segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Até onde irá a crise financeira

Um dos maiores estudiosos das finanças internacionais investiga, em diálogo com dois livros recém-publicados, os tremores dos últimos meses. Seu diagnóstico: vêm aí grandes solavancos, que podem atingir a Ásia e mudar a economia do planeta

François Chesnais

No início de agosto, surgiu uma crise financeira no setor dos empréstimos hipotecários, nos Estados Unidos. Imediatamente, ela se propagou para outras partes do sistema financeiro mundial, com uma rapidez e uma amplitude que surpreenderam a comunidade dos investidores e dos operadores (os “mercados”), bem como os observadores. Os bancos centrais intervieram rapidamente, principalmente com o fornecimento de crédito a taxas baixíssimas para os bancos em dificuldade (a que se dá o nome de "criação de liquidez") [1] Desde o início de setembro, fases de tranqüilidade têm alternado com o anúncio de novas dificuldades dos bancos e outras instituições financeiras.

Para compreender todo o alcance do processo iniciado no mês de agosto, é preciso recorrer a uma obra assinada por Michel Aglietta e Laurent Berrebi (economista-chefe da empresa Groupama Asset Management), Désordres dans le capitalisme mondial [2]. O período de 2003-2007 constituiu-se de “anos milagrosos”, com efeitos euforizantes. Na França, tanto a UMP (União para um Movimento Popular, centro-direita) quanto o PS (Partido Socialista, de centro-esquerda), os políticos e a grande mídia louvaram o exemplo norte-americano. O mesmo se deu na maioria dos outros países. Em seu trabalho, extenso e bem documentado, os autores explicam a dinâmica perversa dessa alta conjuntura e anunciam seu fim inevitável.

O interesse do livro deve-se à escolha metodológica dos autores — criar um quadro analítico único, propriamente mundial —, bem como ao volume de fatos e análises reunidos. Na introdução, eles definem “a globalização como um sistema de interdependências multilaterais em que as potências emergentes (isto é, a China e, em menor grau, a Índia) exercem uma influência determinante sobre as economias desenvolvidas”, acrescentando que “foi a partir da virada do século 21 que o termo ‘globalização’ se tornou adequado aos fenômenos que ele supostamente deve designar”.

No terreno específico da macroeconomia, que é a especialidade deles, Aglietta e Berrebi percebem a economia mundial como uma totalidade diferenciada e hierarquizada, cujos pólos são os Estados Unidos e a China. Nesse quadro situam-se desenvolvimentos muito mais tímidos na União Européia e no Japão. Esse aparece com uma economia e uma sociedade marcadas por fatores de inegável debilidade, mas também com trunfos. Em contrapartida, “a Europa está deserdada” (título do capítulo 6). A União Européia estimula “as atitudes não-cooperativas dos governos, numa busca interminável de diminuição dos custos salariais”. Trata-se de “uma zona de livre-câmbio que engloba uma falsa união monetária”, já que “a zona do euro não tem nem federalismo orçamentário, nem cooperação orçamentária entre seus membros, nem sequer regras mínimas comuns”. Depreende-se do livro de Aglietta e Berrebi a quase certeza de que, em caso de crise financeira acentuada e de recessão mundial, é na União Européia que os impactos serão os mais graves [3].

Inverte-se a dinâmica da década passada: agora, crise começa nas finanças (EUA) e se espraia para produção (Ásia)

A referência à virada do século 21 também é importante. O ano de 2001 não é somente o dos atentados de 11 de setembro e da declaração da “guerra sem fim” por George W. Bush. É também o ano da entrada da China na OMC (Organização Mundial do Comércio), que representa o ponto mais avançado das medidas para fazer do planeta um espaço único de valorização do capital. Enfim, 2001 é o ano que vê as autoridades monetárias norte-americanas adotarem a ampliação do crédito hipotecário, como resposta à crise da bolsa de ações de alta tecnologia (a Nasdaq) e a seus desdobramentos industriais (falência da Enron etc.). A análise parte das interconexões entre a crise asiática de 1997-98, que Aglietta e Berrebi apresentam corretamente como uma crise de superprodução. Trata das medidas de salvaguarda de fundos especulativos e de criação de liquidez tomadas pelo Federal Reserve e, em seguida, do estouro da bolha das bolsas de valores na primavera de 2001.

