terça-feira, 29 de abril de 2014

Os barões da banca e da droga - Carta Maior

Os barões da banca e da droga

Na última década, o HSBC colaborou com os cartéis da droga do México e da Colômbia na lavagem de dinheiro num montante de cerca de 880 bilhões de dólares.


Eric Toussaint
Arquivo

O caso do banco britânico HSBC constitui um exemplo suplementar da doutrina «demasiado grandes para serem encarcerados». Em 2014, o grupo mundial HSBC emprega 260.000 pessoas, está presente em 75 países e declara 54 milhões de clientes.

No decurso do último década, o HSBC colaborou com os cartéis da droga do México e da Colômbia – responsáveis por (dezenas de) milhares de assassinatos com armas de fogo – na lavagem de dinheiro num montante de cerca de 880 bilhões de dólares.

As relações comerciais do banco britânico com os cartéis da droga perduraram, apesar das dezenas de notificações e avisos de diversas agências governamentais dos EUA (entre as quais o OCC - Office of the Comptroller of the Currency).

Os lucros obtidos não só levaram o HSBC a ignorar os avisos, mas, pior ainda, a abrir balcões especiais no México, onde os narcotraficantes podiam depositar caixas cheias de dinheiro líquido, para facilitar o processo de lavagem.

Apesar da atitude abertamente provocatória do HSBC contra a lei, as consequências legais da sua colaboração directa com as organizações criminais foram praticamente nulas. Em Dezembro de 2012, o HSBC teve de pagar uma multa de 1900 milhões de dólares – o que equivale a uma semana de receitas do banco – para fechar o processo de lavagem.

Nem um só dirigente ou empregado foi sujeito a procedimento criminal, embora a colaboração com organizações terroristas ou a participação em actividades ligadas ao narcotráfico sejam passíveis de cinco anos de prisão. Ser dirigente de um grande banco dá direito a carta branca para facilitar, com total impunidade, o tráfico de drogas duras ou outros crimes.

O International Herald Tribune (IHT) fez uma reportagem sobre os debates realizados no departamento de Justiça. Segundo as informações obtidas pelo jornal, vários procuradores pretendiam que o HSBC se declarasse culpado e reconhecesse ter violado a lei que o obriga a informar as autoridades sobre a ocorrência de transações superiores a 10.000 dólares identificados como tendo origem duvidosa. Daí resultaria a cassação da licença bancária e o término das actividades do HSBC nos EUA. Após vários meses de discussão, a maioria dos procuradores tomou outro rumo e decidiu que melhor seria não processar o banco por atividades criminosas, pois era necessário evitar o seu encerramento. Convinha mesmo evitar manchar demasiado a sua imagem.
 
A modesta multa de 1900 milhões de dólares é acompanhada duma espécie de liberdade condicionada: se, entre 2013 e 2018, concluírem que o HSBC não pôs fim definitivo às práticas que originaram a sanção (não é uma condenação), o Departamento de Justiça poderá reabrir o processo. Em resumo, a medida pode resumir-se assim: «Anda, meu patife, passa para cá uma semana do teu ordenado, e não voltes a repetir a brincadeira nos próximos cinco anos». Aí está um belo exemplo de «demasiado grande para ser condenado».

Em Julho de 2013, numa das reuniões da comissão senatorial que investigou o caso HSBC, Elizabeth Warren, senadora democrata do Estado de Massachusetts, apontou o dedo a David Cohen, representante do Ministério das Finanças e subsecretário responsável pela luta contra o terrorismo e a espionagem financeira.
 
A senadora disse, grosso modo, o seguinte: «O governo dos EUA leva muito pouco a sério a lavagem de dinheiro (…) É possível encerrar um banco que se dedica ao lavagem de dinheiro, as pessoas envolvidas podem ser interditas de praticar uma profissão ou actividade financeira e toda a gente pode ser mandada para a prisão. Ora, em Dezembro de 2012, o HSBC (…) confessou ter lavado 881 bilhões de dólares dos cartéis mexicanos e colombianos da droga; o banco admitiu igualmente ter violado as sanções. O HSBC não o fez apenas uma vez, é um procedimento recorrente. O HSBC pagou uma multa mas nenhuma pessoa foi banida do comércio bancário e não se ouviu falar dum possível encerramento das actividades do HSBC nos EUA. Gostaria que respondesse à seguinte questão: quantos bilhões de dólares um banco tem de lavar, antes de se considerar a possibilidade de encerrar a prática?»
 
O representante do Tesouro acusou o golpe, respondendo que o processo era demasiado complexo para permitir uma conclusão. A senadora declarou a seguir que quando um pequeno vendedor de cocaína é apanhado, fica uns quantos anos na prisão, enquanto um banqueiro que lava bilhões de dólares de droga pode regressar tranquilamente a casa, sem receio da Justiça. Esta passagem da audiência está disponível em vídeo e vale a pena vê-la. (ver abaixo)


 

 
A biografia de Stephen Green ilustra bem a relação simbiótica entre a finança e a governança. A coisa vai ainda mais longe, pois ele não se contentou em servir os interesses do grande capital, enquanto banqueiro e ministro; é também prior da igreja oficial anglicana e escreveu dois livros sobre ética e negócios, um dos quais intitulado «Servir a Deus? Servir a Mamom?». O título do livro remete para o Novo Testamento. «Ninguém pode servir dois senhores; porque ou há de odiar um e amar o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e ao Mamom». Mamom representa a riqueza, a avareza, o lucro, o tesouro. Encontramos esta palavra em aramaico, hebraico e fenício. Por vezes Mamom é usado como sinónimo de Satã. Quanto a Stephan Green, é elogiado pelas mais altas autoridades universitárias e é manifestamente intocável.

Passemos em revista alguns elementos da sua biografia. Começa a sua carreira no ministério britânico do Desenvolvimento Ultramarino, depois passa para o setor privado e trabalha para o consultor internacional McKinsey. Em 1982 é contratado pelo HSBC (Hong Kong Shanghai Banking Corporation), o mais imporrtante banco britânico, onde ascende rapidamente a funções de alta responsabilidade. Finalmente, em 2003, torna-se director executivo do HSBC e em 2006 acede à presidência do grupo, onde permanece até 2010.

As acusações feitas pelas autoridades americanas em matéria de lavagem de 881 bilhões de dólares do dinheiro dos cartéis da droga e de outras organizações criminosas dizem respeito ao período 2003-2010. Segundo o relato das 334 páginas tornadas públicas por uma comissão do Senado norte-americano em 2012, Stephan Green, desde 2005, foi informado por um empregado do banco que o HSBC tinha mecanismos de lavagem no México e levava a cabo múltiplas operações suspeitas. Ainda em 2005, a agência financeira Bloomberg, com sede em Nova Iorque, acusa o HSBC de lavagem de dinheiro da droga.
 
Stephen Green responde que se trata de um ataque irresponsável e sem fundamento, que põe em causa a reputação dum grande banco internacional acima de todas as suspeitas. Em 2008, uma agência federal norte-americana comunica a Stephen Green que as autoridades mexicanas descobriram a existência de operações de lavagem realizadas pelo HSBC México e uma das suas filiais num paraíso fiscal das Caraíbas («Cayman Islands Branch»). A agência acrescenta que a situação pode implicar uma responsabilidade penal para o HSBC.
 
A partir desse momento, as autoridades norte-americanas de controle dirigem repetidos avisos à direção do banco, muitas vezes aflorando a gravidade dos fatos. O banco promete alterar os seus comportamentos, mas na realidade prossegue as práticas criminosas. Finalmente os avisos dão lugar em Outubro de 2010 a um aviso para pôr termo às práticas ilegais. Em finais de 2012, após a apresentação pública do relatório da comissão senatorial e meses de debate entre diferentes agências de segurança dos EUA, é aplicada uma multa de 1900 milhões de dólares à HSBC.

Stephen Green está em boa posição para saber o que fazia o banco no México, nos paraísos fiscais, no Médio Oriente e nos Estados Unidos, pois além de dirigir o conjunto do grupo HSBC, dirigiu no passado o HSBC Bermudas (estabelecido num paraíso fiscal), o HSBC México, o HSBC Médio Oriente. Presidiu igualmente o HSBC Private Banking Holdings (Suíça) SA e o HSBC América do Norte Inc.

