A voz distante
Gostaria de iniciar esta contribuição com a tradução de dois poemas de Yves Bonnefoy. De seu último livro de poemas, publicado em 2001, Les planches courbes (As pranchas curvas). São os dois que iniciam a parte intitulada “A voz distante” (La voix lointaine), publicados previamente em francês e em italiano, com uma litografia original e ilustrações de Farhad Ostovani. Inéditos no Brasil, não fazem parte da edição de sua obra poética, traduzida em 1998, por Mário Laranjeira.
Antes, uma observação: Yves Bonnefoy publicou, em 2000, um ensaio sobre o que chamou de “tentação do esquecimento” em dois poemas sem título de As flores do mal, de Baudelaire. Poemas que Baudelaire dedicou à sua mãe numa carta que lhe enviou: “Você não notou que havia nas Flores do mal dois poemas que lhe diziam respeito, ou pelo menos alusivos aos detalhes íntimos de nossa vida antiga?”. Baudelaire, nesse momento, evocaria o pai e a criada Mariette. Em As pranchas curvas, não só a imagem paterna surge pela primeira vez na poesia de Yves Bonnefoy, como é possível notar a presença dessa “servante”. Surge qual fosse uma criança nos 11 poemas de “A voz distante”, cantando, dançando. O poeta vai chamá-la mesmo de Parca, retomando Hölderlin e Valéry (An die Parzen; La Jeune parque). Parca, divindade que decide o destino dos homens, presidindo-lhes o nascimento. Para dizer de um eterno renascer, também na poesia, contra os desígnios da morte e do esquecimento.
Yves Bonnefoy nasceu em 1923, em Tours. Publicou Du mouvement et de l’immobilité de douve (1953), L’arrière-pays (1972, narrativa), dentre outros livros de poemas e narrativas. É tradutor de Shakespeare, Yeats, Leopardi, e autor de estudos consagrados a Rimbaud, Mallarmé e Giacometti. Recentemente, foi publicado, na França, um livro que dedicou a Paul Celan, Ce qui alarma Paul Celan (Galilée, 2007). Suas narrativas, assim como sua obra crítica, permanecem inéditas no Brasil.
La voix lointaine
I
Je l’écoutais puis j’ai craint de ne plus
L’entendre, qui me parle ou qui se parle.
Voix lointaine, un enfant qui joue sur la route,
Mais la nuit est tombée, quelqu’un appelle
Là où la lampe brille, où la porte grince
En s’ouvrant davantage; et ce rayon
Recolore le sable où dansait une ombre,
Rentre, chuchote-t-on, rentre, il est tard.
(Rentre, a-t-on chuchoté, et je n’ai su
Qui appelait ainsi, du fond des âges,
Quelle marâtre, sans mémoire ni visage,
Quel mal souffert avant même de naître.)
II
Ou bien je l’entendais dans une autre salle.
je ne savais rien d’elle sinon l’enfance.
Des années ont passé, c’est presque une vie
Qu’aura duré ce chant, mon bien unique.
Elle chantait, si c’est chanter, mais non,
C’était plutôt entre voix et langage
Une façon de laisser la parole
Errer, comme à l’avant incertain de soi,
Et parfois ce n’étaient pas même des mots,
Rien que le son dont des mots veulent naître,
Le son d’autant d’ombre que de lumière,
Ni déjà la musique ni plus le bruit.
A voz distante
I
Escutava-a, depois temi não mais
Ouvi-la, que me fala ou que se fala.
Voz longe, uma criança que na estrada
Brinca. E a noite cai, alguém me chama.
Lá onde brilha a lâmpada, rangendo
A porta ao mais abrir-se; e esse raio
Recolorindo a areia onde dançava
A sombra, entra, cochicha-se, é tarde.
(Entra, se cochichou, e eu não soube
Quem chamava assim, das eras fundas,
Que madrasta, sem memória ou rosto,
Que mal sofrido, mesmo antes de nascer.)
II
Ou então a escutava noutra sala.
Eu conhecia dela só a infância.
E os anos se passaram, uma vida
Quase durou seu canto, meu bem único.
Ela cantava, se é cantar, mas não,
Era bem mais entre voz e linguagem
Um jeito de deixar com que a palavra
Errasse incerta adiante de si mesma,
Mas, às vezes, não eram nem palavras,
Nada, apenas o som de que elas querem
Nascer, tanto de sombra que de luz,
Nem já a música, nem mais o ruído.
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