Marx parece não ter percebido que as
interrupções do trabalho levantam um problema muito sério para o
trabalhador agrícola: se não trabalha todos os dias, de onde obterá
recursos para seguir se reproduzindo e estar disponível para quando o
capital quiser utilizá-lo de novo? E isso levanta, por sua vez, sérias
dúvidas sobre a teoria do valor, visto que Marx não parece ter resolvido
qual é o valor da força de trabalho agrícola: o custo de sua produção
anual ou só o que obtém nos dias em que trabalha efetivamente na
agricultura? O artigo é de Julio Boltvinik, do La Jornada.
Julio Boltvinik - La Jornada via Carta Maior
Mann e Dickinson (MeD), em seu artigo de 1978 e Mann em seu livro de 1990, assim como Ariel José Contreras (1),
centram sua identificação de obstáculos ao desenvolvimento do
capitalismo na agricultura (o que para eles explicaria a persistência
das formas de produção agrícolas não capitalistas), nos seguintes
fatores: a diferença entre tempo de trabalho e tempo de produção
(distinção conceitual realizada por Marx no Volume II de O Capital);
e outras características naturais, como o caráter perecível dos
produtos, que afeta a comercialização, assim como os riscos naturais que
costumam afetar os resultados produtivos.
Mann e Dickinson citam um parágrafo-chave do volume II de O Capital, no qual Marx diz que o tempo de trabalho é sempre tempo de produção (definido este último como o tempo em que o capital fica enredado no processo de produção), mas ao contrário, nem todo tempo de produção é necessariamente tempo de trabalho. Marx explica esta diferença assinalando que o tempo de produção consiste em duas partes: um período no qual o trabalho se aplica à produção e um segundo período, em que a mercadoria inacabada se abandona ao influxo dos processos naturais.
Embora Marx apresente vários exemplos não agrícolas desta segunda etapa (a secagem da cerâmica, o branqueamento das telas, a fermentação), destaca que esta fase é muito importante na agricultura e dá o exemplo dos cereais, no qual por um longo período o tempo de trabalho fica suspenso, enquanto as sementes amadurecem na terra. Mann e Dickinson sustentam que a não identidade entre os tempos de produção e de trabalho estabelece uma série de obstáculos à penetração capitalista em certas esferas da agricultura (p. 473). Acrescentam que isto se torna claro quando se observa os efeitos na taxa de lucro e nos problemas de circulação. Eles analisam estes dois temas nas duas partes seguintes.
Nelas, contudo, predomina uma análise parcial e estática. Por exemplo, afirma que, quanto mais rotações o capital efetua num ano, mais alta será - rebus sic stantibus [as coisas se mantendo as mesmas] - a taxa de lucro, o que é óbvio e indubitável, mas daí não se segue a conclusão de que por isso o capital abster-se-á de intervir em tais áreas de produção (p. 474). Esta conclusão é similiar à de Contreras: “Além da maior duração do tempo de circulação do capital agrícola em relação ao tempo de rotação do capital industrial, outros fatores a mais contribuem para conter o desenvolvimento da produção capitalista (p. 890).”
Em minha opinião, essas conclusões se baseiam numa análise parcial, que não considera que a taxa de lucro efetivamente obtida por um capital, em qualquer setor depende do preço de produção, e não do valor, como mostra Marx no volume II de O Capital, ao analisar a tendência à equiparação das taxas de lucro entre diferentes ramos da produção. Assim como os preços de produção se alheiam dos valores para compensar as diferenças na composição orgânica do capital e para poder igualar a taxa de lucro, também o farão para compensar a longa duração do tempo de produção e, portanto, a lenta rotação de capital. Assim não fosse a indústria da construção, por exemplo, que tem com frequência períodos de produção mais largos que a agricultura de ciclo anual, não poderia ser capitalista. A parte mais interessante do artigo de Mann e Dickinson é a última sessão. Alí eles observam que:
“A contratação sazonal da força de trabalho, que é um reflexo da identidade do tempo de produção e de trabalho, gera a qualquer capitalista problemas de recrutamento e de administração. Como comprador de força de trabalho, o capitalista tem de, ou bem atrair e manter a força de trabalho oferecendo altos salários, ou bem depender dos elementos mais desesperados e marginais na sociedade, como a força de trabalho rural e migratória (p. 477).”