Quando veio a público, em 2012, que o HSBC teria de pagar uma considerável multa nos EUA por branqueamento de dinheiro dos cartéis da droga, Stephen Green já tinha passado de grande patrão do HSBC a ministro do governo conservador-liberal conduzido por David Cameron.

Voltemos um pouco atrás para descobrir que o timing seguido por Stephen Green foi perfeito. Coisa de artista. Em Fevereiro de 2010, publica o livro O Justo Valor: Reflexões sobre a Moeda, a Moralidade e Um Mundo Incerto. O livro é apresentado ao público nestes termos: «Será que alguém pode ser ao mesmo tempo uma pessoa ética e um homem de negócios eficaz? Stephen Green, simultaneamente sacerdote e presidente do HSBC, acha que sim.» Reparem que a «pessoa ética e o homem de negócios eficaz» são identificados com o «sacerdote e presidente do HSBC». A publicidade é patente. Na mesma época recebe o título de doutor honoris causa, concedido pela School of Oriental and African Studies (SOAS) da Universidade de Londres.

Em Outubro de 2010, pela segunda vez desde 2003, a justiça dos EUA avisa o HSBC para que ponha termo às suas actividades criminosas. O público ainda não está ao corrente. É tempo de Stephen Green abandonar o navio. Em 16 de Novembro de 2010, a pedido de David Cameron, é nobilitado pela rainha de Inglaterra e passa a ser o «barão» Stephen Green de Hurstpierpoint do condado do Sussex ocidental. Nada disto pode acontecer por acaso. Para um homem de negócios que permitiu o branqueamento de dinheiros dos «barões» da droga, trata-se duma bela promoção. À conta disso torna-se membro da Câmara dos Lordes em 22 de Novembro de 2011. Se lessem isto num blog, diriam certamente que o autor estava a exagerar.

Em Dezembro de 2010 demite-se da presidência do HSBC e em Fevereiro de 2011 sobe a ministro do Comércio e Investimento. Depois de empossado no cargo, coloca os seus bons serviços à disposição do patronato britânico, com o qual mantém relações muito frutuosas e estreitas, uma vez que desde Maio de 2010 ocupa o posto de vice-presidente da Confederação da Indústria Britânica.
 
Desempenha um papel igualmente importante na promoção de Londres, que se prepara para receber os Jogos Olímpicos em Julho de 2012. É durante esse mês que uma comissão norte-americana envia o seu relatório sobre a questão do HSBC. Stephen Green recusa responder às perguntas dos membros da Câmara dos Lordes em relação à sua implicação no escândalo. É protegido pelo presidente do grupo dos lordes conservadores, que diz que um ministro não tem de vir diante do Parlamento dar explicações sobre negócios estranhos ao seu ministério.

David Cameron afirmou em 2013 que lorde Green fez um «soberbo trabalho» ao intensificar os esforços do Governo britânico para reforçar as exportações britânicas, para fazer avançar os tratados comerciais e especialmente o tratado transatlântico entre a União Europeia e os EUA. Lorde Green esforçou-se muito para aumentar as vendas de armas britânicas nos mercados mundiais. Terminou o seu mandato de ministro em Dezembro de 2013 e dedicou o seu precioso tempo a dar conferências (certamente muito bem remuneradas) e a receber os favores propiciados por numerosas autoridades acadêmicas.

A sua carreira certamente não ficará por aqui. A sua hipocrisia não tem limites. Em Março de 2009, quando o HSBC estava metido até ao pescoço na lavagem de dinheiros de organizações criminosas, Green teve o descaramento de declarar, numa conferência de imprensa a propósito das responsabilidades na crise iniciada em 2007-2008: «Estes acontecimentos evocam a questão da ética do sector financeiro. Dá a impressão que, muito frequentemente, os responsáveis não se perguntam se as suas decisões são correctas e apenas se ralam com a sua legalidade e conformidade aos regulamentos. É necessário que este sector retome o sentido da correcção ética como motor das suas actividades.» É assim que Stephen Green, vampiresco tubarão, navegando acima das leis, se dirige aos sabujos que vão pressurosos repercutir as suas belas palavras na grande imprensa.

Green e todos quantos organizaram o branqueamento de dinheiro no seio do HSBC devem responder pelos seus atos perante a justiça e ser condenados severamente, sofrer privação de liberdade e ser obrigados a realizar trabalhos de utilidade pública. O HSBC deveria ser encerrado e a direcção despedida. Em seguida o mastodonte HSBC deveria ser retalhado, sob controlo cidadão, numa série de bancos públicos de média dimensão, cujas missões seriam estritamente definidas e exercidas no quadro dum estatuto de serviço público.

Tradução: Rui Viana Pereira

Revisão: Maria da Liberdade

ODiario.info » “Se a Frente Ampla com Mujica já está à direita, o que vem agora com Tabaré vai ser pior”.

“Se a Frente Ampla com Mujica já está à direita, o que vem agora com Tabaré vai ser pior”.



No Uruguai, como em outros lados, governantes com um discurso de esquerda governam à direita. E, como diz Zabalza, “o que realmente determina na América Latina é o tema do imperialismo”. Num quadro de intensificação da ofensiva imperialista contra os processos progressistas ali em curso, parte determinante da definição da correlação de forças está nos povos destes países. Porque estes governos já se sabe para que lado cairão.



Falar com Jorge Zabalza é fazê-lo com um pedacito irredutível da luta do MLN Tupamaros dos anos 60 e 70. Irmão de Ricardo, outro “tupa” caído em combate quando o Movimento guerrilheiro ocupou a localidade de Pando em 8 de Outubro de 1969, e eterno reivindicador de Raúl “Bebe” Sendic, o falecido líder da tupamaragem revolucionaria e artiguista.
Zabalza foi um dos muitos reféns da ditadura, que esteve preso 13 anos em duríssimas condições. Depois, já em liberdade, foi um digno edil montevideano que se opôs à espúria concessão do Casino de Carrasco, como desejava o presidente da câmara frenteamplista. A sua decisão provocou um terramoto na Frente e levou até à renúncia do próprio Tabaré Vázquez, que a presidia.
Com o tempo, Zabalza continuou reivindicando a rebeldia e os princípios das suas origens, enquanto vários dos seus companheiros de prisão e de luta foram tomando outros rumos no plano político e também no ideológico. Hoje, Zabalza converteu-se num franco-atirador (guevarista-bolivariano-artiguista) que incomoda o poder, uma vez que não se cala perante as injustiças e muito menos ante as involuções no campo das ideias. Por tudo isso, entrevistar o Tambero (a alcunha por que é conhecido no Uruguai e no mundo) oferece muitos títulos jornalísticos estimulantes. Escutemo-lo então.
-Pouco antes de Pepe Mujica assumir o Governo, muitos dos seus seguidores afirmavam que “agora sim vai radicalizar-se o processo”. ¿Qual é sua opinião sobre o ocorrido neste mandato do seu ex companheiro do MLN Tupamaros?
-Essa era uma leitura bastante parcial, uma vez que Mujica sempre apoiou o modelo económico que patrocinava o actual vice-presidente Danilo Astori, ligado às corporações multinacionais. No fundamental, Tabaré, Mujica e Astori têm uma coincidência plena no “Uruguai produtivo” que temos: plantar soja transgénica com agro-tóxicos, florestação de eucalipto e de pinheiro, mega-mineração. Um país absolutamente dependente das corporações, com o capital estrangeiro a governar. Eles a única coisa que fazem é mudar o cenário para que nada mude: um ano Tabaré, logo Mujica, agora voltaria Tabaré novamente. Disfarçam o discurso e a aparência, um dia Mujica apresenta-se popularucho, outro dia filosofa, sempre com grandes contradições, ou grandes discursos para depois fazer tudo ao contrário. Tabaré aparece mais doutoral, Astori pressupõe que sabe tudo e logo não sabe onde meter-se quando não pode com a inflação.
-Face a estas questões quase de senso comum no que diz respeito aos deficits, ¿o que é que passa com a base da Frente Ampla o do próprio Movimento de Participação Popular? ¿Não se rebelam? ¿É assim tão forte o verticalismo?


