sábado, 5 de dezembro de 2015

Altamiro Borges: Crise venezuelana e golpe paraguaio

Crise venezuelana e golpe paraguaio

Por Francisco Fonseca, no site Carta Maior:

A admissão do processo de impeachment da presidente Dilma, formalmente deflagrado em 03 de dezembro é o desfecho esperado de uma conjunção de fatores:

1) A derrota eleitoral do PSDB – a quarta consecutiva, nunca é demais relembrar – e do rentismo deletério que representa, o que vem implicando toda sorte de revanchismo antidemocrático

2) ascensão do carbonário deputado Eduardo Cunha, representante do que há de mais escuso na vida “pública”, com seu séquito do “baixo clero” que tem no Congresso um balcão de negócios;

3) Da saída às ruas (e do armário) da direita – com tonalidades protofascistas – proveniente das classes médias superiores, incomodada com a ampliação dos direitos sociais;

4) Do terror apocalíptico promovido pelo Partido da Imprensa Golpista (o conhecido PIG), jamais enfrentado por qualquer governo;

5) Das contradições econômicas do próprio Governo Dilma, notadamente o antissocial e o antidesenvolvimento “ajuste fiscal” levado a cabo por um neoliberal de carteirinha, e, em termos políticos, da tentativa de manutenção da esgarçada “aliança de classes” expressa na lógica da coalizão;

6) Da histórica “lógica privatizante” do Sistema Político brasileiro: financiamento legal e ilegal de campanhas e partidos, igualmente jamais reformado;

7) Da obtusa “Operação Lava Jato” quanto às ilegalidades constitucionais (notadamente prisões sem motivações legais); ao “mercado das delações premiadas”; à ilegalidade de grampos no cárcere de Curitiba com o consequente “mercado” das gravações; à seletividade de julgamentos (e de vazamentos ao PIG); e ao fato de delegar a um juiz de primeira instância tamanho poder; entre outras.

Esse conjunto de fatores torna a conjuntura altamente complexa e fluida, com movimentos e contramovimentos de lado a lado: esquerda, legalistas, progressistas e desenvolvimentista versus direita, golpistas, neoliberais e rentistas. Isso tudo com o apoio ingênuo de um sem-número de “inocentes úteis”, muitos dos quais foram às “manifestações conservadoras” promovidas e apoiadas por imorais em nome da moralidade!

Nesse contexto, o ambiente político brasileiro – institucional e social – vem sendo tumultuado e polarizado por forças conservadoras e reacionárias, tal como na Venezuela. Um sem-número de “Capriles” parece povoar nosso ambiente! Isso tudo sem Chaves, chavismo, bolivarianismo e reformas radicais!

Pois bem, a admissibilidade do processo de impeachment – deve-se considerar que o processo tem um longo caminho entre Câmara e Senado e STF – cada vez mais se assemelha com o que se deu no Paraguai com a derrubada do presidente Lugo. A “peça” produzida pelos “juristas” Reali e Bicudo, encomendada pelo PSDB com a “consultoria” de Gilmar Mendes, lida em plenário pelo “pré-cassado” (quiçá preso) Eduardo Cunha é um “faz-me-rir” jurídico. Os “argumentos” elencados – sem estofo – seriam suficientes para enforcar qualquer um num regime de exceção que nos remete a Kafka.

Diferentemente da opinião majoritária, não se tratou de “chantagem” de Cunha, pois independentemente da posição do PT o presidente da Câmara levaria o processo de impeachment a cabo, uma vez que sintetiza a reação não apenas à presidente Dilma e ao PT, e sim aos direitos sociais, trabalhistas e civis, que implicam varrer a esquerda e a agenda progressista e civilizatória: não foram esses os objetivos do PDS, depois PFL, depois DEM...e agora PSDB?

Trata-se, pois, de forças econômicas e sociais catalisadas por Cunha, isto é, da luta de classes com todas as modulações aí implicadas. Mais ainda, trata-se de redefinição – tal como está ocorrendo na Argentina neste exato momento e de longa data na Venezuela – política, econômica, social e internacional.

Derrotar os golpistas é impedir a “paraguaização política” da sociedade brasileira, consolidar o Estado de Direito Democrático e a democracia política e SOCIAL brasileira, numa perspectiva de inclusão social e internacional. Especificamente quanto à América Latina, o que ocorrer no Brasil terá enorme impacto no subcontinente.

Por tudo isso, nunca a ação de “ir às ruas” e “ocupar democraticamente os espaços públicos” foi tão importante como agora. Trata-se, com a derrota do golpismo – impedindo o impeachment –, do estabelecimento de nova correlação de forças que permitirá ao Governo Dilma de fato governar, e “virar à esquerda” com políticas econômicas progressistas e com reformas político/institucionais que sejam radicalizadoras da democracia, movimento que constrangerá o Congresso conservador a novas pautas. Poderá ser um “novo governo”, tal como o foi, guardadas as realidades distintas, o Governo Lula pós Dirceu/Palocci.

