Kautsky, e nem sequer o próprio Marx. Essa independência intelectual é, para os marxistas – que infelizmente têm uma tendência ao dogmatismo e à ossificação – uma indicação de que precisam continuar pesquisando e criando conceitos que permitam dar conta da nova fase da acumulação do capital e da nova situação em que se encontram as forças sociais. Além disso, Rosa acrescenta à teoria de Marx algo original, propriamente seu: a ideia de que as transformações sociais são fruto da ação autônoma das massas populares que, na luta quotidiana pela ampliação de direitos e, sobretudo, na luta revolucionária pela transformação radical da sociedade capitalista, ou seja, no seu processo de existência real, forjam sua consciência político-social. Em resumo, e simplificando muito, se queremos mudar o que está aí, devemos agir aqui e agora, porque a nossa ação é o que pode interromper o curso da história em direção ao abismo.
Alguns aspectos centrais que você enxerga no pensamento de Rosa têm muito a ver com a nova cultura política de autonomia e horizontalidade. Por que você a identifica com a crítica ao vanguardismo, à burocratização e ao centralismo?
Esses pontos que você menciona resumem bem o que opôs Rosa Luxemburgo à social-democracia e ao bolchevismo e continuam sendo de grande atualidade na cultura da esquerda. Durante o século 20, Rosa foi posta no índex dos partidos comunistas devido à sua crítica a Lênin e aos bolcheviques. Foi usada como ícone revolucionário pelos comunistas da antiga Alemanha Oriental (RDA), mas suas ideias democráticas e libertárias foram deixadas na sombra ou censuradas. O stalinismo acusou-a de espontaneísta, de não dar importância à organização política.
É preciso deixar claro que Rosa não é contra a organização (afinal ela sempre militou num partido político), e sim contra uma concepção de partido como vanguarda de revolucionários profissionais, hierarquicamente separada das massas, e que leva de fora a consciência às massas informes. Essa crítica era endereçada tanto à social-democracia, quanto ao bolchevismo. Para Rosa, que é herdeira do Iluminismo, o verdadeiro líder político é aquele que esclarece, que destrói a cegueira da massa, que transforma a massa em liderança, que acaba com a separação entre dirigentes e dirigidos, que contribui para formar aquilo que ela considera o mais importante pré-requisito de uma humanidade emancipada: a autonomia intelectual, o pensamento crítico das massas trabalhadoras. E, por sua vez, a autonomia intelectual requer a existência de liberdades democráticas: direito de reunião, associação, imprensa livre, etc. Daí a crítica que Rosa faz aos bolcheviques por terem eliminado o espaço público, que ela vê como o único antídoto contra a burocratização do partido e dos sovietes.
No seminário, uma sessão foi dedicada à “dialética entre reforma e revolução”. Algumas das características mais marcantes da nova cultura é o desejo de produzir mudanças, ainda que parciais; a recusa a reduzir a política a eleições, ou mesmo a apostar na revolução como um momento mágico e transcendente, em que toda a sociedade se transforma. O que Rosa poderia dizer sobre isso?
Esse é mais um ponto em que Rosa continua sendo atual. Ela queria uma humanidade em que houvesse liberdade e justiça social; para isso, era necessário passar do capitalismo ao socialismo. Porém, essa transição só seria possível com a mais ampla participação dos de baixo nos assuntos que lhes dizem respeito, o que significava um longo processo de amadurecimento, de correção de rota, etc. Daí a necessidade do debate público. A revolução não consistia na troca de homens no poder, era muito mais que isso, era todo um processo econômico, social, cultural e, claro, político – isto é, de tomada do poder pelos trabalhadores, que levaria muito tempo para se efetivar. Resumindo: no pensamento de Rosa Luxemburgo a ideia de tomada do poder – revolução como quebra rápida das relações de poder existentes – não se separa da ideia de mudança estrutural da sociedade, o que implica mudança de valores, ou seja, uma revolução no longo prazo. Para ela, as duas coisas precisam ocorrer conjuntamente.
Vivemos num mundo em que estão abertas janelas tanto para enormes transformações como para riscos de desumanização inéditos. Estão aí os drones, a tentativa de controlar a internet e vigiar os cidadãos por meio dela, os sinais de xenofobia, os grupos nazistas em certos países europeus. “Socialismo ou barbárie”, uma consigna de Rosa, tem a ver com este futuro tão aberto?
Quando Rosa diz que a humanidade está perante o dilema “socialismo ou barbárie”, o que ela tem diante dos olhos é o horror da Primeira Guerra Mundial que, para aquela geração, foi um cruel divisor de águas. Pela primeira vez, as pessoas se deram conta de que os avanços tecnológicos podiam ser mortíferos, de que a modernização capitalista destruiria todos os obstáculos que aparecessem no caminho de seu avanço infernal. E a esquerda radical alemã, de que Rosa era uma das lideranças, via no socialismo a única alternativa capaz de barrar essa descida aos infernos.
Mas, ao mesmo tempo, ela também se dava conta de que, com a guerra e o chauvinismo, que haviam engolido as massas trabalhadoras europeias, a luta em prol do socialismo tinha se tornado infinitamente mais difícil. Acho que podemos fazer um paralelo com o que se passa hoje. Depois da queda do comunismo burocrático, parecia que agora sim o terreno estava finalmente livre para que as ideias socialistas democráticas vingassem. Mas o que vemos é que, precisamente num momento em que o capitalismo está em crise e sofre um golpe poderoso, no momento em que constantes e gigantescas manifestações da população europeia mostram claramente que o capitalismo chegou ao fim da linha, o que acontece em termos de mudança no rumo de uma sociedade mais justa, mais igualitária? Absolutamente nada!
Os governantes continuam fazendo os ajustes pedidos pelo capital financeiro e as populações vivem num permanente estado de sítio econômico, sem saber o que o dia de amanhã lhes reserva. Precisamos nos perguntar por que, precisamente num momento em que caiu a máscara ideológica do neoliberalismo, a esquerda não consegue aparecer como alternativa. É necessário rever a história da esquerda institucional europeia para entender porque isso acontece. E aqui, mais uma vez, Rosa Luxemburgo tem o que dizer com sua crítica à adesão da social-democracia alemã ao estado de coisas vigente.
A democracia institucional está esvaziada e em crise, mas os novos movimentos reivindicam formas cada vez mais democráticas de decisão — inclusive em seu próprio interior. De que forma o debate sobre o partido, que opôs Rosa Luxemburgo a Lênin, no início do século XX, pode informar este anseio por democracia?
É preciso que fique claro que Rosa Luxemburgo é contra a abolição da democracia “burguesa” tal como ocorreu no mundo soviético. O que ela quer é complementar a liberdade política com a igualdade social. Isso significa que o pluralismo partidário, a imprensa livre, a liberdade de associação, etc. devem ser preservados. Rosa era uma marxista clássica, como eu disse, que tinha uma visão muito crítica dos regimes autoritários do seu tempo, como o czarismo e o império alemão.
