Em liquidação, a auto-estima
"Pode-se evitar os raios solares com as persianas, e combater o gelo com um bom fogo na lareira; mas a umidade penetra furtivamente em nós enquanto dormimos; ela é silenciosa, imperceptível, ubíqua". Esta descrição de Virgínia Woolf serve bem como ilustração para a penetração sorrateira da comunicação mercadológica em nossas vidas. Neste Dia Mundial dos Direitos do Consumidor, 15 de março, esta questão chama ainda mais nossa atenção quando nos lembramos do modo como as crianças foram eleitas à categoria de público alvo-preferido das estratégias de vendas. Focando em primeiro lugar crianças e adolescentes, a publicidade atinge justamente seus pontos vulneráveis — ou seja, o fato de a criança ser propensa a crer em tudo o que ouve e vê.
Elevado à categoria de necessidade, por mensagens dirigidas muito mais à emoção do que à razão, cada produto parece dizer, tal como no bordão cômico, "Seus problemas acabaram!". Por não estarem ainda maduras física e mentalmente, é natural das crianças tentar evitar o desconforto das frustrações inerentes à vida civilizada. Em contrapartida, deve ser natural dos adultos a capacidade de ajudar a criança a governar seus impulsos e suportar o vazio de não poder ter tudo, ensinando a ela que o sentido de existir é exatamente participar da vida como ela é e não do modo artificial como a mídia tenta reinventá-la.
"Prazer de dirigir", "prazer de morar", "prazer de comer". Com tanto prazer à venda, tornam-se cada vez mais insuportáveis as frustrações naturais da condição humana. Não se pode ganhar sem trégua, assim como não se pode esperar que faça somente verão o ano todo. Neste mundo do consumo, estamos sempre tentando chegar "lá". Lá onde, afinal? Consumir sem limites e perceber, no minuto seguinte, que o vazio continua igual ou pior, é tão desolador quanto ver reduzida a um padrão universal a singularidade de cada criança. Com suas mensagens dúbias, a publicidade obriga fingindo não obrigar, e exclui justamente ao não diferenciar os que podem esbanjar dos que sequer podem comer.
Embora as crianças não possam praticar os atos da vida civil, como trabalhar ou ganhar dinheiro, a comunicação mercadológica contradiz essa disposição, ao abordá-las como consumidoras
"Para você que já tem idade para brilhar", promete a nova linha de cosméticos. Em que moral e ética baseia-se o anúncio, veiculado recentemente, em revista dirigida às pré-adolescentes, para afirmar qual a idade certa para uma criança brilhar? Antes dessa idade elas eram o que, então? As crianças, quando livres da compulsão consumista, limitam, isto sim, o brilho as vendas. É assim que dia-a-dia deixamo-nos penetrar pela imposição vertical de conceitos que nos dizem o que querem e não ouvem sequer nossas perguntas mais simples: "Como assim?", "Por quê?", "Quem disse?". Lembrando as palavras do filósofo e psicólogo Pedrinho Guareschi: "A consciência é o quanto de resposta alguém consegue oferecer a uma pergunta e, diante da publicidade, a criança não tem o recurso necessário para sequer fazer a pergunta".
Se, para nós, adultos, dotados de juízo crítico, o poder material se confunde com a realização íntima, o que pensar dos pequenos diante da manobra astuta de vendas que, no lugar da qualidade do tênis, oferece como atributo o sucesso na carreira esportista? Esse fato faz com que a luta pelos direitos do consumidor se estenda para além dos direitos à segurança, qualidade, opção, informação, atenção e direito de escolha. Mesmo que todos esses requisitos fossem cumpridos ao pé da lei pelo mercado, não estariam contemplando o problema maior que é o fato da criança ser elevada à categoria de consumidor sem ter condições físicas ou mentais para isso, ou seja, quando ela ainda está construindo sua cidadania.
Ninguém duvida que uma criança não pode comprar um apartamento ou carro. Embora as crianças não possam praticar os atos da vida civil, entre eles trabalhar, ganhar dinheiro e adquirir produtos, a comunicação mercadológica contradiz essa disposição legal ao abordar a criança como consumidora. Jean Baudrillard denuncia esta contradição numa cultura que enquanto protege as crianças de um lado as desprotege do outro: "A criança é transformada pela mídia no modelo ideal de consumidor. Se, por um lado, ela não é considerada socialmente como um ser completo, por outro, na perspectiva de sua inserção na cultura, ela é plena para o exercício do consumo".
Precisamos testar em nós mesmos o bem-estar que um não pode causar. Um bom começo é parar de comprar o prazer pré-determinado e dar uma chance ao gosto de escolher sem ser escolhido
Do brincar espontâneo de nossas crianças já quase não temos registro. Uma volta, volta e meia e plim!: a infância desapareceu. Aos seis anos ou menos, o cavalinho e a pipa já são brinquedos de "nerd". E por falta de pilhas, o pião não pode mais rodopiar. Este vampirismo moderno visa implantar nas crianças a vida falsa do consumismo, sugando-lhes, em troca, a seiva do prazer de existir. Precisamos protegê-las disso, antes que as previsões da psicóloga e autora Alice Miller, colhidas ao longo de sua experiência clínica, possam se confirmar para sempre: "Enquanto não nos sensibilizarmos pelo sofrimento das crianças, esse exercício de poder continuará despercebido, tomado como irrelevante e totalmente trivializado, por tratar-se ’apenas de crianças’. Em vinte anos, essas crianças se tornarão adultos que farão seus filhos pagar a conta".
Tomando para si o gosto infantil do fazer de conta, a publicidade finge querer o melhor para as crianças com toda sorte de apelos em busca de sua atenção. Assim, o bombardeio publicitário não cessa no admirável mundo da gratificação imediata e do nem parece que é - hospitais que nem parecem hospitais, bancos que nem parecem bancos, roupinhas de bebê que nem parecem roupas de bebê e mães que nem parecem que acabaram de dar a luz. Tudo para nos vender produtos de uma realidade construída sobre a base arenosa de um mundo só de prazer. Com mensagens dirigidas muito mais à emoção que à razão, cada produto parece ser a resposta exata aos nossos mais profundos anseios. Nunca os adultos foram tão tratados como crianças e nunca as crianças foram tão promovidas precocemente a adultos.
Procurar evitar a dor ou os aborrecimentos faz parte das defesas humanas. Porém, não é bom que tenhamos êxito nisso constantemente. Suportar o vazio da ausência de alguém ou de um objeto desejado, ao mesmo tempo que dói, nos impede de mascarar a dor e, sobretudo, ativa os recursos internos de que dispomos para sobreviver a ela. Nossa sanidade mental depende disso. É uma lástima ver tanta gente – principalmente crianças e jovens – fugindo, via consumo, para o mundo do alívio ilusório. Quanto mais destemidos e protetores forem os ’nãos’ que dissermos às nossas crianças, maior a sensação de segurança que elas introjetarão. Antes, porém, de dizermos o ’não’, precisamos testar em nós mesmos o bem-estar que ele pode causar. Um bom começo pode ser parar de comprar todo esse prazer padrão pré-determinado e dar uma chance ao gosto de escolher sem ser escolhido. E, no lugar do zapear de canais, pôr para tocar a música que, talvez agora, possa fazer mais sentido do que nos fazia antes: "Ou feia ou bonita, ninguém acredita na vida real".
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