Dentro de poucos dias realizaremos, mais uma vez, eleições em todo o país. Elas coincidirão com o 22º aniversário da promulgação da atual Constituição. Quer isto dizer que já vivemos em plena democracia?
Nada mais ilusório. Se o regime
democrático implica necessariamente a atribuição de poder soberano ao
povo, é forçoso reconhecer que este continua, como sempre esteve, em
estado de menoridade absoluta.
Povo, o grande ausente
Quando Tomé de Souza desembarcou na Bahia, em 1549, munido do seu famoso Regimento do Governo, e flanqueado de um ouvidor-mor, um provedor-mor, clero e soldados, a organização político-administrativa do Brasil, como país unitário, principiou a existir. Tudo fora minuciosamente preparado e assentado, em oposição ao descentralismo feudal das capitanias hereditárias. Notava-se apenas uma lacuna: não havia povo. A população indígena, estimada na época em um milhão e meio de almas, não constituía, obviamente, o povo do novel Estado; tampouco o formavam os 1.200 funcionários – civis, religiosos e militares – que acompanharam o Governador Geral.
Iniciamos, portanto, nossa vida
política de modo original: tivemos Estado, antes de ter povo. Quando
este enfim principiou a existir, verificou-se desde logo que havia
nascido privado de palavra.
Foi assim que o Padre Antonio
Vieira o caracterizou, no Sermão da Visitação de Nossa Senhora, pregado
em Salvador em junho de 1640. Tomando por mote a palavra latina infans,
assim discorreu o grande pregador:
“Bem sabem os que sabem a
língua latina, que esta palavra, infans, infante, quer dizer o que não
fala. Neste estado estava o menino Batista, quando a Senhora o visitou, e
neste permaneceu o Brasil muitos anos, que foi, a meu ver, a maior
ocasião de seus males. Como o doente não pode falar, toda a outra
conjectura dificulta muito a medicina. (…) O pior acidente que teve o
Brasil em sua enfermidade foi o tolher-se-lhe a fala: muitas vezes se
quis queixar justamente, muitas vezes quis pedir o remédio de seus
males, mas sempre lhe afogou as palavras na garganta, ou o respeito, ou a
violência; e se alguma vez chegou algum gemido aos ouvidos de quem o
devera remediar, chegaram também as vozes do poder, e venceram os
clamores da razão”.
Quase às vésperas de nossa
Independência, esse estado de incapacidade absoluta do povo
afigurava-se, paradoxalmente, não como um defeito político, mas como uma
exigência de ordem pública. Em maio de 1811, o nosso primeiro grande
jornalista, Hipólito José da Costa, fez questão de lançar nas páginas do
Correio Braziliense, editado em Londres, uma severa advertência contra a
eventual adoção no Brasil do regime de soberania popular:
“Ninguém deseja mais do que nós
as reformas úteis; mas ninguém aborrece mais do que nós, que essas
reformas sejam feitas pelo povo; pois conhecemos as más conseqüências
desse modo de reformar; desejamos as reformas, mas feitas pelo governo; e
urgimos que o governo as deve fazer enquanto é tempo, para que se evite
serem feitas pelo povo.”
A nossa independência, que paradoxalmente não foi o resultado de uma revolta do povo brasileiro contra o rei de Portugal, mas, ao contrário, do povo português contra o rei no Brasil, não suscitou o menor entusiasmo popular. O naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire pôde testemunhar: “A massa do povo ficou indiferente a tudo, parecendo perguntar como o burro da fábula: – Não terei a vida toda de carregar a albarda ? ”
A mesma cena, com personagens
diferentes, é repetida 67 anos depois, na proclamação da república. “O
povo assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que
significava“, lê-se na carta, tantas vezes citada, de Aristides Lobo a
um amigo. “Muitos acreditavam sinceramente estar vendo uma parada.”
O disfarce partidário-eleitoral
Mas afinal, era preciso pelo
menos fazer de conta que o povo existia politicamente. Para tanto, os
grupos dominantes criaram partidos e realizaram eleições. Mas tudo sob
forma puramente teatral. O povo tem o direito de escolher alguns atores,
mas nunca as peças a serem exibidas. Os atores não representam o povo,
como proclamam as nossas Constituições. Eles tampouco representam seu
papel perante o povo (sempre colocado na platéia), mas atuam de ouvidos
atentos aos bastidores, onde se alojam os “donos do poder”.