Na primeira frase, os autores estabelecem a ligação entre a estacionalidade do trabalho e as diferenças entre tempo de trabalho e tempo de produção. É evidente que são duas faces da mesma moeda, duas maneiras de ver o mesmo fenômeno e que, portanto, o ponto de partida de sua explicação da persistência de formas não capitalistas de produção (granjas familiares, no caso) é o mesmo de minha explicação da persistência do campesinato. No entanto, eu o apresento da seguinte maneira:
“O capitalismo não pode existir na forma pura na agricultura: sem a oferta campesina de mão de obra sazonal barata, a agricultura capitalista seria impossível. Não haveria (quase) ninguém disposto a trabalhar apenas durante as colheitas. Portanto, a permanência da agricultura campesina torna possível o agrocapitalismo”. Quer dizer, a agricultura campesina não só é funcional, mas indispensável para a existência de empresas agrícolas capitalistas”. Mas o camponês só vai se ver obrigado a vender sazonalmente sua força de trabalho (e estará disposto a vendê-la barato) se for pobre; os agricultores familiares ricos nos EUA podem passar (e passam) os períodos de entressafra na agricultura bebendo cerveja. Quer dizer, o capitalismo agrícola só pode existir em simbiose com camponeses pobres, dispostos a (e premidos a) venderem sua força de trabalho alguns dias por ano. Uma teoria que explique a sobrevivência do camponês deve explicar também a sua pobreza”.
Meu ponto de partida é a sazonalidade, minha resposta à persistência do campesinato é sua simbiose com o capitalismo agrícola. Parece-me que a diferença fundamental é que Mann e Dickinson estão tratando de analisar por que os agricultores familiares sobrevivem (que como digo são pobres e passam os períodos sem trabalho bebendo cerveja), enquanto minha pergunta é sobre a persistência dos camponeses. O ponto de partido dos autores é o excesso de tempo de produção sobre o tempo de trabalho em algumas esferas da agricultura (a outra face da moeda da sazonalidade) e sua resposta é que ele representa para o capitalismo o uso ineficiente do capital, taxas de lucro mais baixas e problemas de circulação, o que faz com que estas esferas agrícolas não lhe sejam atrativas. Quer dizer, as granjas familiares sobrevivem porque não interessa ao capital devorar seu campo de negócios, contra o qual argumenta com força John Brewster, cujas idéias comentarei na sequência. O mérito de Mann e Dickinson (compartilhado com Contreras) consiste em ter destacado a percepção de Marx sobre as características específicas da agricultura e seu significado para o capitalismo.