O mote da “crise como parteira da história” nunca foi vigente como nos dias de hoje. A chance de derrotar a direita – social e institucional –, reformar as instituições no sentido de aprofundar sua democratização e combater os poderes tradicionais (agronegócio, rentismo, mídia, entre inúmeros outros), renovando as políticas públicas, nunca esteve, paradoxalmente, possibilitado de maneira tão vigorosa como agora.

Depende, para tanto, dos embates e da articulação dos movimentos sociais, da defesa da legalidade pelas instituições democráticas e do amplo campo democrático. Ao PT e ao Governo Dilma caberão, como não poderia deixar de ser, papeis cruciais nesse processo, superando suas erráticas trajetórias recentes, o que implicará “virar à esquerda” se quiserem continuar relevantes na história brasileira.

A ver!

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

“A luta de classes nunca tirou férias neste país”, afirma o professor da UFRJ José Paulo Netto

nettoBrasil - Brasil de Fato - [Camilla Hoshino e Leandro Taques] Em entrevista ao Brasil de Fato e aos Jornalistas Livres, o pesquisador e professor da UFRJ, José Paulo Netto, analisa as recentes manifestações de ódio contra determinados setores da sociedade a partir da formação social e da cultura política brasileira.

José Paulo Netto, intelectual marxista. Foto: Leandro Taques/Jornalistas Livres

Manifestações de ódio, racismo, declarações machistas e ameaças verbais e físicas contra lideranças da esquerda têm sido constantes no último período no país. Segundo o professor José Paulo Netto, essas atitudes têm relação com a tentativa das classes dominantes de “afastar a massa do povo dos centros de decisão política”.

José Paulo Netto é doutor em serviço social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Foi vice-diretor da Escola de Serviço Social da UFRJ e do seu Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, tendo título de professor emérito na instituição. Tradutor e organizador de textos de autores clássicos como Marx, Engels, Lênin e Lukács, em que se destaca como grande especialista, produziu obras teóricas e políticas sobre o capitalismo, serviço social e marxismo. É membro do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e atua em parceria com movimentos sociais, como o MST.

Em entrevista ao Brasil de Fato e aos Jornalistas Livres, ele faz uma análise das classes dominantes a partir da formação social brasileira, fala sobre o quadro político atual no país e sobre como atuam as elites em face da crise do capitalismo contemporâneo.

Para Netto, é justamente em momentos de tensões políticas e econômicas que “todo esse porão da sociedade brasileira, com um forte sentimento antipovo, antipopular, antimassa, racista e discriminador, vem à tona”.

Brasil de Fato - Estamos presenciando a todo o momento ataques da direita brasileira que deixam explícitos o preconceito, o racismo e o sentimento de ódio contra determinados setores da sociedade. Como a nossa formação social pode nos ajudar a compreender essas atitudes?

José Paulo Netto - Se analisarmos com cuidado a história brasileira, vamos encontrar algumas constantes que são traços constitutivos da nossa formação social e que, portanto, são elementos constitutivos da cultura política brasileira. Um traço muito visível de meados do século XIX em diante tem sido a capacidade das franjas das camadas mais ativas das classes dominantes em afastar a massa do povo dos centros de decisão política. Mesmo quando tivemos, ao longo do século XX, momentos de institucionalização mais ampla da participação política, tivemos elementos, mecanismos, meios e modos que constrangeram ou limitaram essa participação política a processos adjetivos. Costumo dizer que tivemos no Brasil um processo tardio, lento, desigual e sinuoso de socialização da política.

Isso ganhou certa magnitude com a derrota da ditadura instaurada em 1964. A constituição de 1988 consagrou direitos políticos essenciais, abriu caminho para se repensar direitos civis e, sobretudo, ampliou o leque dos direitos sociais no país. Com todas as desigualdades e assimetrias, creio que se pode dizer que no pós-1988 tivemos formalmente a institucionalização da cidadania moderna no Brasil. Entretanto, se observarmos o processo de luta contra a ditadura, de crise da ditadura e de transição democrática no Brasil, teremos a clara percepção dessa capacidade das franjas mais ativas das classes dominantes de encontrar meios de excluir a massa do povo de processos decisórios. Tivemos um processo de socialização da política, mas nem de longe um processo de socialização do poder político. Isso tem relação com o que eu chamo de linhas de continuidade na nossa história.

O senhor pode citar alguns exemplos disso?

O Brasil foi um país escravocrata. Em 1888 tivemos uma abolição inteiramente formal, em que não se criou nenhuma pré-condição para que o liberto pudesse construir sua vida autonomamente. Da noite para o dia foram libertos, mas sem ter terra, sem ter nada. Esta cultura escravocrata não desapareceu. Há exemplos recentes. As camadas médias (não necessariamente camadas oligárquicas) reagiram negativamente em face da legislação acerca do trabalho doméstico. Poderíamos citar outros exemplos como o acesso à universidade, historicamente elitista. É só observar a dimensão das nossas universidades e a população em condições etária e formal de ingressar ali.