A seqüência mostra a que ponto essas interconexões se consolidaram e seus efeitos se agravaram. A análise nos prepara para a interconexão, análoga, porém bem mais grave, entre uma crise de superprodução, centrada no Sudeste Asiático — e, principalmente, na China — e uma crise financeira sistêmica mundial, cujo epicentro só pode se situar nos Estados Unidos. A primeira lição da crise iniciada em agosto é a de que a direção dos desdobramentos se inverteu em relação a 1997-98/2001. Dessa vez, a crise financeira internacional, nascida nos Estados Unidos, precede a crise de superprodução, cuja lenta gestação na Ásia aparece em muitos índices.

Comecemos pelos sobressaltos financeiros e tentemos compreender suas raízes profundas. A leitura conjunta dos livros de Paul Jorion — Vers la crise du capitalisme américain? — e de Aglietta e Berrebi é muito útil desse ponto de vista. O primeiro permite compreender por que era quase inevitável que o choque ocorresse no setor hipotecário norte-americano. O autor, decerto porque não vem das finanças, nem da economia, lança um olhar bem severo sobre práticas financeiras que ele não hesita em caracterizar como quase permanente e intrinsecamente fraudulentas, mesmo nos casos em que, como no da Enron (que ele analisa bem), não se abriu nenhum processo penal.

Aglietta e Berrebi, por seu turno, explicam de que modo a atual fase do capitalismo, posta sob o signo do valor acionário, só pode gerar, em intervalos próximos, crises financeiras cujo epicentro são os Estados Unidos. Também revelam como a globalização financeira se propaga rumo ao conjunto das praças mundiais. Colocar o interesse dos acionistas à frente dos objetivos das empresas e estabelecer normas de rendimento dos capitais investidos (o return on equity ou ROE) [4] tem como resultado, fora das fases muito curtas de difusão de novas tecnologias, onerar o investimento produtivo e permitir “a uma elite financeira, no topo da hierarquia profissional das grandes empresas e das profissões jurídicas e financeiras associadas, capturar a maior parte dos ganhos de produtividade”.

Crédito imobiliário: durante décadas, a rede principal que protegeu economia dos EUA das grandes crises

Para manter um nível de atividade elevado, “é necessária uma demanda dinâmica”. Ao menos por enquanto, ela não provém dos países emergentes (China, Índia, Brasil), onde a distribuição de renda e as relações entre cidade e campo freiam o crescimento do consumo interno e onde os excedentes externos asseguram o financiamento dos déficits dos Estados Unidos. A demanda “também não pode ter como origem as rendas salariais, cujo crescimento é fraco. Ela provém das rendas distribuídas aos acionistas e à elite dirigente, mas sua massa global é insuficiente para sustentar uma demanda agregada em crescimento rápido. A resposta a esse dilema encontra-se no poder de expansão do crédito. É aí que o capitalismo contemporâneo encontra a demanda que permite realizar as exigências do valor acionário. Esse mecanismo atinge seu paroxismo nos Estados Unidos. […] Empurrando para o alto os preços dos ativos patrimoniais, o crédito desconecta o consumo da renda disponível”.

Esses ativos não têm, necessariamente, a forma de títulos. Contrariamente ao que se pensa, os lucros com a bolsa são, nos Estados Unidos, a segunda fonte de enriquecimento patrimonial das famílias (20%). A primeira fonte (60%) provém dos lucros realizados na compra e na revenda das residências individuais. Portanto, não é por acaso que o Fed escolheu o imóvel residencial como base das medidas para impedir a quebra da bolsa de 2001 e relançar a economia por meio do consumo dos particulares.