-Começa a aparecer lentamente um certo desengano. É evidente que esta campanha de Tabaré Vázquez não é acompanhada pelo mesmo entusiasmo que teve a que o levou ao Governo em Março de 2005. Eles queixam-se de que vai pouca gente às iniciativas, estão a dizer que não têm militância. Como querem tê-la se depois fazem tudo ao contrário daquilo que prometem. Havia uma expectativa de que com a chegada do “grande Tabaré” as massas iam acorrer à convocatória. Mas não é assim. Inclusivamente as últimas sondagens indicam que todos os partidos juntos superam a Frente Ampla e portanto corre muito risco a maioria parlamentar, o que os preocupa.
O certo é que há uma grande despolitização e desideologização da campanha eleitoral, que provoca que as pessoas não tenham entusiasmo. Querem vender-lhes através da publicidade eleitoral este sabonete ou aquele sabonete, mas são todos a mesma coisa.
-Em uma das paredes do Cerro de Montevideo, pudemos ver um mural que dizia: “Do realismo à traição”, no sentido de que Mujica sempre disse que “esta é a realidade, o mundo mudou”, e há outros militantes que pensam que “na realidade os princípios foram traídos”. ¿Que pensa destas opiniões?
-Creio que Mujica fez uma opção política pelo capitalismo. Em algum momento, a (Fernández) Huidobro, Mujica, Bonomi quebrou-se-lhes aquela fibra de querer mudar o mundo e fazer uma opção pelos trabalhadores, e perderam a convicção. Então incorporaram-se nas fileiras de todos aqueles a quem combatíamos, como os estancieiros do Uruguai que geram latifúndio, que o Governo protege. Não houve um só choque com o imperialismo. Quando toda a América Latina se levanta contra o Imperio e saímos à rua em defesa da Venezuela, Mujica toma uma atitude de “grande conciliador”. A direita de Venezuela vem buscá-lo e ele diz que sim, que vai ali resolver tudo, e por sorte Maduro disse-lhe que “não, obrigado”.
Houve aqui uma mudança ideológica porque se quebrou a vontade de lutar a estes companheiros. Em algum momento da sua carreira como Tupamaros e revolucionários, em algum calabouço, deixaram as convicções.
-Entretanto, têm surgido algumas reivindicações que geram mobilizações multitudinárias, como a luta pela terra.
-Essa é uma expectativa que todos temos, de como se está a reagir. Dizem, tal como em relação a outros países da América Latina, que no Uruguai se reduziu a pobreza, mas a terça parte da população tem um rendimento inferior a 14 mil pesos, quando o cabaz básico é superior a 50 mil. São pobres, não têm como cobrir as suas necessidades básicas. Esse descontentamento está ali, larvar.
Por sorte, face a empreendimentos como a mina a céu aberto Aratirí que vai ocupar cerca de 40 mil hectares, ou perante as injustiças que estão ocorrendo com os trabalhadores nos laranjais, há gente que reage. Em defesa da água e da terra e de todos os recursos naturais. Com as pessoas em movimento e lutando há possibilidade de fazer política que tenha um sentido revolucionário. Não estamos a falar de fazer uma Revolução agora, mas sim de poder apontar um caminho, um horizonte que seja revolucionário.
-¿Sendic continua sendo um ícone para os rebeldes do Uruguai?
-Naturalmente. Se não fosse assim, ¿por que crê que alguns se fazem esquecidos de Sendic? ¿Porquê quando chegam os Tupamaros ao governo nenhum se lembra de dizer ¡Viva Sendic! vamos reivindicar as suas ideias e o seu pensamento revolucionário? Porque Sendic tinha um projecto político, e fique claro que não falo dos anos 70 mas de depois de sairmos das prisões, de construir uma Frente a partir das bases, com quatro propostas: não pagar a dívida externa; fazer uma reforma agrária, expropriando os latifundiários sem indemnização e passando a propriedade das terras ao Estado; estatizar a Banca, e elevar o salário ao mesmo poder aquisitivo que tinha nos anos 60. Isso significava outro modelo de Uruguai, um modelo de produção e de capital investido para o povo, de outra forma de vida. Tinha uma orientação de não respeitar a classe dominante, de chocar com ela e não de lhe fazer reverências.
Como actualmente nenhum dos ex guerrilheiros que estão no Governo pode reivindicar esse programa, porque estão fazendo o oposto e estão entregando o país ao capital estrangeiro, Sendic vive clandestino no coração do povo. Nós, sempre que podemos, tratamos de o retirar dessa clandestinidade. Este ano vai haver uma marcha com a gente da UTAA (Unión de Trabajadores Azucareros de Artigas), que vêm de Bella Unión, os trabalhadores laranjeiros de Paysandú, os companheiros de Tacuarembó e de Rivera, e gente do MST do Brasil, vamos ao Cemitério para o homenagear.
A nossa ideia é que os jovens que hoje estão lutando levantem o legado de Sendic, que saibam que os Tupamaros não eram como os que estão governando o Uruguai. Que os Tupamaros tinham dignidade, bandeiras e queriam uma Revolução agrária, a mesma que fez Artigas.
-Passando da épica à realidade: ¿que vai fazer Zabalza nas próximas eleições presidenciais do mês de Outubro?
-Zabalza não quer votar em ninguém. Não vou votar em Tabaré Vazquez. Se a Frente Ampla com Mujica está à direita, o que vem agora para o Uruguai vai ser pior. Com ele podemos esperar um Tratado de Livre Comercio com os Estados Unidos. Se houver mobilização popular, Tabaré vai dar pauladas, que ninguém duvide. Vai ser como Rodríguez Zapatero em Espanha, ou como a social-democracia grega. Portanto, não há que votar em Tabaré. Há gente que nos diz, “mas não há nada melhor, votar na direita é pior”, e eu afirmo que Tabaré é a direita, com tanta soberba e arrogância como os outros candidatos da direita tradicional. Nós vamos apelar a não votar, ou a votar nulo ou em branco.
-¿Quais são as razões para que, depois de tanto tempo, a esquerda mais rebelde não se possa unir e marchar em conjunto?
-Ao não haver uma grande mobilização e luta popular não surgem propostas unitárias. O calor da luta das gentes ajudaria muito a juntar-nos. Se não existe uma retaguarda, o povo com espírito insurrecto, como dizia o Che Guevara, não existe vanguarda.
-¿Preocupa-o a situação de Venezuela, atacada externa e internamente pelo Império?
-Preocupa-me muito. O mundo mudou nestes últimos dez anos. A Rússia parou o carro dos EUA na Síria e agora está a ganhar-lhe a “coreiada” na Ucrânia, e os norte-americanos não se vão atrever a intervir directamente e acabarão por meter a viola no saco. Então, resta-lhes a América Latina, e em especial Venezuela, Cuba, Brasil. Creio que nos próximos anos haverá que esperar que o imperialismo procure concentrar-se naquilo que continuam a chamar o seu “pátio das traseiras”. Vai ser tempo de definições, e é aí que regressamos à situação uruguaia. Seguramente, Tabaré vai definir-se pela Aliança do Pacífico ou aliar-se com a direita fascista do continente.
-Como não é diplomata, pergunto-lhe como se vê desde o Uruguai a situação argentina.
-Essa sim que é uma pergunta difícil. Há um modelo económico que pretende ter uma aparência mais ligada à defesa do nacional, mas por outro lado assinam os contratos com Chevrón, que significam uma entrega total do país. Por um lado, na Argentina estão a ser processados e enviados para a prisão muitos verdugos e torturadores, os assassinos da época do terrorismo de Estado, e por outro lado os trabalhadores de Las Heras são condenados a prisão perpétua. É um autêntico disparate. É continuamente uma no cravo e outra na ferradura. Eu creio que o que realmente determina na América Latina é o tema do imperialismo. Maduro combate abertamente contra os EUA, Correa expulsa a base ianque de Manta, Evo Morales expulsa o embaixador dos EUA. Em contrapartida, Cristina Fernández não se sabe se apoia ou não essas posições, umas vezes é sim, outras vezes é não. Apesar de que estão um pouco desavindos, é como Mujica: tanto te digo uma coisa, como te digo outra… Mujica há 20 dias que está dizendo que vai visitar Obama, e depois diz que não pode por razões várias. Mas nunca diz, “não, não vou porque os EUA assassinaram no Iraque, no Afeganistão, na Síria ou na Líbia”. Em vez disso, informa que “não se sente bem”, ou afirma que o vai visitar “porque a embaixadora dos EUA no Uruguai é muito simpática e nos trata sempre bem”. Jamais toma uma posição política e ideológica face ao imperialismo. E Cristina Fernández faz o mesmo.
-Outro tema pendente no Uruguai é o não julgamento dos militares genocidas.
-O problema dos direitos humanos no Uruguai não é apenas a cerrada defesa da impunidade que estão fazendo o Poder Judicial por um lado e o Governo com a sua política de esquecimento e perdão. Agora aparece este tema de que Mujica, por presumíveis razões humanitárias, vai trazer cinco prisioneiros de Guantánamo, a pedido de Obama. Entretanto, não dá conta dos adolescentes que estão presos nos centros de reclusão e que estão algemados. As autoridades actuais das prisões de menores gabam-se de que já não há fugas, mas se não há é porque os presos têm algemas nos pulsos e nos tornozelos. ¿Isto não são direitos humanos? E o facto comprovado de que nas esquadras do Uruguai se tortura ou a violência policial que há nos bairros, ou nos estádios. ¿Isso não são direitos humanos? Estes que nos governam acostumaram-se a ter um discurso que parece de esquerda, e que a nível internacional provoca aplausos, mas a realidade é que há tempo que nenhum genocida é processado, e que ultimamente, dos que haviam sido declarados culpados por assassinar companheiros nossos, têm sido deixados en liberdade. Essa é a grande contradição uruguaia: grandes discursos, mas na prática tudo ao contrário.