Ao mesmo tempo, também se deve enfatizar que ela, diferentemente de seu companheiro de partido Eduard Bernstein, não tem ilusões quanto à democracia burguesa parlamentar. Ela não acredita na transição ao socialismo pela via eleitoral. Durante a revolução alemã de 1918, Rosa ficou entusiasmada com os conselhos de operários e soldados que surgiram no início do movimento, vendo neles uma forma de ampliar a participação dos de baixo. Mas não foi muito longe nestas reflexões, pois foi assassinada pouco tempo depois.
É muito comum que a esquerda libertária recorra ao exemplo dos conselhos como panacéia que supostamente resolveria os problemas da democracia representativa. É sem dúvida uma forma democrática que deve ser preservada, sobretudo no âmbito local. Mas penso que devemos pensar, como Rosa indicou sem aprofundar em seu texto de crítica aos bolcheviques escrito na prisão em 1918, que o ideal é combinar mecanismos de democracia representativa com mecanismos de democracia direta.
Hugo Chávez, símbolo do “socialismo do século 21″ para parte da esquerda, baseou sua ação num Estado forte e num comando centralizado. Em contrapartida, os zapatistas difundem a ideia de  ”mudar o mundo sem tomar o poder”, cunhada por John Holloway. O que o pensamento de Rosa  sugeriria, sobre esta polêmica?
Rosa defende a tomada do poder de Estado pelos trabalhadores. Nesse sentido, ela se oporia à fórmula de Holloway. No entanto, ao defender a necessidade da transformação radical dos valores burgueses-capitalistas na transição ao socialismo ela percebe que a revolução é um processo muito mais complicado, lento e doloroso que a simples tomada do poder de Estado. Ao mesmo tempo, ela não recusa a tomada do poder, vendo aí um meio de acelerar as mudanças necessárias. Porém, acima de tudo, para Rosa Luxemburgo, o novo grupo que chega ao poder tem a obrigação de preservar e/ou construir mecanismos de participação, de formação política, de criação de autonomia da massa popular e não eliminar os mecanismos democráticos existentes, como se fossem apenas expressão da dominação burguesa.
Crescem em todo o mundo, e em particular no Brasil, os movimentos que criticam a crença cega no “desenvolvimento”. A tradição marxista mais difundida também é desenvolvimentista. Materialista, acredita que o “desenvolvimento das forças produtivas” é anterior aos avanços da consciência. Rosa tem algo a dizer sobre isso?
Rosa é filha do seu tempo, e também filha do marxismo do seu tempo. Isso quer dizer que, por um lado, ela é defensora do desenvolvimento das forças produtivas, ou seja, da modernização capitalista. Mas, por outro – e isso é interessante e atual sobretudo para nós da América Latina –, ela também enfatiza o aspecto sombrio dessa modernização capitalista, com todo o seu conhecido séquito de horrores: destruição violenta de modos de vida primitivos pelo capitalismo europeu, a fim de submetê-los aos mecanismos do mercado; guerra do ópio na China; enriquecimento da metrópole às custas do endividamento da periferia; acumulação de capital mediante compras de armas pelo Estado, o que favorece guerras de todos os tipos, etc. Essa postura avessa ao eurocentrismo e à ideia de que o progresso da civilização justifica os sofrimentos dos povos periféricos dá-nos elementos para repensar no que consiste verdadeiramente o progresso e se o capitalismo é mesmo o horizonte inelutável da humanidade.
De que forma permanece atual a noção de imperialismo, que era cara a Rosa Luxemburgo? Como este conceito sobrevive num mundo marcado pelo declínio dos EUA e Europa, pela ascensão dos BRICS e, ao mesmo tempo, pela difusão, nestes países, dos modos de vida típicos do capitalismo?
Para Rosa, o imperialismo não é, como para Lênin, uma “etapa superior do capitalismo” e sim uma característica do capitalismo desde as origens. Desde o início, o capitalismo precisou de mercados externos (por exemplo, ao transformar as economias primitivas em economias de mercado) para se reproduzir. A violência e o saque das camadas sociais não-capitalistas, que Marx restringia ao período da chamada “acumulação primitiva”, Rosa Luxemburgo considera uma característica do capitalismo até sua plena maturidade.
Hoje assistimos à mercantilização de tudo que ainda não foi transformado em mercadoria: serviços públicos, saúde, educação, cultura, conhecimento, direitos autorais, recursos ambientais, etc. É precisamente aqui que David Harvey, ao analisar o novo imperialismo, procede a uma interessante atualização da teoria de Rosa Luxemburgo, forjando o conceito de “acumulação por expropriação”. As feministas alemãs, também inspiradas em Rosa, incluem nesse âmbito o trabalho doméstico feminino. Logo, como podemos ver, apesar da ascensão dos BRICS, e apesar de algumas alterações na divisão do mundo entre centro e periferia, a verdade é que o imperialismo, ainda que novo, vai bem, obrigado.
Um dos três volumes da coletânea organizada por você trata da vida privada de Rosa, recupera cartas pessoais, discute sua condição de mulher. Por que este destaque, pouco comum na literatura marxista?
Antes de mais nada, é preciso observar que tivemos a sorte de suas cartas terem sido preservadas praticamente intactas graças à devoção dos amigos. Essa correspondência é um documento precioso sobre o socialismo alemão e internacional da época. Mas a minha escolha recaiu sobre as cartas aos amantes e amigos, pois queria mostrar, pelo exemplo de uma revolucionária, que mesmo a militância política requer qualidades que muitas vezes são desprezadas como pequeno-burguesas, ou sei lá o que.
O exemplo de Rosa se opõe à imagem falsificada do militante como um ser puritano que dedica 24 horas do dia à causa revolucionária. Pelas cartas, podemos acompanhar seu doloroso processo de amadurecimento, conflitos amorosos, desejo de ser feliz, suas reclamações de como a vida política era desumana, seu grande amor à natureza, reflexões sobre arte.
Ela vai se libertando aos poucos de um relacionamento amoroso que não a satisfazia e se afirmando como uma intelectual dona do seu nariz, que intervém no espaço público, que não teme enfrentar as vacas sagradas da social-democracia alemã, com uma vida privada bastante livre para os valores da época. É uma personagem muito rica do ponto de vista emocional, uma ótima escritora, uma pessoa com um amplo espectro de interesses: fala de pintura, literatura, botânica, geologia, e, sobretudo nas cartas da prisão, descreve o pouco de natureza que pode enxergar da janela da cela ou do pátio da prisão com grande sensibilidade e riqueza de detalhes. As cartas aos amigos eram seu jeito de fugir do cárcere. As cartas da prisão, publicadas pela primeira vez logo depois do seu assassinato e republicadas inúmeras vezes, levaram gerações de militantes a se interessarem por Rosa Luxemburgo. Quem sabe acontece o mesmo com a nossa coletânea, publicada em 2011 pela Editora UNESP?

