quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

A importância dos desimportantes



Frei Betto

Em tempos pré-natalinos, em que autores plagiam Voltaire e apregoam que Deus não passa de um delírio de nossas mentes, vale recordar o que disse Dostoiévski no século XIX: “Ainda que me provassem que Jesus não estava com a verdade, eu ficaria com Jesus”.

Jesus teve muito pouca importância para a sua época, exceto para o pequeno grupo de seus discípulos. Era um homem destituído de valor agregado. Agrega-se valor a uma pessoa a função que ela ocupa (vide os políticos), os bens que ela porta (vide os ricos), os títulos que ela ostenta (vide os nobres e os acadêmicos), o lugar de origem (nascer em Paris ou Nova York soa melhor a certos ouvidos do que nascer em Santana do Capim Seco).

Em tempos de outrora, o lugar de origem fazia às vezes de sobrenome. Os evangelhos referem-se a Jesus de Nazaré. Que valor tinha Nazaré, cidade ao sul da Galiléia? Era uma pequena aldeia camponesa com população em torno de 200 a 400 habitantes. Ali se cultivavam oliveiras, vinhas e grãos, como trigo e cevada. Suas casas eram de pedras brutas empilhadas umas nas outras, revestidas de argila ou lama, e até mesmo esterco misturado com palha para favorecer o isolamento térmico.

A existência de Nazaré jamais foi mencionada pelos rabinos judaicos na Mixná ou no Talmude, embora eles listem 63 outras cidades da Galiléia. O historiador judeu Flávio Josefo, do século I, cita 45 localidades da Galiléia, e Nazaré não aparece. Assim como não figura em todo o Antigo Testamento. O catálogo bíblico das tribos de Zebulon enumera 15 localidades da Baixa Galiléia, próxima a Nazaré, mas esta não é citada (Josué 19,10-15).

Nazaré era um lugar tão insignificante que Natanael, convidado a se tornar discípulo “daquele sobre quem escreveram Moisés, na Lei, e os profetas: Jesus, o filho de José, de Nazaré”, indaga com ironia: “De Nazaré pode sair algo de bom?” (João 1, 45-46).

Nazaré dista pouco menos de 7 km de Séforis, que foi capital da Galiléia antes de Herodes Antipas construir sua Brasília da época em homenagem ao imperador Tibério César: Tiberíades, à margem do lago da Galiléia. É provável que José e seu filho Jesus tenham trabalhado nas edificações de Séforis e Tiberíades. É curioso constatar que Jesus jamais pisou nesta última cidade, embora fosse visto com freqüência em outras localidades à beira do lago, como Cafarnaum. Talvez a ostentação da capital da Galiléia lhe causasse repulsa.

A própria família de Jesus não o via com bons olhos, como acontece em relação aos filhos que fogem às previsões paternas. Segundo Marcos (3, 19-21), quando Jesus voltou para casa, “a multidão se apinhou, a ponto de não poderem se alimentar. E quando os seus tomaram conhecimento disso, saíram para detê-lo, porque diziam “enloqueceu!” Na cultura da época, insanidade e possessão do demônio eram quase sinônimos.

Marcos, o primeiro evangelista, prossegue: “Chegaram então a mãe e seus irmãos e, ficando do lado de fora, mandaram chamá-lo. Havia uma multidão sentada em torno dele. Disseram-lhe: ‘A tua mãe, os teus irmãos e tuas irmãs estão lá fora e te procuram’. Ele perguntou: ‘Quem são minha mãe e meus irmãos?’. E percorrendo com o olhar os que estavam sentados a seu redor, disse: ‘Quem fizer a vontade de Deus, esse é meu irmão, irmã e mãe”. (3, 31-35)

A tentativa de difamar Jesus é perene. Em fins do século II, Celso, filósofo grego, escreveu contra o cristianismo em defesa do paganismo: “Imaginemos o que algum judeu – principalmente se filósofo – poderia perguntar a Jesus: “Não é verdade, meu bom senhor, que você inventou a história de seu nascimento de uma virgem para abafar os rumores acerca das verdadeiras e desagradáveis circunstâncias de sua origem? Não é fato que, longe de ter nascido em Belém, cidade real de Davi, você nasceu num lugarejo pobre de uma mulher que ganhava a vida num tear? Não é verdade que quando sua mentira foi descoberta, sabendo-se que fora engravidada por um soldado romano chamado Panthera, seu marido, um carpinteiro, a abandonou sob acusação de adultério? Não é verdade que, por causa disso, em sua desgraça perambulou para longe de seu lar e deu à luz um menino em silêncio e humilhação? Que mais? Não é também verdade que você se empregou no Egito, aprendeu feitiçaria e se tornou conhecido a ponta de agora se exibir entre os seus conterrâneos?”

Estamos a entrar no Advento. Quem esperamos? Um jovem “maluco” oriundo de uma localidade insignificante ou o Deus Salvador? A resposta é simples: basta olhar em volta e indagar-nos que importância damos aos atuais “nazarenos”: sem-terra e sem-teto, oprimidos e encarcerados, funcionários subalternos e pessoas destituídas de valor agregado. Segundo Mateus 25, 31-46, é neles que Jesus quer ser reconhecido, servido e amado. É por eles que Deus Salvador entra em nossas vidas.

Frei Betto é escritor, autor de “A arte de semear estrelas” (Rocco), entre outros livros.


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