Fonte original: Resumen Latinoamericano

Rebelión publicou este artígo com autorização do autor mediante uma licença de Creative Commons, respeitando a sua liberdade para o publicar em outras fontes.

segunda-feira, 28 de abril de 2014

ODiario.info » A invasão israelita de Gaza e os campos marinhos de gás

A invasão israelita de Gaza e os campos marinhos de gás
Michel Chossudovsky
28.Abr.14 :: Outros autores
Na costa de Gaza há umas imensas reservas de gás descobertas em 2000. Este artigo traça o quadro histórico dos antecedentes da ofensiva sionista de 2008, e do seu objectivo de acrescentar ao roubo da terra e da água ao povo palestino o roubo dos seus recursos energéticos costeiros. Num quadro que ajuda também a compreender a crescente concertação entre a Turquia e Israel. 

Altamiro Borges: A origem e o significado do 1º de Maio

A origem e o significado do 1º de Maio

Por Altamiro Borges

“Se acreditais que enforcando-nos podeis conter o movimento operário, esse movimento constante em que se agitam milhões de homens que vivem na miséria, os escravos do salário; se esperais salvar-vos e acreditais que o conseguireis, enforcai-nos! Então vos encontrarei sobre um vulcão, e daqui e de lá, e de baixo e ao lado, de todas as partes surgirá a revolução. É um fogo subterrâneo que mina tudo”. Augusto Spies, 31 anos, diretor do jornal Diário dos Trabalhadores. 
“Se tenho que ser enforcado por professar minhas idéias, por meu amor à liberdade, à igualdade e à fraternidade, então nada tenho a objetar. Se a morte é a pena correspondente à nossa ardente paixão pela redenção da espécie humana, então digo bem alto: minha vida está à disposição. Se acreditais que com esse bárbaro veredicto aniquilais nossas idéias, estais muito enganados, pois elas são imortais''. Adolf Fischer, 30 anos, jornalista. 

“Em que consiste meu crime? Em ter trabalhado para a implantação de um sistema social no qual seja impossível o fato de que enquanto uns, os donos das máquinas, amontoam milhões, outros caem na degradação e na miséria. Assim como a água e o ar são para todos, também a terra e as invenções dos homens de ciência devem ser utilizadas em benefício de todos. Vossas leis se opõem às leis da natureza e utilizando-as roubais às massas o direito à vida, à liberdade e ao bem-estar”. George Engel, 50 anos, tipógrafo.

“Acreditais que quando nossos cadáveres tenham sido jogados na fossa tudo terá se acabado? Acreditais que a guerra social se acabará estrangulando-nos barbaramente. Pois estais muito enganados. Sobre o vosso veredicto cairá o do povo americano e do povo de todo o mundo, para demonstrar vossa injustiça e as injustiças sociais que nos levam ao cadafalso”. Albert Parsons lutou na guerra da secessão nos EUA.

As corajosas e veementes palavras destes quatro líderes do jovem movimento operário dos EUA foram proferidas em 20 de agosto de 1886, pouco após ouvirem a sentença do juiz condenando-os à morte. Elas estão na origem ao 1º de Maio, o Dia Internacional dos Trabalhadores. Na atual fase da luta de classes, em que muitos aderiram à ordem burguesa e perderam a perspectiva do socialismo, vale registrar este marco histórico e reverenciar a postura classista destes heróis do proletariado. A sua saga serve de referência aos que lutam pela superação da barbárie capitalista. 

A origem do 1º de Maio está vinculada à luta pela redução da jornada de trabalho, bandeira que mantém sua atualidade estratégica. Em meados do século XIX, a jornada média nos EUA era de 15 horas diárias. Contra este abuso, a classe operária, que se robustecia com o acelerado avanço do capitalismo no país, passou a liderar vários protestos. Em 1827, os carpinteiros da Filadélfia realizaram a primeira greve com esta bandeira. Em 1832, ocorre um forte movimento em Boston que serviu de alerta à burguesia. Já em 1840, o governo aprova o primeiro projeto de redução da jornada para os funcionários públicos. 

Greve geral pela redução da jornada 
Esta vitória parcial impulsionou ainda mais esta luta. A partir de 1850, surgem as vibrantes Ligas das Oito Horas, comandando a campanha em todo o país e obtendo outras conquistas localizadas. Em 1884, a Federação dos Grêmios e Uniões Organizadas dos EUA e Canadá, futura Federação Americana do Trabalho (AFL), convoca uma greve nacional para exigir a redução para todos os assalariados, “sem distinção de sexo, ofício ou idade”'. A data escolhida foi 1º de Maio de 1886 - maio era o mês da maioria das renovações dos contratos coletivos de trabalho nos EUA. 

A greve geral superou as expectativas, confirmando que esta bandeira já havia sido incorporada pelo proletariado. Segundo relato de Camilo Taufic, no livro “'Crônica do 1º de Maio”, mais de 5 mil fábricas foram paralisadas e cerca de 340 mil operários saíram às ruas para exigir a redução. Muitas empresas, sentindo a força do movimento, cederam: 125 mil assalariados obtiveram este direito no mesmo dia 1º de Maio; no mês seguinte, outros 200 mil foram beneficiados; e antes do final do ano, cerca de 1 milhão de trabalhadores já gozavam do direito às oito horas. 

“Chumbo contra os grevistas”, prega a imprensa 
Mas a batalha não foi fácil. Em muitas locais, a burguesia formou milícias armadas, compostas por marginais e ex-presidiários. O bando dos “'Irmãos Pinkerton” ficou famoso pelos métodos truculentos utilizados contra os grevistas. O governo federal acionou o Exército para reprimir os operários. Já a imprensa burguesa atiçou o confronto. Num editorial, o jornal Chicago Tribune esbravejou: “O chumbo é a melhor alimentação para os grevistas. A prisão e o trabalho forçado são a única solução possível para a questão social. É de se esperar que o seu uso se estenda”. 

A polarização social atingiu seu ápice em Chicago, um dos pólos industriais mais dinâmicos do nascente capitalismo nos EUA. A greve, iniciada em 1º de Maio, conseguiu a adesão da quase totalidade das fábricas. Diante da intransigência patronal, ela prosseguiu nos dias seguintes. Em 4 de maio, durante um protesto dos grevistas na Praça Haymarket, uma bomba explodiu e matou um policial. O conflito explodiu. No total, 38 operários foram mortos e 115 ficaram feridos. 