Resistência Palestina


Globo, os palestinos não se veem por aí


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Em 19 de dezembro, foi ao ar na chamada "novela das oito" da TV Globo, intitulada "Amor à vida", uma cena que não deixa dúvidas a quem serve a emissora: aos interesses hegemônicos e ao império. A telenovela líder da audiência em âmbito nacional, seguida pelo Jornal Nacional, apresentou na trama um romance entre um palestino, Pérsio (Mouhamed Harfouch), e uma judia, Rebeca (Paula Braun). No capítulo em questão, o primeiro deles declara que pertenceu a uma "célula terrorista" e se diz arrependido: "Eu queria ser um homem bomba.
Achava que era um sacrifício justo pela causa do meu povo. Só não fui porque eu sou filho único, a minha mãe me procurou, insistiu demais pra eu desistir. Mas eu ajudei a organizar um atentado. Um amigo meu, um amigo próximo, foi o homem bomba. Ele entrou num ônibus em Jerusalém e explodiu, matando muita gente. Mulheres, crianças... crianças como o seu irmãozinho, RebecaEu me senti culpado, quando vi o seu irmão, quando falei com a sua família. Eu percebi que a guerra, o terrorismo, atinge pessoas indefesas, crianças. Vendo aquele menino sorrindo, eu percebi que um dia eu quis atacar crianças como ele. Como eu posso dizer que aquele menino é meu inimigo?." Alguns capítulos depois, no dia 30, em uma nova conversa, Rebeca se recusa a falar com Pérsio, a não ser profissionalmente, pelo que ele quis fazer com "seu povo". E em cena no dia 7 de janeiro último, a personagem busca conselhos junto a um rabino, já que teria se apaixonado por "um árabe, um palestino", pertencente a um "grupo terrorista".
O diálogo que inaugura essa farsa é permeado por desinformação, distorção e manipulação da verdade. Rebeca chega a afirmar que há muitos casais judeus e palestinos em Israel, como conviria a qualquer estado democrático. A verdade é que a própria convivência está comprometida.
 
O apartheid imposto aos palestinos impede até que vivam no mesmo bairro. Alguém poderia afirmar que conhece um caso assim na atualidade. Mas não é essa a regra. Os palestinos que vivem onde hoje é Israel (território palestino até 1948, ano da criação desse estado como exclusivamente judeu) são considerados cidadãos de segunda ou terceira categoria, discriminados cotidianamente - há 30 leis racistas contra essas pessoas, que lhes impedem ter os mesmos direitos.
Há dezenas de aldeias em que vivem que sequer são reconhecidas por Israel, o que significa que não lhes são assegurados serviços essenciais, como fornecimento de eletricidade, água, educação e saúde de qualidade.

