quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Um pouco da Itália...

Por Astrid Lima


Estamos em pleno inverno europeu, mas um um forte vento, o Scirocco, proveniente da África, forma túneis de ar quente que rasgam o frio na cidade de Roma. Dentro deste corredor de calor, com cartazes que se movem ao ritmo do vento, centenas de médicos e enfermeiras estão reunidos na frente de Palazzo Montecitorio, a Câmara dos Deputados italiana, com velas nas mãos.

Nas camisetas brancas está escrito: “Médicos, não espiões”.

É a manifestação convocada pelos Médicos sem Fronteiras, pela Sociedade italiana dos Médicos das Migrações e pelo Observatório Italiano sobre a Saúde Global contra uma proposta de decreto do governo italiano, que obriga o médico a denunciar às autoridades todos os clandestinos que se apresentarem como pacientes.

Este decreto, claramente racista, está em contradição com o Texto Único sobre a Migração, que prevê que o acesso à estrutura sanitária por estrangeiros irregulares não deve comportar nenhum tipo de advertência às autoridades, com a mesma paridade de tratamento aplicada a todos os cidadãos italianos.

São poucas linhas, mas de grande demonstração de civilização. Na prática, afirma-se que o médico deve respeitar o paciente independente da sua nacionalidade, religião, cor, sexo, condição social, politica.

Está no próprio juramento de Hipócrates: Àquilo que no exercício ou fora do exercício da profissão e no convívio da sociedade, eu tiver visto ou ouvido, que não seja preciso divulgar, eu conservarei inteiramente secreto.

É um belo juramento, apesar de velho e superado em alguns trechos. Nele ainda é intrínseca a necessidade de qualificar a prática médica, a ciência desses modernos curandeiros, mesmo em uma sociedade muito mais complexa do que aquela de séculos atrás.

Se começa jurando por Apolo, por Esculápio, por Higia e Panacéia, deuses ligados à saúde, à cura, à luz e ao sol; e eu imagino, ali, naquele momento, o jovem médico, tão nervoso quanto um presidente eleito dos Estados Unidos, jurando, porém, por algo que vai além de um mandato, de sistemas eleitorais, de geopolíticas, de impérios. Nas suas mãos estão depositados vida, morte e ética:

estimar, tanto quanto a meus pais, aquele que me ensinou esta arte; fazer vida comum e, se necessário for, com ele partilhar meus bens; ter seus filhos por meus próprios irmãos; ensinar-lhes esta arte, se eles tiverem necessidade de aprendê-la, sem remuneração e nem compromisso escrito;

Se o exercício da medicina dependesse desse simples juramento, não existiria algo como a saúde privada, como os hospitais particulares, como as operações cirúrgicas onde tudo é contabilizado: sala operatória, enfermeiros, instrumentos, remédios, anestesistas, período de internação. Onde não há acesso sem antes a verificação do cartão de crédito.

A cada toque de caixa de um plano de saúde eu me pegunto quanto vale uma vida humana. Qual é a sua cotação, que preço vai curar uma ferida, sarar uma fratura, deter uma hemorragia, extirpar um tumor, fazer continuar a respirar.

Que rosto tem o gerente, o burocrata, o técnico, o promotor de vendas e todos aqueles que decidem quais são os percentuais de lucro sob os quais não é possível descer.

Que dinheiro é esse que tem sua origem na dor humana, nos seus medos e males? E que país é aquele em que o único sistema sanitário possível é o privado?

Na Itália a saúde pública ainda é de qualidade, acessível a todos, e é considerada, junto com a francesa, uma das melhores do mundo. Ainda não foi vencida pela barbárie dos camelôs sanitários, das clínicas sustentadas com carnês mensais e com manuais de subterfúgios que ensinam como obter o máximo do lucro com o mínimo dos custos.

Ainda é possível encontrar em um mesmo quarto de uma maternidade uma jovem italiana, uma cigana, uma africana, uma ex-jogadora da seleção nacional de Vôlei. Mulheres iguais diante da maternidade.

Neste pais é ainda possível que um simples cidadão – pobre ou clandestino — possa desfrutar do mesmo hospital, dos mesmos médicos do Papa, do presidente da República ou de um magnata, como Berlusconi.

Mas é noite em Roma. E ao frio se alterna um calor estranho, impossível, provocado pelo vento e pela areia do Saara, que me suscitam imagens de antigos rituais.

“Nós não denunciaremos ninguém”, declara, orgulhoso, um cirurgião ortopédico do Policlínico Gemelli, considerado um dos maiores hospitais italianos, o mesmo que acolheu tantas vezes João Paulo II.

Aquele pequeno grupo de médicos na frente do parlamento italiano, iluminados pelas luzes das velas, reivindicam a simples possibilidade de serem fiéis ao próprio juramento: curar sem mediocridades como denunciar o próximo, monetarizar a vida, medí-la em documentos, siglas ou carimbos.

Curar todos os homens, porque este é uma antiquíssima e mítica arte, que tem a cumplicidade dos deuses, mas que foi construída com o conhecimento da humanidade inteira.


Astrid Lima é brasileira e vive na Itália, e encontrou uma forma de matar saudades do Brasil: escrevendo coisas assim para O Malfazejo.

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