Os oito mártires de Chicago 
Apesar da origem da bomba nunca ter sido esclarecida, o governo decretou estado de sítio em Chicago, fixando toque de recolher e ocupando militarmente os bairros operários; os sindicatos foram fechados e mais de 300 líderes grevistas foram presos e torturados nos interrogatórios. Como desdobramento desta onda de terror, oito líderes do movimento - o jornalista Auguste Spies, do “'Diário dos Trabalhadores”', e os sindicalistas Adolf Fisher, George Engel, Albert Parsons, Louis Lingg, Samuel Fielden, Michael Schwab e Oscar Neebe - foram detidos e levados a julgamento. Eles entrariam para a história como “Os Oito Mártires de Chicago”. 

O julgamento foi uma das maiores farsas judiciais da história dos EUA. O seu único objetivo foi condenar o movimento grevista e as lideranças anarquistas, que dirigiram o protesto. Nada se comprovou sobre os responsáveis pela bomba ou pela morte do policial. O juiz Joseph Gary, nomeado para conduzir o Tribunal Especial, fez questão de explicitar sua tese de que a bomba fazia parte de um complô mundial contra os EUA. Iniciado em 17 de maio, o tribunal teve os 12 jurados selecionados a dedo entre os 981 candidatos; as testemunhas foram criteriosamente escolhidas. Três líderes grevistas foram comprados pelo governo, conforme comprovou posteriormente a irmã de um deles (Waller). 

A maior farsa judicial dos EUA 
Em 20 de agosto, com o tribunal lotado, foi lido o veredicto: Spies, Fisher, Engel, Parsons, Lingg, Fielden e Schwab foram condenados à morte; Neebe pegou 15 anos de prisão. Pouco depois, em função da onda de protestos, Lingg, Fielden e Schwab tiveram suas penas reduzidas para prisão perpétua. Em 11 de novembro de 1887, na cadeia de Chicago, Spies, Fisher, Engel e Parsons foram enforcados. Um dia antes, Lingg morreu na cela em circunstâncias misteriosas; a polícia alegou “suicídio”. No mesmo dia, os cinco “'Mártires de Chicago” foram enterrados num cortejo que reuniu mais de 25 mil operários. Durante várias semanas, as casas proletárias da região exibiram flores vermelhas em sinal de luto e protesto. 

Seis anos depois, o próprio governador de Illinois, John Altgeld, mandou reabrir o processo. O novo juiz concluiu que os enforcados não tinham cometido qualquer crime, “tinham sido vitimas inocentes de um erro judicial”. Fielden, Schwab e Neebe foram imediatamente soltos. A morte destes líderes operários não tinha sido em vão. Em 1º de Maio de 1890, o Congresso dos EUA regulamentou a jornada de oito horas diárias. Em homenagem aos seus heróis, em dezembro do mesmo ano, a AFL transformou o 1º de Maio em dia nacional de luta. Posteriormente, a central sindical, totalmente corrompida e apelegada, apagaria a data do seu calendário. 

Em 1891, a Segunda Internacional dos Trabalhadores, que havia sido fundada dois anos antes e reunia organizações operárias e socialistas do mundo todo, decidiu em seu congresso de Bruxelas que “no dia 1º de Maio haverá demonstração única para os trabalhadores de todos os países, com caráter de afirmação de luta de classes e de reivindicação das oito horas de trabalho”. A partir do congresso, que teve a presença de 367 delegados de mais de 20 países, o Dia Internacional dos Trabalhadores passou a ser a principal referência no calendário de todos os que lutam contra a exploração capitalista.

segunda-feira, 21 de abril de 2014

PENSE - Reflexões Espíritas Acerca da Propriedade


  • Reflexões Espíritas Acerca da Propriedade



  •  Eugenio Lara


  • Os bens da terra são um dos fatores fundamentais para a evolução intelecto-moral, pois é mediante sua produção, reprodução e aquisição que o Ser exerce o primeiro de todos os direitos naturais: o direito de viver. É conceituado pelo Espiritismo de uma maneira muito abrangente: é “tudo o quanto o homem pode gozar neste mundo”. Alimentação, vestuário, transporte, lazer, todo o conforto proporcionado pela tecnologia, a produção artística, cultural etc. fazem parte, portanto, dos bens da terra.

    A primeira baliza colocada pelos espíritos na obtenção desses bens está na oposição entre o necessário e o supérfluo. Quanto ao necessário, a Natureza é “uma excelente mãe”, mas em relação ao supérfluo, sempre haverá para uma grande maioria a insuficiência de recursos, a ausência do necessário para viver, do bem-estar, consequências normais do desperdício e má aplicação dos recursos naturais.

    A proposta de uma nova sociedade passa necessariamente pela busca do bem-estar para todos. A igualdade absoluta, conforme os espíritos, é uma quimera, mas a igualdade relativa é algo a ser atingido. Enquanto um grande contingente da humanidade não tiver acesso à posse do necessário para viver, a felicidade nesse mundo será impossível.

    Segundo dados da FAO (Organização para a Alimentação e Agricultura das Nações Unidas), 32% da população mundial (que vive nos países do Primeiro Mundo) consomem 75% dos bens da terra; controlam 88% do PMB (Produto Mundial Bruto); detêm na mão 80% do controle dos investimentos; 90% das atividades industriais e a quase totalidade da produção de pesquisa científica. Esses países são os açambarcadores dos bens da terra, um dos grandes responsáveis, até o momento, pela miséria do Terceiro Mundo.

    Ao nível de nosso país, podem ser citadas algumas informações sobre a distribuição da riqueza que demonstram o grau existente de desigualdade econômica. De 95.704.423 (população economicamente ativa), cerca de 40.447.453 ganham menos de três salários mínimos (IBGE - Anuário Estatístico do Brasil - 1985). Segundo dados fornecidos pelo ex-ministro da Reforma Agrária, Nélson Ribeiro, 67% dos brasileiros ingerem menos calorias diariamente do que o mínimo necessário para a obtenção de um estado de vida digno. A distribuição das terras é extremamente desigual: dos 586 milhões 877 mil e 351 hectares cadastrados pelo INCRA, 413 milhões 797 mil e 19 hectares (quase metade da área do território nacional) estão em poder de quase 1.500.000 latifundiários (3,7% da população brasileira). Os 173 milhões 80 mil 332 hectares restantes, é o que sobra para as 12 milhões de famílias (cerca de 60 milhões de pessoas), um contingente com pouquíssima ou quase nenhuma terra (dados fornecidos pelo INCRA - Revista “População & Desenvolvimento”, abril de 1986).

    Esse estado de desigualdade somente poderá ser modificado através do conflito institucional e/ou político. O conflito armado já está ocorrendo em diversas partes do mundo, inclusive no Brasil, especialmente no campo. Se não podemos, como espíritas, ser a favor da violência em circunstância alguma, temos de considerar que, em certas situações, o conflito armado surge como uma questão de legítima defesa da soberania e autodeterminação de um povo ou grupo social.

    Há uma minoria no Brasil e no Mundo, detentora dos meios de produção e da hegemonia política, que está impedindo a marcha do progresso da humanidade e será arrastada “pela torrente que pretende deter”. Dela, nada podemos esperar. Nesse sentido, a afirmação do presidente da UDR - União Democrática Ruralista, entidade de ultradireita, formada por grandes proprietários de terras é bem ilustrativa: “a propriedade da terra é intocável”. O setor mais reacionário da classe dominante é, sem dúvida, a burguesia agrária e que devido a sua intervenção fascista dentro do campo, só no ano passado foram registradas, até 15/07, 160 mortes (dados do MIRAD) e segundo dados da Comissão Pastoral da Terra e da CONTAG, em cada dois dias morrem cerca de três pessoas.

    A luta pela posse da terra é ainda a luta fundamental dos trabalhadores do campo e da cidade. Os meios de produção são de propriedade particular, os interesses do capital se sobrepõem aos direitos do trabalhador. O objetivo de nossa sociedade ainda é o lucro em detrimento da realização do homem, do bem-estar coletivo. É preciso que o sistema econômico atual fundamentado na propriedade privada dos meios de produção seja destruído: uma tarefa que depende da ação de homens progressistas e da grande massa de expropriados e explorados do Brasil e do mundo.