Quem é o terrorista?
Em 1948, ano que na memória coletiva árabe é conhecido como "nakba", a catástrofe, foram expulsos de suas terras e propriedades cerca de 800 mil palestinos e aproximadamente 500 aldeias foram destruídas para dar lugar a Israel. Massacres exemplares são hoje comprovados. Os palestinos, desumanizados desde o início desse projeto de limpeza étnica e colonização de suas terras, não foram apagados da história graças a sua resistência - apresentada na telenovela da Globo como terrorismo. Resistência reconhecida pelo direito internacional como legítima diante da ocupação.
Ademais, os chamados atentados com homens bomba, atos desesperados perante o silêncio do mundo e a falta de alternativas, há muito foram abandonados. A contextualização histórica sobre o terror de Estado que fabricou esses "homens bomba", durante um tempo determinado, ficou fora da telinha. Assim como os contínuos ataques israelenses, que atingem sobretudo crianças e mulheres, com tecnologias de última geração vendidas depois ao mundo. Os laboratórios humanos em que se transformaram os palestinos no shopping center que se converteu Israel à venda de suas parafernálias militares também não encontraram lugar no diálogo que foi ao ar na "novela das oito".
O autor de "Amor à vida", Walcyr Carrasco, reforçou, assim, mitos que são denunciados pelo historiador israelense Ilan Pappe em seu artigo "Os dez mitos de Israel". Entre eles, de que a luta palestina não tem outro objetivo que não o terror e que Israel é "forçado" a responder à violência. Segundo ele, a história distorcida serve à opressão, à colonização e à ocupação. "A ampla aceitação mundial da narrativa sionista é baseada em um conjunto de mitos que, ao final, lançam dúvidas sobre o direito moral palestino, o comportamento ético e as chances de qualquer paz justa no futuro. A razão é que esses mitos são aceitos pela grande mídia no Ocidente e pelas elites políticas como verdade."
O Brasil não é exceção. Na contramão da campanha global por boicotes ao apartheid israelense, o governo federal se tornou nos últimos anos o segundo maior importador de tecnologias militares da potência que ocupa a Palestina e porta de entrada dessa indústria à América Latina. E sua cumplicidade com a opressão, ocupação e apartheid a que estão submetidos os palestinos é justificada a milhares de espectadores desavisados da novela da Globo, através de um discurso que reproduz a versão falsificada da história e se fortalece perante a representação orientalista - em que os árabes seriam "orientais" bárbaros e atrasados, ante cidadãos pacíficos e civilizados, segundo explicita o intelectual palestino Edward Said em seu livro "Orientalismo, o Oriente como invenção do Ocidente".

Democratização já!
Num cenário de concentração midiática, preconceitos como esse - não são os únicos - são especialmente graves. Assim como é bastante preocupante que o tradicional show natalino do cantor Roberto Carlos, exibido na mesma emissora ao final de 2013, tenha sido patrocinado pela marca Café Três Corações, que tem como acionista majoritária uma empresa israelense cuja colaboração com a opressão em terras palestinas já foi amplamente denunciada.
Apesar do crescimento acentuado de usuários da internet - que chegaram à marca de 94,2 milhões ao final de 2012, segundo o Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope) -, a maioria da população brasileira ainda se informa sobretudo pela TV, presente em 96,9% dos domicílios, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (Pnad/IBGE). Enquanto a propaganda nesse meio é o principal impulsionador ao consumo, programas de entretenimento como as telenovelas igualmente moldam comportamentos, conceitos e ideias. E a produção desses encontra-se nas mãos de apenas seis famílias, detentoras das concessões públicas que lhes garantem espaço para difundir livremente preconceitos e falsificações históricas. Outorgas concedidas muitas vezes ao arrepio das leis vigentes, renovadas pelo governo brasileiro sem qualquer critério para garantir a pluralidade e diversidade na produção cultural.
Para transformar a realidade, é fundamental reforçar a luta pela democratização das comunicações e denunciar essas distorções que grassam na TV brasileira. É importante se somar às vozes que, nas manifestações de junho de 2013, protestaram contra o monopólio da mídia e elegeram para tanto o lema: "Globo, a gente não se vê por aqui".

Soraya Misleh* é jornalista, membro da diretoria do ICArabe, da Ciranda Internacional da Informação Independente e do Mopat (Movimento Palestina para Todos)

Fonte: Correio ICAbare

ROSA LUXEMBURGO: A Rosa Vermelha do socialismo


A Rosa Vermelha do socialismo

Por Augusto C. Buonicore, no sítio da Fundação Maurício Grabois: Via blog do miro

Neste mês se completam 95 anos do brutal assassinato da comunista polonesa Rosa Luxemburgo. Ela foi uma combatente de primeira hora contra o revisionismo teórico que irrompeu no interior da social-democracia alemã. Condenou duramente o oportunismo de direita que ganhava corpo nas direções dos sindicatos alemães, e defendeu a experiência da revolução russa de 1905, especialmente o uso da greve geral como instrumento importante na luta revolucionária. Quando se iniciou a Primeira Grande Guerra Mundial e ocorreu a traição da maioria dos dirigentes da II Internacional, Rosa se colocou ao lado de Lênin contra a guerra imperialista e na defesa da revolução socialista. Foi fundadora do grupo spartakista que daria origem ao Partido Comunista da Alemanha. Após sua trágica morte, Lênin fez uma pungente homenagem à águia polonesa, heroína do proletariado mundial, no discurso de abertura do congresso de fundação da III Internacional.

O ato final

Era 15 de janeiro de 1919 e as ruas de Berlim estavam tensas. Por toda parte viam-se os vestígios dos combates dos dias anteriores. As tropas do exército alemão e os grupos paramilitares, os “corpos livres”, desfilavam imponentes pelas ruas da cidade morta.

A insurreição parecia ter chegado ao seu final. Uma batalha havia sido perdida, mas não a guerra. Assim pensavam Rosa e Karl Liebknecht, quando foram sequestrados e levados ao Hotel Éden para averiguações. De lá deveriam seguir para a prisão, onde se encontravam centenas de operários revolucionários. Contudo, o cortejo faria outro caminho, que não era o da prisão nem o do exílio. A burguesia e os generais alemães já haviam decretado a sentença. Os dois foram conduzidos ao zoológico municipal onde terminariam assassinados. Decerto, alguém se perguntava: “Quantos tiros seriam necessários para matar o sonho da revolução alemã? No zoológico de Berlim quem seriam os animais?”.

Mais tarde, sem identificação, dois corpos seriam jogados nas águas frias do canal Landwher. A reação não queria deixar provas do horrendo crime que cometera, mas todos sabiam quem eram os seus autores. Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht estavam mortos, mas a história que construíram se manteria viva na consciência dos comunistas de todo o mundo.

Passados alguns anos, Brecht escreveria o seu epitáfio:

“Aqui jaz

Rosa de Luxemburgo

Judia da Polônia

Vanguarda dos operários alemães

Morta por ordem

Dos opressores.

Oprimidos,

Enterrai as vossas desavenças!”

