sexta-feira, 20 de junho de 2008

Uruguai: Tomografia da Crise Social



Por Juan Luis Berterretche.

Infantilização da pobreza

O fenômeno da infantilização da pobreza é mais grave no Uruguai que no resto dos países da região. A metade da população uruguaia que vive em condições de pobreza é composta de crianças e adolescentes que, aliás, são menos de um terço (29%) da população total do país. As cifras da pobreza infantil indicam que este é o setor mais vulnerável diante das variações da economia. Em 2001 a metade (50,53%) das crianças menores de 6 anos estavam na linha da pobreza. Em 2003, em seguida à crise financeira, este percentual chegou a 67%. No final de 2006 as crianças vivendo em condições de pobreza voltam a ser a metade (49,58%) do total de crianças menores de 6 anos. Apesar da melhora relativa dos últimos anos, o problema segue sendo grave e persistente. (1)

Vinte por cento das crianças que ingressam no sistema educativo primário chega com algum problema de atraso no peso ou na estatura ou alguma dificuldade de caráter cognitivo. Embora isto não seja resultado unicamente da pobreza, esta é o fator principal. É preciso buscar as causas desta situação de pobreza extrema, a exclusão social nas deficiências do sistema sanitário (2).

Em março de 2008 uma informação preliminar do Ministério de Saúde Pública sobre um índice fundamental para medir a situação da infância, apresentou cifras alarmantes. A Taxa de Mortalidade Infantil (TMI) até o primeiro ano de vida cresceu durante 2007 em relação ao ano anterior. A taxa de TMI situou-se em 11,9 a cada mil crianças e o crescimento em relação a 2006 é de 13,5%. A taxa de mortalidade infantil no Uruguai é o dobro que em Beijing. (3)

O cenário dos adolescentes e jovens não é muito melhor. 33% deles vivem em situação de pobreza e 22% dos que são maiores de idade estão desempregados (4). Ou seja, há 3 vezes mais desempregados entre os jovens maiores que no conjunto de todas as faixas etárias. A taxa de desemprego nacional alcança 7,6%.

Como conseqüência da insuficiência de ingresso das famílias, a escassez de recursos do sistema educativo, a deficiência na qualidade de ensino e os baixos salários dos professores do ensino médio, a deserção no Ciclo Básico (até o terceiro ano do ensino médio) e no Bacharelado (os seis anos do ensino médio) tem cifras pavorosas. 40% dos estudantes que ingressam no secundário abandona antes de concluir o Ciclo Básico e dois terços dos estudantes de ensino médio não concluem o bacharelado.

“A escolaridade ou níveis de atividade que exibem os adolescentes uruguaios de níveis baixos e da classe média estão entre os piores da América Latina, ainda em relação a países mais pobres e com maiores problemas sociais”. “No caso do Uruguai, os adolescentes (entre 15 e 17 anos) que não assistem à educação formal e são inativos em lares com um ambiente educativo baixo superam os 25%, a pior porcentagem na América do Sul e só superada na América Latina por Honduras (27%).” (5).

“Tomando em conta o total dos adolescentes entre 15 e 17 anos à margem da educação e do trabalho na América Latina o índice varia entre 3,26% na Bolívia e 20, 46% em Honduras. Em média Uruguai tem 12,68% de adolescentes em todo o país que não estudam nem trabalham, acima da média latino americana que está em 12%.” (6).

Fortalecimento dos sindicatos e conquistas trabalhistas

Com a aprovação por parte do governo de algumas medidas e leis que eram prioritárias no programa da central sindical se conseguiu uma forte sintonia entre o executivo e a corrente majoritária (grupo Articulación) dentro do PIT-CNT.

As principais medidas adotadas a favor dos sindicatos foram a instalação dos Conselhos de Salários, a Lei de Negociação Coletiva e a Lei de Foros Sindicais. Esta última garantiu proteção jurídica à atividade sindical. Esta mudança na legislação nacional conduziu a que 97% dos trabalhadores privados, 99% dos trabalhadores públicos e 33% no setor rural (7) estejam amparados por convênios coletivos (8). Em 2006 houve 206 convênios e acordos.

Por conseqüência da instalação dos Conselhos de Salários, entre março de 2005 e janeiro de 2008 o salário real se incrementou em 17,7% no setor público e 14,8% no âmbito privado (9).

A recuperação salarial dos funcionários públicos da administração central (nucleados no COFE) durante o atual período de governo alcançou 19,5%.