    O Espiritismo estabelece uma diferenciação entre a propriedade pessoal, fruto do trabalho honesto e a “propriedade destinada ao uso geral” (Deolindo Amorim - “O Espiritismo e os Problemas Humanos”, cap. V - USE). São dois conceitos bem distintos, que devido a interesses ideológicos dos defensores da propriedade privada dos meios de produção, têm sido confundidos num único princípio.

    A verdadeira propriedade são as nossas conquistas intelecto-morais. Esse conceito, fundamentado na ideia do Ser imortal e na transitoriedade da existência física, ao lado da compreensão dos princípios fundamentais do Espiritismo, estabelece inevitavelmente uma nova ética para a aquisição dos bens da terra, seja na forma individual ou coletiva.

    A acumulação e o gozo dos bens da terra não são contrários à Ética Espírita, porém, devem ocorrer em família, em comunidade, sem a presença do egoísmo e do orgulho, chagas corrosivas de qualquer ordem econômica, seja capitalista, pré-socialista ou socialista.

    Em relação à propriedade de uso geral ou coletiva, a proposta espírita é nitidamente cooperativista, distributiva e igualitária. A propriedade conseguida através da apropriação da mais-valia, do trabalho não-pago ao trabalhador é ilegítima; a sua legitimidade deve se fundamentar na liberdade de produção e aquisição de bens, em sua distribuição igualitária na obtenção da posse do necessário para viver e na solidariedade e fraternidade entre os trabalhadores.

    Os que se opõem à coletivização da propriedade de uso geral ou coletiva, o fazem em nome da “liberdade” (entenda-se livre-iniciativa, “laissez-faire”) e colocam a propriedade como um bem inviolável, absoluto. Ora, essa “liberdade” defendida pela burguesia não tem nada a ver com a liberdade de se adquirir um carro, uma habitação, um bem de uso pessoal. É necessário limitar a produção e aquisição dos bens da terra à posse do necessário para viver.

    Sobre os limites ao direito de propriedade, Kardec pergunta:
    885. O direito de propriedade é sem limites? – “Sem dúvida, tudo o que é legitimamente adquirido é uma propriedade. Mas, como já dissemos, a legislação humana é imperfeita e consagra frequentemente direitos convencionais que a justiça natural reprova. É por isso que os homens reformam suas leis à medida que o progresso se realiza e que eles compreendem melhor a justiça. O que num século parece perfeito, no século seguinte se apresenta como bárbaro.”

    O direito de propriedade, portanto, não é absoluto. Qualquer sistema de leis estará mais próximo das leis naturais se colocar limites à aquisição dos bens terrestres e prever mecanismos que orientem essa aquisição de forma limitada em função do bem-estar para todos, sempre dentro de bases legítimas.

    Isso somente será possível numa nova sociedade, com uma economia socialista e cooperativista, onde os indivíduos em sua grande maioria sejam espíritos em processo de regeneração intelecto- moral. E a nossa tarefa enquanto espíritas idealistas e homens progressistas que somos é construir essa nova sociedade aqui e agora.

    ■ Nota do PENSE: Tema apresentado no painel “Propriedade”, dentro do tema “Espiritismo e Constituinte”, no II Encontro Nacional Sobre o Aspecto Social da Doutrina Espírita, realizado em São Paulo de 28 de fevereiro a 3 e março de 1987.

    Fonte: Abertura - jornal de cultura espírita, maio de 1987. Licespe – Santos-SP.


    Eugenio Lara, arquiteto e designer gráfico, editor do site PENSE - Pensamento Social Espírita [www.viasantos.com/pense], membro-fundador do Centro de Pesquisa e Documentação Espírita (CPDoc), é autor de Breve Ensaio Sobre o Humanismo Espírita e em edição digital: “Racismo e Espiritismo”; “Milenarismo e Espiritismo”; “Amélie Boudet, uma Mulher de Verdade - Ensaio Biográfico”; “Conceito Espírita de Evolução” e “Os Quatro Espíritos de Kardec”.
    E-mail: eugenlara@hotmail.co
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    Cidadão Boilesen - Um dos Empresários que Financiou a Tortura no Brasil ...

    sábado, 19 de abril de 2014

    Em defesa do populismo — CartaCapital

    Internacional

    Entrevista - Ernesto Laclau

    Em defesa do populismo

    Confira uma das últimas entrevistas do sociólogo Ernesto Laclau, um dos teóricos do modelo político que dominou a América Latina no século XX, morto no domingo 13
    por Nathalia Lavigne — publicado 19/04/2014 07:24, última modificação 19/04/2014 09:06

    Ernesto
    O filósofo Ernesto Laclau
    Em Londres
    Ernesto Laclau costumava ser apresentado pela imprensa argentina como o “intelectual do Kirchnerismo”. Embora reducionista, a definição não chega a ser uma inverdade. Um dos principais teóricos do populismo, o sociólogo e filósofo argentino sempre defendeu o projeto político de Nestór e Cristina Kirchner, assim como de outros governos latino-americanos de vocação nacional-popular. Mas tal definição quase sempre vinha acompanhada de outras em tom irônico – “el pensador favorito de la Presidenta”, que escrevia sobre a América Latina de seu sofá em Londres, eram as mais frequentes.
    Laclau não parecia se incomodar com as críticas ao seu apoio ao kirchnerismo. Quando questionado sobre a suposta relação próxima com Cristina, ele garantiu ser um disparate – e contou a Carta Capital uma história que responde às ironias na mesma moeda. “Já falaram de tudo sobre isso. Quando Kirchner ainda estava vivo, disseram até que tinham me chamado à Casa Rosada para dar aulas de oratória para eles”, lembrou. O motivo do mal entendido foi uma brincadeira feita por Cristina de que ele deveria ir até a Casa Rosada explicar ao casal do que se tratava sua complexa teoria do discurso – área de estudo que criou na Universidade de Essex junto com a mulher, a cientista política belga Chantal Mouffe.
    Um dos mais respeitados teóricos políticos da atualidade, Ernesto Laclau morreu na manhã de domingo 13, vítima de um infarto, aos 78 anos. Estava em Sevilha, na Espanha, onde participava de uma conferência com Chantal, com quem compartilhava também a mesma formação socialista e gramsciana. Junto com ela, escreveu um de seus trabalhos mais famosos Hegemony and Socialist Strategy (1985), referência na teoria política pós-marxista. Entre seus livros mais recentes publicados no Brasil está A Razão Populista(Três Estrelas, 2013), lançado em inglês em 2005. Há 45 anos vivendo na Inglaterra, o sociólogo era atualmente professor emérito de teoria política na Universidade de Essex, mesma universidade onde dirigiu o programa Ideologia e Análises do Discurso. Em uma de suas últimas entrevistas, concedida a CartaCapital em 22 de fevereiro, em sua casa, no norte de Londres, ele lamentou a morte de um de seus maiores amigos naquele mesmo mês – o jamaicano também radicado na Inglaterra Stuart Hall, um dos fundadores da área de Estudos Culturais. “Ele era um grande admirador da América Latina, costumava dizer que tínhamos que latino-americanizar a Europa”, contou.
    A conversa durou pouco menos de uma hora – a segunda parte seria feita por telefone, o que acabou não acontecendo. Naquela tarde de sábado, mesmo dia em que o presidente ucraniano Viktor Yanukovich seria deposto, ele analisou a atual onda de manifestações com certa desconfiança. “As mobilizações populares são apenas metade do quadro, sem uma força política, essas mobilizações tendem a não se desenvolver muito”, comentou. A crítica aos protestos se referia também ao contexto venezuelano. Defensor do chavismo, Laclau enxergava nas manifestações uma clara tentativa de desestabilizar o já instável governo de Maduro.
    Confira abaixo os principais trechos da entrevista concedida pelo pensador argentino, em seu “sofá londrino”, quase dois meses antes de sua morte:

