segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

Suspiria, arte e sentidos

Avesso às fórmulas e clichês dos filmes de terror, o italiano Dario Argento produz obras marcadas por cenários, tons e música incomuns; tempo e espaço não-lineares; debates psicanalíticos. Texto inaugura nova coluna do Diplô, agora sobre cinema e diversidade

Bruno Carmelo

A idéia de uma coluna intitulada Outros Cinemas visa, a princípio, dar espaço a filmes que apresentem propostas artísticas diferentes da estética massiva dos blockbusters norte-americanos.

Logicamente, não se ignora o valor de filmes de grande orçamento, que têm papel importante na manutenção da indústria, e por vezes até possibilitam a realização de obras independentes. Lembremos de Orson Welles, que sempre atuou em filmes que não o agradavam para poder financiar seus próprios projetos...

No entanto, é claro que a distribuição global das produções hollywoodianas é acompanhada de uma propaganda que toma espaço considerável na mídia; de modo que muitos filmes que julgamos interessantes (e diferentes dessa corrente principal) ganham pouca visibilidade.

Vale dizer que a proposta de “Outros Cinemas” não é justiceira, nem radical. Primeiro, apontaremos alguns filmes que nos chamam atenção, sabendo que será impossível mencionar todos que nos interessam. Inevitavelmente, será feito um recorte pessoal sobre um terreno tão vasto de filmes inovadores... Isso porque a intenção é de não limitar a coluna às produções recentes, e também discutir eventualmente filmes antigos e fora do circuito.

Por fim, é importante dizer que não pretendemos recusar completamente as obras norte-americanas — somente a estética predominante das grandes produções. Muitos filmes produzidos nos EUA são incrivelmente ousados, assim como filmes de outros países podem se apoiar nessa estrutura massiva. Portanto, visaremos, acima das nacionalidades, as propostas.

Para abrir esta coluna, escolhemos um clássico do cinema de terror italiano, Suspiria. Mais ousado, impossível.

Bruno Carmelo

O terror é geralmente considerado um gênero menor dentro do cinema, supostamente por suas fórmulas rígidas e por se apoiar unicamente no medo do público, sem oferecer material de reflexão. Monstros, vampiros e assassinos são normalmente associados à produções de baixa qualidade, destinadas aos pequenos cinemas de bairro.

Alguns autores, no entanto, conseguiram elevar o patamar do horror à arte, ao explorarem os limites do gênero. Enquanto George Romero, com seus filmes de zumbi, faz uma crítica de sociedades contemporâneas (a norte-americana em especial), Dario Argento, outro mestre do terror, revolucionou a estética dos “filmes B”. Suspiria, de 1977, é um bom exemplo das astúcias do diretor.

A narrativa do filme se passa numa renomada academia de balé alemã, na qual estranhas mortes chocam os alunos. Escolha incomum: nada de casas abandonadas, florestas escuras, mas o calmo ambiente de uma academia. Argento faz desse prédio o personagem principal de seu filme.

Cenário labiríntico, uso ostensivo das cores e geometria, música dissonante e repetitiva

Trata-se de um imóvel gigantesco, onde supõe-se haver vários andares, corredores e salas. A noção de espaço, no entanto, é propositadamente omitida: vemos salões sem saber onde se situam, passagens que não nos indicam onde terminam. Além desse caráter labiríntico, cria-se um clima de claustrofobia: os dançarinos são todos internos e nunca saem da academia. A movimentação que lhes é permitida restringe-se à mudança de um cômodo a outro.

Sem direções e sem saídas, o terror criado por Dario Argento apóia-se principalmente na confusão de sentidos (dos personagens e, conseqüentemente, do público). Perde-se as noções de tempo e espaço, e Suspiria mostra um trabalho elaborado para confundir visão e audição.

Primeiramente, faz-se uso ostensivo de cores. As paredes de cada cômodo são cobertas de papéis de parede com motivos geométricos e vertiginosos, em cores vivas: vermelhos, amarelos, verdes e laranjas. Mesmo a fotografia do filme ignora qualquer tentativa de verossimilhança, ao criar focos de luz multi-coloridos nos personagens, que desfilam ao longo de toda a narrativa encobertos de auras esverdeadas e alaranjadas.

A música, igualmente, é excessiva e perturbadora. Um simples abrir de portas é acompanhado de trilha (com tons dissonantes e repetitivos) e de ruídos, que crescem em intensidade e volume. Cada morte simboliza a reunião máxima desses elementos: o sangue dos corpos se mistura à vermelhidão das paredes, o grito das vítimas se confunde com os estridentes acordes dos instrumentos da trilha.

Não há monstros ou psicopatas. O que mata é o próprio mal, que se revela por meio de indícios

Quanto aos assassinatos, o diretor faz uma escolha interessante ao não materializar o autor dos crimes. Não há monstros ou psicopatas; o que mata, em Suspiria, é o próprio mal. Basta que uma personagem sinta uma vertigem nos corredores da escola para que apareçam sombras, para que as luzes mudem e logo ela apareça morta. Alguns indícios, entretanto, são dados: olhos esverdeados que aparecem em fundos negros, mãos humanóides que estrangulam as dançarinas (sem que nunca vejamos o resto do corpo), ou animais pacíficos que, possuídos por espíritos, fazem vítimas fatais.

Outro elemento perturbador dissimula a identidade do assassino: no caso, trata-se da possibilidade de complô. A idéia de perseguição (tão bem usada, por exemplo, em O Bebê de Rosemary, outro clássico) serve de fundo de cena em Suspiria. Por que as dirigentes da academia não se mobilizam contra as mortes? Por que a aparente apatia face aos crimes? Nesse momento, o público identifica-se perfeitamente com a protagonista, divide as angústias dessa bailarina aprisionada, e faz das dúvidas delas as suas próprias.

Por fim, o filme apóia-se em idéias psicanalíticas (muito em voga na década de 70) para atestar a seriedade de seus fatos. Normalmente, em obras fantásticas, a ciência serve para dar credibilidade ao improvável, e é este o caso de Suspiria: quando todas as mortes parecem absurdas, uma conferência de doutores nos lembra que distúrbios mentais podem transformar pessoas comuns em assassinos cruéis.

Nos filmes de terror, é comum se criar personagens cuja função única é a de servir ao fetichismo da morte, ao espetáculo de sangue. Dario Argento mexe com os nervos do público de maneira mais inteligente, utilizando-se essencialmente da própria linguagem cinematográfica (montagem, fotografia, efeitos sonoros). Nossos sentidos, única maneira de perceber e conhecer o mundo, são manipulados a tal ponto que o terror maior não é criado pelas mortes em si, mas pela maneira como são mostradas. No cinema de Argento, o menor elemento pode ser aterrorizante; e nesses momentos, percebe-se a inteligência de um diretor que controla totalmente a arte cinematográfica e os efeitos que ela produz sobre seu público.

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