Os docentes da Administração Nacional de Educação Pública (ANEP) conseguiram uma recuperação salarial de 24% e os funcionários não docentes da Universidade da República, 36%. Em Saúde Pública os médicos tiveram 100% de aumento em relação ao seu salário mínimo.

Os avanços não se restringiram aos incrementos salariais. Quase a metade dos convênios aprovados estabeleceu novos benefícios de salário indireto. Licença natalidade, por estudo, feriados especiais, adicionais por antiguidade e gratificações, adicional noturno, direito a roupa de trabalho e transporte, etc. Inclusive redução da jornada de trabalho como no setor da bebida que baixou de 8 para 6 horas diárias com igual salário.

Outra disposição legal que favoreceu aos trabalhadores foi a Lei de Terceirizações que fazia responsáveis dos cumprimentos dos direitos dos seus trabalhadores terceirizados às empresas que terceirizavam sua relação trabalhista. Também foi abolido o decreto que permitia despedir postos de trabalho. Esperando uma sanção definitiva do parlamento, existe um projeto para equiparar o regime de folgas entre públicos e privados.

As conquistas salariais, os benefícios indiretos e a maior proteção legal à atividade sindical redundaram em um aumento dos sindicalizados e dos grêmios aderidos ao PIT-CNT. A central de Trabalhadores passou de 120.000 a 280.000 afiliados entre 2003 e 2008.

Continua um núcleo duro de pobreza

Analisando as cifras de pobreza (lares com ingresso entre $2.292 e $4.732) e indigência (lares com ingresso menor que $2.292) desde março de 2005 à data que comprovamos que os planos do atual governo (10) fizeram diminuir a pobreza em 13,8% (algo mais que 100.000 pobres a menos) e reduziram a indigência à metade (34.000 indigentes menos que em 2004). (11).

Mas se considerarmos o desenvolvimento das cifras de pobreza e indigência da última década vemos que ainda está longe de alcançar os percentuais que o país tinha no final da década passada. Em 1999 os montevideanos que viviam abaixo da linha da pobreza eram de 16,2% da população da capital. Em 2001 o percentual subiu a 18,4%; em 2002 a crise financeira mergulhou na pobreza a 23,5% dos montevideanos e em 2004 quase um terço (31,8%) da população da capital era de pobres. Em 2007 mais da quarta parte (26,5%) da população da capital está abaixo da linha da pobreza. Em termos de pobreza hoje se está um 10% pior que em 1999. (12)

A redução da pobreza alcançada durante o atual governo se limitou a setores sociais de pobreza recente que, havendo descido à pobreza como conseqüência da crise de 2002, se foram recuperando no marco da reativação econômica. Ao mesmo tempo se mantém um núcleo duro de pobreza que nem os planos do MIDES nem a relativa recuperação salarial conseguiram abater.

É importante saber que mais de 15% dos assalariados urbanos do país e 35% dos trabalhadores informais estão abaixo da linha da pobreza. Existindo bolsões de pobreza maior entre os trabalhadores da agricultura e pecuária, da pesca, da construção e da exploração de minas. Quando se combina a ocupação com a idade temos resultados ainda piores: entre os menores de 25 anos que estão no trabalho doméstico a pobreza alcança 40%.

Descontentamento

No primeiro trimestre de 2008, a quantidade de horas de greve aumentou 41%. 64% da agitação do trimestre se deveu a greves no setor privado. Em particular na construção pelo crescimento dos acidentes de trabalho. O ponto mais alto da agitação no setor público foi por conta dos trabalhadores da Prefeitura Municipal de Montevidéu e pelas mobilizações dos professores primários. Também os professores do secundário e os funcionários da Universidade da República realizaram greves. Os trabalhadores do ensino reclamam melhoras a incorporar na Rendição de Contas. Os funcionários das instituições públicas realizaram uma greve de 24 horas e outra série de medidas.

“As reivindicações vão continuar enquanto os avanços sejam insuficientes. Não nos importa se esta luta poe em perigo um novo triunfo da Frente Ampla.” Esta é a opinião de Joselo López da Confederação dos Funcionários do Estado (13).

Na reunião dos 400 delegados aos Conselhos de Salários com o executivo do PIT-CNT se definiram algumas pautas para a negociação com as patronais que indicam um descontentamento com o obtido pelo movimento sindical até agora em termos de aumento salarial.

Em primeiro lugar começa a ficar claro que a recuperação salarial partiu do nível baixíssimo de ingressos que impôs a crise econômica de 2002. O salário real médio diminuiu 23,3% entre 2000 e 2005. Muitos sindicalistas são conscientes que nos convênios coletivos apenas se recuperou 50% do salário perdido (14).