    CartaCapital: Seu livro On Populist Reason (A Razão Populista) foi lançado em 2005, ano em que importantes países latino-americanos eram governados por líderes com fortes características populistas. Quase dez anos depois, como o senhor analisa esse momento?
    Ernesto Laclau: Quando falamos de um governo popular na América Latina temos de ver que a nossa tradição de democracia foi muito diferente da tradição europeia, onde no século XIX só havia dois termos: liberalismo e democracia. O primeiro era uma forma muito respeitável de organização do Estado, que existia na França e na Inglaterra, por exemplo, enquanto democracia era um termo pejorativo, como o populismo é hoje. Já na América Latina essa integração de liberalismo e democracia nunca aconteceu da mesma forma. Enquanto na Europa o liberalismo foi associado ao Terceiro Estado, contra a monarquia absolutista, na América Latina o Estado liberal não era nada democrático. No caso do Brasil, por exemplo, o regime da República Velha era impecavelmente liberal, mas nem um pouco democrático. E o desenvolvimento de uma nova consciência de setores excluídos da população no começo do século XX se expressou de uma forma não-liberal: a Coluna Prestes, a Revolução de 1930, e, finalmente, o Estado Novo. Esse processo, que resultou no fortalecimento da autoridade do Poder Executivo, mostra como as massas foram excluídas do jogo parlamentar por décadas e décadas. A Argentina teve um processo parecido, com o peronismo, e a emergência da vontade das massas, enquanto o liberalismo era um componente muito pequeno da experiência peronista. Há uma dualidade em relação à experiência das massas na América Latina. De um lado, a tradição liberal-democrática, de outro o nacional-popular. O primeiro tenta produzir uma democratização interna do Estado liberal - Rui Barbosa, no Brasil, é um exemplo. De outro lado, houve a tradição nacional-popular, que dominou a maior parte dos países latino-americanos nos anos 1920, 1930 e 1940. Hoje, pela primeira vez, há uma confluência do respeito às normas liberais do Estado e a prevalência da tradição nacional-popular. Esses dois sistemas não são mais tão separados como antes, na primeira fase do populismo. Neste segunda fase as coisas são diferentes, e provavelmente vão continuar muito diferentes da democracia europeia, no sentido de que a figura do presidente, o poder democrático, é o poder executivo. Se pensarmos em Chávez, em Lula, em Kirchner, em Evo Morales, em todos esses exemplos há uma tradição nacional-popular, mas que respeita os princípios do estado liberal.
    CC: A Venezuela vem passando por uma situação política delicada nos últimos meses. Como o senhor analisa esse momento de transição e instabilidade no país?
    EL: Claro que a morte de Chávez representou um grande golpe para o projeto nacional-popular na Venezuela, e as forças da oposição tentaram tirar vantagem de toda essa instabilidade gerada. Eles estão tentando que essa transição não aconteça. Se pensarmos nas campanhas de figuras como Leopoldo López, está claro que ele representa uma tendência golpista. Ele não está querendo ganhar a eleição, mas desestabilizar o governo. E essa tem sido uma tendência da oposição na Venezuela. A questão é se esses protestos vão desestabilizar sem afetar a base do sistema, ou se vão avançar em uma direção em que a base não poderá ser mantida. Se isso acontecer, será um rompimento radical com o projeto do chavismo. Mas, até agora, o que parece é que essas mobilizações não serão capazes de desestabilizar o sistema a esse ponto. Este é um momento de uma típica guerra de posição, no sentido gramsciniano, em que há um processo molecular acontecendo na sociedade – é preciso esperar um pouco para ver como eles vão se cristalizar.
    CC: O senhor tem acompanhado os protestos na Ucrânia? Qual sua opinião sobre esta e outras mobilizações populares espalhadas por diversos países nos últimos anos?
    EL: A formação das alternativas populares tem duas dimensões: a da autonomia e a da hegemonia. A primeira seria a mobilização de setores excluídos da esfera pública para serem incorporados a ela, como aconteceu no caso dos piqueteros na crise econômica da Argentina, em 2001. O que foi inteligente do Kirchner foi criar canais de comunicação com esses grupos. Essa é a dimensão da autonomia. Já a dimensão da hegemonia envolve a transformação dos aparatos do Estado. Se um grupo confia exclusivamente na dimensão da autonomia, o Estado permanece inalterado, e a mobilização tende a desaparecer. Isso aconteceu com os Indignados, na Espanha. Era um grande movimento social, mas eles não tinham objetivos políticos claros e por isso perderam a força. Por outro lado, se você confiar totalmente na transformação burocrática, a dimensão da hegemonia, sem a dimensão da autonomia, você terá governos burocráticos e sem capacidade de promover perspectivas de mudanças. No caso de Kiev, esta parece uma mobilização popular bem-sucedida pelo fato de ter atingido o aparato do Estado. A questão é o que acontece depois. Eu me lembro que, logo após a Primavera Árabe, as pessoas estavam muito animadas. Acho que devemos sempre esperar para ver qual vai ser o resultado. As mobilizações populares são apenas metade do quadro. Elas também podem levar a uma estabilização de regimes que não serão nem capazes de lidar com o desafio democrático pela frente, ou não têm interesse em seguir esse objetivo. O que está acontecendo no Egito é um exemplo. Quatro anos depois das mobilizações populares, o país ainda é incapaz de estabelecer um regime político estável.
    CC: Nos últimos meses, houve uma forte desvalorização do peso na Argentina, a maior nos últimos 12 anos. O senhor não acha que isso demostra uma inabilidade do governo Kirchner em manter uma estabilidade econômica no país?
    EL: A política econômica do governo Cristina e, anteriormente, de Kirchner, sempre trabalhou no sentido de evitar os efeitos da crise internacional e manter uma relativa autonomia no desenvolvimento econômico. Desde a fim da negociação do projeto neoliberal da Alca, no qual o Brasil teve um papel muito importante, a prioridade tem sido a de garantir uma certa autonomia do país, de não aceitar mais pressões de órgãos financeiros internacionais. O objetivo agora deve ser controlar a inflação, de uma forma ou de outra [comprometendo o câmbio ou não].
    CC: É verdade que o senhor atua como uma espécie de conselheiro político de Cristina Kirchner?
    EL: Não, de maneira nenhuma. Já estive com ela algumas vezes, mas ela nunca me pediu conselhos sobre absolutamente nada. Já falaram de tudo sobre isso. Uma vez, após um desses encontros, ela me acompanhou até a porta do seu escritório, e havia alguns jornalistas do lado de fora. Antes de ir embora, ela me disse 'Precisamos combinar um encontro para você nos explicar do que se trata a sua teoria do discurso'. No dia seguinte, publicaram que a presidenta tinha me pedido para lhe dar aulas de oratória (risos).

    sexta-feira, 18 de abril de 2014

    Altamiro Borges: Gabriel García Márquez e o jornalismo

    Gabriel García Márquez e o jornalismo

    Por Luciano Martins Costa, noObservatório da Imprensa:

    A morte de Gabriel García Márquez surpreendeu a imprensa de todo o mundo na quinta-feira (17/4), embora boatos tenham anunciado que ele esperava junto de sua família o desfecho da doença que o acometia. Gabo já não tinha vigor para outro combate com o câncer, que em 1999 havia interrompido um de seus projetos mais instigantes.

    Na sexta-feira (18), os jornais fazem longos obituários, ressaltando sua obra literária, na qual se destaca Cem Anos de Solidão, o estonteante romance que é tido como a metáfora perfeita dos rincões mais profundos da América Latina. Os comentários repetem à exaustão as referências a ele como fundador do estilo literário que ficou conhecido como “realismo mágico”, expressão que ele não reconhecia como definidora de sua obra. Aquilo que para os outros parecia magia era o modo como ele enxergava a realidade.

    Os privilegiados que puderam observá-lo de perto sabem que ele vivia em um estado que excedia os parâmetros comumente aceitos como definidores daquilo que existe. Realidade e imaginação se completavam. No convívio mais próximo, impressionava o modo como saltava rapidamente de um tema complexo para possibilidades radicais, num encadeamento de palavras que mesclavam reflexões profundas com brincadeiras pueris e provocações.

    Foi assim com os dez jornalistas que convidou para aquele projeto, em 1997, que ele intitulou “jornalismo ideal”. Era o tempo de consolidação das tecnologias de informação e comunicação que viriam a revolucionar o modo como o ser humano se comunica e se informa, e ele se juntou ao grupo para liderar o desenvolvimento de uma visão de futuro para o jornalismo.

    Este observador era um dos participantes.