Deste modo, podemos perceber que a sociedade foi construída para que muito poucos usufruíssem dos direitos formais que ela veio (bem ou mal) escrevendo no seu ordenamento jurídico-político. Em momentos de crise ou em momentos de tensão, em que se agudiza abertamente a luta de classes (para utilizar um jargão da esquerda), todo esse porão da sociedade brasileira, com um forte sentimento antipovo, antipopular, antimassa, racista e discriminador, vem à tona. O processo de transição da ditadura fez com que amplos setores tivessem vergonha do seu conservadorismo. Mas isso acabou.

Qual foi o impacto do PT na mudança dessa atmosfera política?

Eu diria que o PT teve um papel duplo. Pensando no PT como força de governo, a partir de janeiro de 2003, foram tomadas providências de caráter emergencial, mas que foram apresentadas como políticas duradouras de Estado e que beneficiaram objetivamente a massa mais pobre. Isso foi muito positivo. Ao mesmo tempo, isso foi feito no marco de uma orientação macroeconômica que privilegiou os grupos financeiros do país, que não restringiu em absoluto a fome lucrativa dos monopólios nacionais e internacionais. Isso criou uma situação paradoxal que pode ser observada ao cabo do mandato do Lula. Mas as elites jamais suportaram o significado simbólico de ter um trabalhador que tomava cachaça e falava errado na Presidência da República. O efeito PT (quando Lula se elege) é enorme do ponto de vista simbólico. Enfim um sujeito aparentemente igual à maioria da população chega lá.

“Marolinha”

Lula elege sua sucessora no marco de uma crise econômica internacional gravíssima, a qual ele caracterizou como uma “marolinha”. Só que os efeitos daquela crise rebateram na periferia de formas distintas. Sob o governo dele, uma orientação macroeconômica conseguiu driblar bem esses efeitos. A articulação de economia política que funcionou nos dois governos dele não funcionou no governo Dilma. Não foi por incompetência da equipe gestora. Houve sim falhas técnicas, mas elas não são as mais importantes. Mas é que a “marolinha” virou um “tsunami”. Neste momento, aqueles mesmos grupos que foram altamente beneficiados no governo Lula põem para fora todo o seu preconceito de classe que vem acompanhado de manifestações de ódio de classe, de marcas racistas e, sobretudo, de uma entrada em cena, sem qualquer tipo de maquiagem, do velho elitismo brasileiro. Penso que este é o quadro em que estamos vivendo hoje.

Como este elitismo se expressa?

Penso que o processo eleitoral mostrou isso com clareza. Tivemos uma vitória eleitoral democrática que mostrou uma sociedade dividida. Não ponho em dúvida a legitimidade de vitória de Dilma. Mas não há duvida nenhuma que há uma legitimidade expressa eleitoralmente muito estreita em termos de maioria e que, portanto, é muito vulnerável. Exatamente sobre esta vulnerabilidade atuam as elites. Também operam através de uma mídia historicamente oficialista e porta voz de tudo aquilo que atravanca a conquista, a realização e a ampliação de direitos.

De 1888 a 2015, quando se tem uma crise (não no sentido de possibilidade de quebra do regime, mas uma crise financeira do Estado), se não há orientações claras e políticas claras em face desta dificuldade, o momento se torna ideal para que os segmentos mais retrógrados se apresentem como são. Temos uma composição do legislativo que me parece a mais anódina e amorfa dos últimos trinta anos e, portanto, facilmente catalisada com propostas de oportunismo meramente eleitoral. Os que querem desestabilizar tem um prato feito. Não sei como vai se desdobrar esse processo governativo, mas tenho a impressão de que a presidente Dilma vai travar uma guerrilha diária. Não se satisfaz a fome de leão do PMDB com alface.

O senhor utilizou os termos “luta de classes”, “ preconceito de classe” e “ódio de classe”. Com toda a complexidade da divisão socioeconômica e das ramificações do trabalho na nossa sociedade, ainda podemos falar em classes sociais?

Não tenho a menor dúvida. Classe social é uma categoria teórica que expressa elementos fundamentais da realidade em uma sociedade como a nossa. A sociedade brasileira tem hoje uma estrutura de classes muito complexa e eu desconheço qualquer estudo rigoroso e sério sobre isso. Não estou falando daqueles estudos publicitários que separam a nossa sociedade em classes A, B, C, D, etc., mas de estudos que tragam relações com os meios de produção e com a consciência de um projeto político. A luta de classes nunca tirou férias neste país. Ela esteve latente ou expressa ao longo desses últimos doze anos em manifestações referentes a determinados projetos de políticas públicas e em como fazer a orientação macroeconômica. Isso foi uma luta que atravessou o governo Fernando Henrique, o governo Lula e atravessa o governo Dilma. O que temos agora é uma emersão clara das posições de classe.

E como é possível mediar essas tensões?