Em 2006 e 2007 a produção nacional cresceu 6,6% e 7% no primeiro trimestre de 2008. o PBI foi 10,9% superior a igual trimestre de 2007. O certo é que os aumentos salariais obtidos não acompanham o crescimento da economia e do PBI.

Por isso, enquanto o governo propõe aumentar o salário mínimo a $4.150 e a proposta do PIT-CNT era de $6.800, os representantes nos conselhos de salários elevaram sua demanda de um salário mínimo de $8.500.

Exigiram também relacionar o aumento salarial a uma maior distribuição da riqueza, tomando como referência o crescimento da economia e da produtividade de trabalho.

A pauta do governo para os conselhos anteriores de salários era aprovar convênios com prazos de vigência superior ao ano e ampliar o tanto possível o prazo dos ajustes relacionados com a inflação. Em sua reunião com o executivo do PIT-CNT os representantes decidiram reduzir a periodicidade das correções por aumento do IPC.

É necessário levar em conta que a atual inflação está concentrada no preço dos alimentos. No primeiro quadrimestre de 2008 o setor alimentos aumentou em 5% e o acumulado dos últimos 12 meses supera os 20%. Mas se nos concentrarmos nos alimentos prioritários na dieta dos uruguaios veremos que o crescimento dos preços é muito superior ao do setor alimentos e bebidas em geral, onde os bombons, o whisky e os vinhos se promediam com o arroz, o azeite, a carne, o pão e o leite. A variação anual em porcentagens a maio de 2008 de alimentos e bebidas (15) revela algumas cifras escandalosas. Desde a cebola cujo preço aumentou em 118,7%, passando pela uva com uns 75%, o pêssego com 64,5%, os queijos que aumentaram entre uns 35% e uns 54,6%, o arroz 52,5%, o óleo de girassol 53,7%, o pão baguete 28,9%, o assado 22,3%, o pescado 18,8% e o leite 17,15%. O aumento dos alimentos afeta em forma inversa a pirâmide social: quanto maior é o nível de pobreza maior é a porcentagem de salário destinado a alimentação e, portanto, se trata de uma inflação perversa que golpeia em maior medida a pobreza e a indigência.

Outra reivindicação importante do mandato aos representantes aos conselhos de salários é a redução da jornada de trabalho em todos os setores da atividade privada. Mas não se trata de uma campanha na que o PIT-CN T ponha todos seus esforços de maneira centralizada: se deixa a cada setor a forma de implementar esta medida tanto em horas como em dias.

Continua a concentração da riqueza

Enquanto os pós-comunistas e social-democratas liberais disputam sobre quem administra melhor o capitalismo, a embaixada dos EUA elogia o ministro da economia e finanças Danilo Astori pela aplicação de uma política “macroeconômica ortodoxa”, ou seja, neoliberal e de acordo com as receitas do FMI e Banco Mundial. No mesmo informe a embaixada do império celebra o tratamento preferencial ao capital estrangeiro que outorga o governo de “centro esquerda” de Tabaré Vázquez (16).

O certo é que, enquanto o governo realiza reuniões ministeriais para dar informes triunfais sobre as relativas e exíguas melhoras sociais, alguns economistas começam a difundir as cifras da continuidade de uma distribuição regressiva da riqueza no período de 2005 – 2007.

Os resultados da arrecadação da DGI em 2007 demonstram que a Reforma Tributária aprovada pelo atual governo favorece a acumulação de capital esgotando os trabalhadores. Os 90% da arrecadação corresponde a aportes dos trabalhadores e só em 10% afeta ao capital. A “redistribuição da renda” que realizaria o IRPF estava centrada em tirar dos trabalhadores que ganham mais para aumentar a renda dos que ganham menos, sem afetar as ganâncias do capital. O discurso do governo enfrentava aos aposentados da miséria com os aposentados que não alcançavam a receber uma cesta básica, a população mais pobre com os assalariados com maiores rendas e a classe média. Um discurso perverso para dividir os setores populares, mantendo um modelo da prioridade a ganância das empresas e transnacionais.

Vejamos como foi a distribuição da riqueza em 2007. O PIB é o índice que utiliza o capital para medir a geração anual de riqueza. “Em 2007 o PIB superou os 22.000 milhões de dólares, num processo que confirma a tendência de crescimento dos últimos três anos. Do total, quase uns 30% (6.600 milhões de dólares) corresponde ao que foi às mãos dos trabalhadores (salários e aposentadorias); uns 20% (4.400 milhões de dólares) deriva ao Estado (deduzidas as transferências por aposentadorias); o restante (11.000 milhões de dólares) corresponde a rendas de capital. No período 2005-2007 se verificou uma queda de 33% da participação da massa salarial em relação ao produto bruto por habitante. Há uma perda da participação dos salários e os ingressos no PIB de amplíssimos setores da população; o pronunciado aumento da riqueza gerada no país ignorou a imensa maioria” (17).