No Império, Joaquim Nabuco
qualificava a audácia com que os partidos assumiam suas pomposas
denominações como estelionato político. Analogamente no início da
República, o fato de a lei denominar oficialmente eleições as “mazorcas
periódicas”, como disse Euclides da Cunha, constituia “um eufemismo, que
é entre nós o mais vivo traço das ousadias de linguagem”.
A Revolução de 1930 foi feita
justamente para pôr cobro às fraudes eleitorais. Mas desembocou, alguns
anos depois, na ditadura do “Estado Novo”, que suprimiu as eleições, sem
no entanto dispensar a clássica formalidade da outorga à nação (já não
se falava em povo) de uma nova “Constituição”.
Após o término da Segunda
Guerra Mundial, em que muitos dos nossos pracinhas tiveram suas vidas
ceifadas na luta contra o nazifascismo, fomos moralmente constrangidos a
iniciar uma nova vida política, sob o signo da democracia
representativa. Mas a legitimidade desta durou pouco tempo. Já em 7 de
março de 1947, ou seja, menos de cinco meses depois de promulgada a nova
Constituição, o Partido Comunista foi extinto por decisão judicial (
nesta terra, a balança da Justiça sempre cedeu aos golpes da espada). Em
fevereiro de 1954, com o “manifesto dos coronéis”, teve início a
preparação do golpe militar de 1964. O estopim para deflagrá-lo foi a
iminência de que as forças de esquerda chegassem eleitoralmente ao poder
e executassem o programa das “reformas de base”, com o desmantelamento
econômico da oligarquia.
Obviamente, para os nossos
grupos dominantes, os cidadãos podem votar como quiserem nas eleições,
mas desde que se lembrem de que “nasceram para mandados e não para
mandar”, segundo a saborosa expressão camoniana.
O regime autoritário,
instaurado em 1964 pela caserna, com o apoio do empresariado, dos
latifundiários e da Igreja Católica, sob a proteção preventiva do
governo norte-americano, reconheceu que a assim chamada “Revolução
Democrática” não poderia suprimir as eleições e os partidos. Manteve-os,
portanto, mas reduzidos à condição de simples fantoches. Era a
“democracia à brasileira”, como a qualificou o General que prendeu o
grande Advogado Sobral Pinto. Ao que este retrucou simplesmente:
“General, eu prefiro o peru à brasileira”.
O regime de terrorismo de
Estado foi devidamente lavado pelo Poder Judiciário, que decidiu
anistiar, com as lamentações protocolares, os agentes públicos que
mataram, torturaram e estupraram milhares de oponentes políticos.
Chegamos à fase atual, em que
as eleições já não incomodam os oligarcas, porque mantém tudo exatamente
como dantes no velho quartel de Abrantes. O povo pode até assistir,
indiferente ou risonho, uma campanha presidencial, em que os principais
candidatos dão-se ao luxo de não discutir um só projeto ou programa de
governo, preferindo ocupar todos os espaços da propaganda oficial com
chalaças ou sigilos.
Tudo parece, assim, ter entrado
definitivamente nos eixos. Um olhar atento para a realidade política,
porém, não deixará de notar que a nossa tão louvada democracia carece
exatamente do essencial: a existência de um povo soberano.
Iniciamos nossa vida política, sem povo. Alcançamos agora a maturidade, como se o povo continuasse politicamente a não existir.
Sem dúvida, a Constituição
oficial declara, solenemente, que “todo poder emana do povo”,
acrescentando que ele o exerce “por meio de representantes eleitos ou
diretamente” (art. 1º, parágrafo único). Mas toda a classe política sabe
– e o Poder Judiciário finge ignorar – que na realidade “todo poder
emana dos grupos oligárquicos, que o exercem em nome do povo, por meio
dos representantes por este eleitos”.
Daí a questão inevitável: o que fazer para mudar esse triste estado de coisas?
A emancipação política do povo brasileiro
É preciso atacar desde logo o ponto principal.
A soberania, na Idade Moderna,
consiste, antes de tudo, em aprovar a Lei das Leis, isto é, a
Constituição. Trata-se de uma prerrogativa que só pode ser exercida
diretamente. Quem delega o seu exercício a outrem está, na realidade,
procedendo à sua alienação. O chamado “poder constituinte derivado” é,
portanto, um claro embuste.