Eu percebo um dilaceramento do tecido social brasileiro do ponto de vista político. O que é preocupante, porque não estão em jogo projetos políticos, mas projetos de nação. Que sociedade nós queremos? Nós queremos uma sociedade onde quem tem orientação diferente é objeto de espancamento e onde o dissenso político é resolvido com ameaças físicas? Vivemos uma conjuntura internacional difícil, com ajustamento na divisão internacional do trabalho. Nós vamos nos inserir nisso de maneira subalterna ou soberana? Temos que vir a público para determinar com clareza que tipo de sociedade nós queremos e para chegar lá são possíveis vários meios.

Estamos com problemas que não vieram do governo Dilma, do governo Lula ou do governo Fernando Henrique. Eles vêm da nossa transição interrompida. Eu espero que tenhamos firmeza de princípios e sabedoria para resolvê-los sem romper um pacto civilizatório que fizemos pelos menos em 1988 e que, na minha opinião, está ameaçado por expressões de preconceito e ódio de classe. Não podemos repetir experiências traumáticas do passado, cujos resultados foram desastrosos para a massa do povo brasileiro, ainda que tenham sido excelentes para as suas elites.

Nesse sentido, penso que temos que olhar a política brasileira para além das expressões institucionais abastardadas, onde se troca ministério por voto no Congresso Nacional. Isto não é o Brasil. Isto é a expressão institucional da política brasileira. A política brasileira está nas universidades, nas fábricas, nas usinas, nos escritórios, no comércio e nas ruas.

O senhor é um grande especialista da obra de Marx, um nome que causa arrepio nas elites e nos setores mais conservadores da sociedade. Os intelectuais que se utilizam deste referencial teórico tem sido acusados de promover “doutrinação ideológica” nas universidades. O que o senhor pensa disso? É possível resgatarmos Marx para analisar a sociedade contemporânea?

Uma das coisas que mais tem me divertido na exposição do pensamento da direita brasileira (se é que ela pensa) é imaginar que os comunistas estão no poder. Isso é coisa do Olavo de Carvalho, não é? É uma calúnia contra o PT e contra os comunistas, mas deixemos isso de lado. Primeiro, eu diria que no universo cultural, resultado de experiências históricas e da batalha de ideias sob a hegemonia burguesa, o marxismo andou muito desprestigiado e muito desacreditado. No final da década de 1990 houve um acantonamento do pensamento marxista. Isso mudou nos últimos dez anos na universidade e fora dela. Houve um interesse renovado pelas ideias de Marx, não apenas no Brasil. Segundo, eu acho que Marx é um incômodo contemporâneo para nós. Essa crise sistêmica que o capitalismo está experimentando (pelo menos desde o início do século) está trazendo a discussão sobre uma série de projeções que Marx fez. Ele é extremamente atual. É impossível tentar compreender com seriedade as mutações econômicas dos últimos 30,40 anos sem Marx.

Socialismo

Não há solução para a crise do capitalismo. Ela é global não no sentido do globo, mas por ser uma crise ética, política, econômica e ecológica. O padrão de civilização capitalista se exauriu. Não adianta dar carros para todo mundo, pois não haverá lugar para jogá-los fora. Nós não podemos continuar nessas cidades que crescem loucamente sem nenhum planejamento. O capitalismo só tem a oferecer mais insegurança, mais instabilidade e mais violência. Nesse sentido, esgotado o capitalismo, a única alternativa para ele é o socialismo. Não posso ser original: “Ou o socialismo ou a barbárie”. E a barbárie já está aí pertinho. Sob esse aspecto, o socialismo é extremamente atual. Agora a questão é se essa atualidade é transformada em viabilidade. E eu não vejo essa viabilidade em curto prazo. O que me torna muito pessimista, pois quanto mais tardia a alternativa do socialismo, maior será a destruição que o capitalismo pode realizar.

Por que o senhor não vê essa alternativa no horizonte?

Porque o socialismo não resulta da crise e da exaustão do capitalismo, mas de um duro, longo e difícil processo em que massas organizadas de homens e mulheres mudam o curso da vida coletiva e individual. Eu não vejo isso se desenhando em curto prazo no horizonte. Vou dizer algo que já foi dito por Antônio Gramsci e que é adequado para pensar o agora: “Quando aquilo que é velho ainda não morreu e aquilo que é novo ainda não emergiu, nesses tempos de transição, revelam-se fenômenos que são verdadeiras sociopatias”. Estou convencido de que a ordem do capital, que é o velho, ainda não morreu e a ordem do futuro ainda não emergiu. Então estes são períodos históricos que oscilam entre o trágico e o dramático.

A esquerda fala em revolução, em protagonismo da classe operária e em tomada de consciência pela massa. Mas também defende que qualquer tipo de transição radical passa por uma formação séria dos trabalhadores. Como o senhor vê isso? E como essa formação de caráter teórico se transforma em prática?