Começo agora uma exploração do pensamento de Marx a respeito. Tomo como ponto de partida as referências de Mann e Dickinson e de Contreras aos volumes II e III de O Capital e aos Grundrisse (ambas obras de Marx). Contreras diz:
“Na indústria, a força de trabalho é empregada quase sempre durante o lapso que abarca o processo de produção, coincidindo assim tempo de trabalho e tempo de produção; na agricultura, por outro lado, o tempo de trabalho sempre inclui um lapso menor que o tempo de produção...Isso se deve a que a produção agrícola passa por uma fase de crescimento natural dos cultivos que não requerem nenhuma ou pouca aplicação adicional de trabalho. 'A não coincidência entre o tempo de produção e o tempo de trabalho – disse Marx [nos Grundrisse] – só pode se dever às condições naturais...” (2)
Mann e Dickinsion se referem a esta passagem, citam em primeiro lugar o parágrafo inicial do capítulo XIII do Segundo Livro de O Capital:
“O tempo de trablho é sempre tempo de produção, quer dizer, tempo no qual o capital está confinado na esfera da produção. Por outro lado, contudo, nem todo tempo em que o capital está no processo de produção é por isso necessariamente um tempo de trabalho.” Esta passagem continua assim: “Aqui não nos referimos às interrupções do processo de trabalho impostas pelos limites naturais da força mesma de trabalho..., referimo-nos a uma interrupção ...imposta pela natureza do produto e sua elaboração e durante a qual o objeto de trabalho se vê submetido a processos naturais mais ou menos largos...que obrigam a suspender total ou parcialmente o processo de trabalho. Assim, por exemplo, o vinho tem de passar por um período de fermentação e depois descansar por um tempo.... O trigo no inverno leva nove meses para maturar. Entre a época da semeadura e a da colheita, o processo laboral é quase totalmente interrompido...Em todos esses caso, ao longo de boa parte do tempo de produção, só se agrega trabalho suplementar esporadicamente... Por conseguinte, ...o tempo de produção do capital gasto se compõe de dois períodos: um em que o capital permanece no processo de trabalho e outro, em que sua modalidade de existência – o produto ainda não acabado – se confia à ação de processos naturais fora da órbita do processo de trabalho”.
Mann e Dickinsion voltam aos Grundrisse mas não vêem, provavelmente porque não querem ver, uma frase-chave no texto do qual estão tomando algumas frases, que é um breve capítulo (pp. 189-194 do Vol. II) que tem como título “Diferença entre tempo de produção e tempo de trabalho – Storch”. Marx começa eliminando a suposta igualdade entre tempo de trabalho e tempo de produção, exemplificando sua não coincidência com a agricultura, na qual o trabalho se interrompe durante a fase produtiva. Marx esclarece que se o problema fosse de maior duração de tempo de trabalho, não haveria um caso especial. O que faz com que haja um caso especial (e o problema) é a interrupção do trabalho antes que termine o tempo de produção, já que, então, dois produtos distintos(um agrícola e outro industrial, por exemplo) podem conter o mesmo tempo de trabalho incorporado mas no produto cujo tempo de produção é maior (o agrícola), a rotação do ciclo do capital será mais lenta. Marx acrescenta algo (note-se a primeira frase em itálico que mostra o que Mann e Dickinsion não querem ver e que derruba todo seu argumento).
“Supomos aqui que o capital fixo atua completamente só, sem trabalho humano, como por exemplo a semente entregue ao seio da terra...O tempo que aqui se emprega para que o produto alcance sua maturidade, as interrupções do trabalho, constituem aqui condições de produção. O tempo de não trabalho constitui uma condição para o tempo de trabalho, para que este último se converta realmente no tempo de produção. É evidente que o problema corresponde propriamente tão só à equiparação das taxas de lucro. Devemos contudo esclarecer as coisas. A rotação mais lenta – isto é o essencial – não deriva neste caso do tempo de circulação, mas das condições mesmas sob as quais o trabalho se torna produtivo; forma parte das condições tecnológicas do processo de produção...O valor, portanto também a mais valia, não é igual ao tempo que dura a fase de produção, mas ao tempo de trabalho – tanto o objetivado como o vivo – empregado durante essa fase produtiva: que a equiparação das taxas de lucro intervenha em outras determinações é claro. Mas aqui não nos ocupamos da distribuição da mais valia, mas de sua criação. (Grundrisse, pp.189-191)”.
Essa é uma passagem central. Por um lado permite ver o quão insustentável é o argumento de Mann e Dickinsion, de que o capitalismo não se apropriou da agricultura porque esta não é suficientemente rentável, pois esse argumento esquece que no capitalismo, a mobilidade do capital entre ramos de atividade leva à equiparação das taxas de lucro pela via dos preços de produção diferentes dos valores, restribuindo a mais valia. Parecem esquecer, também, que taxas de mais valia e taxas de lucro são coisas muito diversas.