Desde a analise de outro índice de distribuição da riqueza o economista liberal Jorge Notaro confirma as conclusões anteriores.

Enquanto o PIB mede o que se gera no país anualmente, a Renda Nacional Bruta Disponível (YNBD) são os ingressos que ficam no país cada ano. O YNBD é menor que o PIB porque as transferências de renda ao exterior superam as que se recebem.

“A participação da massa salarial no YNBD passou de 31% no triênio de 1998 – 2000 a 17,5% em 2004. Em 2005 a massa salarial aumentou uns 3,5%” (18). No triênio 2005-2007, se mantém a política salarial sem mudanças, a massa salarial no YNBD se situaria uns 10% por debaixo do nível do triênio 1998-2000. Isto significa que, cada ano, aproximadamente 1.700 milhões de dólares que antes recebiam os assalariados e suas famílias agora são apropriados pelo capital. “O novo governo sobrecumpriu as metas acordadas com o FMI de crescimento, resultados fiscais, conta corrente e redução da divida”. Sua política econômica “é a instrumentação própria da ortodoxia fundomonetarista” (19).

O aumento do preço internacional dos commodities (alimentos transformados em mercadorias da economia globalizada) está impulsionando uma inflação centrada nos produtos alimentícios. Mas para a economia capitalista uruguaia existe uma grande oportunidade de lucro. O Uruguai é o sétimo exportador de arroz do mundo e o primeiro da América Latina; é também o primeiro exportador de laticínios no continente; e um tradicional exportador de carnes de qualidade. A imprensa chegou a dizer que se pode alcançar os 10.000 milhões de dólares em exportações em 2008 (29). Em um cenário incomparável para derivar riqueza até os trabalhadores, a continuidade da política do governo nos promete uma grande acumulação de capital.

Pós-comunistas e social-democratas liberais voltaram a demonstrar que o capital é acumulativo e não distributivo.

(1) Evolução da pobreza e desigualdade de renda no Uruguai entre 2001 e 2006 Instituto Nacional de Estatística - INE.

(2) Gustavo de Armas, sociólogo, responsável de Políticas Sociais e Educação da UNICEF no Uruguai,O País Suplemento da ECONOMIA E MERCADO 04 12 2006.

(3) Agustina Navarro, O País, 20 03 2008.

(4) Pesquisa de Lares Ampliada do Instituto Nacional de Estatísticas-INE.

(5) Segundo o informe publicado em maio de 2008 pelo Sistema de Informação de Tendências Educativas na América Latina (SITEAL) apoiado pela UNESCO e a Organização de estados Iberoamericanos para a Educação, a Ciência e a Cultura (OEI) semanário Busca 29 05 2008.

(6) Ibid.

(7) O setor rural participa pela primeira vez neste tipo de instâncias.

(8) Relações Laborais e Modelo de Desenvolvimento – Programa de Modernização das Relações Laborais da Universidade Católica (UCUDAL)

(9) Instituto Nacional de Estatística - INE.

(10) Plano de Emergência e Plano de Equidade do Ministério de Desenvolvimento Social – Mides.

(11) Fabiana Espíndola e Gustavo Leal, Observatório de Montevidéu de Inclusão Social, O País, 12 09 2007.

(12) Instituto Nacional de Estatística – INE.

(13) O Observador 03 05 2008.

(14) Instituto Cuesta Duarte.

(15) Instituto Nacional de Estatística – INE. Componentes do IPC do setor alimentos e bebidas. Taxa de variação de prexos de junho 2007 a mio de 2008.

(16) Os dados que apontam a concentração de riqueza, Semanário Brecha, 07 03 2008.

(17) Joaquín Etchevers, A distribuição de renda no período de 2005 – 2007 com referência a tendências de maior prazo. Semanário Brecha, 07 03 2008.

(18) Jorge Notaro, Investigador do Instituto de Economia do Uruguai (IECON) da Faculdade de Ciências Econômicas e de Administração (FCCEE). Revista Caras e Caretas 11 05 2007.

(19) Ibid.

(20) A República 08 06 2008

Versão em português: Vanessa Bortucan e Verônica Loss.

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