quarta-feira, 8 de setembro de 2010

O jornalista que Rigotto persegue há 10 anos.


A capa do JÁ com a denúncia que Rigotto quer esconder


O Conversa Afiada publica entrevista exclusiva com Elmar Bones, do jornal JÁ, de Porto Alegre: “ELES QUEREM FECHAR O JORNAL, NÃO VÃO CONSEGUIR”.

Elmar é o jornalista que Germano Rigotto persegue há dez anos.

O destaque para a tentativa de censurar o JÁ
É a primeira vez que Elmar Bones tem a chance de contar sua epopéia de resistência por ousar mostrar a verdade sobre a maior fraude da história gaúcha.

O irmão de Germano Rigotto, candidato a senador pelo PMDB, é a peça central da fraude que lesou o povo gaúcho em quase 800 milhões.

Rigotto quer fechar o jornal e levar Elmar à penúria.

Leia a entrevista completa:

CONVERSA AFIADA -  O processo da família do ex-governador Germano Rigotto contra o seu jornal, o JÁ, completa dez anos, um dos mais longos da Justiça brasileira. Afinal, qual foi o crime do JÁ?

ELMAR BONES DA COSTA – O jornal teve a ousadia de contar, em 2001, os detalhes da maior fraude contra os cofres públicos do Rio Grande do Sul. Em valores atualizados pela Justiça, representa algo em torno de R$ 800 milhões. O principal personagem da fraude, segundo a investigação do Ministério Público e o relatório final da CPI criada na Assembléia gaúcha, era Lindomar Vargas Rigotto, irmão de Germano, atual candidato do PMDB ao Senado.
CA – Onde era a fraude?

ELMAR – Na Companhia Estadual de Energia Elétrica, a CEEE, a estatal de energia elétrica que nasceu nos idos de 1960, depois da encampação da americana A&TT pelo governador Leonel Brizola. Ela nem existe mais: foi privatizada no Governo Britto e fatiada em trës empresas menores. O povo gaúcho continua pagando R$ 600 milhões anuais ano de dívidas trabalhistas pela banda podre da finada CEEE…
CA – E como foi o golpe na CEEE?
ELMAR – A fraude se deu em dois contratos para construção de onze subestações de transmissão de energia, obra estimada em 150 milhões de dólares, assinados no governo Pedro Simon (PMDB), em 1987.  Foi a secretária de Minas e Energia do governo seguinte, o de Alceu Collares (PDT), quem  mandou fazer a primeira investigação. Uma senhora chamada Dilma Rousseff.
CA – A Dilma? E o que ela disse?
ELMAR -  Um assessor me contou que, depois de ver os primeiros documentos da sindicância interna da CEEE, ela comentou : “Eu nunca tinha visto nada igual”. Ela só não tocou em frente o processo porque o governo do Collares precisava dos votos do PMDB de Rigotto na Assembléia. Mas ela guardou na gaveta e, em dezembro de 1994, antes de deixar a secretaria, a Dilma teve o cuidado de mandar toda a papelada do inquérito para a Contadoria e Auditoria Geral do Estado (CAGE) e para o Ministério Público. Dali nasceu a CPI.

CA
– E daí?

ELMAR – A CPI durou um ano e meio, produziu 350 quilos de papel. Foi a primeira comissão parlamentar do país a apontar os corruptos e também os corruptores. Foram indiciados 23 funcionários e 11 empresas que integravam os dois consórcios vencedores da licitação.

Jornalistas Kenny Braga e Elmar Bones, que tiveram suas contas pessoais bloqueadas pela família de Germano Rigotto. Foto: Daniel de Andrade Simões


CA – E como o irmão do Rigotto se intrometeu nesta história?

ELMAR – No governo Simon, Germano Rigotto era o líder do PMDB na Assembléia. Sua atuação na campanha foi decisiva para a vitória de Simon.  Ele encaixou o irmão Lindomar num cargo que nem existia na CEEE, o de “assistente da diretoria financeira”. Quem contou isso na CPI foi próprio secretário de energia do Simon, Alcides Saldanha, que antecedeu Dilma. Foi neste posto, criado sob medida, que Lindomar Rigotto  armou o esquema das licitações fraudadas.
CA – Esta denúncia virou processo na Justiça? Está andando?
ELMAR -  O processo vai completar 15 anos em fevereiro, já tem 110 volumes e ainda não saiu da primeira instância. E o pior: a maior fraude da história gaúcha corre em segredo de justiça. E ninguém sabe porque.  Quem tem medo que isso venha a público? O que o povo do Rio Grande não pode saber sobre a fraude da CEEE?

