segunda-feira, 3 de setembro de 2007

A violência Urbana e o Papel do Filósofo Pragmatista


A direita não-radical brasileira imagina que pode conter a violência urbana através da educação. Todavia, seus partidos, uma vez no poder, pouco fazem pela educação brasileira. O MEC já esteve vários anos na mão do PFL (hoje DEM) e de alas conservadoras do PSDB e PMDB e o resultado foi diminuto. A esquerda não radical brasileira imagina que pode conter a violência urbana através de programas sociais. Todavia, seus partidos, uma vez no poder, apelam para uma via ligada mais ao populismo do que a um sólido programa de desenvolvimento. O PT aplica uma política social, hoje, que não é mais criativa que a gerada com o varguismo. Os resultados não indicam êxito quanto a questão da violência urbana.

Para além do que a direita e a esquerda fornecem como soluções, ainda que só verbalmente, há especialistas que entendem que a violência urbana não pode ser pensada sem que tenhamos olhos corajosos para o sistema de punição existente no Brasil, sobre questões específicas da justiça.

Os americanos estão preocupados, hoje, não com a punição em si, mas com o fato deles terem uma sociedade punitiva de um modo muito amplo. Os Estados Unidos possui proporcionalmente muito mais presos do outros países desenvolvidos. Tem 40% a mais de presos do que países que também são campeões nessa modalidade pouco dignificante, como a Rússia ou as Bahamas, por exemplo. A indústria americana da prisão emprega mais gente, hoje, do que a General Motors, a Ford e a rede Wal-Mart juntos. E o número de detentos é assustador: em dezembro de 2006 os Estados Unidos contavam com dois milhões e vinte e cinco mil presos espalhados em cinco mil penitenciárias e cadeias ao longo do país. Vários cientistas sociais americanos estão convencidos de que a ampliação sem critérios da criminalização de inúmeras práticas sociais tem um peso alto nisso tudo.

No Brasil, deveríamos observar esse detalhe. A nossa Justiça é cara – sabemos disso. Mas é, também, lenta, e isso se deve, em boa medida, ao fato de que temos seguido padrões de ampliação indiscriminada do que é que deve ser cuidado por juízes. Pior ainda, ampliamos de modo não criterioso o que deve ser punido com encarceramento. E todas as vezes que tentamos reformular esses padrões, terminamos por deixar soltos apenas os elementos que seriam considerados perigosos em toda e qualquer sociedade. Continuamos, no Brasil, a prender pais pobres que não pagam pensão alimentícia, pessoas que cometeram pequenos furtos e, até mesmo, completos inocentes confundidos com bandidos. E isso sem falar na questão da droga, que não se resolve, pois continuamos sem uma política que seja capaz de desmontar o tráfico; mas, ao contrário, o incentiva na medida em que só sabe ampliar o que deve ser punido com cadeia.

Esses problemas são da ordem daqueles que meu amigo, o antropólogo Luis Eduardo Soares (ex-secretário de Segurança do Rio de Janeiro), tenta resolver. Como eu, ele imagina que alguns ensinamentos do pragmatismo do filósofo estadunidense Richard Rorty, pode no ajudar nisso. Da minha parte, tendo a ficar nas questões mais filosóficas da violência urbana. Por exemplo, estou convencido que nós, filósofos de esquerda e democratas, estamos inexoravelmente no interior de uma “guerra semântica”, ligada à violência. Precisamos encontrar novos jargões para tratar com certos grupos urbanos e certas práticas, de modo a amenizar preconceitos que geram violência – por ódio ou simplesmente por insensibilidade.

Por exemplo, quando olhamos para jovens que queimam índios ou batem em empregadas domésticas e dizem, respectivamente, “parecia que era um mendigo” e “parecia apenas uma prostituta”, imaginando que tais respostas são desculpas possíveis e que amenizariam o que fizeram de errado, devemos pensar melhor sobre o caminho da violência. De modo relativamente independente de classes sociais e de miséria, não há jargões que promovem a violência? “Prostituta” ou “puta” não são expressões que precisariam ganhar uma reformulação?
Todavia, como introduzimos determinados jargões? Meios de comunicação? Salas de aula? Cartilhas governamentais do “politicamente correto”? Tudo isso pode ser útil, menos as cartilhas – elas causam o efeito inverso.

Todavia, devemos imaginar que há palavras que não irão ser trocadas, nos levando a comportamentos menos agressivos, só com ações, digamos, comunicacionais ou educacionais. Às vezes, um novo jargão precisa de um empurrão no campo social um pouco maior para se efetivar. No caso das prostitutas, não adianta muito chamá-las de “profissionais do sexo” se, de fato, elas não forem reconhecidas por lei como profissionais. Uma legislação trabalhista mais avançada deveria dar conta do que é vender serviços que impliquem carinho físico e aconchego. Há babás, para cuidar de crianças. Não há razão de não haver babás de adultos, que cuidam de homens e mulheres que precisam pagar para serem cuidados, e que não estão doentes no sentido de precisarem de enfermeiras, mas estão carentes no sentido de que precisam de acompanhamento que pode envolver relações sexuais.