Da análise minuciosa de Jorion depreende-se que o objetivo de dar ao capitalismo norte-americano uma base social ampla, favorecendo o advento de uma “sociedade de proprietários” (ownership society), vem sendo perseguido há quase um século. Desde 1913, uma lei permite deduzir do imposto os juros sobre os empréstimos para a habitação. A isenção foi estendida aos lucros com as vendas. Entre as medidas tomadas durante o New Deal, para enfrentar os efeitos da crise de 1929, aparece a criação de uma agência federal da habitação (Federal Housing Authority, FHA). Ela ainda existe e continua a ajudar na constituição do patrimônio pessoal. É o caso também das entidades semipúblicas, com nomes pitorescos, encarregadas de assegurar um mercado secundário para os empréstimos concedidos pelos bancos e instituições financeiras.

A primeira (Fannie Mae) foi estabelecida, em 1938, para compensar os impactos políticos e sociais da grande crise. Foi preciso criar uma segunda, em 1970 (Freddy Mac), para enfrentar o aumento rápido das necessidades de transformação dos empréstimos hipotecários em ativos realizáveis. O recurso à securitização [5] das hipotecas, portanto, é antigo e sua utilização vem aumentando sem parar. Ao longo dos anos, as entidades semipúblicas beneficiaram, sobretudo, as classes média e alta, permitindo-lhes realizar lucros na revenda de sua residência. O ex-presidente do Fed, Alan Greenspan, avaliava-os, em 1999, em 25 mil dólares em média. Dois terços das famílias tiveram acesso, desse modo, à propriedade. Em 2003, o objetivo da “sociedade proprietária” foi novamente fortalecido, ao menos no nível da propaganda, pela criação de um fundo de auxílio à primeira residência cujo nome é um programa em si mesmo: “American Dream Downpayment Initiative” (iniciativa de aporte inicial para o sonho americano).

Empresas de crédito sem controle concedem empréstimos usurários a famílias pobres. Os bancos garantem o jogo

Jorion explica que, de fato, metade dos “proprietários” só são proprietários no nome, pois possuem apenas 10% do valor real de suas casas. Num contexto econômico em que as disparidades de riqueza são extremamente elevadas para um país industrializado (os 50% mais pobres da população possuem somente 2,8% do patrimônio, e o 1% mais rico, 32,7%), o sonho norte-americano de “todo mundo proprietário” sempre foi, diz o autor, “no melhor dos casos, um sonho, e no pior, um simples efeito de propaganda”.

A partir de 2001, num contexto de taxas de juros muito baixas e de desregulamentação financeira, tal sonho imobiliário serviu de fundamento para numerosas operações fraudulentas. Desde então, ele transformou-se em pesadelo, sobretudo para as famílias mais pobres submetidas a um regime de “empréstimos de rapina”. Entre os fatos pouco conhecidos citados por Jorion figura o voto, em 1980 (no momento da liberalização financeira orquestrada por Paul Volker, no final da presidência de Jimmy Carter), de uma lei revogando as disposições sobre a repressão das taxas de juros usurárias.

A desregulamentação acelerada das décadas de 1990 e 2000 permitiu o crescimento rápido das empresas independentes de empréstimos hipotecários, e o Fed reconhece que não pode fiscalizá-las ou controlá-las. Em 2002 (último indicador citado), tais empresas ofereciam apenas 12% dos empréstimos, mas 62% dos mutuários tinham vínculos com elas. Foram elas que apanharam na armadilha as famílias pobres, que têm pagado prestações usurárias, por se endividar a taxas elevadíssimas. Jorion analisa minuciosamente técnicas que em muitos países seriam consideradas fraudulentas. Ele anuncia a catástrofe social atualmente em curso. Os processos de arresto de moradias atingiram 180 mil só no mês de julho, ou seja, duas vez mais do que em julho de 2006. Eles ultrapassaram a linha do milhão desde o início do ano, isto é, 60% a mais do que um ano atrás. A expectativa é de que haja no total 2 milhões de arrestos em 2007.