Por outro lado, a segunda frase em itálico reitera que, para Marx, o valor é sempre igual ao tempo de trabalho objetivado na mercadoria, inclusive no caso problemático da agricultura. Marx não se apercebeu que as interrupções do trabalho levantam um problema muito mais severo para o trabalhador agrícola: se não trabalha todos os dias, de onde obterá recursos para seguir se reproduzindo e estar disponível para quando o capital quiser utilizá-lo de novo? E isso levanta, por sua vez, sérias dúvidas sobre a teoria do valor, visto que Marx não parece ter resolvido qual é o valor da força de trabalho agrícola: o custo de sua produção anual ou só o que obtém por poucos dias em que trabalha efetivamente na agricultura? No volume I de O Capital, onde se aborda o valor da força de trabalho, Marx não introduz o problema que se apresenta quando o trabalho não é contínuo. E nos volumes I e II, onde aborda o caso especial da agricultura, não volta a discutir a determinação do valor da força de trabalho.
(1) O artigo de Susan A. Mann e James M. Dickinson é o Obstacles to the Development of a Capitalist Agriculture, Journal of Peasant Studies, vol. 5, N°4, pp.466-481, 1978; o livro de Mann é: Agrarian Capitalism in Theory and Practice (The University of North Carolina Press, 1990). O artigo de Contreras é: Límites de la producción capitalista en la agricultura, Revista Mexicana de Sociología, vol. 39, Nº 3, pp. 885-889.
(2) José Ariel Contreras, Límites de la producción capitalista en la agricultura, Revista Mexicana de Sociología, vol.39, No. 3, 1977, pp. 887-888. A citação de Marx é da p. 191 do Vol. 2, de Elementos fundamentales para al crítica de la economía política (Grundrisse) 1857-1858, Siglo XXI Editores, 1972.
(*) Julio Boltvinik Kalinka é um ex-deputado pelo PRD - Partido da Revolução Democrática - e acadêmico mexicano, professor do Colégio do México. Autor de Índice de progresso social [sem tradução para o português] e Probreza e distribuição de renda no México [ também sem tradução]. Em 2002 recebeu o prêmio naciona de jornalismo e em 2005 ganhou o prêmio de melhor tese de doutorado: Ampliar a visão: Um enfoque da pobreza e o florescimento humano, dado pelo Insituto Nacional de Antropologia e História (INAH). Assina a coluna semanal Economia Moral, do La Jornada (jbolt@colmex.mx).
Tradução: Katarina Peixoto
Mann e Dickinson citam um parágrafo-chave do volume II de O Capital, no qual Marx diz que o tempo de trabalho é sempre tempo de produção (definido este último como o tempo em que o capital fica enredado no processo de produção), mas ao contrário, nem todo tempo de produção é necessariamente tempo de trabalho. Marx explica esta diferença assinalando que o tempo de produção consiste em duas partes: um período no qual o trabalho se aplica à produção e um segundo período, em que a mercadoria inacabada se abandona ao influxo dos processos naturais.
Embora Marx apresente vários exemplos não agrícolas desta segunda etapa (a secagem da cerâmica, o branqueamento das telas, a fermentação), destaca que esta fase é muito importante na agricultura e dá o exemplo dos cereais, no qual por um longo período o tempo de trabalho fica suspenso, enquanto as sementes amadurecem na terra. Mann e Dickinson sustentam que a não identidade entre os tempos de produção e de trabalho estabelece uma série de obstáculos à penetração capitalista em certas esferas da agricultura (p. 473). Acrescentam que isto se torna claro quando se observa os efeitos na taxa de lucro e nos problemas de circulação. Eles analisam estes dois temas nas duas partes seguintes.
