quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Primeira entrevista com o Presidente depois do triunfo no revogatório





Bolívia

Buenos Aires, 13 ago (Martín Sivak, de Crítica Digital, tomado por ABI).- Sorridente e sempre sóbrio, Evo Morales jantou sopa de quinua, trucha (um peixe comum no Lago Titicaca), sorvete de chirimoya de sobremesa e bebeu só um vaso de mocochinchi (pêssego desidratado).

"Sábado e domingo voltei a ser Evo Morales", diz o presidente da Bolívia. Não fala do resultado do referend

o que ratificou seu mandato mas de um costume que recuperou nas horas prévias à eleição: dirigir velozmente com música de bandas e melodias andinas como fundo.

"Assim me distraio e me lembro de como era a vida antes de chegar aquí". Aquí é o comedor principal da residência de São Jorge, onde o Presidente está só. Destacam-se as cortinas bordô, um televisor de tela plana, poltronas de um rosa gastado e a foto oficial do Chefe de Estado, único detalhe que dá um toque pessoal a um ambiente impessoal.

Ao sentar-se à mesa para jantar, Morales conhece o último dado do referendo revogatório: o Sim a sua continuidade chega a 65% dos votos.

Crê que nas horas seguintes superará os dois terços dos sufrágios, uma proporção que nenhuma pesquisa de voto antecipou e que provocou surpresa no próprio governo, que começou a campanha no pico do conflito com o oriente do país. O objetivo inicial consistia em manter os 53,7% das eleições gerais de 2005.

"Superamos nossa votação por quase 12 pontos, e votaram mais de 83% dos bolivianos", aponta o Presidente, enquanto toma um prato de sopa de quinua.

Soa um de seus dois celulares, com novidades de Pando: é o departamento do Oriente ao que o Executivo destinou maiores esforços para revogar o governador Leopoldo Fernández. Faltaram menos de dois mil votos. Uma vitória haveria provocado a erosão do bloco de governadores opositores do Oriente, unidos pela reclamação de autonomia e pelo rechaço a Morales e suas políticas.

"Eu fui sempre de diálogo: não sei por que tanta surpresa por meu discurso", diz sobre suas palavras desde os balcões do Palácio Queimado, quando convocou à unidade nacional, felicitou os gpvernadores ratificados e propôs uma agenda que harmonizaria a Constituição Política do Estado (votada pela maioria oficialista e desconhecida pela oposição) com as autonomías departamentais (a reclamação do Oriente).

O Presidente concede que esse entendimento não será nada fácil com ol Oriente. "Mas faremos todo o possível para chegar a isso: meu dever como presidente é esgotar as possibilidades".

Sabe que um fracasso nesse diálogo implicaria o reinicio de um novo ciclo de conflitos com derivações insuspeitadas.

No oriente do país, onde os governadores adversários ganharam, Morales cresceu em todos os departamentos. Em Santa Cruz, por exemplo, ganhou nas zonas rurais e suburbanas de migração interna e perdeu por uma grande diferença nas zonas urbanas. Essa tendência de grande apoio no campo e menos nas cidades se repetiu em quase todos os nove departamentos.

O Governo segue acreditando que em Santa Cruz é decisivo encontrar a liderança local de um crucenho ou crucenha que possa instalar a agenda do Governo nacional e incorporar novos sectores.

Morales não viu por inteiro, pela televisão, o discurso de Rubén Costas, o prefeito ratificado de Santa Cruz. Se surpreendeu quando depois leu na transcrição que havía acusado a seu Governo de ser uma ditadura, de praticar o terrorismo de Estado e de viver prisioneiro do fundamentalismo aimará.

Durante a noite da eleição também ficou em evidencia a dureza com o Governo da maioria dos meios de comunicação onde despontou Unitel, propiedade de uma das famílias latifundiárias mais favorecidas do Oriente.

"Os resultados mostram que os bolivianos crêem cada vez menos nos meios de comunicação privados: me atacam sistematicamente, mas não puderam impedir que ganhemos. 90% dos meios de comunicação está contra mim, mas dois terços do país apóia este processo de mudança".

Enquanto prova a trucha criola do Lago Titicaca, conta que Fidel Castro lhe mandou uma mensagem de felicitação: lhe disse que sua vitória fora "colossal". Durante o jantar recebe chamados a cada três minutos. Um deles para terminar de definir as atividades de terça-feira: às 5h da manhã tem sua primeira reunião com a equipe de "Evo Cumpre", depois conversará com uma delegação do Governo dos Estados Unidos sobre questões vinculadas com o narcotráfico e seguirá para um encontro com membros da Organização de Estados Americanos.

Prefere de sobremesa um sorvete de chirimoya ― fruta parecida à palta por fora e à pêra por dentro ― que lhe oferece um garçom vestido com camisa mao negra. Se serve o último vaso de mocochinchi.

Morales ainda se emociona ao recordar a queda do helicóptero ruso ― piloteado por uma equipe de quatro venezuelanos e um boliviano ― que o transportava diariamente por toda a Bolívia.

Recorda cada uma das viagens com esses pilotos por geografias e climas mais difíceis que os do dia dla queda. Crê que possa ter sido um atentado. "Mas não deixarei de subir nos helicópteros e de voar aos povoados porque é a única maneira que sei governar".

Na semana prévia ao referendo, o Presidente não pode assistir a atos em Sucre pelo Día da Independência nem em Tarija, onde deveria encontrar-se com Cristina Fernández de Kirchner e Hugo Chávez, pelos bloqueios a aeroportos feitos por grupos de oposição.

Depois do referendo, certas vozes radicais do Oriente intentaram instalar a idéia de que o presidente fora revocado em Santa Cruz (perdeu por 60% contra 40%) e que nessas terras já não exercia a presidência.

"Eu seguirei viajando ao Oriente porque sou o Presidente de todos os bolivianos", assegura às 10h30min da noite, quando já tem dois ministros esperando-o numa sala contigua. Ao despedir-se disse que quer dirigir sua camioneta por uma zona inóspita de Tarija que conhece bem. "Pura terra e pedras".

Vitoriosos entre amigos

O avanço dos cômputos oficiais da contagem dos votos no referendo revogatório de 10 de agosto deu uma grande surpresa. Foi no departamento amazônico e oriental de Pando, que junto a Santa Cruz, Beni e Tarija lideram a demanda autonomista da região da chamada "media luna" contra La Paz.

Com 97% dos votos computados, o Sim à continuidade do presidente Evo Morales se impôs em Pando com 52,70% sobre o Não. O governador de Pando Leopoldo Fernández foi ratificado em seu cargo com quase 56% dos sufrágios, mas o triunfo do presidente no âmbito departamental sem dúvida socavará a capacidade de negociação deste, ademais de que implicará numa quebra no bastião opositor das regiões autonomistas. Ao mesmo tempo, o revogado governador de Cochabamba, o ex-militar Manfred Reyes Villa, ex-guarda-costas do ditador Luis García Meza, renunciou ontem de surpresa a seu cargo, logo de anunciar que não reconheceria os resultados que lhe foram contrários. Reyes Villa advertira que lutaria pela sua continuidade ante a Justiça, depois de ser revogado por seis de cada dez cochabambinos. Logo de conhecidos os resultados contrários ao governador, militantes do oficialista Movimento ao Socialismo (MAS) ameaçaram sacá-lo à força do edifício da governadoria.

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