Para que o mercado mafioso (não há termo mais conveniente) dos empréstimos “subprime” [6] se desenvolvesse, era preciso satisfazer uma última condição: que as empresas independentes de empréstimos hipotecários encontrassem empresas financeiras sólidas (ao menos na aparência), junto às quais pudessem securitizar os contratos assinados com elas. A partir de 2005, esse mercado encontrou fundos especulativos de alto risco (os hedge funds), filiais de grandes bancos de investimento ou de grandes bancos comerciais americanos e estrangeiros, prontos para comprar “lotes de ativos” contendo promissórias hipotecárias “subprime”.

O fator-China empobrece assalariados em todo o mundo. Mas cria enorme massa de recursos financeiros

É aqui que voltamos ao trabalho de Aglietta e Berrebi e à ênfase que eles dão à passagem dos mercados de ações a um regime “de inclinação deflacionista”. É o efeito não desejado e não previsto da extensão da globalização no rumo da Ásia. Ele se traduziu por uma baixa do rendimento das ações e das obrigações, enquanto volumes crescentes de fundos líquidos buscavam se valorizar. Provocou a enxurrada dos fundos especulativos e das aplicações cada vez mais arriscadas.

Com algum atraso, a plena integração da China à economia mundial — e, em grau menor, a da Índia — provoca uma tomada de consciência dos efeitos planetários que ela acarreta para os assalariados. Que efeitos? Os da competição direta entre os trabalhadores, em razão da “duplicação da oferta de trabalho global”, como o “excesso estrutural de mão-de-obra” que ela cria no seio de uma economia mundial liberalizada e desregulamentada. Isso permite que as empresas “façam incidir sobre os assalariados o essencial do ajuste às novas condições de concorrência”.

A transformação da China em “fábrica do mundo” e da Índia em país de relocação das atividades de serviços de informática e de produção de softwares teve também efeitos importantes no domínio financeiro. A transferência para os assalariados das pressões deflacionistas sofridas pelas empresas se fez acompanhar, na esfera financeira, de uma baixa das taxas de juros a longo prazo e de uma modificação do movimento de longa duração das ações.

Do lado das empresas, as aposentadorias com prestações definidas foram maciçamente convertidas em fundos de previdência privada, onde são os assalariados que suportam os riscos. Do lado dos fundos de aplicação financeira, ocorreu uma fuga na direção das operações cada vez mais arriscadas sobre ativos cada vez mais opacos. O “regime de inclinação deflacionista” empurra para as aplicações especulativas. Ele fortalece as “finanças carniceiras”, dos quais os fundos de “private equity”, freqüentemente filiais de bancos, se tornaram a expressão mais temida [7].O acúmulo de excedentes comerciais e de reservas em divisas, sobretudo em dólares, pelos países asiáticos, mas também por grandes países fornecedores de matérias-primas, que foram colocados em bônus do Tesouro, em obrigações privadas e em ações, em Nova York, tem permitido, aos Estados Unidos, exibir índices financeiros invejáveis e deixar escoar os déficits externos. Também vem permitindo que o governo Bush financie suas guerras, sem parar de baixar os impostos. Esses excedentes também vêm constituindo a base de um processo de criação de “liquidez”, isto é, de meios amplamente fictícios de financiamento de operações especulativas de alto rendimento.

Crescimento da China é dependente das vendas aos EUA. Será possível encontrar outros mercados?

Um dos meios encontrados pelos grandes bancos de investimento de Nova York, por bancos internacionais (como BNP-Paribas), mas também, para surpresa geral, pelos bancos regionais alemães, foi a criação de filiais com status de hedge funds. Os riscos incorridos foram subestimados, pois a “comunidade financeira” acreditou ter criado anteparos importantes sob a forma, principalmente, de mecanismos de parcelamento do risco. A crise de agosto mostrou a extrema vulnerabilidade e o potencial de contágio muito elevado.

Hoje, é nos Estados Unidos e, em menor grau, no Reino Unido que se situam os impactos mais fortes da crise hipotecária e seus desdobramentos bancários. Em prazos um pouco mais longos, o elo crítico se situará na Ásia, sobretudo na China. Ainda que a crise financeira tenha sido (mais ou menos) contida, a baixa dos preços imobiliários — e, portanto, dos ativos e das capacidades de endividamento dos proprietários — vai provocar uma desaceleração da demanda global. Ora, mais de 70% da economia chinesa depende de seu comércio exterior. Desde 2005, as exportações brutas representam mais de um terço de seu crescimento econômico.