Nelas, contudo, predomina uma análise parcial e estática. Por exemplo, afirma que, quanto mais rotações o capital efetua num ano, mais alta será - rebus sic stantibus [as coisas se mantendo as mesmas] - a taxa de lucro, o que é óbvio e indubitável, mas daí não se segue a conclusão de que por isso o capital abster-se-á de intervir em tais áreas de produção (p. 474). Esta conclusão é similiar à de Contreras: “Além da maior duração do tempo de circulação do capital agrícola em relação ao tempo de rotação do capital industrial, outros fatores a mais contribuem para conter o desenvolvimento da produção capitalista (p. 890).”
Em minha opinião, essas conclusões se baseiam numa análise parcial, que não considera que a taxa de lucro efetivamente obtida por um capital, em qualquer setor depende do preço de produção, e não do valor, como mostra Marx no volume II de O Capital, ao analisar a tendência à equiparação das taxas de lucro entre diferentes ramos da produção. Assim como os preços de produção se alheiam dos valores para compensar as diferenças na composição orgânica do capital e para poder igualar a taxa de lucro, também o farão para compensar a longa duração do tempo de produção e, portanto, a lenta rotação de capital. Assim não fosse a indústria da construção, por exemplo, que tem com frequência períodos de produção mais largos que a agricultura de ciclo anual, não poderia ser capitalista. A parte mais interessante do artigo de Mann e Dickinson é a última sessão. Alí eles observam que:
“A contratação sazonal da força de trabalho, que é um reflexo da identidade do tempo de produção e de trabalho, gera a qualquer capitalista problemas de recrutamento e de administração. Como comprador de força de trabalho, o capitalista tem de, ou bem atrair e manter a força de trabalho oferecendo altos salários, ou bem depender dos elementos mais desesperados e marginais na sociedade, como a força de trabalho rural e migratória (p. 477).”
Na primeira frase, os autores estabelecem a ligação entre a estacionalidade do trabalho e as diferenças entre tempo de trabalho e tempo de produção. É evidente que são duas faces da mesma moeda, duas maneiras de ver o mesmo fenômeno e que, portanto, o ponto de partida de sua explicação da persistência de formas não capitalistas de produção (granjas familiares, no caso) é o mesmo de minha explicação da persistência do campesinato. No entanto, eu o apresento da seguinte maneira:
“O capitalismo não pode existir na forma pura na agricultura: sem a oferta campesina de mão de obra sazonal barata, a agricultura capitalista seria impossível. Não haveria (quase) ninguém disposto a trabalhar apenas durante as colheitas. Portanto, a permanência da agricultura campesina torna possível o agrocapitalismo”. Quer dizer, a agricultura campesina não só é funcional, mas indispensável para a existência de empresas agrícolas capitalistas”. Mas o camponês só vai se ver obrigado a vender sazonalmente sua força de trabalho (e estará disposto a vendê-la barato) se for pobre; os agricultores familiares ricos nos EUA podem passar (e passam) os períodos de entressafra na agricultura bebendo cerveja. Quer dizer, o capitalismo agrícola só pode existir em simbiose com camponeses pobres, dispostos a (e premidos a) venderem sua força de trabalho alguns dias por ano. Uma teoria que explique a sobrevivência do camponês deve explicar também a sua pobreza”.
Meu ponto de partida é a sazonalidade, minha resposta à persistência do campesinato é sua simbiose com o capitalismo agrícola. Parece-me que a diferença fundamental é que Mann e Dickinson estão tratando de analisar por que os agricultores familiares sobrevivem (que como digo são pobres e passam os períodos sem trabalho bebendo cerveja), enquanto minha pergunta é sobre a persistência dos camponeses. O ponto de partido dos autores é o excesso de tempo de produção sobre o tempo de trabalho em algumas esferas da agricultura (a outra face da moeda da sazonalidade) e sua resposta é que ele representa para o capitalismo o uso ineficiente do capital, taxas de lucro mais baixas e problemas de circulação, o que faz com que estas esferas agrícolas não lhe sejam atrativas. Quer dizer, as granjas familiares sobrevivem porque não interessa ao capital devorar seu campo de negócios, contra o qual argumenta com força John Brewster, cujas idéias comentarei na sequência. O mérito de Mann e Dickinson (compartilhado com Contreras) consiste em ter destacado a percepção de Marx sobre as características específicas da agricultura e seu significado para o capitalismo.