CA – O processo está parado?
ELMAR – Falei esta semana com a Promotoria de Defesa do Patrimônio Público.  A boa notícia é que o processo está concluso ao juiz. Isso quer dizer que não cabe mais nenhum recurso, nada. O juiz vai receber a última manifestação das partes, num prazo de 10 dias, e depois vai dar a sentença. Se sair antes das eleições de outubro, deve produzir um grande estrago político. Por isso mesmo, não acredito em tanta agilidade. Para alívio de alguns candidatos, a sentença da Justiça deve sair só no fim do ano, bem depois da manifestação dos eleitores nas urnas. Mas, pelo menos saberemos quem é quem nesta história ainda secreta.

A corrupção na CEEE
CA – Bem, imagino que isso rendeu muita manchete na imprensa, na época…

ELMAR – Rendeu, mas com aquela cobertura em mosaico, meio truncada, aos saltos, com espaço fragmentado no noticiário… Depois, o assunto foi sumindo, desaparecendo, e o leitor fica se perguntando: o que foi mesmo que aconteceu?
CA – E aí aparece o JÁ para refrescar a memória dos gaúchos…
ELMAR – Publicamos uma reportagem destacando aquilo que a imprensa havia negligenciado e que era talvez o mais importante: o indiciamento dos corruptores, onze  empresas, todas logomarcas reluzentes e grandes anunciantes. Talvez por isso o assunto na Justiça, apesar de ser uma “ação civil pública”, acabou encoberto pelo ”segredo de Justiça”. Estava quase esquecido quando o principal personagem da fraude, Lindomar Rigotto, voltou às manchetes, agora nas páginas policiais.

CA – Pela fraude na CEEE?
ELMAR – Não, agora foi pela morte de uma garota de programa, de 24 anos, que caiu nua do 14º andar de um prédio a 100 metros da Praça da Matriz, onde ficam as sedes do poder no Estado – o Palácio Piratini, o Tribunal de Justiça, a Assembléia Legislativa e a Cúria Metropolitana. A história, de setembro de 1998, nunca foi esclarecida, mas o que importa é que o dono do apartamento de onde a moça caiu era Lindomar Rigotto, o principal implicado na fraude da CEEE e que estava lá no momento da queda. Foi indiciado por homicídio culposo e omissão de socorro no inquérito que apurou a morte da moça. Lindomar só não foi a júri porque, em fevereiro, foi assassinado num assalto numa praia gaúcha.    


Na foto, tirada no Presídio Feminino Madre Pelletier, em Porto Alegre, aparecem (da esquerda para a direita), Rafael Guimarães, hoje free-lancer e escritor, Elmar Bones, Rosvita Saueressig (hoje editora-executiva do Valor Econômico, em São Paulo) e Osmar Trindade, fundador e editor do CooJornal, falecido em julho de 2009. Foto: Daniel de Andrade Simões