Os Estados Unidos são o principal mercado da China. O grupo de distribuição Wal-Mart, que possui uma densa rede de franqueados na China, assegura quase 10% das vendas chinesas no estrangeiro — a maior parte para os Estados Unidos. Pequim buscará compensar a desaceleração da demanda norte-americana voltando-se para outros mercados, mas pode chegar um momento em que, como no caso da Coréia do Sul em 1997, os efeitos do superacúmulo transformem-se em fator imediato de crise.

É aqui que precisamos nos deter nos capítulos que Aglietta dedica à China em seu livro com Berrebi, bem como no trabalho centrado exclusivamente nesse país — (La Chine vers la superpuissance) —, escrito com Yves Landry. Aglietta considera que as chaves da estabilidade macroeconômica internacional nos próximos anos, e independentemente do futuro da economia mundial, encontram-se na China. Embora dê mostras de muita solicitude para com os dirigentes chineses [8], ele não consegue esconder sua grande preocupação. É o caso da criação de sobrecapacidades muito fortes.

Aglietta e Berrebi observam que “o governo chinês decidiu esfriar o motor do investimento e até mesmo, em alguns setores (imobiliário, siderúrgico e automobilístico), proibir quaisquer novos investimentos. No entanto, os números recentes disponíveis mostram que, apesar dessas medidas estritas, ele tem dificuldades para frear os gastos no imobiliário, nas infra-estruturas rodoviárias e nas construções de outras fábricas. Essa situação se deve, em parte, às províncias e aos industriais locais. As províncias buscam afirmar sua autonomia frente ao poder central, encorajando sem discernimento a implantação de indústrias locais, e os industriais locais tentam se aproveitar da euforia geral”.

Nos EUA e China, nós políticos dificultam a adoção de soluções que poderiam reverter a crise

Atenuando suas críticas com observações sobre a herança positiva do confucionismo, Aglietta detém-se longamente nos estragos da corrupção (ver a introdução do livro escrito com Landry). O único remédio para a superprodução, dizem os autores, seria “uma reorientação da atividade de um crescimento extrovertido para um crescimento mais autocentrado”.

Aqui se coloca, evidentemente, a questão da liberdade de organização política e o direito dos assalariados de construir verdadeiros sindicatos. Aglietta e Landry sublinham assim que, “passada a fase de recuperação quantitativa, em que basta investir para gerar crescimento, vem a fase qualitativa, em que só a melhoria da produtividade e o fortalecimento institucional fundamentam o crescimento e o transformam em desenvolvimento sustentável. Nesta segunda etapa, os fatores-chave são a educação, a valorização da iniciativa e a criatividade, que permitem a emergência de novos modos de organização e de novas estruturas. A liberdade dos debates e a presença de contrapoderes são então elementos essenciais que dão uma flexibilidade indispensável às estruturas”. Os autores sublinham que “a China ainda está longe disso”.

Um dos fios condutores do diagnóstico de Aglietta sobre a economia mundial, e sobre os remédios que seria preciso aplicar a ela, diz respeito à taxa de poupança. Ela é baixa demais em alguns países, alta demais em outros. Os Estados Unidos, onde ela se tornou negativa, e a China representam os pólos extremos dessa distorção. A reconstituição de uma taxa de poupança que deixasse de fazer dos Estados Unidos a sede, quando não o transmissor mais imediato, de crises financeiras sucessivas “requer uma consolidação orçamentária incompatível com as orientações políticas da maioria conservadora no poder. Implica sobretudo uma recuperação considerável da poupança das famílias. Isso supõe uma revisão dilacerante do consumo a crédito, combinado com o desperdício aterrorizante dos recursos não-renováveis, que constitui o modo de vida norte-americano”.