Eu não penso que as massas revolucionárias serão massas teoricamente muito ilustradas. O que leva os trabalhadores a querer mudar de vida é o momento em que suas vidas se tornam insuportáveis. É evidente que camadas de trabalhadores letradas e informadas são muito mais capazes de tomar consciência dos seus interesses do que camadas trabalhadoras rústicas, mantidas na ignorância pelas classes dominantes. Acredito que a questão central seja a formação política dos militantes. Líderes e dirigentes não fazem a revolução. É inteiramente irrealista imaginar que o conjunto das classes trabalhadoras vai se transformar em líderes da transformação social. Segmentos que vão constituir as suas vanguardas (no plural) é que podem dirigir um processo de transformação social. O investimento na formação desses segmentos é absolutamente essencial. É preciso formação política com base teórica. Aqui não me refiro à agitação e propaganda ou doutrinação, mas sim a conhecimentos de teoria social que permitam discernir e distinguir o essencial do acessório, o substantivo do episódico.

Teoria e prática

A teoria é absolutamente indispensável para a formação de vanguardas que sejam capazes de, em momentos de ruptura e de tensão social, dar orientações claras, lúcidas, sérias e responsáveis às massas. Rupturas sociais são sempre processos traumáticos. Não apenas no sentido da violência material, mas elas envolvem rupturas ideológicas, intelectuais, éticas, etc. Se lideranças não tiverem competência teórica e sabedoria política, o resultado dessas rupturas pode ser catastrófico. Pode ser a derrota de bandeiras e demandas generosas e legitimas. Isso significa que ninguém avança no domínio do progresso social, da universalização de direitos, da criação de condições de uma consciência e de uma nova cultura política só pela militância operativa. É preciso formação teórica e cultural. Eu me atreveria a dizer que sem isso não caminharemos.

Queria ser original, mas alguém já disse há cerca de 110 anos que “sem teoria revolucionária, não há revolução” [Lênin]. É preciso estudar, estudar e estudar para poder mobilizar e organizar com competência. Uma revolução não pode ser o arrebentar de uma represa de demandas reprimidas e de esperanças humilhadas. É sobre esse chão, sobre a indignação e sobre a revolta que corre a possibilidade de outro mundo. Mas ele tem que ser construído com cientificidade, competência e com uma palavra que está desgastada que a sabedoria.


sábado, 14 de novembro de 2015

A História Da Eternidade (2014) - Nacional - Making Off

A História da Eternidade
(A História da Eternidade)
A História da Eternidade (Camilo Cavalcante, 2014)
Poster
Sinopse
Em
um pequeno vilarejo no Sertão, três histórias de amor e desejo
revolucionam a paisagem afetiva de seus moradores. Personagens de um
mundo romanesco, no qual suas concepções da vida estão limitadas, de um
lado pelos instintos humanos, do outro por um destino cego e fatalista.
Screenshots


Elenco
Informações sobre o filme
Informações sobre o release
Marcela Cartaxo - Querência
Leonardo França - Aderaldo
Débora Ingrid - Afonsina
Claudio Jaborandy - Nataniel
Zezita Matos - Dona Das Dores
Maxwell Nascimento - Geraldo
Irandhir Santos - João
Gênero: Drama
Diretor: Camilo Cavalcante
Duração: 120 minutos
Ano de Lançamento: 2014
País de Origem: Brasil
Idioma do Áudio: Português
IMDB: http://www.imdb.com/title/tt3565050/
Qualidade de Vídeo: Web DL
Container: MKV
Vídeo Codec: MPEG-4 AVC
Vídeo Bitrate: 1.963 Kbps
Áudio Codec: A_AAC
Áudio Bitrate: 384 kbps  48 KHz Kbps
Resolução: 1280 x 720
Formato de Tela: Widescreen (16x9)
Frame Rate: 25.000 FPS
Tamanho: 1.655 Gb
Legendas: Sem Legenda
Crítica
A Eternidade conta uma história
por Marcelo Miranda

A
escolha pelo artigo definido para o título deste primeiro
longa-metragem de Camilo Cavalcante (A História da Eternidade), antes do
sentido totalizante que parece carregar, impõe, num primeiro contato
com o filme, ao menos duas possibilidades, de acordo com o viés que se
adotar. A hipótese inicial seria a de que veremos a grande história,
quem sabe definitiva, de o que é o conceito de “eternidade”, e aí existe
uma ambição fadada à impossibilidade cósmica de defini-lo; a segunda
hipótese, menos evidente (e talvez mais escorregadia), é a de que
veremos, de fato, uma história contada do ponto de vista da Eternidade, a
palavra aqui deixando de ser apenas conceito abstrato para se ser ela
mesma personagem (ou mito), tornando-se a instância narradora. Por essa
segunda possibilidade, tem-se um filme menos centrado na derivação de
alguma grande narrativa do que na ocupação do quadro com elementos
constitutivos de uma pictorialidade que será, afinal, sua maior
característica visual. (O uso do scope amplia a noção de vastidão num
espaço relativamente pequeno de um vilarejo isolado.) A Eternidade seria
tudo aquilo a ocupar o espaço da tela – cada elemento de linguagem e de
encenação que se consiga ver, ouvir ou imaginar, sendo a articulação
entre eles o escopo do que é efetivamente o filme de Camilo Cavalcante. A
Eternidade, portanto, é o que é mostrado a partir da existência da
câmera, e não apenas pelo relato temático (que, por sua vez, seria o
elemento mais importante da primeira hipótese).