Ora, neste país, Constituição
alguma, em tempo algum, jamais foi aprovada pelo povo. Todas elas foram
votadas e promulgadas por aqueles que se diziam, abusivamente,
representantes do povo; quando não foram simplesmente decretadas pelos
ocupantes do governo.
O mesmo ocorre com as emendas
constitucionais. A Constituição Federal em vigor, por exemplo, já foi
emendada (ou remendada) 70 (setenta) vezes em 22 anos; o que perfaz a
apreciável média de mais de 3 emendas por ano. Em nenhuma dessas
ocasiões, o povo foi convocado para dizer se aceitava ou não tais
emendas.
Isto, sem falar no fato absurdo
de que a Constituição Federal, ao contrário de várias Constituições
Estaduais, não admite a iniciativa popular de emendas ao seu texto.
É preciso, pois, começar a
reforma política (alguns preferem dizer a “Revolução”), reservando ao
povo o poder nuclear de toda soberania. No nosso caso, ele consiste em
aprovar, diretamente, não só a Constituição Federal, como também as
Constituições Estaduais e as Leis Orgânicas Municipais, bem como suas
subsequentes alterações respectivas.
Em segundo lugar, é
indispensável reconhecer ao povo o direito de decidir, por si mesmo,
mediante plebiscitos e referendos, as grandes questões que dizem
respeito ao bem comum de todos. A Constituição Federal declara, em seu
art. 14, que o plebiscito e o referendo, tal como o sufrágio eleitoral,
são formas de exercício da soberania popular. Mas determina, no art. 49,
inciso XV, que “é da competência exclusiva do Congresso Nacional
autorizar plebiscitos e convocar referendos”. Ou seja, o mandante
somente pode manifestar validamente a sua vontade, se houver
concordância dos mandatários. Singular originalidade do direito
brasileiro!
Para corrigir esse despautério,
a Ordem dos Advogados do Brasil, por proposta do autor destas linhas,
apresentou anteprojetos na Câmara dos Deputados e no Senado Federal
(transformados no projeto de lei nº 4.718/2004 na Câmara dos Deputados e
projeto de lei nº 001/2006 no Senado), pelos quais o plebiscito e o
referendo podem ser realizados mediante iniciativa do próprio povo, ou
por requerimento de um terço dos membros da Câmara ou do Senado.
A proposta da OAB procurou
harmonizar os dispositivos antagônicos da Constituição Federal,
interpretando a autorização e a convocação de plebiscitos e referendos,
pelo Congresso Nacional, como atribuições meramente formais e não de
mérito.
Previram ainda os anteprojetos da OAB novos casos de obrigatoriedade na realização de plebiscitos e referendos.
Assim é que, para impedir a
repetição da “privataria” do governo FHC, passaria a ser obrigatório o
plebiscito para “a concessão, pela União Federal, a empresas sob
controle direto ou indireto de estrangeiros, da pesquisa e da lavra de
recursos minerais e do aproveitamento de potenciais de energia
hidráulica”; bem como para a concessão administrativa, pela União, de
todas as atividades ligadas à exploração do petróleo.
Quanto aos referendos, a fim de
evitar o absurdo da legislação eleitoral em causa própria, determinam
os projetos de lei citados a obrigatoriedade de serem referendadas pelo
povo todas as leis sobre matéria eleitoral, cujo projeto não tenha sido
de iniciativa popular.
Inútil dizer que tais projetos de lei acham-se devidamente paralisados e esquecidos em ambas as Casas do Congresso.
Para completar o quadro de
transformação da soberania popular retórica em poder supremo efetivo,
tive também ocasião de propor duas medidas indispensáveis em matéria
eleitoral. De um lado, o financiamento público das campanhas; de outro
lado, a introdução do recall ou referendo revocatório de mandatos
eletivos, proposta também pela OAB e objeto da emenda constitucional nº
073/2005 no Senado Federal. Assim, o povo assumiria plenamente a posição
de mandante soberano: ele não apenas elegeria, mas também teria o
direito de destituir diretamente os eleitos. Para os que se assustam com
tal “excesso”, permito-me lembrar que o recall já existe e é largamente
praticado em 19 Estados da federação norte-americana.
Não sei se tais medidas
tornar-se-ão efetivas enquanto eu ainda estiver neste mundo. O que sei,
porém, com a mais firme das convicções, é que sem elas o povo brasileiro
continuará a viver “deitado eternamente em berço esplêndido”, sem
condições de se pôr de pé, para exigir o respeito devido à sua
dignidade.
(*) Professor Emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra.
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