Os primeiros passos

Quem se prendesse apenas à sua origem social decerto não poderia entender como aquela menina, nascida em 5 de março de 1871, filha de uma abastada família de judeus poloneses, havia se transformado na Rosa Vermelha, destacada dirigente do movimento comunista internacional.

Contudo, o ambiente efervescente reinante na Polônia, então dominada pela Rússia czarista, estava levando muitos jovens, como ela, a se engajarem em movimentos contestatórios e mesmo revolucionários. Primeiro, aderindo às lutas estudantis contra as estruturas repressivas mantidas nas escolas polonesas, e depois ingressando nos combates políticos contra a opressão russa e pelo socialismo. Este também foi o caminho seguido pela irrequieta Rosa.

Em 1889, com apenas 19 anos, ela se viu obrigada a deixar a sua Polônia e refugiar-se em Zurique, onde concluiu os seus estudos, doutorando-se em Economia. No exílio, em 1894, juntamente com seu companheiro Leo Jogiches, ajudou a fundar o Partido Social-Democrata da Polônia. Pouco a pouco, Zurique se tornava calma e pequena demais para os grandes planos e a personalidade agitada de Rosa. Por isso, em 1898, mudou-se para o centro da luta de classes do momento, o coração da revolução europeia: a Alemanha.

Reforma ou revolução

Ao chegar, ingressou imediatamente ao Partido Social-Democrata Alemão (PSDA), o maior partido operário do Ocidente, e logo se viu envolvida na grande polêmica do momento, que podia ser resumida num único e decisivo dilema: reforma ou revolução?

O crescimento relativamente pacífico do capitalismo alemão e a conquista de maiores liberdades democráticas propiciaram avanço eleitoral sem precedente à social-democracia. Isto levou muitos dirigentes partidários a acalentarem esperanças de que haveria outra alternativa para a conquista do socialismo que não fosse o caminho revolucionário. O principal teórico dessa via reformista foi Bernestein, dirigente do PSDA e, até então, considerado herdeiro de Engels do qual havia sido amigo.

Ele apregoava que a tendência do capitalismo não era a monopolização crescente da economia, como afirmava Marx, e sim sua democratização através do aumento do número de proprietários, graças à introdução das sociedades por ações. Isso levaria a um fortalecimento das classes médias e não à sua redução. Seriam eliminadas, assim, as previsões “catastróficas” de Marx sobre a polarização crescente da sociedade e o choque inevitável entre burgueses e proletários. O desenvolvimento do capitalismo não levaria necessariamente às crises periódicas, pois ele mesmo estava criando antídotos, através da melhor organização da produção e do planejamento econômico.

Dentro dessa perspectiva, Bernestein elaboraria uma nova tática, que supervalorizava as lutas parlamentar e sindical. Segundo ele, seria através do voto que o trabalhador se elevaria “da condição social de proletário para aquela de cidadão”. A luta sindical por melhores condições de trabalho e salários seria o instrumento privilegiado para conduzir a sociedade capitalista, através das reformas econômicas, para o socialismo democrático. Na verdade, essas reformas já seriam a própria realização molecular da nova sociedade socialista. É dele a famosa frase: “o movimento é tudo e o fim nada significa”.

Rosa foi uma das primeiras a se insurgir contra tais teses, que contradiziam a essência do marxismo revolucionário, escrevendo, em 1899, uma das mais belas obras contra o revisionismo do seu tempo: Reforma Social ou Revolução?. Neste texto são desmanteladas, com maestria, uma a uma as teses reformistas. Contribuindo, assim, para que elas fossem rejeitadas pela maioria do partido, embora essas ideias continuassem a exercer grande influência sobre vários de seus dirigentes.

O objetivo final do socialismo, afirmava Rosa, “é o único elemento decisivo na distinção entre o socialista e o radical burguês”. A política apregoada por Bernestein “visava a uma única coisa: conduzir-nos ao abandono do objetivo último, a revolução social, e, inversamente, fazer da reforma social, de simples meio de luta de classes, em seu fim”. Rosa, portanto, não negava o papel das reformas, mas acreditava que “entre a reforma e a revolução devia haver um elo indissolúvel” no qual “a luta pela reforma é o meio e a revolução social é o fim”.

As críticas contundentes e mordazes da pequena Rosa mostram muito bem a sua coragem e o seu espírito revolucionário. Poucos no partido, naquele momento, ousariam desafiar a autoridade de Bernestein, muito menos compará-lo a um radical burguês. As teses de Bernestein foram criticadas nos congressos da social–democracia alemã de Hannover (1899) e Lubeck (1901). No congresso de Dresden, em 1903, o principal dirigente social-democrata alemão August Bebel apresentaria uma dura moção que afirmava: “O Congresso condena de maneira mais decidida o intento revisionista de alterar a nossa tática, posta a prova várias vezes e vitoriosa, baseada na luta de classes (...). Se adotássemos a política revisionista nos constituiríamos em um partido que se conformaria apenas com a reforma da sociedade burguesa”. O Congresso da Segunda Internacional de 1904, em Amsterdã, também foi marcado por este debate e, novamente, as teses revisionistas foram derrotadas. Mas, seus adeptos continuaram no partido e na Internacional, inclusive na sua direção, e ali esperariam nova oportunidade para retomar a ofensiva.

Em 1904, intervindo numa polêmica da social-democracia russa, Rosa de Luxemburgo fez críticas ao modelo organizativo proposto por Lênin, baseado nos revolucionários profissionais e na necessidade de implantação de uma rígida disciplina, que tinha como referência o modelo adotado nas fábricas capitalistas. Contudo, Rosa julgava as propostas do revolucionário russo tendo como ponto de referência a Alemanha e não a Rússia czarista. A fórmula organizativa de Lênin correspondia à situação política vivida no seu país, onde todas as organizações operárias e socialistas eram ilegais e duramente perseguidas. Portanto, a realidade russa impunha uma organização clandestina e rigidamente centralizada. Apesar da crítica feita à política organizativa de Lênin, um ano depois estava ao lado dele na defesa da experiência da revolução russa de 1905 e do instrumento da greve geral. Rosa passava a estruturar a ala esquerda do PSDA.