A diferenciação é
importante na medida em que A História da Eternidade alimenta a mise en
scène com um manancial de símbolos e referências pictóricas e
literárias que expandem seu universo para além do cinema (eis a beleza
da impureza, como diria André Bazin). Pensar a Eternidade como o ponto
de saída da narração do filme o localiza fora de algum tempo e espaço. A
iconografia do sertão, tão cara à filmografia brasileira ao longo de
toda a sua história, aqui se desprende do imaginário pré-fabricado e
caminha sozinha, como se fosse outra coisa que, mesmo reconhecendo a
base, ainda está a ser descoberta na totalidade. O filme não é cínico,
porém: Camilo Cavalcante jamais disfarça a evidência de estar sempre no
sertão – muito pelo contrário: talvez os maiores desarranjos do filme
estejam em momentos de mais ostentação desse universo facilmente
assimilável. Mas a honestidade de A História da Eternidade está em, sem
omitir o dado essencial, seguir adiante com ele e se esforçar por dar ao
espectador alguma visão ainda inédita, na possibilidade de olhar (no
sentido do olho humano mesmo) algo que surpreenda pelo inusitado e pelo
maravilhamento a emanar daquilo que vem do quadro.

A tela larga
de A História da Eternidade possibilita ao filme se apresentar com alto
grau de grandiloquência na criação desse lugar indefinido, de tempo
próprio, já explicitado no primeiro plano: em enquadramento aberto, um
sanfoneiro cego se senta em uma árvore de galhos retorcidos,
reenquadrado pelo infinito do céu e da terra – imagem forte da “mais
remota lonjura” descrita pelo escritor mexicano Juan Rulfo. Depois de
alguns minutos, um cortejo fúnebre carregando o caixão de uma criança
atravessa o quadro, lentamente. Da pintura imóvel anterior tem-se agora o
movimento, mas esse movimento traz morte e tristeza. O prólogo é
prenúncio de todo o resto: visualmente, o filme trabalha a imagem até o
limite da composição, às vezes em planos ainda mais abertos, nos quais
se vislumbra, em meio ao cenário natural, o movimento dos corpos de
personagens a se deslocar de um canto a outro (algo similar, por
exemplo, ao visto no cinema de Sergio Leone).

A História da
Eternidade se fixa na obsessão pelo número três – são três conflitos,
apresentados ao longo de três capítulos delimitados, sobre a intimidade
de três mulheres representantes de três gerações. Essa triangulação já
pode ser vista nos pontos de atenção da cena inicial e o movimento
triangular do filme será também o seu eixo estético. A mise en scéne
depende sempre de como os personagens circulam pelo pequeno vilarejo
onde a ação é ambientada, indo de um lugar a outro de acordo com os
espaços permitidos pela direção de fotografia, assinada por Beto
Martins. Existe não apenas o foco na ação de primeiro plano, mas também
na profundidade de campo do scope, que deixa o ator ganhar existência
mais plena a partir da composição que lhe é cabida. Martins já disse em
entrevistas ter se inspirado na pintura de Caravaggio, algo perceptível
não só nas escolhas de onde colocar a câmera, mas também na luz
utilizada no plano, no claro-escuro para delinear o cenário e as junções
dos corpos com os objetos em cena. Em dois momentos, o filme se entrega
a movimentos circulares em plano-sequência que poderiam se tornar
apenas fetichistas, mas o cuidado na construção anterior de outros tipos
de espaços cênicos integra-os na artesania do filme. Se na maior parte
das cenas a câmera está fixa, sua movimentação se assemelha a um
acontecimento próximo do milagroso, considerando o universo mítico e
fabular tratado por Cavalcante.

Os tais dois rodopios se dão em
instantes de epifania: num, o artista rebelde e desprezado vivido por
Irandhir Santos dança e canta ao som de “Fala”, dos Secos &
Molhados; no outro, o mesmo personagem leva a sobrinha adolescente
(Débora Ingrid) para ver um mar imaginário que só existe num truque
simples de montagem no ápice do plano circular. Nos dois momentos,
tem-se a performance como elemento central, junto à consciência (dos
personagens e também do filme) de aquilo que não se vê ganhar concretude
na forma como se apresenta diante dos olhos. O olhar em A História da
Eternidade tem esse poder de materialização: a avó (Zezita Matos) passa a
desejar o neto (e a se afligir e infligir dor) quando vê fotografias
pornográficas numa revista do garoto e percebe nele não mais um menino,
mas um homem; a mulher solteira e amarga (Marcélia Cartaxo) é cortejada
pelo sanfoneiro cego e ferido, que obviamente não a enxerga, mas
acredita ter a chance de um momento de intimidade com ela, ficando
diariamente na espera de um sinal que ele espera sentir, mas não ver.
Todas as três mulheres, portanto, partem do olhar para ultrapassarem os
próprios limites e desejos. A superação vem da visão renovada diante de
uma realidade que parecia estanque e arcaica.