    Durante meses, cada um em sua cidade, e posteriormente em Cartagena de Índias, na Colômbia, e depois em San Miguel de Allende, no México, o grupo se dedicou a imaginar como poderia ser uma imprensa capaz de se aventurar no território ilimitado da internet, abrindo-se para a sociedade e compartilhando com o público o poder de definir o que é relevante entre os fatos de cada dia.

    O zumbido da ética
    O projeto foi concluído no final de 1998 e deveria ser levado a redações e escolas de jornalismo pelo mundo afora, com uma série de recomendações e propostas que tinham como objetivo provocar uma ruptura no modo como é feita a interpretação e mediação dos acontecimentos pela imprensa. A doença surpreendeu a todos, mas aquelas reflexões permaneceram no currículo da Fundação para o Novo Jornalismo Iberoamericano, idealizado por Gabriel García Márquez e dirigido pelo intelectual Jaime Abello Banfi.

    No fundo, o propósito era romper alguns processos tradicionais do trabalho jornalístico, abrindo a possibilidade de compartilhamento das escolhas com o leitor. Cabia ao designer Roger Black elaborar os meios pelos quais haveriam de conviver textos e imagens, de modo que uma nova arquitetura estimulasse a transformação constante do conteúdo pela experiência de cada leitor.

    Gabo era o paradigma: sua presença e suas intervenções apontavam para o horizonte sem limites da imaginação. Era um homem fascinante, um manancial de ideias cuja matriz parecia vir de um profundo sentimento de solidariedade, o mesmo que o fez se aproximar dos protagonistas de algumas das utopias do seu tempo.

    Costumava dizer que o jornalismo deveria perseguir a realidade, e apostava que sempre haveria leitores interessados em acompanhar uma história, desde que fosse contada com talento. Nesse sentido, ele achava que jornalismo e literatura tinham que se mesclar em algum ponto.

    Seu Relato de um Náufrago, primorosa reportagem que resgatou, meses depois de ocorrido, o testemunho do único sobrevivente de um desastre no mar do Caribe, é um modelo dessa possibilidade literária do jornalismo. 

    No entanto, para Gabriel García Márquez, antes da técnica vinha a ética. Ele nos ensinou que essa deve ser a razão de ser da atividade jornalística: uma ética profunda, capaz de justificar a intromissão de alguém na vida do outro. Ele dizia isso com uma metáfora simples e clara: “A ética não é uma condição ocasional, mas deve acompanhar sempre o jornalismo, como o zumbido acompanha o voo da mosca”.

    ODiario.info » Kennedy discutiu o derrube de Goulart dois anos antes do golpe de 1964 no Brasil

    Kennedy discutiu o derrube de Goulart dois anos antes do golpe de 1964 no Brasil

    Documentos desclassificados que acrescentam novos dados à longa história da ingerência imperialista. Historial que de Truman a Kennedy, de Bush a Obama, acumula os mais hediondos crimes contra os povos de todo o mundo. Neste caso com a particularidade de destacar de novo o papel da sinistra figura de Vernon Walters, com quem a Revolução de Abril teve também que se defrontar.

    O presidente John F. Kennedy e seus assessores discutiram o derrubamento do governo de João Goulart uns dois anos antes do golpe militar no Brasil perpetrado no 1º de Abril de 1964, opção que subsequentemente foi implementada pelo governo de Lyndon B. Johnson, segundo revelam transcrições da Casa Branca difundidas pela organização de investigação independente Arquivo de Segurança Nacional.
    Em Julho de 1962 Kennedy quis saber que tipo de relações mantinham os Estados Unidos com os militares brasileiros, e em Março de 1963 deu instruções aos seus assessores: “temos que fazer alguma coisa em relação ao Brasil” se Goulart não deixa de se entender com aquilo a que o presidente chamava “anti-estadunidenses ultra-radicais no governo brasileiro”.


    “Creio que uma das nossas tarefas mais importantes é fortalecer a coluna vertebral dos militares brasileiros”, respondeu Lincoln Gordon, embaixador estadunidense no Brasil, em reunião com Kennedy e o assessor presidencial Richard Goodwin na Casa Branca em 30 de Julho de 1962. Acrescentou que tinha de se “deixar claro, discretamente, que não somos necessariamente hostis a qualquer tipo de acção militar, seja ela qual for, se for claro que o motivo da acção militar é… que (Goulart) está entregando o país aos” …. “comunistas”, interrompeu Kennedy para acabar a frase, segundo a transcrição das gravações secretas de Kennedy das suas reuniões na Sala Oval.
    Foi nessa reunião que Kennedy e a sua equipa decidiram melhorar os seus contactos com os militares brasileiros, tarefa entregue ao então adido militar, tenente-coronel Vernon Walters, resume o Arquivo de Segurança Nacional (National Security Archive). Acrescenta que Walters se tornaria o actor clandestino chave nos preparativos para o golpe de Estado no Brasil, pouco menos de dois anos depois desta reunião.
    O Arquivo de Segurança assinala que os documentos oficiais – as novas transcrições juntamente com outros relatórios oficiais da Casa Branca anteriormente desclassificados – mostram que em finais de 1962 o governo de Kennedy tinha concluído que um golpe de Estado serviria os interesses estadunidenses se os militares brasileiros fossem encorajados a avançar com esse objectivo. A Casa Branca estava incomodada com a política exterior independente de Goulart durante a crise dos mísseis, e com a sua renitência em apoiar, entre outras coisas, o desejo de Washington de expulsar Cuba da Organização de Estados Americanos.


    Em 11 de Dezembro de 1962 o comité executivo do Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca reuniu para avaliar três opções sobre o Brasil. A primeira: não fazer nada; a segunda: colaborar com elementos hostis a Goulart dentro do país com vista a impulsionar o seu derrubamento e; a última: mudar a orientação de Goulart e do seu governo. Optou-se pela terceira mas, segundo o relatório oficial desta reunião, aceitou-se que a opção de promover um golpe devia ser mantida como consideração activa e contínua.
    Pouco depois, em 17 de Dezembro de 1962, Kennedy enviou o seu irmão Robert para apresentar um ultimato a Goulart.
    Robert Kennedy informou Goulart de que Washington tinha sérias dúvidas sobre a futura relação com o Brasil dados os sinais de infiltração de comunistas e nacionalistas de extrema-esquerda em postos civis do governo do país, bem como a oposição que mantinha relativamente a políticas e interesses estadunidenses em geral.
    Em Março de 1963 Goodwin recomendava ao presidente que caso Goulart continuasse renitente em modificar a sua postura, os Estados Unidos deveriam preparar o mais prometedor clima possível para a sua substituição por um regime mais desejável, segundo transcrições das gravações.
    Numa reunião na Casa Branca em 7 de Outubro de 1963, o presidente debateu se os Estados Unidos necessitariam de derrubar Goulart, incluindo uma intervenção militar. Foram elaborados, sob a direcção do embaixador Gordon, vários planos de contingência destacando a possibilidade de uma intervenção armada, que foram transmitidos da embaixada a Washington em 22 de Novembro de 1963 – o dia em que Kennedy foi assassinado.


    Em Março de 1964, ao estalar a disputa entre Goulart e os generais brasileiros, o governo de Johnson promoveu e apoiou o crescente descontentamento militar. Segundo um documento secreto de uma reunião de responsáveis da CIA, o Departamento de Estado e a Casa Branca, manifestaram que: “não queremos que o Brasil vá a pouco e pouco pelo cano abaixo enquanto ficamos parados à espera das próximas eleições”.
    A Operação Irmão Sam já tinha sido autorizada por Johnson para permitir que os militares estadunidenses apoiassem os seus congéneres brasileiros, encoberta e abertamente, com armas e tropas se tal fosse necessário para apoiar o golpe.


    Peter Kornbluh, director do projecto sobre o Brasil do Arquivo de Segurança Nacional, comentou que as operações clandestinas de desestabilização política da CIA contra Goulart entre 1961 e 1964 constituem o buraco negro desta história, e apelou a que o governo de Barack Obama desclassifique os arquivos de inteligência desse período sobre o Brasil.
    Os documentos difundidos e analisados encontram-se em Arquivo de Segurança Nacional.
    Nova Iorque, 2 de Abril.

    *Correspondente (La Jornada, quinta-feira, 3 de Abril de 2014)