Dúvida: será necessária uma grande crise econômica global para reintroduzir a regulação da moeda e crédito

Coincidindo com as conclusões de Jorion, eles acrescentam que “isso supõe também uma mudança na concepção que os dirigentes norte-americanos têm do lugar dominante e do papel hegemônico dos Estados Unidos no mundo”. Quanto à China, além dos reflexos de entesouramento que mergulham suas raízes na história, lida-se com “uma poupança de precaução ante a degradação dos sistemas públicos de proteção social, de educação, de aposentadoria, diante do risco de perda de emprego nas empresas estatais subsistentes”, problemas, portanto, que conduzem à liberdade de organização e de reivindicação.

O concentrado dos mecanismos suscetíveis de conduzir a uma situação em que as “mudanças estruturais maiores [sejam] impostas por uma crise” encontra-se na moeda internacional (as divisas e suas taxas de câmbio). Em razão do “caráter de bem público da moeda”, sua regulação “só pode ser política”. Para Aglietta e Berrebi, “a responsabilidade de sua gestão é necessariamente intergovernamental”. Os Estados Unidos sempre se opuseram a isso por causa dos privilégios que tiram do regime de semipadrão dólar. Mas, atualmente, uma responsabilidade compartilhada seria de absoluta necessidade.

Não existe nenhum outro meio de criar “uma estrutura ordenada das taxas de câmbio, de um lado, e de regular a liquidez global em função da demanda de meios de pagamentos internacionais, do outro”. Ora, o que fizeram os bancos centrais desde meados de agosto senão criar mais liquidez ainda e travar entre si uma espécie de guerra das moedas, da qual o euro sofreu as piores conseqüências pelas razões vistas anteriormente? Será necessário que o sistema capitalista mundial passe por uma crise enorme antes de serem recriados os fundamentos de uma regulação monetária e financeira? É preciso se preparar para isso? Seja como for, Aglietta e Berrebi terão soado o alarme.



[1] Ver Frédéric Lordon, O mundo refém das finanças, em Le Monde Diplomatique Brasil setembro de 2007.

[2] Michel Aglietta e Laurent Berrebi, Désordres dans le capitalisme mondial, Paris, Odile Jacob, 2007. O livro se beneficiou dos recursos do serviço de estudos econômicos da empresa, bem diferentes dos de um laboratório universitário.

[3] Ver, no mesmo sentido, o livro bem recente de Patrick Artus, Les incendiaires: les banques centrales dépassées par la globalisation, Paris, Perrin, 2007, que examina a possibilidade de uma explosão do euro.

[4] Para uma definição desses conceitos e de sua importância, ver Frédéric Lordon, Enfin une mesure contre la démesure de la finance, le SLAM!, Le Monde Diplomatique, fevereiro de 2007.

[5] A securitização consiste em “transformar os créditos em posse dos bancos, das instituições financeiras, das companhias de seguro ou das sociedades comerciais (as contas clientes) em títulos negociáveis” (ver Bertrand Jacquillat, Les 100 mots de la finance, Paris, PUF, 2006). A etapa seguinte, que se desenvolveu principalmente a partir de 2002, consiste em “fundir” junto certo número de créditos para fazer deles uma linha de obrigações negociáveis. Os títulos assim “manufaturados” podem ser vendidos nos mercados em pequenos pacotes aos diversos investidores institucionais ou fundos especulativos que quiserem comprá-los.

[6] A palavra pode ser traduzida pela perífrase “inferior à norma de qualidade”. Designa os empréstimos com risco de falência elevado.

[7] Ver por exemplo “Public versus private equity”, The Economist, 7 de julho de 2007. Há alguns meses, o semanário da City londrina se tornou o eco da preocupação crescente de uma parte dos melhores financistas quanto aos private equity, cujos perigos agora são sistematicamente expostos.

[8] É espantoso ver Aglietta e Berrebi retomarem, por conta própria, uma das “justificativas” dadas pela direção do Partido Comunista Chinês para a repressão do movimento estudantil da praça Tiananmen em 1989, isto é, “a ajuda considerável que o movimento recebia do exterior”.

Nenhum comentário: