terça-feira, 31 de agosto de 2010

Revolução mexicana serviu para romper com a Europa e gerar cultura própria, diz historiador mexicano



A Revolução Mexicana, iniciada em 20 de novembro de 1910, foi uma resposta aos mais de 30 anos de governo do general Porfirio Díaz, uma ditadura que suprimia os direitos da maioria dos cidadãos e permitia grandes abismos na sociedade, favorecendo as classes mais abastadas do país – as únicas que gozavam dos benefícios da prosperidade mexicana. A falta de liberdades políticas, a pobreza que atingia grande parte dos mexicanos e as fraudes eleitorais de Díaz foram criando no país uma agitação que levou à irrupção da violência armada.

Em 1917, o ex-presidente Venustiano Carranza promulgou a Constituição, que não só foi o documento decisivo para a organização do Estado pós-revolucionário como também codificou várias das demandas que haviam dado início à revolução, como a inclusão dos direitos humanos, o fim da reeleição do presidente e do vice, a reforma agrária, a divisão do Poder Legislativo e uma maior soberania das entidades federativas, entre outras. 


Rosas: "México não conseguiu erradicar a impunidade,
corrupção e discricionariedade na aplicação da lei"


Cem anos depois da revolução, o historiador e escritor mexicano Alejandro Rosas analisou em entrevista ao Opera Mundi as contribuições do movimento armado, os retrocessos e o futuro político do país, entre outros temas.

Quais são as contribuições mais importantes da Revolução Mexicana para o país?
Ela contribuiu para proporcionar uma série de elementos jurídicos fundamentais. Ou seja, todas as demandas que sustentaram a Revolução Mexicana e não foram reconhecidas pelo ditador Porfírio Diáz terminaram codificadas na Constituição promulgada em 1917. Dentre os exemplos, o direito à greve, à associação e à educação.

Qual a herança positiva da Revolução Mexicana no país?
É o fato de que, apesar de tudo o que os mexicanos enfrentaram – crises econômicas e repressão – melhoramos na cidadania. Se a classe política continua comportando-se com os vícios de antes, se os sindicatos continuam corruptos como no passado, a cidadania se transformou. Hoje, mais de 80% da população sabe ler e escrever, as pessoas sabem exercer seu direito ao voto, criou-se uma consciência social importante. A cidadania já se organiza para se opor contra certos abusos de autoridade, para se posicionar com o governo e partidos políticos. O ponto mais forte é que, apesar de tudo o que aconteceu no século XX, houve a construção de uma sociedade, de uma cidadania que foi se consolidando de maneira firme. E este é o motor que nos permite esperar uma verdadeira mudança na mentalidade do país. 
Leia mais:
Revolução Mexicana começou há 100 anos como rebelião contra ditadura de Porfirio Díaz

O México conseguiu uma revolução, mas quais foram os problemas posteriores?
Depois da Revolução Mexicana, houve uma ruptura do processo de desenvolvimento econômico e político do país. O problema é que, depois do século XX, o que sobra no México é um sistema que melhora os mecanismos do Porfiriato. O sistema político do PRI (Partido Revolucionário Institucional), que nasce em 1929, recupera do Porfiriato a submissão do Poder Legislativo ao Executivo, o controle dos Estados por parte do presidente, o controle e a submissão dos governadores pelo Executivo, da imprensa. Não vivemos sob uma ditadura, mas vivemos sob um regime autoritário durante 70 anos, um regime que construiu uma série de redes e interesses por sob a mesa, com impunidade, com privilégios, com certos compromissos com os grupos importantes do país, fossem legais ou não. 
Segob (Secretaría de Gobernación de México)

Forças de Emiliano Zapata - líder histórico da revolução mexicana - em 1914

E é exatamente por causa dessa rede que a transição nos dá tanto trabalho hoje. Durante 70 anos, os mexicanos viveram sob um regime de impunidade, no qual todos cresceram de algum modo. Assim, a corrupção continua presente por causa desses anos de construção de um sistema que permitia a corrupção e a simulação. Era um sistema que dizia ser democrata, mas tolerava fraudes eleitorais; que dizia apoiar o campo, mas usava o controle político e social dos camponeses; que dizia respeitar o direito à greve, mas tinha centrais operárias totalmente corruptas.

Pela dimensão da Revolução Mexicana (um milhão de pessoas mobilizadas, vítimas, a diminuição da população e grandes batalhas), o país que nos resta está realmente muito abaixo das próprias expectativas em torno do movimento. Pode-se dizer, por exemplo, que a revolução trouxe segurança social, mas hoje o sistema previdenciário está à beira da bancarrota. O que temos hoje como país é o mínimo que o sistema poderia ter oferecido como produto da Revolução Mexicana. Hoje temos 40 milhões de pobres e só chegamos a um suposto regime democrático 70 anos depois.

Quais avanços a Revolução Mexicana permitiu em relação aos demais países da América Latina?
Em termos políticos, o México é um dos países mais vanguardistas em legislação até 1920. Todas as demandas, como o direito à greve, jornada de trabalho de oito horas, educação gratuita, recuperação da terra, são demandas que quase nenhum país havia atendido até aquele momento, e o México as codificou na Constituição de 1917.

Em termos culturais, há uma descoberta importantíssima sobre o que é a “mexicanidade”, pois a partir da revolução começamos a enxergar nós mesmos. Ocorreu um importante processo educativo e cultural nos anos 1920, com os muralistas, o surgimento da música mexicana e das letras. A revolução serviu para parir o México, pois o Porfiriato era um afrancesamento e uma europeização que se manifestavam em todos os âmbitos da cultura. Com a revolução surgiu uma cultura mexicana que se colocou à vanguarda dos países europeus.

Que retrocessos ocorreram no México depois da revolução?
Ainda não conseguimos estabelecer um estado de direito. A lei continua sendo aplicada de um modo discricionário em alguns casos. Setores que já deveriam ter sido sanados, como a segurança pública, vivem seu pior momento. Agora que supostamente já avançamos na transição rumo à democracia, temos os piores momentos na segurança pública, com a corrupção ainda reinando nas esferas do poder. Mais que retroceder, não conseguimos vencer certas etapas que já deveriam ter sido superadas, como a impunidade, a corrupção e a discricionariedade na aplicação da lei.

Qual o futuro da sociedade do México?
A classe política atual ficou abaixo das expectativas no que diz respeito às necessidades do país para consolidar essa transição política à democracia, pois não vivíamos em um regime democrático. Diante de uma ausência de poder e de um projeto nacional, o papel da sociedade é continuar exercendo essa responsabilidade e ampliá-la. É na sociedade civil que está a solução para que o país avance e encontre uma renovação geracional nas estruturas políticas, uma maior participação e uma maneira de enfrentar os problemas. Se não retomarmos a ideia defendida por Francisco I. Madero, a do cidadão livre independente, livre e comprometido com seu país, não poderemos dar o próximo passo.

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