Contra a burocracia sindical

A social-democracia alemã já havia desenvolvido a compreensão de que o partido revolucionário era uma forma superior de organização da classe operária. Era o partido, como vanguarda da classe, que deveria dar direção política às organizações sindicais e populares.

August Bebel, um dos principais dirigentes da social-democracia alemã, havia dito: “Não é da ação sindical que devemos esperar a tomada de possessões dos meios de produção. É preciso, antes de tudo, tomar o governo que monta guarda ao redor da classe capitalista”. Isto só poderia ser conseguido através da luta político-revolucionária, dirigida pelo partido social-democrata. Essa ideia passaria a ser corroída nos anos seguintes, quando ocorreu a burocratização dos sindicatos.

O aumento do número de operários sindicalizados, somado ao crescimento da economia capitalista alemã que possibilitou aos patrões fazerem maiores concessões aos trabalhadores, permitiu a construção de poderosas máquinas sindicais – com sedes, gráficas, editoras, clubes e inúmeros funcionários – e a acumulação de vultosos fundos financeiros. Alguns grandes sindicatos chegaram a criar bancos.

Não sem razão, as direções dos sindicatos alemães foram tomadas de verdadeiro pavor quando a revolução russa de 1905 veio a ameaçar o curso do desenvolvimento “pacífico” do capitalismo alemão. O órgão oficial da central sindical social-democrata logo afirmou: “Não somos de nenhum modo partidário das demonstrações de rua”. O congresso sindical realizado em Colônia chegou mesmo a aprovar uma resolução contrária à utilização da greve geral como instrumento de pressão operária contra o Estado e os patrões. Para os burocratas sindicais, qualquer ação mais ampla e radical das massas operárias levaria, necessariamente, à repressão e a uma desorganização dos sindicatos.

Rosa fez duras críticas aos dirigentes sindicais, apontando as causas do seu reformismo. “Os funcionários sindicais”, afirma ela, “tornaram-se vítimas da burocracia e de certa estreiteza de perspectiva devido à especialização da sua atividade profissional e à mesquinhez dos seus horizontes, resultado de um fracionamento das lutas econômicas em período de calmaria. Esses dois defeitos manifestam-se em diversas tendências que podem ser fatais para o futuro do movimento operário. Uma delas consiste em sobrevalorizar a organização transformando-a, pouco a pouco, num fim em si mesmo e considerando-a um bem supremo a que os interesses da luta devem ser subordinados. Assim se explica (...) essa hesitação ante o fim incerto das realizações de massas e enfim a sobrevalorização da própria luta sindical”.

Quando o Congresso do PSDA realizado em Jena aprovou uma resolução insinuando a possibilidade de utilização da greve geral, de maneira defensiva e em casos excepcionais, os líderes sindicais não perderam tempo em apregoar a necessidade da independência dos sindicatos em relação ao Partido e ratificaram sua posição antigreve. Legien, o principal dirigente sindical da social-democracia alemã, afirmou: “para os sindicatos o que conta não é a resolução tomada no Congresso de Jena, mas a tomada em Colônia”, contrapondo o congresso sindical ao partidário.

Rosa seria uma das principais críticas desse oportunismo sindicalista. “Os sindicatos”, afirmaria ela, “representam o interesse de grupos particulares (...). A social-democracia representa a classe operária e os interesses gerais de sua emancipação (...). As ligações dos sindicatos com o Partido Socialista são as de uma parte com o todo”. A chamada “igualdade de direito” entre sindicatos e o Partido Socialista não seria “um simples mal-entendido, uma simples confusão teórica, mas exprimiria uma tendência bem conhecida da ala oportunista”.

Defendendo o ponto de vista predominante no seio da social-democracia, ela se colocou contra o fato “monstruoso” de que nos congressos do partido e dos sindicatos os militantes socialistas estivessem fazendo aprovar resoluções não apenas diferentes como opostas. Para solucionar o impasse ela propôs “subordinar de novo os sindicatos ao partido, para o interesse próprio das duas organizações. Não se trata de destruir a estrutura sindical no partido, trata-se de estabelecer entre as direções do partido e os sindicatos (...) uma relação entre o movimento operário em seu conjunto e o fenômeno particular e parcial chamado sindicato”. Alguns anos mais tarde os comunistas mudariam essa formulação que subordinava formalmente os sindicatos ao partido político de vanguarda, mas manteriam a visão de que a luta política revolucionária era superior à luta corporativo-sindical.

A contradição entre as direções dos sindicatos e do partido só existiu enquanto a maioria da direção partidária se manteve à esquerda da direção sindical. Com a vitória das teses revisionistas e reformistas no interior do próprio partido, as relações entre essas duas instâncias tenderam a se harmonizar numa política de caráter antirrevolucionário.

A falência da II Internacional

A história da luta de classe trilha caminhos tortuosos e contraditórios: as vitórias eleitorais e sindicais do PSDA somente reforçaram as posições reformistas no seu interior. Em 1912 o partido obteve mais de 4 milhões de votos, elegendo 110 deputados, tornando-se a maior bancada no parlamento alemão. Dois anos depois, quando do início da Primeira Guerra Mundial, as posições de direita já haviam conquistado a maioria das direções da social-democracia alemã e europeia. Estas acabaram renegando todas as suas resoluções anteriores, colocando uma pedra sobre o seu passado revolucionário, ao votarem favoravelmente aos créditos para a guerra imperialista. “Desde 4 de agosto de 1914”, afirmou Rosa, “a social democracia alemã é um cadáver putrefato.”

