A poesia do passado |
Escrito por Emiliano Morais - Correio da Cidadania | |
Os últimos dias na chamada imprensa alternativa - Brasil de fato,
Correio da Cidadania, entre outros - foram marcados com uma questão um
tanto insólita. Os teóricos da chamada esquerda em declínio (sim, em
declínio por ser uma esquerda sem projeto) tomaram parte numa batalha
épica.
Os setores desta esquerda atrelada à governabilidade, tendo no ápice das
referências Lula e o PT, acreditam desgraçadamente que sendo seu
projeto “democrático popular” uma espécie de política social-democrata
atenderá aos anseios do povo numa fase de um capitalismo redimido. E
através desta redenção do capital elevará do inferno aos céus uma
sociedade mais igualitária. Observem o termo, igualitária. Notem que na
gramática deste protótipo de esquerda a palavra socialismo não tem
tradução.
Os Satãs, tomando a palavra no seu original grego que significa “os
adversários”, se revestem de todo tipo de nuance para, de uma forma ou
outra, se caracterizarem como o outro, numa posição de embate no grande
coliseu das eleições. Mas de Satãs “os adversários” passam a diabos, “os
acusadores”, e sem projetos que os caracterizam como alternativa no
grande palco do “circo e pão” (eleições), lançam-se no pragmatismo das
desqualificações todos os gladiadores.
Nesta luta titânica não foi reservado lugar para um exorcista, e Deus e
Diabo, atraídos pelo mesmo engodo, sem apresentar uma alternativa para o
país nos seus respectivos projetos, vagueiam entre afirmar o Estado
burguês e negá-lo conservando-o, caracterizando assim alternativas
“democráticas” que não mudam de conteúdo, apenas de forma. E mais uma
vez na história a esquerda brasileira titubeia entre a necessidade de
uma alternativa ao capitalismo e o “santo princípio liberal”.
Os gladiadores definem o princípio “Democrático” que norteia as suas
elaborações programáticas com um gáudio: democracia, igualdade e
liberdade. Tão pobre anseio robespieriano se a abstração tivesse
ido um pouco mais além, pois está exposta no programa liberté,
fraternité e egalité. Este sonho iluminista custou a cabeça de um
dos maiores expoentes da revolução francesa e agora, como tragédia,
retorna ao ideário da esquerda eleitoreira. Os mortos tolhem os vivos,
como dizia Marx.
Primeiro tomemos o conceito “democracia” para análise. A democracia é um
importante princípio da doutrina liberal, isso para não retomarmos seu
original em grego, que nas palavras de Luiz Antônio Cunha consiste no
igual direito de todos em participarem do governo através de
representantes de sua própria escolha. Essa elaboração baseia-se nas
formulações de Rousseau, ideólogo da moderna doutrina democrática.
É bom lembrar que o próprio Rousseau sabia das limitações da real
aplicação deste princípio, das dificuldades práticas para a existência
de um governo da maioria dos cidadãos.
Rousseau afirmou que, “tomando o termo em rigorosa acepção, nunca
existiu, e nunca existirá, verdadeira democracia. É contra a ordem
natural que o grande número governe e que o pequeno seja governado. Não
se pode imaginar que o povo permaneça incessantemente reunido para dar
despacho aos negócios, e com facilidade se vê que, para esse efeito, não
poderia estabelecer comissões sem mudar a forma de administração”. Por
esse motivo a representatividade vem como a forma mais eficaz para
aplicação de tal princípio.
O conceito poderia ser digestivo caso houvesse possibilidade de
aplicação apenas de um dos princípios liberais, coisa extremamente
inaplicável, pois, ao se aplicar um, todos vem à tona, não conseguem
caminhar soltos, estão extremamente interligados.
Ao aplicar o princípio democracia, vossos programas se viram obrigados a
considerar de importância ímpar aplicar outro princípio liberal:
igualdade.
A igualdade, como pretendem os senhores, tenta transparecer uma nova
forma de igualdade, uma igualdade de valores e paridade que não seja
desigualdade entre os indivíduos. A igualdade é somente aplicada no modo
de produção capitalista e este presume somente a igualdade perante a
lei. Como na natureza os homens não são iguais em talento e capacidades,
também não podem ser iguais na posse. E, para resolver tal problema,
condiciona a igualdade somente junto à lei, igualdade de direitos entre
os homens, igualdade de direitos civis.
Com diz Cunha, “todos têm, por lei, iguais direitos à vida, à liberdade,
à propriedade, à proteção das leis”. Marx, em a “Crítica ao programa de
Gotha”, afirmou que este igual direito é direito desigual para trabalho
desigual. Não reconhece nenhuma diferença de classes, porque cada um é
apenas tão trabalhador como o outro. Mas reconhece tacitamente o
desigual dom individual — e, portanto, (a desigual) capacidade de
rendimento dos trabalhadores — como privilégio natural que uma nova
sociedade precisa estabelecer na desigualdade entre indivíduos
desiguais.
Ao transcender a igualdade logo se é conduzido à “liberdade”, outro
princípio que juram ser de uma necessidade popular, porém apenas
transfigurada em outro princípio liberal.
Na liberdade se exalta a livre organização da sociedade civil, conclamam
os defensores da livre expressão, da movimentação (e aqui não conseguem
ir além de explicar o nada), convocam os deuses em nome da livre
atividade política e de organização dos(as) cidadãos(ãs). Esse princípio
liberal que a ele empresta o próprio nome pleiteia antes de tudo a
liberdade individual, e a partir daí todas as outras: econômica,
intelectual, religiosa e política. A liberdade na priori liberal é a
liberdade que os indivíduos têm na defesa da ação e das potencialidades,
por isso está tão ligada ao princípio do individualismo. Por tal, não é
de se admirar o fato de não ter aparecido na base do enfrentamento dos
projetos.
Na luta pela transformação da sociedade capitalista em uma sociedade
socialista, os proletários precisam munir-se de instrumentos que os
botem em força superior aos burgueses, seu projeto não pode confundir-se
com anseios liberais (burgueses) e nem com anseios social-democratas
(aliança do trabalhador com a pequena burguesia). Seu projeto precisa
trazer conteúdo novo e de caráter transformador, revolucionário. Um
projeto de classe, da classe proletária, caráter que em momento algum
foi planificado pela esquerda na disputa eleitoral.
Florestan Fernandes sabiamente afirmou que “na periferia do mundo
capitalista e de nossa época não existem ‘simples palavras’. Se a massa
dos trabalhadores quiser desempenhar tarefas práticas, específicas e
criadoras, ela tem de se apossar primeiro de certas palavras chaves –
que não podem ser compartilhadas com outras classes que não estão
empenhadas ou não podem realizar aquelas tarefas sem se destruir ou se
prejudicar irremediavelmente”.
Apegada a conteúdos burgueses, mais uma vez a esquerda brasileira perde a
oportunidade de unificar-se na elaboração de uma plataforma única para a
disputa política, aguardando somente as ações das movimentações de
massas para a composição de um projeto de transformação socialista, já
que é só na ação “prático-teórica” que é possível tal elaboração.
Dividem-se no casulo que a história os reservou e garganteiam como
feirantes o que de bom têm em vossas barracas programáticas.
Emiliano Morais é membro da direção do MST-MG.
Contato:
emilianomorais@gmail.com
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