Começo agora uma exploração do pensamento de Marx a respeito. Tomo como ponto de partida as referências de Mann e Dickinson e de Contreras aos volumes II e III de O Capital e aos Grundrisse (ambas obras de Marx). Contreras diz:
“Na indústria, a força de trabalho é empregada quase sempre durante o lapso que abarca o processo de produção, coincidindo assim tempo de trabalho e tempo de produção; na agricultura, por outro lado, o tempo de trabalho sempre inclui um lapso menor que o tempo de produção...Isso se deve a que a produção agrícola passa por uma fase de crescimento natural dos cultivos que não requerem nenhuma ou pouca aplicação adicional de trabalho. 'A não coincidência entre o tempo de produção e o tempo de trabalho – disse Marx [nos Grundrisse] – só pode se dever às condições naturais...” (2)
Mann e Dickinsion se referem a esta passagem, citam em primeiro lugar o parágrafo inicial do capítulo XIII do Segundo Livro de O Capital:
“O tempo de trablho é sempre tempo de produção, quer dizer, tempo no qual o capital está confinado na esfera da produção. Por outro lado, contudo, nem todo tempo em que o capital está no processo de produção é por isso necessariamente um tempo de trabalho.” Esta passagem continua assim: “Aqui não nos referimos às interrupções do processo de trabalho impostas pelos limites naturais da força mesma de trabalho..., referimo-nos a uma interrupção ...imposta pela natureza do produto e sua elaboração e durante a qual o objeto de trabalho se vê submetido a processos naturais mais ou menos largos...que obrigam a suspender total ou parcialmente o processo de trabalho. Assim, por exemplo, o vinho tem de passar por um período de fermentação e depois descansar por um tempo.... O trigo no inverno leva nove meses para maturar. Entre a época da semeadura e a da colheita, o processo laboral é quase totalmente interrompido...Em todos esses caso, ao longo de boa parte do tempo de produção, só se agrega trabalho suplementar esporadicamente... Por conseguinte, ...o tempo de produção do capital gasto se compõe de dois períodos: um em que o capital permanece no processo de trabalho e outro, em que sua modalidade de existência – o produto ainda não acabado – se confia à ação de processos naturais fora da órbita do processo de trabalho”.
Mann e Dickinsion voltam aos Grundrisse mas não vêem, provavelmente porque não querem ver, uma frase-chave no texto do qual estão tomando algumas frases, que é um breve capítulo (pp. 189-194 do Vol. II) que tem como título “Diferença entre tempo de produção e tempo de trabalho – Storch”. Marx começa eliminando a suposta igualdade entre tempo de trabalho e tempo de produção, exemplificando sua não coincidência com a agricultura, na qual o trabalho se interrompe durante a fase produtiva. Marx esclarece que se o problema fosse de maior duração de tempo de trabalho, não haveria um caso especial. O que faz com que haja um caso especial (e o problema) é a interrupção do trabalho antes que termine o tempo de produção, já que, então, dois produtos distintos(um agrícola e outro industrial, por exemplo) podem conter o mesmo tempo de trabalho incorporado mas no produto cujo tempo de produção é maior (o agrícola), a rotação do ciclo do capital será mais lenta. Marx acrescenta algo (note-se a primeira frase em itálico que mostra o que Mann e Dickinsion não querem ver e que derruba todo seu argumento).