CA – O que ele fazia lá?
ELMAR – Após a sindicância da CAGE, que comprovou mesmo o desvio, ele e outros sete funcionários graduados envolvidos foram demitidos. Fora da CEEE, Lindomar e outro irmão, Julios, formaram uma rede de boates, o Ibiza Club, que chegou a ter quatro casas no litoral do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Ele estava na Ibiza de Atlântida, no início da manhã de quarta-feira de cinzas de 1999, quando os assaltantes chegaram. Lindomar e o gerente estavam fechando o balanço da noite. Lindomar saiu em perseguição aos bandidos, e acabou morrendo com um tiro no olho.  A polícia informou que os ladrões levaram uns R$ 30 mil, mas o dinheiro nunca foi recuperado, embora todos os envolvidos no assalto tenham sido presos pouco depois.
CA – E a imprensa, com isso, ressuscita o envolvimento de Lindomar com a CEEE?
ELMAR – Aí é que entra a ironia da história. Dois dias depois do assassinato, que obviamente rendeu grandes manchetes, o colunista mais importante da Zero Hora, Paulo Sant’Anna, escreveu uma crônica pungente sobre Lindomar Rigotto, que ele define como ”um homem que teve sua vida anatematizada pela tragédia”.  Menciona a sucessão de infortúnios que culminaram com o assassinato, solidariza-se com a dor dos familiares e dá o assunto por encerrado.
CA – Como assim, “encerrado”?
ELMAR – O colunista dá a entender que aquele homem marcado pela tragédia pagou com a própria vida os possíveis desatinos e que, daí em diante, mexer com sua morte era apenas mexer com a dor dos seus familiares. Na verdade, impedir que esse assunto caia no esquecimento é de certa forma uma defesa de Lindomar. Afinal, ele pode ter sido o operador, mas não fez nada sozinho. E os corruptores que foram apontados?
CA – E foi encerrado o papo?
ELMAR – O Paulo Sant’Anna é o cronista mais influente do Estado e, se ele diz que um assunto está encerrado, ninguém mais duvida – principalmente nas redações da RBS, que é o maior grupo de comunicação do Sul do país, com oito jornais diários, 32 emissoras de rádio e 10 de TV no Rio Grande e Santa Catarina. Aí eu percebi que tinha um baita assunto na mão e podia trabalhar com calma, porque ninguém ia mexer com isso.
CA – A reportagem do JÁ saiu quando?
ELMAR – Em 2001, mais de um ano depois da morte de Lindomar. A reportagem foi feita com grande dificuldade. Não tínhamos grana pra nada. A praia fica próxima de Porto Alegre, cerca de 120 km de distância em linha reta. E lembro que fomos ao litoral ver o processo, eu e um repórter, o tempo inteiro de olho na luzinha da gasolina. Nesse meio tempo, a circulação do jornal estava suspensa, a matéria ficou pela metade, numa gaveta.  O jornal só voltou a circular no início de 2001 e aí retomamos a reportagem. Quatro repórteres trabalharam nela.  Publicamos na edição de maio. Em agosto recebi a citação do juiz.
CA – Quem processou vocês?
ELMAR – A autora visível da ação é a senhora Julieta Vargas Rigotto, mãe de Lindomar e do ex-governador Germano Rigotto, hoje candidato a Senador pelo PMDB.
CA – O Rigotto é inocente nesta causa? Ele não sabe de nada? Jura?
ELMAR – Saber, o Rigotto  sabe, é claro, desde o início da ação na justiça. Quando estávamos finalizando a matéria, o repórter Olides Canton ligou para ele em Brasilia, quando ainda era deputado federal. Ele reagiu asperamente: “Eu não trato desse assunto”. E advertiu que sua mãe iria nos processar, que já havia acionado outros veículos.  

CA – E o que a mãe do inocente Rigotto alegava?
ELMAR – Eles ajuizaram duas ações. Uma queixa-crime por calúnia e difamação contra o autor da matéria, no caso eu, que assinava – com outros quatro repórteres – como responsável pelo texto final. A outra, uma ação cível, por dano moral, contra a editora do jornal.

