quarta-feira, 19 de maio de 2010

Crise...


Ações nos bastidores
por Silvio Caccia Bava
Estamos entrando em um período de grandes mudanças. E são sinais dos tempos ouvir que o Fundo Monetário Internacional quer regular e taxar a circulação internacional dos capitais. Mesmo os grandes bancos privados começam a se dar conta, porque vários quebraram, que deixados à sua sina caminham para uma disputa alucinada e para a própria destruição.
Por outro lado, avaliações do impacto da crise nos diferentes países ressaltaram o importantíssimo papel que tiveram os bancos públicos, com uma ação coordenada, para enfrentar esse cenário adverso. Países como a Índia, que nacionalizou seus bancos, ou o Brasil, que tem quase metade do seu sistema financeiro público, sofreram menos por disporem desses recursos públicos e da capacidade de gestão para mobilizá-los na crise. 
Abre-se, assim, um debate represado há muitos anos, que hoje conta com uma maior audiência: o do controle público sobre o sistema financeiro nacional e internacional e as transações financeiras internacionais. Dito de outra forma, mais abrangente: a crise abriu a possibilidade de se instituir novos controles democráticos sobre a economia.
No auge da crise foram eles, os principais agentes financeiros privados, que desenharam o pacote de ajuda do governo estadunidense a si próprios. E aceitaram, pelo impacto social enorme de suas próprias ações, pelos efeitos sociais perversos da crise, pelas questões de governabilidade, debater um novo pacto de regulação do sistema financeiro, incluindo um maior controle sobre os paraísos fiscais.
As últimas estimativas são de que, globalmente, foram destinados mais de US$ 13 trilhões de recursos públicos para salvar as grandes corporações privadas. Nunca havia se visto tanta riqueza mobilizada do dia para a noite. Como essas grandes corporações foram capazes de impulsionar, com tamanha rapidez, tantos recursos públicos no seu interesse privado?
John Dewey, um dos mais proeminentes filósofos americanos do século XX, concluía que a política em nossos países é definida, nos bastidores, pelas grandes corporações, e que vai continuar sendo assim enquanto o poder residir nos negócios orientados para o lucro, através do controle privado dos bancos, da terra, da indústria, reforçado pelo comando da imprensa, dos jornalistas e de outros meios de publicidade e propaganda.1
O neoliberalismo dos anos 1990 fez mais. Construiu todo o arcabouço legal e institucional para que a política não tocasse na economia, não tocasse nos interesses “do mercado”. Políticas como a de um Banco Central independente são expressão dessa engenharia institucional. 
No Brasil, dinheiro e poder continuam associados, mas temos tido avanços nas dimensões republicana e democrática das ações do poder público. Há uma ação mais efetiva do sistema judiciário e da polícia federal no combate à corrupção na política, que acabou por afastar governadores, executivos e parlamentares dos cargos, acusados de uso privado do dinheiro público, de captação ilícita de recursos para campanhas eleitorais, de favorecimentos a empresas em licitações para obras e serviços públicos. Mas, apesar desses avanços, não se tem notícia da penalização das empresas envolvidas – supostamente, os agentes corruptores. Há também várias iniciativas da sociedade civil, que vão desde a defesa de uma reforma política até o projeto de lei que impede a candidatura de pessoas condenadas pela Justiça, batizado de Ficha Limpa, apresentado ao Congresso como projeto de lei de iniciativa popular, respaldado por 1,5 milhão de assinaturas.
A abordagem mais comum para tratar do tema dos abusos do poder econômico na arena da política acaba por acusar a natureza humana – e os políticos de maneira geral – por se deixar seduzir pelo dinheiro. Esquecem do que Dewey aponta como “as ações nos bastidores”, que são constitutivas mesmo do modo de fazer política das grandes corporações.
Pois o que está em questão agora é justamente a possibilidade de um novo desenho institucional, da realização de um novo pacto, no qual, em nome do interesse de todos, os atores econômicos passam a atuar nos marcos de um planejamento público e um controle democrático. Serão novos paradigmas de produção e consumo, serão novas formas de exercício da democracia e do controle social incidindo sobre os poderes públicos e os atores econômicos.
Ainda que as lutas sociais tenham ampliado, ao longo do tempo, o que hoje entendemos por democracia, o reconhecimento de direitos e a extensão de políticas sociais, na dimensão propriamente política parece não ter havido grandes avanços. A pergunta continua sendo como garantir que a democracia controle a economia – e não o contrário.
Para que essa política dos bastidores e a corrupção na política possam ser superadas, as regras do jogo precisam mudar. O financiamento das campanhas eleitorais está no centro desse debate. E se adotássemos, por exemplo, as regras de financiamento de campanhas eleitorais de Quebec, no Canadá, onde todos os candidatos têm um teto para a arrecadação de contribuições? Ou o financiamento público exclusivo de campanhas eleitorais, proibindo as contribuições do setor privado?
O tema central do pacto pode ser o de tirar a política dos bastidores e trazê-la para o centro do espaço público, apaziguar a sociedade brasileira, promover a redução da enorme desigualdade social, a redução da violência em nossa sociedade e garantir a extensão das políticas públicas de qualidade por todo o território.
Silvio Caccia Bava é editor de Le Monde Diplomatique Brasil e coordenador geral do Instituto Pólis.

1 Citado por Noam Chomsky à pág. 206 em Failed States, Metropolitan Books, NY, 2006.

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