Os arquétipos do
filme carregam características de lendas e crenças que se misturam umas
às outras para chegar a um desenlace próprio do “realismo maravilhoso”
muito próximo de uma certa literatura latina (de novo Juan Rulfo, mas
pode-se invocar também García Márquez e Ariano Suassuna): a chuva no
semi-árido, que não vem lavar pecados ou purificar os corpos (como faz o
mar de Fernando de Noronha em Sangue Azul, de Lírio Ferreira), mas
diluir o sangue de uns, celebrar o batismo luxurioso de outros e ser a
paisagem de uma Pietà emoldurada pela violência do mundo exterior, que
invade o isolamento daquele novo sertão para também submetê-lo a uma
reconfiguração.

Fonte: Revista Cinética
Coopere, deixe semeando ao menos duas vezes o tamanho do arquivo que baixar.

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A História Da Eternidade (2014) - Nacional - Making Off

A História da Eternidade
(A História da Eternidade)
A História da Eternidade (Camilo Cavalcante, 2014)
Poster
Sinopse
Em
um pequeno vilarejo no Sertão, três histórias de amor e desejo
revolucionam a paisagem afetiva de seus moradores. Personagens de um
mundo romanesco, no qual suas concepções da vida estão limitadas, de um
lado pelos instintos humanos, do outro por um destino cego e fatalista.
Screenshots


Elenco
Informações sobre o filme
Informações sobre o release
Marcela Cartaxo - Querência
Leonardo França - Aderaldo
Débora Ingrid - Afonsina
Claudio Jaborandy - Nataniel
Zezita Matos - Dona Das Dores
Maxwell Nascimento - Geraldo
Irandhir Santos - João
Gênero: Drama
Diretor: Camilo Cavalcante
Duração: 120 minutos
Ano de Lançamento: 2014
País de Origem: Brasil
Idioma do Áudio: Português
IMDB: http://www.imdb.com/title/tt3565050/
Qualidade de Vídeo: Web DL
Container: MKV
Vídeo Codec: MPEG-4 AVC
Vídeo Bitrate: 1.963 Kbps
Áudio Codec: A_AAC
Áudio Bitrate: 384 kbps  48 KHz Kbps
Resolução: 1280 x 720
Formato de Tela: Widescreen (16x9)
Frame Rate: 25.000 FPS
Tamanho: 1.655 Gb
Legendas: Sem Legenda
Crítica
A Eternidade conta uma história
por Marcelo Miranda

A
escolha pelo artigo definido para o título deste primeiro
longa-metragem de Camilo Cavalcante (A História da Eternidade), antes do
sentido totalizante que parece carregar, impõe, num primeiro contato
com o filme, ao menos duas possibilidades, de acordo com o viés que se
adotar. A hipótese inicial seria a de que veremos a grande história,
quem sabe definitiva, de o que é o conceito de “eternidade”, e aí existe
uma ambição fadada à impossibilidade cósmica de defini-lo; a segunda
hipótese, menos evidente (e talvez mais escorregadia), é a de que
veremos, de fato, uma história contada do ponto de vista da Eternidade, a
palavra aqui deixando de ser apenas conceito abstrato para se ser ela
mesma personagem (ou mito), tornando-se a instância narradora. Por essa
segunda possibilidade, tem-se um filme menos centrado na derivação de
alguma grande narrativa do que na ocupação do quadro com elementos
constitutivos de uma pictorialidade que será, afinal, sua maior
característica visual. (O uso do scope amplia a noção de vastidão num
espaço relativamente pequeno de um vilarejo isolado.) A Eternidade seria
tudo aquilo a ocupar o espaço da tela – cada elemento de linguagem e de
encenação que se consiga ver, ouvir ou imaginar, sendo a articulação
entre eles o escopo do que é efetivamente o filme de Camilo Cavalcante. A
Eternidade, portanto, é o que é mostrado a partir da existência da
câmera, e não apenas pelo relato temático (que, por sua vez, seria o
elemento mais importante da primeira hipótese).

A diferenciação é
importante na medida em que A História da Eternidade alimenta a mise en
scène com um manancial de símbolos e referências pictóricas e
literárias que expandem seu universo para além do cinema (eis a beleza
da impureza, como diria André Bazin). Pensar a Eternidade como o ponto
de saída da narração do filme o localiza fora de algum tempo e espaço. A
iconografia do sertão, tão cara à filmografia brasileira ao longo de
toda a sua história, aqui se desprende do imaginário pré-fabricado e
caminha sozinha, como se fosse outra coisa que, mesmo reconhecendo a
base, ainda está a ser descoberta na totalidade. O filme não é cínico,
porém: Camilo Cavalcante jamais disfarça a evidência de estar sempre no
sertão – muito pelo contrário: talvez os maiores desarranjos do filme
estejam em momentos de mais ostentação desse universo facilmente
assimilável. Mas a honestidade de A História da Eternidade está em, sem
omitir o dado essencial, seguir adiante com ele e se esforçar por dar ao
espectador alguma visão ainda inédita, na possibilidade de olhar (no
sentido do olho humano mesmo) algo que surpreenda pelo inusitado e pelo
maravilhamento a emanar daquilo que vem do quadro.