Há jargões que, sozinhos, conseguem ter força. Mas há alguns que, mesmo solitários, dão sorte. Por exemplo, a troca da palavra “bicha” ou “viado” por “homoerótico” ou “homossexual” não adiantou nada. Mas a troca de todas essas palavras por “gay” adiantou muito, ao menos no Brasil. Muitas pessoas não ficam constrangidas em dizer “gay” para outras ou para si mesmas. Isso avançou e, hoje, muitos gays até se tratam por “viados”, sem achar que há ofensa nisso. Ou seja, a palavra “gay” teve sucesso imenso e até pode, na ressaca de sua revolução, produzir efeitos positivos em relação a outros termos que, no passado, haviam sido substituídos.

É claro que quando se trata dos garotos ricos de Brasília que queimaram o índio e disseram que o confundiram com um mendigo, assustamos. Pois, neste caso, esperávamos que a revolução semântica cristã – que ensinou a associar a palavra “mendigo” a quem precisa de proteção – tivesse alcançado seus lares. Mas não foi o caso. Então, neste ponto, começamos a nos perguntar qual a razão de determinadas semânticas, que pareciam consolidadas, não terem força em determinados grupos. Ora, podemos imaginar que alguns grupos, desde sempre, perceberam que certas semânticas deveriam ser rechaçadas. Por exemplo, sabemos que em determinados grupos há um jargão interno que os blinda contra a sociedade. Há grupos que, em público, não usam a linguagem tomada como preconceituosa, e até fingem estar adotando uma espécie de “politicamente correto”. Mas, uma vez fechados em seus covis, tomam várias palavras associadas a sentimentos de ódio. Grupos de direita, no Brasil, incentivam em comunidades da internet, o uso de termos como “nordestino” e “negro” como palavras que devem denotar “gente baixa”. Às vezes podem passar desapercebidos, pois há grupos que estão aquém (saudavelmente) de perceber que eles estão usando tais termos de modo pejorativo, pois adotam tais termos com orgulho – negro e nordestino, para negros e nordestinos, na maioria, são termos que causam orgulho, e com razão.

Como que esses grupos que se escondem em covis fazem tal coisa? Eles se aproveitam da revolta geral que o “politicamente correto” causa, quando este aparece como censura. Então, em nome de um libertarismo que, no fundo, odeiam – pois são totalitários –, esses grupos conservadores, às vezes até fascistas, provocam campanhas contra o que seria uma censura imposta pelos intelectuais ou pela esquerda. No Brasil, o governo Lula editou cartilhas do “politicamente correto” que só serviram para incentivar a reação de grupos de direita.

Assim, a questão semântica no âmbito da luta pela diminuição da violência urbana é uma questão delicada. A censura é o pior caminho. A idéia de que lições escolares podem resolver, é um caminho ingênuo. O bom caminho é o dos meios de comunicação e, principalmente, o utilizado pelos intelectuais que são tomados como modelos pela sociedade, e que possuem acesso a meios de comunicação. Mas isso não pode ser feito pelo Estado. Celebridades também desempenham um papel central nisso tudo. Quando elas dão sorte – no bom sentido – ao lançarem bordões ou jargões ou palavras, isso pode colaborar com saltos enormes no plano de nosso caminho civilizatório. Há jingles que funcionaram mais que muitas passeatas, contra a violência. No caso dos gays, Jô Soares fez muito em favor da revolução semântica quando criou o Capitão Gay. Não só o personagem, mas o jingle, que era adorado pelas crianças e, então, admitido pelos pais. Aos poucos, eles perceberam que aquela figura engraçada do Capitão (e de seu ajudante) trazia uma música que todos gostavam e que tudo aquilo era, mesmo, muito gay, literalmente falando, ou seja, alegre. Aquilo, sim, foi um trabalho histórico na TV.

Ter clareza sobre isso é um trabalho da filosofia diante dessas pessoas – cotidianamente. E, nesse sentido, filósofos que estão na “guerra semântica”, filósofos rortianos e davidsonianos, têm muito que fazer no contato com pessoas que dominam as atenções do grande público.
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PAULO GHIRADELLI JR., doutor e mestre em filosofia pela USP; doutor e mestre em filosofia da educação pela PUC-SP, livre docente e titular pela UNESP, pós-doutor em medicina social pela UERJ. Diretor do Centro de Estudos em Filosofia Americana – www.pragmatismo.com . Editor da Contemporary Pragmatism de New York. Site pessoal: www.ghiraldelli.pro.br Blog: http://ghiraldelli.blogspot.com

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