O JÁ dá mais detalhes da corrupção que Rigotto quer esconder
CA – E aí?
ELMAR – No inicio ganhamos as duas. A ação cível teve decisão até antes, porque o nosso advogado nem discutiu o mérito. Ele alegou decadência de prazo, porque entrara mais de noventa dias depois da publicação. Estava em vigor a extinta Lei de Imprensa, que estipulava esse prazo para ações de dano moral. A outra teve um parecer do Ministério Público, uma decisão em primeira instância e uma sentença em tribunal, tudo no mesmo tom: a reportagem ateve-se aos fatos, não teve a intenção de ofender ninguém e atendia ao interesse público.  Ou seja, cumpria todos os requisitos clássicos de uma boa e correta reportagem.
CA – E o que aconteceu, então?
ELMAR – A sentença do juiz de primeira instância, mandando arquivar o processo civel por decadência de prazo, saiu em agosto de 2002, em plena campanha eleitoral na qual Germano Rigotto era o candidato do PMDB a governador. Em outubro, ele se elegeu consagradoramente. Em dezembro, um mês antes da posse de Rigotto, o Tribunal de Justiça do Estado acolheu inesperadamente um recurso e derrubou a decadência do prazo, sem levar em consideração a sentença do mesmo tribunal no outro processo. Julgou o mérito e acabou condenando a editora a pagar uma indenização de R$ 17 mil reais por danos morais. Resumindo o absurdo da questão: o mesmo tribunal que nos absolveu antes acaba por nos condenar depois. Assim, temos uma única reportagem e duas sentenças absolutamente contraditórias. Culpado e inocente, ao mesmo tempo, pela mesma matéria.
CA – E vocês não recorreram ao STF?
ELMAR – Recorremos, claro. Acontece que fomos condenados à revelia. Houve uma audiência para a qual não recebi intimação, nem eu nem minhas quatro testemunhas… E aí fomos condenados à revelia. O STF não acolheu o nosso recurso.  No nosso site www.jornal.ja.com.br está a integra da sentença e outros detalhes desta história. É uma didática leitura que vale a pena, para entender como a liberdade de expressão neste país pode ser atingida pela própria Justiça, que deveria protegê-la como ninguém.
CA – Bem, mas, com a Justiça brasileira, a condenação deve ter demorado, não?
ELMAR – Que nada, foi rápida. O tribunal reabriu o processo em dezembro de 2002 e, em agosto do ano seguinte, o jornal já estava condenado. Pouco depois fomos notificados para apontar bens à penhora.  Oferecemos nosso estoque de livros, uns 15 mil volumes de 35 títulos diferentes editados pela JÁ. A oferta foi recusada pela Justiça. E assim vem…
CA – Até que, agora, bloquearam tua conta pessoal no banco…
ELMAR – Pois é, fiz um empréstimo consignado de R$ 10 mil para pagar as contas mais urgentes, tinha um restinho de mil e poucos reais lá. Pois o juiz mandou sequestrar para pagar os advogados da dona Julieta. E, pelo que me diz o advogado, atropelando procedimentos processuais. É incrível: perseguido há dez anos, ainda tenho que pagar os honorários dos advogados que me processam.
CA – Que outros prejuízos você está sofrendo?
ELMAR – Os efeitos políticos de um processo desses sobre a editora e o jornal são devastadores.  O jornal sofre uma condenação dessas, absurda, mas não sai uma linha em lugar nenhum, ninguém sabe direito o que aconteceu… O que fica no ar, de forma leviana, para todo mundo que não entende bem este caso, é que ”um jornaleco irresponsável foi condenado porque ofendeu a honra e a imagem da família do governador”. E fica por isso mesmo.
CA – O jornal teve perdas com isso?
ELMAR – O governo estadual é o maior anunciante no Rio Grande, somando-se as verbas do Executivo e das estatais. Suas contas são atendidas pelas maiores agências da praça. Se você está vetado aí, qual é a consequência imediata?  Ninguém quer se incomodar com o maior cliente da publicidade no Estado e, daí, ninguém programa o “jornaleco irresponsável”. Esse escândalo que estourou agora no Banrisul mostra o uso político das verbas de publicidade. Dez milhões foram tungados para pagamento de propinas e caixa de campanha.  O Banrisul patrocina o principal prêmio de jornalismo do Estado, o Prêmio ARI, da Associação Riograndense de Imprensa. Tenho várias fotos com o presidente do banco entregando prêmios ao JÁ. Mas, desde 2003, quando Germano Rigotto assumiu como governador, o Banrisul baniu o JÁ das suas programações publicitárias. O maior banco do Estado anuncia até em jornalzinho de pet shop, só não anuncia no JÁ. Será que isso tudo é mera coincidência?
CA – E o que vai acontecer agora? Qual é a saída para o JÁ?
ELMAR – Nesse momento muitos interesses se juntam para tirar o jornal de circulação. Eles não vão conseguir. O JÁ vai resistir. Apesar do silêncio público, estamos recebendo muitas manifestações de apoio. Os artigos do jornalista Luiz Cláudio Cunha, em novembro e agora, no Observatório da Imprensa, abriram uma grande frente de resistência, reproduzidos em centenas de blogs pelo mundo afora. Acho que vamos comemorar os 25 anos em outubro com grandes e boas novidades.

Clique aqui para ler “Rigotto quer fechar um jornal ? A odisséia de um jornalista gaúcho”.

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