A tela larga
de A História da Eternidade possibilita ao filme se apresentar com alto
grau de grandiloquência na criação desse lugar indefinido, de tempo
próprio, já explicitado no primeiro plano: em enquadramento aberto, um
sanfoneiro cego se senta em uma árvore de galhos retorcidos,
reenquadrado pelo infinito do céu e da terra – imagem forte da “mais
remota lonjura” descrita pelo escritor mexicano Juan Rulfo. Depois de
alguns minutos, um cortejo fúnebre carregando o caixão de uma criança
atravessa o quadro, lentamente. Da pintura imóvel anterior tem-se agora o
movimento, mas esse movimento traz morte e tristeza. O prólogo é
prenúncio de todo o resto: visualmente, o filme trabalha a imagem até o
limite da composição, às vezes em planos ainda mais abertos, nos quais
se vislumbra, em meio ao cenário natural, o movimento dos corpos de
personagens a se deslocar de um canto a outro (algo similar, por
exemplo, ao visto no cinema de Sergio Leone).

A História da
Eternidade se fixa na obsessão pelo número três – são três conflitos,
apresentados ao longo de três capítulos delimitados, sobre a intimidade
de três mulheres representantes de três gerações. Essa triangulação já
pode ser vista nos pontos de atenção da cena inicial e o movimento
triangular do filme será também o seu eixo estético. A mise en scéne
depende sempre de como os personagens circulam pelo pequeno vilarejo
onde a ação é ambientada, indo de um lugar a outro de acordo com os
espaços permitidos pela direção de fotografia, assinada por Beto
Martins. Existe não apenas o foco na ação de primeiro plano, mas também
na profundidade de campo do scope, que deixa o ator ganhar existência
mais plena a partir da composição que lhe é cabida. Martins já disse em
entrevistas ter se inspirado na pintura de Caravaggio, algo perceptível
não só nas escolhas de onde colocar a câmera, mas também na luz
utilizada no plano, no claro-escuro para delinear o cenário e as junções
dos corpos com os objetos em cena. Em dois momentos, o filme se entrega
a movimentos circulares em plano-sequência que poderiam se tornar
apenas fetichistas, mas o cuidado na construção anterior de outros tipos
de espaços cênicos integra-os na artesania do filme. Se na maior parte
das cenas a câmera está fixa, sua movimentação se assemelha a um
acontecimento próximo do milagroso, considerando o universo mítico e
fabular tratado por Cavalcante.

Os tais dois rodopios se dão em
instantes de epifania: num, o artista rebelde e desprezado vivido por
Irandhir Santos dança e canta ao som de “Fala”, dos Secos &
Molhados; no outro, o mesmo personagem leva a sobrinha adolescente
(Débora Ingrid) para ver um mar imaginário que só existe num truque
simples de montagem no ápice do plano circular. Nos dois momentos,
tem-se a performance como elemento central, junto à consciência (dos
personagens e também do filme) de aquilo que não se vê ganhar concretude
na forma como se apresenta diante dos olhos. O olhar em A História da
Eternidade tem esse poder de materialização: a avó (Zezita Matos) passa a
desejar o neto (e a se afligir e infligir dor) quando vê fotografias
pornográficas numa revista do garoto e percebe nele não mais um menino,
mas um homem; a mulher solteira e amarga (Marcélia Cartaxo) é cortejada
pelo sanfoneiro cego e ferido, que obviamente não a enxerga, mas
acredita ter a chance de um momento de intimidade com ela, ficando
diariamente na espera de um sinal que ele espera sentir, mas não ver.
Todas as três mulheres, portanto, partem do olhar para ultrapassarem os
próprios limites e desejos. A superação vem da visão renovada diante de
uma realidade que parecia estanque e arcaica.

Os arquétipos do
filme carregam características de lendas e crenças que se misturam umas
às outras para chegar a um desenlace próprio do “realismo maravilhoso”
muito próximo de uma certa literatura latina (de novo Juan Rulfo, mas
pode-se invocar também García Márquez e Ariano Suassuna): a chuva no
semi-árido, que não vem lavar pecados ou purificar os corpos (como faz o
mar de Fernando de Noronha em Sangue Azul, de Lírio Ferreira), mas
diluir o sangue de uns, celebrar o batismo luxurioso de outros e ser a
paisagem de uma Pietà emoldurada pela violência do mundo exterior, que
invade o isolamento daquele novo sertão para também submetê-lo a uma
reconfiguração.

Fonte: Revista Cinética
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