Rosa acabou sendo presa em 1915 devido ao pronunciamento de um violento discurso contra a guerra e o imperialismo. Na prisão, escreveria o texto A crise da social-democracia, mais conhecido por Folheto Junius, que seria saudado por Lênin como sendo um “esplêndido trabalho marxista”. No mesmo período também escreveria Teses sobre as tarefas da social-democracia internacional, que deveria ser uma contribuição da esquerda social-democrata alemã à Conferência Internacional de Zimmerwald. Ali, a esquerda e o centro social-democrata procuraram se articular contra a sua ala direita e a favor da paz mundial.

Nas suas teses, Rosa afirmaria: “A guerra esmagou a Segunda Internacional (...). Os representantes oficiais dos partidos socialistas dos principais países traíram os objetivos e interesses da classe operária (...) e passaram para o campo do imperialismo. Assim, constitui uma necessidade vital para o socialismo criar uma nova internacional operária, que tome em suas mãos a direção e coordenação das lutas revolucionárias de classe contra o imperialismo internacional”. Solta no início de 1916, ela continuaria seu trabalho revolucionário – o que lhe custaria nova prisão menos de seis meses depois de sua libertação.

Em 1916 realizou-se uma conferência da esquerda social-democrata alemã que se decidiu pela publicação de um periódico chamado Spartacus, nome pelo qual ficaria conhecido o grupo liderado por Rosa e Karl Liebknecht. Em 1º de maio o grupo Spartacus procurou organizar uma manifestação contra a guerra imperialista. O resultado foi a prisão de Karl, acusado de traição à pátria. Os dois revolucionários alemães ficariam presos até que a revolução de 1918 viesse a libertá-los.

Em 1917, rompidos com o PSDA, os centristas, liderados por Kautsky, e a esquerda formavam outra organização política: o Partido Social-Democrata Independente (PSDI). Apesar de possuir um programa internacionalista e antibelicista, graças à atuação dos centristas, o novo partido atuava de forma vacilante e defensiva diante da direção do PSDA.

Rosa e a Revolução Russa

Em 1918, Rosa escreveria uma série de artigos nos quais defendia a revolução socialista na Rússia, que estava sob ataque cerrado da direita e do centro social-democrata, inclusive do centrista Kautsky. A capacidade bolchevique de vencer todas as dificuldades impostas pela contrarrevolução a empolgava: “Os bolcheviques têm demonstrado que podem fazer tudo o que um partido verdadeiramente revolucionário pode fazer nos limites de suas possibilidades históricas. Não procuram fazer milagres. E seria um milagre uma revolução proletária modelar impecável num país isolado, esgotado pela guerra, premido pelo imperialismo, traído pelo proletariado internacional (...). E é nesse sentido que o futuro pertence em toda parte ao ‘bolchevismo’”.

O apoio irrestrito à revolução não a impediu de fazer várias críticas às medidas revolucionárias adotadas pelos bolcheviques. Uma parte delas estava impregnada por certo esquerdismo teórico. Rosa, por exemplo, menosprezava a necessidade da aliança com os camponeses pobres e não compreendia a proposta de Lênin em relação às nacionalidades oprimidas. Ela negava a necessidade de incluir no programa dos revolucionários russos o direito à autodeterminação dos povos que estavam sob o domínio do antigo império czarista. Considerava estas propostas como concessões perigosas aos nacionalismos das burguesias locais. A maior parte das objeções seria revista no ano seguinte, quando ela saiu da prisão e pôde ter maior contato com a experiência soviética.

A crítica merecedora de maior atenção é aquela que tratava do processo de construção da ditadura do proletariado, que acreditava ser simples sinônimo de democracia socialista. Ela se preocupava com algumas medidas repressivas tomadas pelo governo soviético contra membros de organizações que considerava socialistas, ainda que equivocadas. Afirmou Rosa: “abafando a vida política em todo o país, é fatal que a vida no próprio soviete seja cada vez mais paralisada. Sem eleições gerais, sem liberdade ilimitada de imprensa e de reunião, sem luta livre de opiniões, a vida morre em todas as instituições públicas, torna-se uma vida aparente, onde a burocracia resta como único elemento ativo (...). Algumas dezenas de chefes de uma energia infatigável e de um idealismo sem limites dirigem o governo e, entre eles, o que governam de fato são uma dezena de cabeças eminentes, enquanto uma elite da classe operária é convocada de tempos em tempos para reuniões com o fim de aplaudir os discursos dos chefes e de votar unanimemente as resoluções que lhes são apresentadas (...). Ainda mais: tal estado de coisas deve provocar necessariamente uma ‘barbarização’ da vida pública, atentados, fuzilamentos de presos etc. ”

Rosa não conhecia as particularidades do desenvolvimento da luta de classes na Rússia pós-revolução, por isso tendia a subestimar o papel desempenhado pelas forças contrarrevolucionárias internas, em muitos casos apoiadas por partidos ligados à II Internacional, que ainda se diziam socialistas. As medidas restritivas à democracia operária, tomadas pelos bolcheviques, também poderiam ser debitadas às difíceis condições em que vivia a jovem Rússia soviética entre 1918 e 1921, cercada e ocupada por diversas potências imperialistas.

A verdadeira tragédia está no fato de que as medidas discricionárias que deveriam ser provisórias, necessárias numa fase de consolidação do socialismo contra a reação armada interna e externa, se transformaram em políticas de Estado, realizando assim algumas das previsões de Rosa sobre o futuro da democracia socialista na Rússia. Se a crítica de Rosa se encontrava desfocada naqueles primeiros anos da revolução, cairia como luvas para as novas condições formadas na segunda metade da década de 1930.

A revolução alemã de 1918

Na Alemanha, pouco a pouco o sentimento nacionalista dos primeiros dias do conflito mundial foi substituído pela revolta. Os operários começavam a se agitar diante do alistamento militar forçado, os constantes cortes nos salários e os racionamentos de alimento. Não tardou e o descontentamento chegou às tropas, principais vítimas da guerra. Em junho de 1917, os marinheiros se rebelaram e foram violentamente reprimidos, com aval do PSDA.