“Supomos aqui que o capital fixo atua completamente só, sem trabalho humano, como por exemplo a semente entregue ao seio da terra...O tempo que aqui se emprega para que o produto alcance sua maturidade, as interrupções do trabalho, constituem aqui condições de produção. O tempo de não trabalho constitui uma condição para o tempo de trabalho, para que este último se converta realmente no tempo de produção. É evidente que o problema corresponde propriamente tão só à equiparação das taxas de lucro. Devemos contudo esclarecer as coisas. A rotação mais lenta – isto é o essencial – não deriva neste caso do tempo de circulação, mas das condições mesmas sob as quais o trabalho se torna produtivo; forma parte das condições tecnológicas do processo de produção...O valor, portanto também a mais valia, não é igual ao tempo que dura a fase de produção, mas ao tempo de trabalho – tanto o objetivado como o vivo – empregado durante essa fase produtiva: que a equiparação das taxas de lucro intervenha em outras determinações é claro. Mas aqui não nos ocupamos da distribuição da mais valia, mas de sua criação. (Grundrisse, pp.189-191)”.
Essa é uma passagem central. Por um lado permite ver o quão insustentável é o argumento de Mann e Dickinsion, de que o capitalismo não se apropriou da agricultura porque esta não é suficientemente rentável, pois esse argumento esquece que no capitalismo, a mobilidade do capital entre ramos de atividade leva à equiparação das taxas de lucro pela via dos preços de produção diferentes dos valores, restribuindo a mais valia. Parecem esquecer, também, que taxas de mais valia e taxas de lucro são coisas muito diversas.
Por outro lado, a segunda frase em itálico reitera que, para Marx, o valor é sempre igual ao tempo de trabalho objetivado na mercadoria, inclusive no caso problemático da agricultura. Marx não se apercebeu que as interrupções do trabalho levantam um problema muito mais severo para o trabalhador agrícola: se não trabalha todos os dias, de onde obterá recursos para seguir se reproduzindo e estar disponível para quando o capital quiser utilizá-lo de novo? E isso levanta, por sua vez, sérias dúvidas sobre a teoria do valor, visto que Marx não parece ter resolvido qual é o valor da força de trabalho agrícola: o custo de sua produção anual ou só o que obtém por poucos dias em que trabalha efetivamente na agricultura? No volume I de O Capital, onde se aborda o valor da força de trabalho, Marx não introduz o problema que se apresenta quando o trabalho não é contínuo. E nos volumes I e II, onde aborda o caso especial da agricultura, não volta a discutir a determinação do valor da força de trabalho.
(1) O artigo de Susan A. Mann e James M. Dickinson é o Obstacles to the Development of a Capitalist Agriculture, Journal of Peasant Studies, vol. 5, N°4, pp.466-481, 1978; o livro de Mann é: Agrarian Capitalism in Theory and Practice (The University of North Carolina Press, 1990). O artigo de Contreras é: Límites de la producción capitalista en la agricultura, Revista Mexicana de Sociología, vol. 39, Nº 3, pp. 885-889.
(2) José Ariel Contreras, Límites de la producción capitalista en la agricultura, Revista Mexicana de Sociología, vol.39, No. 3, 1977, pp. 887-888. A citação de Marx é da p. 191 do Vol. 2, de Elementos fundamentales para al crítica de la economía política (Grundrisse) 1857-1858, Siglo XXI Editores, 1972.
(*) Julio Boltvinik Kalinka é um ex-deputado pelo PRD - Partido da Revolução Democrática - e acadêmico mexicano, professor do Colégio do México. Autor de Índice de progresso social [sem tradução para o português] e Probreza e distribuição de renda no México [ também sem tradução]. Em 2002 recebeu o prêmio naciona de jornalismo e em 2005 ganhou o prêmio de melhor tese de doutorado: Ampliar a visão: Um enfoque da pobreza e o florescimento humano, dado pelo Insituto Nacional de Antropologia e História (INAH). Assina a coluna semanal Economia Moral, do La Jornada (jbolt@colmex.mx).
Tradução: Katarina Peixoto
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