Ainda nas prisões os espartaquistas conclamaram: “não há senão um meio de deter a carnificina dos povos e alcançar a paz: é desencadear uma luta de massas que paralise toda a economia e a indústria bélica, é instaurar através da revolução, liderada pela classe operária, uma República popular na Alemanha”.

A vitoriosa Revolução de Outubro na Rússia apenas serviria para acirrar os ânimos. Nas frentes de batalha os soldados se confraternizavam; nas cidades as greves multiplicavam-se e formavam-se conselhos de operários e soldados, seguindo o modelo soviético. O governo e a monarquia foram colocados em xeque pelas massas insurgentes. Em 9 de novembro de 1918, irrompeu uma rebelião em Berlim e o próprio PSDA foi obrigado, pela pressão dos operários, a aderir ao movimento. Os soldados recusaram-se a cumprir ordens dos oficiais e uniram-se ao povo. A revolução operária e popular vencia o primeiro round. E agora?

O governo oligárquico desabou feito um castelo de cartas. O imperador Guilherme III abdicou e entregou o poder ao chanceler Max Baden. Este, por sua vez, passou o bastão para as mãos do social-democrata Friedrich Ebert. Muitos achavam que a revolução havia chegado ao fim. Foi dentro desse espírito que Ebert lançou sua conclamação: “Cidadãos, peço-lhes que abandonem as ruas, cuidem da tranquilidade e da ordem”. Enquanto isso, outro membro de seu partido, Scheidemann, proclamava a República. A poucos metros dali uma multidão de operários se concentrava para ouvir Karl Liebknecht, recém-libertado da prisão, que afirmava a necessidade do estabelecimento da República alemã. Não uma República burguesa, disfarçada de República social, mas uma República socialista.

Ebert então se apressou a formar o novo governo do qual participariam o PSDA e a ala direita do Partido Social-Democrata Independente. A pressão popular impediu a entrada de membros dos partidos burgueses responsáveis pela guerra. Liebknecht foi convidado a participar, mas impôs uma condição: que todo poder fosse entregue aos conselhos operários – o que evidentemente não foi aceito. Então os espartaquistas, fora do governo, resolveram continuar com os seus preparativos de insurreição.

“Nós pedimos, pelo contrário, que ninguém abandone as ruas e que todos permaneçam armados. A conclamação do novo chanceler, que substituiu o derrotado imperador, procura enviar as massas para os seus lares para melhor poder estabelecer a velha ordem das coisas. Operários, soldados: permanecei alerta!”, conclamavam os spartaquistas. A luta atingiu outro patamar, a burguesia se escondia por detrás de um “partido operário”, justamente o partido que havia pertencido Marx e Engels.

No dia 16 de dezembro, o Conselho Nacional, que congregava todos os conselhos operários, dominados pelo PSDA, decidiu entregar o poder à Assembleia Nacional Constituinte que seria eleita em janeiro. A mesma coisa que haviam feito os mencheviques na Rússia. Diante da capitulação do Partido Social-Democrata Independente, que aceitara participar do governo e a submissão à futura Constituinte, os espartaquistas romperam a unidade e fundaram o Partido Comunista da Alemanha (PCA). Outras decisões tomadas pelos comunistas foram: não participar da eleição para a Assembleia Nacional Constituinte e continuar os preparativos para a insurreição armada. Especialmente essas duas últimas posições não correspondiam à real correlação de forças existente na Alemanha, por isso tanto Rosa como Karl mostraram-se reticentes em relação a elas.

No início de 1919, um ato de provocação do governo precipitou os acontecimentos. Marinheiros amotinados foram brutalmente reprimidos pelo exército. Em resposta, os operários tomaram as ruas. O chefe da polícia, ligado à esquerda do PSI, recusou-se a reprimir as manifestações e foi demitido do cargo. O PCA e a esquerda do PSI se uniram e convocaram manifestações de protestos contra Ebert-Scheidemann. Uma multidão invadiu o distrito da imprensa, onde se encontravam os jornais reacionários. Naquela mesma noite, o PCA decidiu-se pela insurreição geral. Em 9 de janeiro, num ato inesperado, os operários espartaquistas tomaram o Reichstag (parlamento alemão), mas foram rapidamente desalojados pelo exército. Depois de cinco dias de violentos combates de rua, a insurreição foi derrotada. No dia 15, em meio à avaliação do movimento, Rosa e Liebknecht foram sequestrados e assassinados por militares. Ao final do seu último artigo Rosa escreveu: “‘A ordem reina em Berlim’, Esbirros estúpidos! Vossa ‘ordem’ é um castelo de areia. Amanhã a revolução se levantará de novo clamorosamente, e para espanto vosso proclamará: Era, sou e serei”.

Epílogo

Após a sua morte, Rosa passou a ser o alvo de violentas críticas, em especial dos dirigentes da social-democracia internacional. Em sua defesa vieram as palavras firmes de Lênin:

“A esses (críticos) responderemos com um velho ditado russo:

‘Às vezes as águias descem

e voam entre as aves do quintal,

mas as aves do quintal jamais

se elevarão até as nuvens"Rosa equivocou-se em muitas coisas, a respeito da independência da Polônia, na análise dos mencheviques em 1903, na sua teoria da acumulação de capital (...), equivocou-se no que escreveu na prisão de 1918 (corrigiu a maioria desses erros no final de 1918 e início de 1919, quando voltou à liberdade). Mas, apesar de seus erros, foi e continua sendo uma águia”.

* Augusto Buonicore é historiador, secretário-geral da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira e Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas, ambos publicados pela Editora Anita Garibaldi.
** Adaptação do artigo publicado na revista Debate Sindical nº 30, junho-agosto/1999.
Bibliografia

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LOUREIRO, Isabel (org.). Rosa de Luxemburgo: vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 1999.

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LUXEMBURGO, Rosa. Greve de Massas, Partido e Sindicatos. Coimbra, Portugal: Centelha, 1974.

________. Reforma Social ou Revolução?. São Paulo: Global, 1986.